Na imagem em destaque, São Basilio Magno e São Gregório Nazianzeno, dois amigos de uma amizade tão profunda que diziam deles “dois corpos, uma única alma”.
Nos tempos atuais, a palavra “amizade” perdeu seu sentido original, muito se deve ao pensamento liberal, relativista e distorções pervertidas da filosofia moderna. Poucas pessoas sabem de fato o que é amizade. Fala-se em “amizade virtual” (ou à distância), “amizade colorida” etc. Mas será que são realmente amizades? O primeiro pensador que tratou mais extensamente sobre o tema foi Aristóteles. Escreve o Filósofo:
A amizade é, de fato, uma virtude, ou implica virtude e, além disso, ela é o que existe de mais necessário para a vida. Certamente, ninguém escolheria viver sem amigos, ainda que tivesse todos os outros bens (Ética a Nicômaco, 1155a2-6).
Tal citação é confirmada às luzes da Doutrina Cristã, pois ensina Santo Tomás de Aquino, Doutor Comum da Igreja:
… na convivência geral, havemos de nos ordenar convenientemente para os outros, tanto pelas nossas obras como pelas nossas palavras, comportando–nos para com cada um conforme ele o exige. E, portanto, deve haver uma virtude especial que observe essa conveniência de ordem. E essa se chama amizade ou afabilidade (S.Th., II-II, q. 114, a. 1, corpus).
Isso confirma que a amizade é a virtude que ajuda o homem a se ordenar convenientemente na sociedade na relação para com outros homens. O homem é um animal social e seria impossível ordenar-se conveniente numa sociedade onde todos os homens são inimigos dos outros, logo, a amizade é uma virtude essencialmente necessária para qualquer sociedade minimamente saudável. Como ensina a sã filosofia, dentre os dez predicamentos ou categorias, temos o gênero de acidentes qualidade, que se divide em outras espécies (cf. “NOTA SOBRE CATEGORIAS OU PREDICAMENTOS” e ARISTÓTELES; Categorias, 9a). Uma dessas espécies do gênero qualidade é o hábito. O hábito é uma disposição estável no ente que é como um acidente que é intermediário entre a potência e o ato que pode ser entitativo ou operativo. A primeira forma são movimentos naturais decorrente da forma substancial do ente. No caso do homem, temos o hábito da sindérese, onde se dá o conhecimento dos primeiros princípios da razão prática. Temos também os hábitos operativos que não aprofundarei senão dizer que podem ser bons ou maus a depender do seu objeto. Os hábitos operativos bons chamamos de virtudes e os maus de vícios (cf. DANIEL C. SCHERER; A Raiz Antitomista da Modernidade Filosófica, Edições Santo Tomás, 2018, p. 75). A virtude, podemos dizer, é um hábito operativo que busca a perfeição da potência (S. TOMÁS DE AQUINO; S.Th., I-II, q. 55, a. 1, corpus).
Assim, a amizade é de fato uma virtude e uma virtude especial parte da virtude cardeal justiça. Santo Tomás de Aquino ensina que a amizade é parte da justiça porque “concerne a um débito de honestidade, dependente mais da parte que possui essa virtude, do que de outrem, e que o leva a lhe fazer ao outro o que a si mesmo quer que lho faça” (S.Th., II-II, q. 114, a. 2, corpus). Santo Tomás endossa o que Aristóteles ensina:
… a amizade perfeita é aquela dos homens bons e que são semelhantes em virtude, pois esses homens bons desejam igualmente coisas boas uns aos outros, e eles são bons por si mesmos. Assim, aqueles que desejam coisas boas aos amigos por eles mesmos são amigos por excelência, porque eles são assim por sua própria natureza, e não por acidente; assim, a amizade deles permanecerá enquanto eles forem bons, e a bondade é uma virtude duradoura. E cada um deles é bom em si mesmo e também para o seu amigo, pois os bons são simplesmente bons e mutuamente úteis. E do mesmo modo também eles são agradáveis, pois os homens bons são agradáveis em si mesmos e também uns aos outros, já que cada um faz residir seu prazer nas próprias ações, e as ações dos homens bons são idênticas ou semelhantes (Ética a Nicômaco, 1156b7-17).
Podemos distinguir assim três tipos de amizades: a deleitável, onde fazemos amizade com alguém porque essa pessoa é agradável (fazemos amizade porque a pessoa tem as mesmas atividades lúdicas que a nossa, por exemplo); a útil, porque a pessoa pode nos ajudar com algo; e, por fim, a honesta, onde a razão dessa amizade é a virtude, a busca conjunta pela perfeição. A amizade honesta, necessariamente é útil e deleitável. Na concepção cristã, ela é muitíssimo mais elevada. Isso demonstra São Gregório Nazianzeno ao descrever a sua profundíssima amizade com São Basílio Magno:
Assim como cada pessoa tem um sobrenome recebido de seus pais ou adquirido de si próprio, isto é, por causa da atividade ou orientação de sua vida, para nós a maior atividade e o maior nome era sermos realmente cristãos e como tal reconhecidos (Oratio 43, in laudem Basilii Magni, 21: PG 36, 523).
Vemos na citação acima, um dos mais perfeitos exemplos de amizade da história. Ambos eram amigos para realmente glorificar juntos a Deus. Não à toa disseram deles que eram uma alma em dois corpos. Ambos queriam a mesma coisa: a glória de Deus. Porém, a modernidade nos deu duas realidades que merecem ser abordadas: a dita amizade colorida e a amizade virtual ou à distância são amizades? Antecipo que a primeira é falsa amizade e a segunda uma amizade verdadeira, mas incompleta. Explico.
A amizade necessariamente tem o bem por objeto, como toda virtude. Assim, concluímos que a dita “amizade colorida” não pode ser chamada de amizade de forma alguma, visto que há uma intenção sexual sem a intenção matrimonial (uma forma mais profunda de amizade honesta). Ora, chamamos fornicação o ato sexual fora do matrimônio e fornicação é pecado mortal. Como o pecado mortal nos aparta de Deus, que é o Sumo Bem e nos faz merecer o inferno, concluímos que a “amizade colorida” tem por objeto o mal e não o bem, ainda que os praticantes dessa amizade creiam buscar um bem, que é o prazer venéreo. A amizade colorida é tão falsa amizade como é falsa a amizade entre criminosos que se juntam para cometer crimes.
A chamada “amizade virtual” já é um caso mais complexo porque depende do fim. Uma “amizade colorida” de forma virtual é, evidentemente, pecado mortal e, portanto, uma falsa amizade. Se o objeto for um bem de fato, pode ser uma verdadeira amizade, pois a tecnologia possibilita contato com pessoas distantes criando uma forma de, digamos, uma sociedade virtual (a realidade virtual é um continente numérico onde a interação entre pessoas é possível). É possível interagir virtualmente buscando, por meio de trocas de ideias, por troca de palavras, um fim bom, ajudar, é possível uma relação boa. A amizade à distância é, podemos dizer, uma amizade verdadeira mas imperfeita, apenas com a potência de se tornar uma amizade perfeita. É imperfeita porque é acidentalmente incompleta, tal como uma pessoa com membros amputados é verdadeiramente uma pessoa com as partes essenciais, mas incompleta por falta de membros que lhe são próprios. Falta à amizade virtual o convívio real e físico com a pessoa para ter a plenitude de uma amizade perfeita.
Infelizmente, por causa da apostasia generalizada, onde está difícil encontrar até mesmo quem cumpre os mínimos preceitos de lei natural. Sendo a amizade parte da virtude da justiça, é necessário que haja um mínimo de noção de justiça. Ainda que sejam noções adquiridas tão somente pela própria razão natural. Isso evidentemente coopera com a proliferação (fora, claro, os afetos desordenados causados pela tríplice concupiscência).
Seja como for, o homem jamais viverá bem sem amigos. Homem moderno vive mal, muito mal, porque não tem verdadeiros amigos. A apostasia destrói a sociedade não apenas porque apaga a fé das pessoas, mas porque acaba com o vínculo da amizade. Seja entre os próprios apóstatas, seja porque não podem ser verdadeiros amigos de cristãos.
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