O MALDITO LEGADO DE RENÉ DESCARTES

Assim como Lutero iniciou a derrocada espiritual com uma decisiva ajuda, que foi o gravíssimo erro filosófico de Guilherme de Ockham, assim também René Descartes abrirá a derrocada filosófica. René Descartes (1596-1650) é decididamente o pai da filosofia moderna. René Descartes nasceu de berço católico, mas não demorou para o próprio, depois apostatar. Mas não é isso abordar-se-á nesse breve espaço, mas sim o seu principal erro geral, que foi buscar a originalidade no campo filosófico, isto é, fundar um método filosófico próprio, uma filosofia própria. Com efeito, escreve René Descartes:

Assim, porque os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos levam a imaginar. E porque há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo sobre os mais simples temas de geometria, e neles cometem paralogismos, julgando que eu era tão sujeito ao erro quanto qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que antes tomara como demonstrações. E, finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos quando acordados também nos podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja então verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões dos meus sonhos. Mas logo depois atentei que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade – penso, logo existo – era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como o primeiro princípio que buscava (Discurso do Método, IV).

Como podemos ver, Descartes recorre, em última instância, a um ceticismo tão radical que pode levar qualquer pessoa a questionar a realidade do chão em que pisa. E que “o primeiro princípio” de sua pseudofilosofia seria o seu “penso, logo existo”[1] (em francês: je pense, donc je suis, latinizado para ergo cogito, ergo sum sive existo, ou simplesmente cogito, ergo sum). Podemos interpretar essa afirmação de duas formas: 1) no seu sentido mais “forte” em que o pensar de Descartes dá o seu ser, isto faria o seu pensar se identificar com seu ser, que significaria dizer que Descartes simplesmente se autodivinizaria; ou 2) no seu sentido mais “ameno”, e nesse caso qualquer ação o faria concluir que existe como espirrar ou coçar (SCOTT HAHN & BENJAMIN WIKER; Politização da Bíblia, Ecclesiae, 2018, p. 362). E em qual sentido, Descartes usa? Difícil dizer. Ao mesmo tempo que ele diz que pensar é “tudo o que acontece em nós de tal modo que o percebemos imediatamente por nós mesmos” (Princípios de Filosofia, I, 9) – o que nos levaria a pensar no segundo sentido –, também escreve que: 

[Eu] era uma substância cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que este sou eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser o que é (Discurso do Método, IV) [grifos meus].

Aqui a autodivinização é inegavelmente explícita, pois Descartes praticamente atribui a si mesmo um dos nomes de Deus: Aquele que é (Gn 3, 14). Ainda lemos no livro escrito conjuntamente por Scott Hahn e Benjamin Wiker outro porquê: para Descartes basta conceber a ideia de um ser perfeito para ficar evidente que Deus existe. Ainda que ambos sejam modernistas, a obra é muito útil para entender o pensamento de Descartes. E escreve o autor (Hahn ou Wiker, não sei qual dos dois):

Em vez da demonstração habitual, por meio da criação ou natureza, na medida em que manifesta o poder e a sabedoria divinas, Descartes tenta provar a existência de Deus por meio de si mesmo, de sua essência definida como um ser pensante (Politização da Bíblia, p. 363).

E continua:

[…] embora possa parecer um tanto despretensioso afirmar que precisamos de Deus para garantir a certeza, no argumento de Descartes, Deus realmente atua como um garantidor redundante dos critérios da verdade baseados na matemática que Descartes propõe e, assim, de todo o seu projeto para transferir a certeza para nós. Não podemos deixar de indagar se, de forma consciente ouinconsciente, esse Deus não é moldado por Descartes exatamente para este propósito: servir de garantidor de seu projeto e manter a virtude nas mentalidades fracas (loc.cit., 364).

Na filosofia de Descartes, Deus é moldado à sua imagem e semelhança e Ele que nos serve para nos dar uma certeza e não nós que o servimos. Isso nos dá uma luz sobre o seu método, pois torna evidente que René Descartes rejeitou toda a Escolástica (que ele chama meramente de “Escola) e a filosofia clássica. Com efeito, coube a ele iniciar uma nova metodologia. Descartes prometeu que o seu principal trabalho elevaria a nossa natureza “ao seu mais elevado nível de perfeição” (Discurso do Método, I ). E depois escreve que conviria que a filosofia que teria tal pretensão fosse ensinada por um só homem pois “frequentemente não há tantas perfeições nas obras compostas de várias peças, e feitas pelas mãos de vários mestres, como naquelas em que apenas um trabalhou” (Discurso do Método, I I). Aqui vemos a modéstia do autor que ainda escreve que:

[…] Assim, imaginei que os povos que, tendo sido outrora semi-selvagens e tendo-se civilizado apenas pouco a pouco, foram fazendo as leis somente à medida que a incomodidade dos crimes e das querelas a isso os forçou não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, desde o momento em que se reuniram, observaram as constituições de algum prudente legislador. Como é muito certo que o estado da verdadeira religião, cujos mandamentos Deus fez sozinho, deve ser incomparavelmente mais bem regulamentado que todos os outros. E, para falar das coisas humanas, acredito que, se Esparta foi outrora tão florescente, não foi por causa da bondade de cada uma de suas leis em particular, visto que eram muito estranhas e até contrárias aos bons costumes; mas foi porque, tendo sido inventadas por um só indivíduo, todas tendiam ao mesmo fim (ibidem). [grifos meus]

Quem seria esse único homem que nos dará o verdadeiro método da verdadeira filosofia? Ele mesmo responde adiante quando escreve que estava buscando “o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito era capaz”. Assim como Siddartha Gautama alcançou as suas Quatro Nobres Verdades, também Descartes com seus estudos alcançou os seus quatro preceitos para simplificar os do que a lógica tradicional é composta, pois, segundo ele ficaria bem melhor regrado, assim como o estado fica melhor regrado com poucas leis, pois ficaria mais fácil observá-las, também a lógica ficaria mais fácil de segui-la se deixar os preceitos mais enxutos. Assim Descartes determinou ainda no mesmo lugar para si mesmo que estes preceitos seriam:

  1. Nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
  2. Dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las.
  3. Conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles que não se precedem naturalmente uns aos outros.
  4. Fazer em tudo enumerações tão completas, é revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir.

As partes grifadas acima são problemáticas. Descartes exigia do seu método um perfeccionismo impossível (ou cínico). E até aqui parece que o estrago já foi grande o suficiente para a história da filosofia com seu ceticismo perverso. Mas o estrago aumentaria com suas Regras para a direção do espírito.

Descartes era um matemático acima de tudo e seus escritos eram mais voltados às ciências exatas. Assim, sedento por certezas de sua área, Descartes teve a “brilhante ideia” de inserir na realidade ao qual os seus sentidos poderiam, segundo ele, errar nas suas percepções. Para Descartes, só as coisas que concebemos com muita clareza e nitidez podemos tomar por verdadeira. Mas também para Descartes somente Aritmética e a Geometria pode nos dar tal certeza (Regras para a direção do espírito, regra II). Com efeito, para Descartes toda a natureza deve ser estudada e descrita por princípios matemáticos. Descartes oficialmente divorciou-se do realismo filosófico trocando a forma substancial por meras descrições matemáticas.

Pois bem, isso mostra que Descartes deixou um legado maldito.

Primeiro, um subjetivismo radical, pois não apenas o homem agora é a medida de todas as coisas, mas também o “eu”. Agora, sendo o “eu” a referência de toda a realidade, eu decido o que eu sou, se sou homem ou mulher, se sou humano ou bicho e outras abominações. Descartes pode não ter querido isso, mas ele teve um papel decisivo sobre todos os males que vemos. Com Descartes, o “eu” deve definir se, por exemplo, devemos crer em Deus ou não, pois o “eu” que confirma a sua existência por ele mesmo, não mais a realidade externa.

Segundo, tudo passou a ser definido não mais pela sua forma substancial ou pela sua causa final como fazem os escolásticos, mas pelos seus acidentes quantitativos, o que emburreceu grandemente a humanidade. Assim, a própria natureza – com o tempo a humanidade também – passou a ser visto como mera máquina.

Terceiro, estendendo o primeiro, o subjetivismo e ceticismo radical de Descartes fez com que a opinião fossesacralizada. A mera opinião pessoal passou a valer mais do que a própria verdade. E por que tantos admiram um pensador tão cretino e abominável? Porque a filosofia de Descartes é como fruto que tentou Eva: “se comerdes deste fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3, 5). Pelo que lemos até aqui, não é muito semelhante o que a serpente prometeu? Certamente não é coincidência.

Por isso, a opinião pessoal que julgam provável passou a valer mais do que a correta da Doutrina da Igreja. Descartes étalvez o principal responsável pela apostasia moderna. Afinal, muitos, com o seu insensato ceticismo, abandonam ou repugnam a verdade católica para geralmente aderir ao ateísmo ou às heresias do buffet protestante.


[1] Convém transcrever a nota sobre essa citação na edição usada da obra de Descartes:

Proposição inicial e fundamental da filosofia (chamado cogito, abreviação da expressão latina cogito, ergo sum, ou seja, penso, logo existo). A propósito dessa expressão, observou-se que Santo Agostinho utilizara para refutar os cépticos a expressão: “Se me engano, existo”. Não se tem certeza de que Descartes conhecia os escritos de Santo Agostinho. De todo modo, mesmo que a expressão seja semelhante nos dois autores, o uso é totalmente diferente: não há em Agostinho nem dúvida metódica que a precede nem edificação de uma física que a segue (apud. RENÉ DESCARTES; Discurso do Método, tradução de Maria Ermantina Galvão, Martins Fontes, 1996, notas, pp. 94-95).

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