ANÁLISE CRÍTICA DO LIVRO
O MÍNIMO SOBRE ANARCOCAPITALISMO
Luciano Takaki
2023
INTRODUÇÃO
Desde a nossa recente conversão, buscamos sempre estudar bastante para eliminar quaisquer resquícios que lembrem o liberalismo. Consequentemente, também rejeitamos o anarcocapitalismo. Recentemente, O Sr. Paulo Hugenneyer Kogos escreveu um livro intitulado O mínimo sobre anarcocapitalismo, (O Mínimo, 2023, 202 p. Desde já, em prol da brevidade, usarei apenas a numeração da página entre parênteses quando fizer a referência). Resolvemos adquirir um exemplar para entendermos melhor os argumentos utilizados pelo autor, pois, pelo que conhecemos do anarcocapitalismo (desde já usaremos a sigla AC tanto para “anarcocapitalismo” como para “anarcocapitalista”), sempre tivemos certeza de que é uma doutrina filosoficamente errônea e herética, ou que ao menos tem sabor de heresia. Todavia, após nossa conversão e rechaço do AC como algo contrário à Doutrina Católica, soubemos que o Sr. Paulo Kogos continuara namesma posição. Sentindo a necessidade urgente de combater a nefasta heresia, resolvemos publicar textos contra o AC, dos quais destaco “Os erros de Hans-Hermann Hoppe” e “O diabólico pensamento de Murray Rothbard”.
Kogos nega, entretanto, que o AC em si mesmo incorra em heresia ou mesmo em erros contra a sã filosofia. O que não deixa de surpreender, já que isso mostra que ele traz uma nova concepção de AC, quiçá, tal qual, mutatis mutandis, o clero da teologia da libertação traz do comunismo. Poderíamos dizer que o AC proposto por Kogos diverge do ensinado por Rothbard e Hoppe, i.e., ele criou uma nova doutrina política ainda mais nova que esses grandes expoentes do AC, que é uma outra coisa com o mesmo nome.
Para buscar compreender o que Kogos realmente pensa sobre um assunto que é em si muito grave ao católico, – pois o Magistério da Igreja prega a Realeza de Cristo, que devemos professar – resolvi adquirir um exemplar, como dito acima. O livro é breve, pois, apesar das 200 páginas, o formato é minúsculo com letras médias com destaques que reduziriam ainda mais a quantidade de páginas a ser usadas se colocadas no mesmo formato do restante do corpo do texto. Kogos também evitou usar notas de rodapé, o que dificulta a localização das referências. Nota-se assim que o livro é antes um panfleto para difundir o pensamento Kogos.
Desde já, desejamos esclarecer que não temos qualquer tipo de aversão pessoal à pessoa do Sr. Kogos. O objetivo é alertar a ele e outras pessoas que o seguem sobre sua doutrina, que é maléfica como se demonstrará.
Aqui procuraremos comentar as passagens que mais chamam a atenção da maneira mais sucinta possível.
ANTES DA LEITURA DO LIVRO,
A LIVE COM BERNARDO KÜSTER
Antes de chegar o livro, assistimos a uma live (cf. <https://www.youtube.com/watch?v=1XOq4b9aCVM>) do Kogos sobre o livro no canal do youtuber liberal conservador Bernardo Küster no dia 16 de fevereiro de 2023. Aqui destacaremos os primeiros 20 minutos para não estender demais o artigo. Kogos em 8 minutos e 40 segundos usa os termos “o meu anarcocapitalismo” e em 10 minutos e 20 segundos fala que ele quis fazer um anarcocapitalismo seguindo os princípios da filosofia aristotélico-tomista. No minuto seguinte, Kogos diz que “não faz a mínima ideia” sobre as soluções para problemas que o Estado busca solucionar (segurança, transporte, saúde etc). Esses problemas caberiam aos empresários e não ao governo. É curioso que Kogos proponha algo e se esquive da solução.
Em 15 minutos e 10 segundos, Kogos ensina que “os corpos intermediários [incluindo governos] não existem para serem perfeitos”. A afirmação cheira a heresia, visto que sendo esses corpos intermediários são frutos de homens e compostos por homens, devem, por lei divina, ser perfeitos porque, na cidade católica, todos os órgãos, todos os governos devem ser necessariamente meios para alcançar a santidade. Ou tudo o que é dirigido pelos homens busca a perfeição na medida do possível, ou a sociedade fica como está. Tudo o que é feito e dirigido segundo a razão deve, sim, ser perfeito e existe para ser perfeito. Esta parte mostra bem o que podemos esperar.
Kogos, por fim, nega que ele rejeita os governos, mas que os governos deveriam ter seus serviços competindo no mercado. Inclusive o serviço judiciário. Veremos que isso é, na prática, ausência de governo.
SOBRE O LIVRO EM SI
ESTRUTURA DO LIVRO
O livro se divide em cinco capítulos:
1. APRESENTAÇÃO
2. A ESSÊNCIA DO ANARCOCAPITALISMO
3. ECONOMIA DO ANARCOCAPITALISMO
4. APLICAÇÕES SETORIAIS DO ANARCOCAPITALISMO
5. ESTRATÉGIAS PARA UMA CONTRA-REVOLUÇÃO ANARCOCAPITALISTA
Aqui nos atentaremos somente a 1., 2. e 5. Dada a acidentalidade de 3. e 4., deixaremos para um artigo futuro. Aqui trataremos somente das partes mais essenciais em prol da brevidade do artigo, pois, caso contrário, teríamos de escrever um outro livro (o que não descartamos para um futuro próximo). Sigamos aqui as partes extrínsecas do livro e depois dividamos o artigo por seções com o título de cada capítulo comentado.
O TÍTULO
Não temos meios de saber se o título foi escolhido a pedido da editora (que se chama “O Mínimo”) ou se foi inspirado no título do livro do Olavo de Carvalho, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Seja como for, quando lemos “o mínimo sobre tal coisa”, esperamos saber o essencial sobre tal coisa.
Vamos dar um exemplo: quando dizemos que num texto ou numa conferência será exposto o mínimo sobre o homem, esperamos a explicação da essência do homem: animal racional. Isto é, como o homem é um composto de um corpo animado por uma alma racional. O livro do Kogos é brevíssimo, mas esperamos que contenha o suficiente sobre a doutrina do AC.
A CAPA
É muito interessante começar a análise pela capa do livro: o emblema da Organização das Nações Unidas (ONU) com um sinal de bloqueio com as cores do AC sobre ela. Basicamente, dando a entender que uma doutrina individualista é uma resistência ao coletivismo da ONU. Claro é para todos nós que a ONU é hoje um organismo satânico, pois há tempos se revelou como tal, ainda que tenha recebido um apoio circunstancial por parte de Pio XII numa ocasião em que se buscava uma solução quase desesperada para a Segunda Guerra Mundial. A ONU seria um mal menor.
Todavia, o tempo passou, e a ONU, que seria antes uma coalizão de países que buscariam a paz mundial e a sua manutenção (a paz social entre países em si é um bem, o que não pode é que ela se dê às custas da negligência ou omissão da profissão da nossa Fé Católica), revelou-se um órgão tirânico que ameaça a soberania das nações. Mas será que o AC é uma real resistência à tirania globalista da ONU, ou melhor, ao mundialismo judaico-maçônico radicalmente anticatólico? Vemos que as nações, graças à apostasia das mesmas, aderem docilmente à agenda da mesma. Mas então nos perguntamos: a proposta do Kogos seria a resistência ideal à satânica agenda? É o que veremos.
Na contracapa, uma breve descrição. Kogos nega que o AC seja “uma maneira desregrada de viver o capitalismo mais selvagem possível” ou “uma proposta capitalista para um movimento radicalmente anárquico”. Mas será que na prática seria assim? Em Hoppe lemos o seguinte:
“Eles – os defensores de estilos de vida alternativos, avessos à família e a tudo que é centrado no parentesco (como, por exemplo, o hedonismo, o parasitismo, o culto da natureza e do meio ambiente, a homossexualidade ou o comunismo) – terão de ser também removidos fisicamente da sociedade para que se preserve a ordem libertária” (HANS-HERMANN HOPPE; Democracia – o deus que falhou, Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 254).
Certamente sabemos que Kogos discorda de Hoppe. Com efeito, ele escreve em seu livro que a ética argumentativa hoppeana falha em ignorar a natureza humana. Mais tarde comentaremos sobre isso. O fato é que Hoppe, tal como Kogos, defende uma sociedade “conservadora” e rejeita as promoções progressistas dentro do movimento.
Comentemos agora os capítulos do livro. As seções deste artigo comentando os capítulos terão os mesmos títulos dos referidos capítulos entre aspas.
“A APRESENTAÇÃO”
A apresentação dada por Kogos chama a atenção logo no início:
“Por que você abriu este livro? Os políticos, seus ‘representantes’, já não decidiram por você e por sua família sob qual regime deverão viver? O seu interesse por este título já demonstra uma justa rebelião contra aqueles que lhe negam o incentivo para exercitar o discernimento sobre questões políticas e o direito de aplicar as conclusões à sua própria vida” (p. 8).
A palavra “rebelião” já nos dá uma ideia do que está por vir. Geralmente usamos palavras como “resistência” em oposição ao vício do servilismo. O uso incomum dessa palavra num livro de alguém que se passa por católico já deveria levantar suspeitas. Na linguagem em que usamos nos textos apologéticos é conveniente evitar o uso da palavra que está no texto.
Kogos continua:
“Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, atribui ao sábio o conhecimento daquilo que é melhor para si, mas lembra que os políticos costumam se intrometer nisso. É nesse momento que o incentivo à sabedoria acaba, o que o filósofo demonstra logo em seguida ao citar o poeta Eurípides: ‘Mas para que dar-me ao trabalho de ser sábio, se como parte do numeroso exército obteria sem esforço um quinhão igual?’” (pp. 8-9. Negrito nosso).
Kogos peca pela falta de referências em seu trabalho. Em nenhum momento (salvo uma outra citação bíblica) nos dá. Sabemos que os manuais de filosofia e teologia não se usava, mas como vivemos num momento em que é mais comum dar as devidas referências (os manuais há tempos que colocam ricas referências), procuraremos dá-las sempre aqui. Citemos Aristóteles em seu contexto in extenso:
Uma das formas de conhecimento será seguramente saber que é próprio a si mesmo, mas esse conhecimento é muito diferente das outras espécies. Parece que aquele que conhece seus próprios interesses e com eles se ocupa, é um homem dotado de sabedoria prática, enquanto os políticos são considerados intrometidos. De onde os versos de Eurípides:
Mas como serei eu sábio se, sendo parte do numeroso exército,
Obteria sem esforço um quinhão tal?
Pois as pessoas miram alto e querem mais que os outros.
Aqueles que pensam assim procuram somente seu próprio bem, e eles acreditam que é um dever agir assim. Essa opinião faz nascer a ideia de que pessoas assim possuem sabedoria prática; talvez, entretanto, a busca do bem por cada um não ocorra sem economia doméstica nem sem alguma forma de governo. Além disso, o modo que se deve administrar seus próprios assuntos não parece ser claro e deve ser analisado (Ética a Nicômaco, lib. VI, 1141b34-1142a12. Grifos nossos).
Aristóteles refere-se aqui à pessoa que possui a sabedoria prática e sobre os políticos serem intrometidos, não é mais que uma afirmação dialética. Percebe-se que Aristóteles usa muitos os termos “parece”, “são considerados” etc. O terreno em que Aristóteles pisa ainda é um pouco obscuro. Que a sabedoria prática não é sabedoria simpliciter, ele afirma mais à frente:
Que a sabedoria prática não é conhecimento científico, isso é uma coisa manifesta. Ela se ocupa, de fato, sobre o que há de mais particular, como já foi dito, pois a ação a ser realizada é ela mesma particular (1142a24-26).
Para Aristóteles, sábio simpliciter é quem conhece as coisas segundo os primeiros princípios e as sabe ordenar. Claro éque o sábio necessariamente tem a sabedoria prática, mas não segue que todos os que têm sabedoria prática sejam sábios. Um camponês ou um artesão não são geralmente sábios, mas podem ter mais sabedoria prática que muitos eruditos; nossa própria experiência o demonstra quando encontramos anciãos iletrados e mesmo analfabetos que conseguem dar bons conselhos e vivem retamente.
Com respeito à sabedoria simpliciter, ainda ensina o Filósofo:
“Assim, fica claro que a sabedoria é o conhecimento de certos princípios e causas. Uma vez que estamos investigando este tipo de conhecimento, é necessário que consideremos quais são as causas e princípios cujo conhecimento é sabedoria. Talvez seja mais esclarecedor se tomarmos as opiniões sustentadas quanto ao sábio. Consideramos, em primeiro lugar, portanto, que o sábio conhece todas as coisas, na medida do possível, sem ter conhecimento de cada uma delas individualmente; em seguida, que o sábio é aquele capaz de compreender coisas difíceis, as que não se mostram fáceis à compreensão humana (visto que a percepção sensorial, comum a todos, é fácil e nada tem a ver com a sabedoria); e, ademais, que em todo ramo do conhecimento um indivíduo é mais sábio proporcionalmente à sua maior informação precisa e à sua melhor capacidade de expor as causas. Além disso, entre as ciências, consideramos que a ciência é desejável em si” (Metafísica, 982a1-14).
E é assim que inicia Santo Tomás de Aquino a Suma Contra os Gentios:
“Segundo o Filósofo, deve-se seguir o uso comum quando se trata de nomear as coisas; chamem-se, pois, sábios os que ordenam retamente as coisas e as governam bem. Daí que, entre outras coisas, que os homens concebem do sábio, o Filósofo afirma que é próprio do sábio o ordenar” (Suma Contra os Gentios, lib. I, cap. I).
Conclui-se assim que Kogos deformou o ensinamento do Filósofo em prol do seu pensamento errôneo e, consequentemente, também o de Santo Tomás, que segue Aristóteles.
Resumindo: Kogos atribuiu ao sábio o que na verdade é meramente uma sabedoria prática que pode acidentalmente ser atrapalhada pelos políticos, mas não significa que os mesmos façam necessariamente tal coisa, como se verá, pois Aristóteles, que sempre com eles conviveu, ensina que a política é a “mais prestigiosa, sobretudo da mais soberana arte”, visto que administra os bens da pólis (Ética a Nicômaco, 1094a27). Kogos falará de sabedoria prática mais à frente, em outro contexto, mas no caso comentado, houve, deveras, uma deformação.
Mais adiante, Kogos cita o economista Claude-Frédéric Bastiat, quando ele diz que o Estado é uma “grande ficção onde todos acham que podem viver às custas dos demais” (p. 12). A citação completa de Bastiat é dificílima de encontrar. Eu mesmo não tenho a referência desta, mas o que podemos fazer é ver como Kogos coloca a citação e como a utiliza. Na página 32, Kogos escreve numa nota de rodapé:
“Ao longo do livro, usarei ‘Estado’ com letra maiúscula para me referir à governança monopolista, aquela que não reconhece autoridade que a preceda, e portanto, por definição, corrompida” (negrito nosso).
O conceito dado por Kogos é errôneo e totalmente inusual para todos os autores ortodoxos e tomistas, como veremos mais à frente. É de praxe ele ressignificar os termos ou usar significados muito pouco habituais (o que não raro produz ambiguidades) ou mesmo em desuso. O Estado é antes a sociedade politicamente organizada, que costumamos chamar na filosofia de pólis ou o próprio poder temporal. Kogos usa o conceito de pensadores libertários como Rothbard[1] e Hoppe[2]. Se olharmos os conceitos desses autores, é perceptível que refere-se ao poder temporal exercido territorialmente. Se assim é, temos uma heresia. Ensina o Papa Leão XIII:
“… como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor.”
“Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. ‘Todo poder vem de Deus’ (Rom 13,1)” (carta encíclica Immortale Dei, nn. 4-5, 1º de novembro de 1885. Grifos nossos).
O poder público em si é bom por ter Deus como causa. Depois diz Kogos que o Estado foi a causa eficiente de 262 milhões de mortes (?!) segundo um estudo do Rudolph Rummel, um defensor feroz da democracia liberal. Kogos, para justificar a ideia de que o Estado é realmente a causa eficiente de todo democídio (e não a malícia do governante), cita a Sagrada Escritura, mais precisamente I Samuel 8 (ou I Reis 8, se pegarmos uma bíblia mais tradicional). Podemos ver que Kogos dá uma interpretação particular à Sagrada Escritura, na qual faz uma exegese pouco comum (quiçá única). Santo Agostinho ensina sobre isso o seguinte:
“A alguns, de fato, que não têm paciência, o Senhor Deus, em sua ira, concede-lhes o que pedem, assim como, por outro lado, ele recusou a seu apóstolo, em sua misericórdia. Lemos o que e como os israelitas pediram e receberam, mas, quando sua luxúria foi satisfeita, sua falta de paciência foi severamente punida. E, quando pediram, deu-lhes um rei, como está escrito, segundo o coração deles, mas não segundo o seu [próprio] coração… Estas coisas estão escritas para que, se a sua oração for ouvida, ninguém pense bem de si mesmo, quando tiver pedido impacientemente o que seria melhor não receber; e para que ninguém seja abatido e se desespere da misericórdia divina para consigo se sua oração não foi ouvida, quando, talvez, tenha pedido algo que traria um sofrimento mais amargo se o recebesse ou causaria sua queda se fosse arruinado pela prosperidade. Em tais circunstâncias, então, não sabemos pelo que devemos orar, como deveríamos” (Epist. 130).
São Cipriano de Cartago:
“E para que possamos saber que esta voz de Deus veio com sua verdadeira e maior majestade para honrar e vingar seus sacerdotes… No livro dos Reis [Samuel], também quando Samuel, o sacerdote, foi desprezado, como é conhecido, pelo povo dos judeus por causa de sua velhice, o irado Senhor clamou e disse: “Eles não rejeitaram você, mas eles rejeitaram a mim”. E para vingar isso, ele ergueu sobre eles o rei Saul, que os afligiu com graves ferimentos e pisou e pressionou o povo orgulhoso com todos os insultos e punições para que o sacerdote desprezado pudesse ser vingado, no povo orgulhoso, pela vingança divina” (Epist. 3, 1).
O pecado em si não foi desejar um rei, mas a razão de tal desejo. Os hebreus queriam um rei por pura vaidade e rejeitaram que Deus reinasse diretamente sobre eles tendo um juiz como pontífice. Assim, Deus impôs o castigo. Por isso que, no final, resultou no exílio na Babilônia. Padre George Leo Haydock comenta:
“‘Deus, em Sua ira, concede a uma pessoa o que ela deseja injustamente.’ (Santo Agostinho) Ele permite que as pessoas sigam seus próprios planos; e os hebreus acreditam que Ele lhes deu Saul para puni-los, sendo bem informado de sua natureza orgulhosa e cruel. (Cuneus Rep.) (Calmet) O rejeitado governo de Israel até então tinha sido uma teocracia, na qual o próprio Deus governou imediatamente, por leis que Ele havia promulgado e por juízes extraordinariamente levantados por Ele mesmo. E, portanto, Ele reclama que seu povo O rejeitou, desejando uma mudança de governo, (Challoner) e desejando nomear seus próprios magistrados. Os sacerdotes e juízes foram comissionados por Deus, Êxodo xix., e Deuteronômio xvii. (Worthington)” (Bíblia Douay-Rheims, National Publishing Co., 1883, p. 295).
O Pe. Haydock mais a frente ensina, seguindo a Santo Tomás, que Deus permite que reis punam o povo pelos seus pecados, mas os mesmos estão obrigados a seguir a sua lei (ibidem).
Vemos assim que Kogos ressignifica a palavra Estado por dupla razão, pois se o Estado é – para a filosofia escolástica – o mesmo que pólis, a rejeição ao estado seria filosoficamente errônea, porque nega a natureza social humana, pois o próprio homem é, nos dizeres do Filósofo, um animal político em decorrência de sua natureza racional. Se Kogos rejeita o Estado enquanto poder temporal, cai em heresia e indocilidade à Lei Divina, pois o Papa Leão XIII já ensinou solene e infalivelmente que esse poder vem de Deus tendo como referência a Sagrada Escritura. Assim, temos Kogos ressignificando uma palavra de forma desviada do beneplácito aristotélico-tomista para fugir tanto do erro filosófico como da heresia. Creio que estendi-me longamente sobre a apresentação. Vamos ao próximo capítulo.
“A ESSÊNCIA DO ANARCOCAPITALISMO”
Já em seu início, Kogos mostra divergir dos principais autores AC. Ele nega a ausência de hierarquia (apesar de o AC não negar exatamente a existência de hierarquia e sociedades como a família, empresas, corporações, instituições, etc) e ordem, e que não se trata de capitalismo propriamente dito (não o capitalismo feroz, como aquele proposto pela Escola de Manchester, pelo menos). Segundo Kogos, seguindo a Gustave le Bon, ele usa tal nome feio porque “as piores teorias políticas se disfarçam sob belos nomes” (p. 19). Claro que o que vemos aqui é um pretexto para utilizar as suas diversas ressignificações, inclusive do próprio AC, pois comunismo, por exemplo, é um péssimo nome, socialismo também. Desconhecemos qualquer teoria política com um nome que seja agradável aos ouvidos.
Depois, Kogos ensina que “…[p]ara Santo Agostinho, governos são permitidos por Deus como punição pelo pecado original”. Deveras, Santo Agostinho ensina que a pólis não é mais que um conjunto de homens que vivem unidos (De Civitate Dei V, 1). O governo coercitivo como tal decorre da mancha do pecado original porque os pecadores devem ser reprimidos (em casos extremos, até mortos). Isso novamente não torna o Estado necessariamente ruim, visto que, como vemos acima, decorre da própria natureza humana, manchada ou não pelo pecado original. Sem a mancha do pecado original, o Estado existiria para fins meramente administrativos, mas continuaria existindo. Isso está explícito em De Regno, de Santo Tomás de Aquino.
Isto observou Aristóteles:
“Então, é evidente que a cidade existe por natureza e que precede o indivíduo; pois se cada um em separado não for autossuficiente, estará igualmente às outras partes em relação ao todo. Mas o ser que não for capaz de participar de uma comunidade, ou não necessitar de nada dela, em razão da sua autossuficiência, e que não faz parte da cidade, desse modo ou é um animal selvagem ou um deus. Então, por natureza, existe o impulso em todos para formar uma comunidade desse tipo; e o primeiro homem que a fundou é o responsável pelos maiores bens? Pois, tal como o homem perfeito é o melhor dos seres vivos, assim também o que se afasta da lei e da justiça é o pior de todos” (Política, 1253a).
Santo Tomás de Aquino segue a Aristóteles:
“… é necessário ao homem viver em multidão, de modo que um ajude ao outro, e diversos se ocupem de investigar diversas coisas por meio da razão, por exemplo, um na medicina, outro em outra coisa, e outro em outra coisa ainda. E isto ainda se mostra evidentissimamente pelo fato de que é próprio do homem o uso da fala, pela qual um homem pode exprimir totalmente a outros o seu pensamento. … Com efeito, como os homens são muitos e cada um provê o que lhe é congruente, a multidão dispersar-se-ia em diversos sentidos se não se encontrasse também alguém que tomasse cuidado do que compete ao bem da multidão, assim como o corpo do homem ou de qualquer animal se desagregaria se não houvesse no corpo alguma virtude regitiva que tendesse ao bem comum de todos os seus membros. Considerando-O, disse Salomão [Prov. 11, 14]: ‘Onde não há quem governe, perecerá o povo’. E isso sucede razoavelmente” (De Regno, lib. I, cap. 1).
Até aqui vimos que todos os pensadores sérios pregam a necessidade de um chefe sobre os que vivem em sociedade. Kogos até aqui procurou persuadir que o AC não versa sobre o que Hoppe e Rothbard ensinam, mas já citou autores liberais como referências (Bastiat e Rummel) e, como mostramos acima, utilizou a palavra “rebelião”. Adverti aqui que, ainda que possamos utilizar o referido termo numa acepção aceitável, não convém usá-lo num livro que, em tese, destina-se à propagação de uma teoria que, espero, é católica (presumindo, impelido pela caridade, que Kogos seja católico).
Mas qual o problema de utilizar tal palavra (rebelião)? É o que veremos agora. Kogos escreve:
“Notemos, contudo, que São Miguel, o príncipe das milícias celestes que liderou os anjos fiéis na batalha contra os anjos rebeldes, foi desobediente. Ele é um arcanjo (o segundo coro mais baixo na hierarquia angélica) enquanto Lúcifer era o mais alto dentre os mais altos, os serafins. São Miguel, por ser antes de tudo um servo de Deus, recusou-se a seguir seu rebelado superior angélico. Eis o primeiro anarco-capitalista, a extrema-direita celeste” (p. 27).
Primeiro, o que chama a atenção é usar o termo “desobediente”, sendo evidente que de forma alguma São Miguel era inferior a Lúcifer, pois a suposta inferioridade de São Miguel é de natureza e não de glória. Ademais, Lúcifer era um querubim e não serafim. Poderíamos até conjecturar sobre Lúcifer ter sido criado para ser e ocupar uma posição superior à de São Miguel, mas não foi o que ocorreu pois a desobediência deste último a Deus o fez perder imediatamente a sua autoridade. Ademais, com respeito à natureza do Querubim e Serafim, Santo Tomás de Aquino ensina:
Querubim quer dizer plenitude da ciência e, Serafim, ardentes ou que incendeiam. Assim, é claro que o Querubim tira a sua denominação da ciência, que pode ir com o pecado mortal; porém, a denominação de Serafim vem do ardor da caridade, que não pode coexistir com tal pecado. Por isso, o primeiro anjo pecador não era denominado Serafim, mas Querubim (S.Th., I, q. 63, a. 7, a. 1).
Sobre os anjos, ainda que constituam coros, nada indica que um tenha autoridade sobre o outro a ponto de um exigir obediência a outro. Tendo uma inteligência perfeitíssima, devem obediência apenas a Deus. Muito menos teria tal autoridade um anjo que num lapso de tempo quis ser como Deus. O único desobediente foi Lúcifer, que, ao desobedecer, não pode ter absolutamente nenhum tipo de autoridade sobre nenhuma criatura. O que Kogos escreveu é herético, blasfemo e temerário. A partir dessa afirmação iníqua, Kogos usa a imagem do Arcanjo São Miguel para fazer propaganda política.
Em seguida, tenta defender a ideia de que o AC é de “direita”. A sua referência é o Cesar Ranquetat Jr. Kogos assim escreve que “‘a direita é o que é justo, reto, correto, conveniente, sincero, fundado, razoável e verdadeiro. Já a esquerda explicita noções negativas, tais como sinistro, obscuro, torto, torpe, sem valor, débil, incorreção, oblíquo, desafortunado e inepto’ [citação do Ranquetat]. Esta constatação é corroborada pelas Sagradas Escrituras, onde lemos que ‘o coração do sábio vai para a direita, mas o coração do insensato para a esquerda’ (Ecl 10, 2). // O anarcocapitalismo é o esforço constante para se manter o mais à direita possível no espectro político. Pode ser definido como a preservação das justas hierarquias e autoridades contra os usurpadores, para que as sociedades políticas mantenham sua função ordenada” (p. 28).
É notável que em quase todas as suas aparições, Kogos exalta a direita política. A direita política, como o Leitor sabe, é a maior enganação que existe para quem busca escapar à política revolucionária. Gustavo Corção deixa isso bem claro no seu livro O Século do Nada (cf. o excerto “A farsa do jogo esquerda-direita”) e como deixei claro no artigo “A armadilha do conservadorismo”.
Aqui vemos que Kogos ressignifica o que é Estado e o que é a direita (seguindo a perspectiva proposta por Ranquetat) para ressignificar também o que é AC. Quando Kogos coloca as qualidades positivas na direita para conceituar o AC praticamente como uma espécie de santidade. Perceba o Leitor que isso pouco difere do que os adeptos da teologia da libertação fazem com o termo comunismo. Até aqui é evidente para todos que Kogos faz um jogo linguístico. É evidente que, a partir desse jogo de ressignificações, Kogos terá uma licença para inocular o veneno liberal produzido pelos pensadores liberais ligados à Escola Austríaca e mesmo anarquista.
Em duas passagens, Kogos deixa bem claro que a sua intenção é transformar o AC numa espécie de nova revelação pública. Vejamos em duas passagens:
“Notemos que a pergunta ‘Quando o Estado funcionou?’ é muito mais sensata que a pergunta ‘Quando o anarcocapitalismo funcionou?’, afinal este funciona constantemente nas instituições naturais como a família e nas contratuais como as empresas honestas” (p. 32).
Mais à frente:
“O anarcocapitalismo permite conciliar a necessidade das hierarquias políticas com o emprego das faculdades individuais na escolha delas…” (p. 33).
E no parágrafo seguinte, começamos a adentrar na qüididade do AC:
“Para que os monarcas sirvam aos súditos, devem competir por eles, do contrário não haverá critério para avaliar suas virtudes. Hoppe comenta o conceito de elite natural, composta por indivíduos que se sobressaem por suas qualidades técnicas e morais, sendo reconhecidos espontaneamente como líderes aptos a proteger as autoridades que os precedem.” (ibidem, p. 33. Grifos nossos).
Kogos ensina que os monarcas devem competir pelos seus súditos e depois menciona o agnóstico kantista Hoppe como uma referência que pode apontar alguma solução. Monarcas devem em verdade propagar a fé católica e buscar converter a população e fazê-los viver a virtude. Será que assim se conquista súditos nos dias de hoje? Kogos continua noutro parágrafo:
“O anarcocapitalismo, cuja essência é a livre adesão a instituições jurídicas, permite que os critérios de validação das autoridades não sejam deturpados para servir a interesses espúrios ou aos apelos irracionais das massas. Possibilita o constante reequilíbrio entre monarquia, aristocracia e politeia que Santo Tomás de Aquino defende ser a melhor governança. A resultante plasticidade das jurisdições fortalece aquilo que é essencial e perene, como a tradição e a moralidade, ao mesmo tempo evitando a uniformização burocrática que, segundo o historiador Arnold Toynbee, caracteriza as civilizações em declínio” (p. 34. Grifos nossos).
Kogos praticamente diviniza o AC. Kogos posiciona o AC como o único modo de evitar deturpações dos “critérios de validação de autoridade”. Podemos confirmar o que foi dito acima quando ele afirma que o AC “funciona constantemente nas instituições naturais”. Kogos aqui mostra o que pretende com seu panfleto: propor uma ideologia totalmente nova (mais nova que a proposta por Rothbard até) deformando a linguagem e dando a entender que essa ideologia é a grande salvação do mundo e absolutamente infalível, pois tal ideologia “funciona constantemente nas instituições naturais”.
Kogos inicia ainda uma seção intitulada “LEI E JUSTIÇA SEM ESTADO”. Aqui se inicia o ponto mais problemático da teoria AC. Kogos não entendeu que o problema não é o Estado em si, que é bom, mas sim a apostasia geral. Ele escreve:
“O ponto do anarcocapitalismo é que pelo mesmo princípio da determinatio o cidadão pode escolher arranjos jurídicos específicos, que por serem contingentes não configuram uma necessidade absoluta” (p. 37. Grifo nosso).
E ainda:
“… o anarcocapitalismo permite a concorrência entre árbitros, instituições e práticas legais reduzindo este risco moral a um mínimo já que a plasticidade das jurisdições serviria justamente para evitar o dilema moral entre a resistência individual e a autoridade de uma decisão ou contrato” (p. 38).
Mais à frente:
“Se é através do livre mercado que adquirimos os parâmetros para exercer o juízo sobre a competência de um produtor e se estes parâmetros são os diferentes produtos ofertados, porque não podemos aplicar o mesmo critério às leis humanas e seus ofertantes (legisladores e juízes)? Se as melhores práticas técnicas e gerenciais emergem da concorrência entre prestadores de serviço, por qual motivo o mesmo não valeria para os melhores princípios jurídicos?” (p. 40).
Com todo respeito ao sr. Kogos, pergunto-me se vivemos em realidades diferentes. A jurisdição e as leis não podem ser ofertadas como são ofertados serviços de internet ou conserto de carros. Leis humanas, como ensina Santo Tomás, não podem ser promulgadas por particulares como quem regra um clube. Santo Tomás ensina que:
“A lei, própria, primária e principalmente, diz respeito à ordem para o bem comum. Ora, ordenar para o bem comum é próprio de todo o povo ou de quem governa em lugar dele. E, portanto, legislar pertence a todo o povo ou a uma pessoa pública, que o rege. Pois, sempre, ordenar para um fim pertence a quem esse fim é próprio” (S.Th. I-II, q. 90, a. 3, corpus. Grifos nossos).
Resumindo, não compete ao particular promulgar leis, mas sim a quem tem autoridade para tal. Pode ser todo o povo (que não é uma ou outra pessoa em particular) ou quem rege (quem recebeu essa autoridade). Isso se deve ao fato de que o fim próximo de quem legisla ou julga é a ordenação da pólis, não o lucro, de como se dá com um empresário. O fim próximo do empresário é o lucro porque sua empresa depende disso para ofertar os seus produtos ou serviços. Seria uma loucura completa se um empresário buscasse lucros se utilizando de leis e jurisdições.
Kogos parece ainda mais confuso (ou causador de confusão) mais à frente. Aqui transcrevo in extenso para mostrar que não descontextualizei:
“A total concorrência entre instituições judiciárias puramente humanas, que é a essência do anarcocapitalismo, é o único arranjo não-utópico na luta pelo direito, expressão esta que intitula um dos livros do jurista Rudolph von Jhering. Para ele, todo indivíduo é um potencial defensor da Lei Natural por sua natureza humana, da qual a noção do direito é um atributo inseparável.
“A metafísica escolástica nos ensina que o modo de operar segue o ser, logo, a conduta humana tende naturalmente ao estabelecimento do direito. Nenhum sistema legal ou jurídico puramente humano(excluindo-se, portanto, o Magistério divinamente inspirado da Igreja Católica) está imune à perversão, o que significa, em última instância que os mecanismos de correção devem estar fora deles, mais exatamente nesta ativa vigilância do indivíduo contra os injustos arbítrios que von Jhering recomenda. Entretanto, somente no anarcocapitalismo ela será eficiente em produzir resultados duradouros, pois a concorrência entre as cortes de justiça permite que tanto a sociedade por elas servidas quanto os clamores legítimos das partes em litígio tenham peso decisório sobre as práticas adotadas” (pp. 46-47. Grifos nossos).
Comentemos por partes. Kogos escreve que a “total concorrência entre instituições judiciárias puramente humanas, que é a essência do anarcocapitalismo, é o único arranjo não-utópico na luta pelo direito”. O que significa dizer que a total concorrência de instituições judiciárias está para o anarcocapitalismo assim como a alma racional está para o composto humano. Não diria que é a essência do anarcocapitalismo, mas a sua causa formal. Todavia, deu para compreender bem. Esse trecho transcrito é também o coração do livro, a sua alma, por assim dizer. Depois diz, concordando com o Rudolph von Jhering, que “todo indivíduo é um potencial defensor da Lei Natural por sua natureza humana” e que, portanto, “a conduta humana tende naturalmente ao estabelecimento do direito”. Aqui parece que Kogos esqueceu a doutrina do pecado original. O homem nunca esteve em seu estado puramente natural. No estado de justiça original, a natureza humana estava sobre-elevada pela Graça santificante. Depois do pecado original, a natureza passou a ser decaída. Com a natureza decaída, o homem tende ao pecado. É preciso, pois, a Graça para não pecar. Contraditoriamente, Kogos conclui que “nenhum sistema legal ou jurídico puramente humano (…) está imune à perversão”. Ora, se o homem tende ao estabelecimento do direito, por que uma instituição humana não estaria imune à perversão? Ainda diz que “a concorrência entre as cortes de justiça permite que tanto a sociedade por elas servidas quanto os clamores legítimos das partes em litígio tenham peso decisório sobre as práticas adotadas”. Aqui, retornamos ao problema mencionado anteriormente: há uma confusão de fins próximos.
Como Kogos ressignifica a palavra Estado, utiliza a lenda de que já houve sociedade sem Estado (como se fosse possível uma sociedade que não seja organizada politicamente e sem poder temporal). Até aqui fica provado dois erros do Paulo Kogos: (1) a ressignificação da palavra Estado (e de outras, mas fiquemos só com essa para fins de brevidade e porque demoraria demais para concluir o artigo) e (2) a confusão dos fins das empresas e dos tribunais judiciais. E Kogos continua se mantendo nesses equívocos:
“Uma objeção ao anarcocapitalismo é que os ricos comprariam os juízes (como se George Soros não tivesse dezenas de juízes sob seu comando). Trata-se de uma falácia econômica, já que embora as partes em litígio possam demandar sentenças viesadas, a sociedade demanda instituições judiciárias imparciais. É o acúmulo artificial de poder propiciado pelo Estado que distorce a produção de serviços judiciários impedindo que o mercado oferte a justiça demandada pelo homem comum. Os tribunais de uma sociedade anarcocapitalista teriam como principal ativo sua reputação e por isso tornariam muito transparentes sua obediência às boas regras do direito processual. Além disso, uma decisão viesada não apenas perderia seu caráter imperativo por violar os contratos implícitos e explícitos com a sociedade, como também sujeitaria o tribunal que o emitiu a ser processado, algo que seus concorrentes estariam ansiosos por fazer. Devido à natureza corretiva da concorrência institucional no anarcocapitalismo, sistemas judiciários não competiriam por grupos de interesse beneficiários de leis arbitrárias, como ocorre numa democracia, mas pelas melhores práticas em serviços judiciários que fizessem valer a Lei Natural” (p. 54. Grifos meus).
No parágrafo seguinte, Kogos (seguindo a Rothbard) pretendeu refutar a Robert Nozick (cf. Anarquia, Estado e Utopia, WMF Martins Fontes, 2011). Não detalharemos muita coisa aqui porque nem Kogos e nem Nozick tratam o Estado como ele realmente é. Kogos aqui mostra que não se preocupa com o fim último do homem, ainda que o tenha mencionado anteriormente: ele diz que “a sociedade demanda instituições judiciárias imparciais” e que na sociedade AC, os tribunais “teriam como principal ativo sua reputação e por isso tornariam muito transparentes sua obediência às boas regras do direito processual”. Isso apenas mostra que os tribunais não se preocupariam primeiramente com a ética, com o bem comum. O problema não é aquilo que Kogos (e Rothbard… e Hoppe… e Nozick… et caterva) chama de “Estado”, seja o Estado como também como sociedade civil ou como poder temporal. Mesmo quando tratamos o governo da sociedade, podemos vê-lo como uma necessidade natural.
Podemos concluir que Kogos não coloca por causa da autoridade dos tribunais judiciários o próprio Deus (mais precisamente, Nosso Senhor Jesus Cristo Rei). Kogos pode até preconizar a lei natural, mas meramente como a regra que os tribunais deveriam seguir. A autoridade desses tribunais, que estão sujeito ao mercado, viria nesse modelo do próprio mercado. Na carta encíclica Quas Primas, lemos:
Quanto ao “poder judicial”, declara o próprio Jesus havê-lo recebido de seu Pai, em resposta aos judeus, que o haviam acusado de violar o descanso do sábado, curando milagrosamente, neste dia, a um paralítico. “O Pai, disse-lhes o Salvador, não julga a ninguém, mas deu todo juízo ao Filho” (Jo 5, 22). Esse poder judicial igualmente inclui o “direito”, — que se não pode dele separar, — de “premiar” e “punir” aos homens, mesmo durante a vida. (S.S. PIO XI; carta encíclica Quas Primas, n. 11, 11 de dezembro de 1925).
Tal ensinamento de Kogos também contradiz a carta encíclica Immortale Dei, como já foi citada acima. Dada a confusão exposta e a contradição consequentemente manifesta com o que ensina o Magistério da Igreja, demonstra-se que o que Kogos ensina é herético.
Santo Tomás de Aquino assim ensinou em De Regno, e também São Roberto Belarmino nos primeiros capítulos do De Romano Pontifice, a necessidade de um governo, e um governo bem centralizado, ainda que misto[3]. Podemos ainda citar um autor contemporâneo. Ao contrário de Kogos, que mencionou autores modernos (para não dizer modernistas ou mesmo liberais) como Guilherme Freire e o Rasta, aqui cito o tradicionalista e carlista José Miguel Gambra, catedrático de Filosofia na Universidade Complutense de Madrid:
“A sociabilidade, inscrita em sua natureza, impele ao homem a unir-se a seus semelhantes para alcançar os fins que na solidão lhe estariam vetados. A sociedade permite uma ação conjunta para alcançar um fim comum, fim que não se logra sem que haja um governo que dirija e organize a ação, para que o obrar individual não caia na dispersão anárquica” (La Sociedad Tradicional y sus Enemigos, Escolar y Mayo Editores S.L., 2019, p. 178).
Melhor que o autor leigo espanhol, é ninguém menos que o Papa Leão XIII:
“O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus semelhantes, numa sociedade tanto doméstica quanto civil, única capaz de fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas, como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor” (loc. cit. Grifo nosso.).
Se é necessário um governo que organize os atos humanos objetivando alcançar determinados fins comuns, para julgar os atos que se desviem de tais fins é necessário o julgamento por tribunais desse mesmo governo. Se um homem mata o outro, é evidente que houve um desvio desse fim e que deve ser julgado por um tribunal. Por isso o serviço judiciário dever ser um monopólio necessário do governo para crimes que afetam a ordem pública e isso inclui roubos e homicídio.
Kogos escreve ainda:
“Uma última objeção ao anarcocapitalismo é que bandidos como estupradores e terroristas não estariam dispostos a se sujeitar aos contratos jurídicos ou a acatar as decisões dos tribunais privados. Ora, a perda do direito a estas escolhas é parte da punição deste tipo de criminoso (desde que, é claro, se prove a culpa), e incluiria a morte. Mas se a pena de morte é intrinsecamente justa e essencial para proteger a sociedade contra os malfeitores, é melhor que os juízes com o poder de aplicá-la tenham sua retidão moral e competência técnica sujeitas ao crivo de um livre mercado de serviços judiciários, que tende a ser pautado pela observância da Lei Natural e não pelos caprichos de um monopolista legalista” (p. 55. Grifos nossos).
Kogos parece não entender o que Santo Tomás ensina:
“… cuidar do bem comum pertence ao chefe investido da autoridade pública. Logo, só a eles é lícito matar os malfeitores e não aos particulares” (S.Th., II-II, q. 64, a. 3, corpus).
E depois:
“… o pecador não é distinto, por natureza do justo. Por isso, é necessário um juízo público para sabermos se ele deve ser posto à morte, para o bem público” (ibidem, ad 2).
Tribunais privados seriam serviços providos por empresas privadas (provavelmente seguradoras). Ora, empresas privadas, por serem privadas, não representam em nada o ordenamento público, mas os particulares. Dizer que estes tribunais poderiam aplicar pena de morte, como já está demonstrado com as citações de Santo Tomás de Aquino, é totalmente quimérico e errôneo.
Para entender a gravidade do erro de Kogos, que é totalmente quimérico, devemos nos lembrar que o poder judiciário é parte do poder temporal. O poder temporal é uma parte essencial da sociedade civil. Assim, o poder judiciário é uma de suas funções juntamente com executivo e legislativo. Segundo Kogos, como vemos, seria o mercado que ofertaria o serviço judiciário. Ou seja, não há somente a inversão de fins como também uma inversão de subordinação. Na lógica de Kogos, o poder temporal deve se subordinar às leis do mercado, tendo o poder judiciário um fim mais nobre que o mercado, que é a ordem social, enquanto o fim do mercado, por sua vez, é satisfazer necessidades materiais e temporais de particulares. Os sujeitos do mercado, como dito, têm por fim próximo o lucro, dado o que ofertam. O mercado é que deve estar sujeito ao poder judiciário e não o contrário.
Façamos a seguinte analogia: a alma racional é parte entitativa do composto humano, é uma parte essencial porque é a forma substancial do corpo humano. A ordem é a forma da sociedade civil. Assim, o poder temporal é para a sociedade como as operações intelectuais são para o intelecto. Assim, o poder judiciário vem do poder temporal e o poder temporal tem a autoridade advinda do próprio Deus (Rm. XIII, 1). Como a autoridade do poder judiciário vem do próprio Deus, analogamente também podemos dizer que o juiz que exerce esse poder é tão ministro de Deus quanto o governante, ainda que o juiz esteja subordinado a ele, como o presbítero é subordinado ao bispo. Ou seja, o juiz é ministro de Deus, não é empregado ou empresário. Mesmo os juízes mais ímpios – e.g., alguém Alexandre de Moraes (no momento atual, ministro do Supremo Tribunal Federal, conhecido por seu autoritarismo e arbitrariedade) – é um ministro de Deus e possui d’Ele a autoridade, ainda que indignamente exercida.
Kogos escreve que tal livre mercado de serviços judiciários “tende a ser pautado pela observância da Lei Natural e não pelos caprichos de um monopolista legalista”. Kogos deveria demonstrar que isso realmente se daria assim, porque os tribunais sempre foram serviços exclusivos do Estado nas sociedades mais civilizadas. Kogos se diz antikantista, mas cai no apriorismo kantista.
Kogos presume algo sem nunca tê-lo observado na realidade. Ele crê na praxiologia, uma falsa ciência que parte de axiomas referentes à ação humana, e isso explica a sua “fé” no suposto fato de que um livre mercado de serviços judiciários respeitaria os princípios da Lei Natural.
Não trataremos muito da parte de segurança e defesa. Trataremos o suficiente para mostrar a ideia perniciosa de Kogos, que é o AC. Parece que demonstrar a questão do problema de deixar o serviço judiciário nas mãos de quem busca o lucro como fim próximo em lugar da ordem civil já é o suficiente para mostrar o essencial, a análise breve dessas seções servirão para aprofundar um pouco nas suas propriedades. O governo existe para isso, o Estado já é uma condição natural da convivência coletiva. Kogos não entendeu que o problema não é o Estado (nem o governo), mas a apostasia generalizada da população. Assim ensina Jean Ousset, cuja obra conta com inúmeras aprovações eclesiásticas (inclusive de Mons. Marcel Lefebvre quando era Arcebispo de Dakar):
“É impossível que uma doutrina não reine sobre o Estado. Quando não é a doutrina da verdade, será uma doutrina do erro. Assim exige a ordem das coisas. Exige que a força obedeça ao espírito e, de fato, obedece sempre a um espírito: espírito de verdade ou espírito de demência” (Para que Él reine, La Ciudad Católica – Speiro, S.L., p. 39).
Perceba o leitor que todos os autores católicos sempre presumem e defendem o Estado. Os capítulos seguintes são acidentais, como dissemos acima e não os comentaremos, a não ser em textos futuros. Podemos, no entanto, comentar brevemente sobre se é lícito ao Estado tomar dinheiro de quem é rico para auxiliar um indigente. Aqui apenas cito a Santo Tomás de Aquino:
“As disposições de direito humano não podem derrogar as do direito natural ou do direito divino. Ora, pela ordem natural, instituída pela providência divina, as coisas inferiores são ordenadas à satisfação das necessidades humanas. Por onde, a divisão e a apropriação das coisas permitidas pelo direito humano não obstam a que essas coisas se destinem a satisfazer às necessidades do homem. E, portanto, as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres. Por isso Ambrósio diz: ‘está nas Decretais: É dos famintos o pão que tu reténs; as roupas que tu guardas são dos nus; e resgate e alívio dos miseráveis é o dinheiro que enterras no chão’. Ora, sendo muitos os que padecem necessidades, e não podendo uma mesma coisa socorrer a todos, ao arbítrio de cada um é cometido dispensar os bens próprios para assim obviar aos necessitados. Contudo, se a necessidade for de tal modo evidente e imperiosa que seja indubitável o dever de obviá-la com as coisas ao nosso alcance – por exemplo, quando corremos perigo iminente de morte e não é possível salvarmo-nos de outro modo – então podemos licitamente satisfazer à nossa necessidade com as coisas alheias, apoderando-nos delas manifesta ou ocultamente. Nem tal ato tem propriamente a natureza de furto ou rapina” (S.Th., II-II, q. 66, a. 7, corpus. Grifos nossos).
Ou seja, conclui-se que o governo pode sim tomar o que é superabundante entre os bens dos ricos para o sustento dos pobres. É claro que o Estado moderno, devido a sua falsa noção de bem comum, é extremamente arbitrário e toma os bens das pessoas para dar um sustento precário aos pobres e enormes quantias às oligarquias. É por conta da falsa noção de bem comum que surgem os Estados totalitários, assim como as democracias liberais e mesmo ideologias loucas, como todas as formas de anarquismo.
Essas seções, assim, mostram que a noção que Kogos tem de direito natural não é a noção tomista de fato, que diz que o direito é antes uma faculdade moral (cf. S.S. LEÃO XIII; Libertas Praestantissimum, n. 29, 20 de junho de 1888). A noção é evidentemente lockeana.
Principalmente ao dizer que, por exemplo, a saúde é um direito negativo. Mas não aprofundaremos mais aqui. Kogos, por exemplo, mostra uma objeção, servindo-se do ímpio Walter Block, contra o serviço de defesa pública por parte do Estado:
“Imagine que um homem, alegando cavalheirismo, decide escoltar uma moça pelas ruas contra a vontade dela, obrigando-a a pagar uma taxa de proteção e proibindo que ela contrate qualquer outro guarda-costas. Trata-se de um mafioso, não de um cavalheiro” (p. 57).
Novamente: a defesa nacional e a segurança civil, tais como os tribunais, têm por fim próximo a ordem civil. As empresas privadas têm por fim próximo o lucro. Claro que empresas privadas de segurança podem, sim, existir; não existem para concorrer com o serviço público, mas para cooperar com ele quando este não puder cobrir certos locais. É óbvio que um local onde habitam mais ricos precisa de menos segurança pública do que um bairro mais pobre, pois os mais ricos dependem menos dessa segurança do que os mais pobres. Liberais poderiam objetar que seria injusto os mais ricos pagarem a segurança dos mais pobres, mas a isso responde-se que a própria justiça distributiva obriga a isso. Quem tem de sobra está obrigado a dar a quem tem carência.
Ainda com respeito à analogia dada por Kogos, o guarda-costas seria um serviço de segurança de uma empresa privada que poderia muito bem coexistir com o serviço público. Como já foi dito: para cooperar, não para concorrer.
A noção lockeana de direito natural é totalmente anticatólica porque, para John Locke, a tríplice base do direito natural é absoluta (vida, liberdade e propriedade). Se lermos os parágrafos de John Locke sobre os limites do governo, vemos que está aí grande parte da base do pensamento de Kogos:
“O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento” (Segundo Tratado do Governo Civil, cap. XII, n. 138. Clube do Livro Liberal, edição em PDF, p. 73).
Ainda:
“… seja quem for a pessoa em cujas mãos está depositado o governo, como este só lhe foi confiado sob condição e para um fim preciso, ou seja, que todos os homens podem continuar donos de seus bens com toda segurança, o príncipe, o senado, ou seja quem for que tenha o poder de fazer as leis para a regulamentação da propriedade entre os súditos, jamais tem o poder de tomar para si o conjunto ou qualquer parte da propriedade dos súditos sem seu próprio consentimento” (ibidem).
No parágrafo seguinte:
“O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento, individualmente ou através de seus representantes. E isso diz respeito, estritamente falando, só àqueles governos em que o legislativo é permanente, ou pelo menos em que o povo não tenha reservado uma parte do legislativo a representantes que eles mesmos elegem periodicamente” (ibidem, n. 142. p. 74. Os meus grifos de todas as citações acima os meus).
O próprio Kogos admite isso sem, óbvio, mencionar a Locke:
“Qualquer intervenção de um planejador central altera a coerência unitiva da economia de mercado e altera artificialmente as informações nas quais supostamente sua política pública teria se baseado” (p. 89. Grifo meu).
Seguindo a filosofia de Locke até às últimas consequências, Murray Rothbard ensina que os pais poderiam deixar os seus filhos morrer de fome[4]. Kogos diverge de Rothbard nesse ponto e ensina que seria sim lícito invadir uma propriedade alheia para alimentar a criança faminta e que seria lícito mesmo um agente estatal fazer isso.
Não discordamos, claro, do Kogos nisso. Todavia, aqui vemos uma incoerência do Kogos: se é lícito invadir a propriedade alheia para alimentar uma criança faminta devido à negligência deliberada dos pais, por que não seria lícito o Estado, enquanto poder temporal, usar o recurso arrecadado por impostos para alimentar os famintos da sociedade? Fazendo isso, o Estado apenas seguiria o que Santo Tomás ensina como citamos acima. Isso não prejudicaria em nada a caridade, pois a virtude da caridade se exerce diversas formas. Kogos parece não ter estudado espiritualidade. Ainda que isso saciasse todos os famintos, os homens teriam outras necessidades, principalmente espirituais.
Como vimos acima, para Santo Tomás de Aquino, é lícito tomar dos ricos para dar a quem tem necessidade porque uma das partes do direito natural é a justiça distributiva. Para um lockeano, no entanto, não podemos subtrair o bem de ninguém para ajudar a outrem. Para John Locke, a base de todos os direitos é tríplice: vida, liberdade e propriedade. Com efeito, o poder supremo não poderia tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem o próprio consentimento da pessoa, apenas cobraria uma parcela para sustentar esses direitos. Por isso o governo se limitaria à jurisdição e à segurança nacional. Para o anarcocapitalista, como vemos, nem mesmo a essas. Vai para além do pensamento lockeano estrito, que é a base de todo o pensamento político britânico e americano e também das lojas maçônicas desses países. Contra o que Kogos ensina, para Santo Tomás, o imposto não é roubo[5].
Ainda saltando algumas páginas, Kogos mostra não ver problemas com oligarquias que já mencionamos. Ele escreve:
“O anarcocapitalismo fundamenta-se economicamente na conclusão lógica de que nenhum tipo de prestação de serviços deve gozar de privilégios de monopólio legal. Ironicamente, uma das principais objeções de seus opositores é que num livre mercado as empresas tenderiam a formar oligopólios e monopólios já que haveria plena liberdade de formar cartéis, trustes (fusões e aquisições) e holdings (conglomerados). Estes arranjos de negócios são essenciais para uma economia complexa já que possibilitam a coordenação de investimentos massivos em projetos que só se tornam viáveis em grandes proporções, atingindo assim a chamada economia de escala. Sem ela não haveria, por exemplo, os grandes estaleiros navais e refinarias, dos quais toda a cadeia de petróleo depende” (p. 87. Grifos meus).
Os pontos destacados evidenciam que Kogos não veria problemas no que foi feito na Revolução Industrial. Também parece esquecer que são esses oligarcas que investem massivamente não apenas nas suas oligarquias, mas também na difusão da agenda Revolucionária. Até aqui indagamos se ele realmente crê na doutrina do pecado original. Afinal, taisoligarcas não apenas carregam a mancha do pecado original como ainda são infiéis (protestantes, ateus, judeus, maometanos, maçons etc). Quase sempre suas empresas usam os meios mais desonestos para conseguir o poder. Um ótimo exemplo sobre qual já escrevemos é o Edward Bernays (cf: “Weishaupt, Freud e Bernays: como a manipulação ajuda a Revolução”). Bernays ajudou no crescimento massivo de inúmeras empresas com sua manipulação via publicidade e não encontrou quase nenhum obstáculo para continuar com isso. Quanto mais as empresas crescem e formam oligarquias, mais isso vai se impondo e assim impõem-se agendas extremamente nocivas.
Resumidamente, Kogos propõe o seguinte: os governos poderiam até existir, mas deveriam competir num livre mercado emultiplicar-se para competir entre eles. Isso é o mesmo que não existir governos. Como já foi citado acima, Leão XIII, na sua encíclica Immortale Dei, a sociedade civil precisa de um chefe supremo. Chefes supremos não devem ter concorrentes. Encerremos aqui o comentário a este capítulo.
Saltemos logo ao último.
“ESTRATÉGIAS PARA UMA CONTRA-REVOLUÇÃO ANARCOCAPITALISTA”
Cinicamente, Kogos fala de Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo depois de defender todos esses erros listados acima. Ele não fala da necessidade de as pessoas se converterem, mas mostra apenas a necessidade de resistir de diversas formas. O que chama a atenção é, por exemplo, ele escrever:
“Nos 36 estratagemas, um clássico militar da China antiga, lemos: ‘Mate com uma faca emprestada’. Com base nisso, o historiador Rodrigo Souza Neves desenvolveu sua teoria do agorismo cínico, que preconiza o uso justo e virtuoso da legislação positiva estatal para atacar inimigos da liberdade, proteger aliados ou simplesmente expor as contradições do próprio positivismo legal, doutrina que nega a Lei Natural e baseia a conduta humana apenas nas leis escritas, para nulificar leis injustas. Um exemplo magnífico é uma academia de ginástica que se manteve aberta durante o lockdown imposto pelo tiranete João Doria Jr. em 2020 valendo-se de um CNPJ de clínica médica” (pp. 187-188).
Isso parece ir contra o que a Igreja ensina, porque com efeito, ensina Leão XIII:
“Contudo, se às vezes acontece que o poder público é exercido temerariamente e além medida, a doutrina católica não permite aos súditos levantar-se a seu talante contra eles, para que não seja subvertida ainda mais a tranquilidade da ordem e não derive, com isso, um mal maior para a sociedade. E quando as coisas tiverem chegado a tal ponto que não haja mais nenhuma esperança de salvação, quer que se apresse o remédio com os merecimentos da paciência cristã e com insistentes orações ao Senhor” (carta encíclica Quod Apostolici Muneris, n. 15, 28 de dezembro de 1878).
A ordem de João Doria é ímpia, mas não obriga a prática do pecado. O mesmo podemos dizer para uso de máscara e outras coisas. Os antigos cristãos sempre foram exemplos de docilidade para com as autoridades e só resistiram quando obrigaram a desobedecer a lei divina. Isso significa que mesmo governantes ímpios devem ser obedecidos se eles não obrigarem a pecar. Poderiam dizer que tal ato visa somente a utilizar uma brecha na lei, mas tal ato não parece ser muito honesto para um fim tão fútil (abrir uma academia), isto é, não é para um fim honesto.
Ademais, Kogos parece louvar o ato nem tanto pelo bem em si, mas porque é uma sabotagem do próprio Estado, pois fala de agorismo cínico, cujo fim é esta sabotagem.
Além disso, mesmo que os chefes de Estado violem a lei natural com ordens tirânicas, não necessariamente essas ordens obrigam o pecado. São Paulo, aos romanos que eram governados pelo terribilíssimo Nero, escreveu:
“Toda a alma esteja sujeita às autoridades superiores, porque não há autoridade que não venha de Deus e as que existem, foram instituídas por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus. E os que resistem, atraem sobre si próprios a condenação. Com efeito, os príncipes não são para temer pelas acções boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás o louvor dela, porque (o príncipe) é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal. É pois, necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo temor da ira, mas também por motivo de consciência. De facto, também por esta causa é que pagarás os tributos, pois são ministros de Deus, quando exercem o seu ofício. Pagai, pois, a todos o que lhes é devido: a quem o imposto, o imposto; a quem as taxas, as taxas; a quem o temor, o temor; a quem a honra, a honra” (Rom. XIII, 1-7).
Resumindo: o católico é sempre dócil. Apesar de Kogos falar de Cristo aqui, da Igreja ali etc, em nenhum momento deixaclaro que o livro é dirigido ao católico ou que pretende trazer alguém à conversão.
A citação de Leão XIII acima e de São Paulo mostram que a desobediência civil habitual não é católica. A resistência católica contra tiranias se deu no contexto em que essas mesmas tiranias não deram a devida liberdade à Religião Católica. Kogos ainda mistura autores ímpios como Samuel Konkin III, Hans-Hermann Hoppe, Hannah Arendt, Henry David Thoureau etc, com Santo Tomás de Aquino. Ele escreve:
“Uma forma de heroísmo ao alcance de todos é a desobediência civil. A tirania estatal se perpetua através de uma cadeia de obediência às ordens injustas que só pode ser rompida por atos de bravura desobediente. Há situações difíceis mas nada muda o fato de que ‘fonte turva e manancial contaminado: tal é o justo que cede diante do ímpio’ (Pr 15, 26). Subterfúgios como ‘eu estava cumprindo a lei’ ou ‘eu estava cumprindo ordens’ são piores que a maldade assumida, pois servem apenas para promover, nas palavras de Hannah Arendt, a banalização do mal” (p. 193).
Claro é que não devemos obedecer àquilo que obriga o pecado ou proíba o bem que devemos fazer. Claro que alguém poderia objetar usando como exemplos os casos da Guerra Cristera e Guerra Civil Espanhola, mas esses foram em um contexto em que o governo restringiu o exercício da Religião. Foram então insurreições legítimas com uma clara possibilidade de vitória. Kogos, no exemplo do lockdown, poderia ter dito que foi uma restrição do exercício da Religião, mas preferiu falar de uma mera academia.
CONCLUSÃO SOBRE O LIVRO
O último capítulo do livro de Kogos é um verdadeiro manual de rebeldia. Fala da Realeza Social de Cristo para depois recomendar o agorismo de Samuel Edward Konkin III, um anarquista no seu mais elevado grau. A recomendação das práticas agoristas é revolucionária ao extremo e vai contra a Doutrina Social da Igreja, visto que a intenção dos agoristas é a sabotagem do próprio Estado, coisa que os católicos jamais devem procurar. Kogos ressalva que diverge do Konkin no incentivo às práticas imorais, mas em nenhum momento mostra de forma inequívoca a necessidade da conversão à Fé Católica como autêntica forma de resistência ao Estado moderno. Aqui vejo-me, apesar das divergências, impelido a citar o Dr. Plínio Corrêa de Oliveira:
“Se a Revolução é o contrário da Igreja, é impossível odiar a Revolução (considerada globalmente, e não em algum aspecto isolado) e combatê-la, sem ipso facto ter por ideal a exaltação da Igreja” (Revolução e Contra Revolução, Editora Retornarei, 2002, p. 148, parte II, cap. XII, n. 6).
O ideal de Kogos não é a exaltação da Igreja, mas a exaltação do AC. Em absolutamente nenhum momento prega a exaltação a Igreja, ou da sua Doutrina, ou da santidade, ou do amor a Deus sobre todas as coisas, como o ideal contra-revolucionário. É impossível sustentar tudo o que foi ensinado sem ter uma população plenamente convertida e mesmo com uma população plenamente convertida o ideal AC não pode ser aprovado pelas razões já mostradas.
Kogos propõe usar do agorismo o que não é per se imoral para o que ele chama de contra-revolução anarcocapitalista. Percebam que ele está não preocupado com uma contra-revolução católica. O ponto mais católico que lemos nesse livro é bem próximo do final:
“Rejeite ainda o nacionalismo laico. Deve-se afirmar o vigor local dentro das fronteiras, observa o Padre Julio Meinvielle, mas sem perder de vista a missão cristã de promover o bem comum temporal que se estende ao estrangeiro” (p. 198).
Isso é evidentemente muito pouco, e o autor ainda faz questão de colocar “bem comum temporal”. Kogos, antes de encerrar, escreve:
“… lembre-se que a luta é árdua e que a vitória prometida não pertence a este mundo. Não deposite esperanças em líderes terrenos nem em sistemas políticos ou econômicos. Lemos em Salmos 145, 3: ‘Não coloqueis nos poderosos a vossa confiança, são apenas homens nos quais não há salvação’. Combata o bom combate e guarde a fé em Deus até o fim da corrida” (p. 200).
O “bom combate” de Paulo Kogos certamente não é o mesmo de São Paulo Apóstolo. Todavia Vemos como cinismo ele dizer para não depositar “esperanças … em sistemas políticos ou econômicos” se escreve que o AC “é o esforço constante para se manter o mais à direita possível no espectro político” (p. 28) e que “funciona constantemente nas instituições naturais como a família e nas contratuais como as empresas honestas” (p. 32). Kogos cai em patente contradição.
O livro é, destarte, inadequado para qualquer católico, é meramente panfletário, e contém erros filosóficos e teológicos, prováveis heresias e ressignificação de termos.
Por conta desse escrito pernicioso, podemos concluir que Kogos é, ao menos, suspeito de heresia? Vejamos o que escreve o leigo erudito Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira:
“Um jovem universitário, por exemplo, se professa católico. Trabalha ativamente em movimentos ditos de reivindicações camponesas, operárias e estudantis. De há muito aliado aos comunistas em tais movimentos, já se habituou a tê-los sempre a seu lado. Não se diz marxista, e proclama-se até adversário convicto de toda forma de ateísmo, mas vê com simpatia o socialismo. Mesmo o socialismo extremado. Por lutar pelas reformas de base ‘avançadas’, já andou tendo complicações com a polícia – com essa polícia que ele tacha de reacionária, de vendida aos capitalistas, de instrumento do colonialismo norte-americano. Comunga todos os dias, mas julga que as práticas pueris da ‘Igreja constantiniana’ devem desaparecer da vida de piedade adulta do católico esclarecido da ‘Igreja do Vaticano II’; por isso sorri com desdém quando ouve falar do Coração de Jesus, da Virgindade de Maria Santíssima, da devoção aos Santos, da Transubstanciação, do inferno, etc. Nunca ataca diretamente nenhum dogma, porque compreende que se o fizesse, desserviria à própria causa; mas não fala deles, e não gosta de ouvir falar. // Perguntamo-nos, pois: pode-se afirmar que esse jovem é um herege?” (“Atos, gestos, atitudes e omissões que podem caracterizar o herege”, in Catolicismo, nº 204, de dezembro de 1967).
Troquemos algumas palavras e suprimamos outras:
“Um empresário que se professa católico tradicional, que professa todos os dogmas. Ele rejeita as inovações do Concílio Vaticano II por zelo à Tradição. Ele, no entanto, gosta de citar autores liberais, mas com ressalvas. Todavia, ele cita muitos liberais de forma quase sempre elogiosa. Ele sempre diz que gosta do que tal liberal ensina, mas discorda em tal ponto. Depois cita outro liberal, mas ressalva novamente. Não estamos falando de quaisquer liberais, mas de verdadeiros servos de Satanás, inimigos da Igreja Católica. Ele diz que defende a Doutrina Social da Igreja, a Realeza de Cristo, mas concomitantemente defende políticas estranhas e inovadoras onde o Estado não deve se meter em nada. Ele vai além disso: se declara libertário anarcocapitalista, mas ensina que discorda justamente do principal teórico disso: Murray Rothbard. Ele se propôs a reforma a própria teoria. Ele ressignifica inúmeras palavras e noções para esse propósito. Perguntamo-nos, pois: pode-se afirmar que esse empresário é um herege?”
Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira conclui o artigo citado assim:
“Em nossa era de tantas heresias declaradas, são, entretanto, as disfarçadas e difusas que constituem ameaças mais graves à fé de cada católico e à civilização cristã. Julgamos contribuir para combatê-las, mostrando que não só por palavras, mas também por atos, gestos, sinais, atitudes, omissões, é possível cair em heresia externa” (ibidem).
Creio que a resposta está subentendida. Dado tudo o que foi exposto neste presente artigo, podemos dizer que o Sr. Paulo Kogos é, no mínimo, suspeito de heresia.
EPÍLOGO
REALEZA SOCIAL DE
NOSSO JESUS CRISTO:
A SOLUÇÃO CATÓLICA
A solução para todas as mazelas descritas até aqui – as quais tanto nós como Kogos enxergamos, mas sob prismas diferentes – é indubitavelmente a Realeza de Cristo. A razão de todos os males que vemos é antes de tudo o pecado, especialmente o da apostasia.
Colocar a culpa toda (ou quase toda) no Estado não resolve. O Estado é entendido como (1) a sociedade politicamente organizada, a pólis, a sociedade civil propriamente dita ou (2) como poder temporal. Podemos concluir assim que o Estado tem por causa eficiente o próprio Deus. Ou seja, o Estado tem por causa eficiente o próprio Deus porque a causa eficiente é aquela que une a causa formal e material. A causa formal da sociedade é a ordem e a causa material o conjunto de homens. A causa eficiente é a autoridade, que provém do próprio Deus e terá por ministro o governante, o príncipe, o rei, como diz em Romanos XIII.
Se Deus é a causa eficiente da sociedade e também a causa final absoluta de todos homens, e se a sociedade é um conjunto de homens, é natural concluir que Deus seja também o fim último de toda a sociedade. Sigamos o simples silogismo:
Maior: a sociedade é um conjunto de homens;
Menor: o fim último do homem é Deus;
Conclusão: logo, o fim último da sociedade é Deus.
Não apenas porque o Estado é um conjunto de homens, mas também porque é uma criatura de Deus que o seu fim último é Deus. Enquanto criatura, o fim último do Estado é Deus, e no seu agere, o fim último simpliciter do Estado é o culto público a Deus. Isso é patente porque o Estado é uma unidade complexa por ser um conjunto de homens. Assim como o homem precisa da Igreja para a salvação, assim também o Estado precisa da Igreja. Não basta o Estado se dizer católico, mas deve ser membro da Igreja, a privilegiando e prestando culto público. Tudo isso porque não se alcança o fim último sem estar na verdadeira Religião, que é a católica. Todos que se encontram fora dela certamente perecerão, como ensina o Magistério da Igreja. Assim, não apenas todos os homens da sociedade devem ser católicos (ou uma parcela considerável), como também o próprio Estado e também o próprio governo.
É imperiosa a obrigação do governo ser católico como ensina Papa Pio XI:
“… aos governos e à magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo acusará aos que o expulsaram da vida pública, e a quantos, com desdém, o desprezaram ou desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige que o Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e os princípios cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de administrar a justiça, quer da educação intelectual e moral da juventude, que deve respeitar a sã doutrina e a pureza dos costumes” (Carta encíclica Quas Primas, 11 de dezembro de 1925).
Papa Leão XIII:
“Cristo não tem poder de mandar somente por direito de nascimento, sendo o Filho unigênito de Deus, mas também por direito adquirido. Com efeito, ele nos libertou ‘do poder das trevas’ (CI 1,13) e ‘deu a si mesmo como resgate para todos’ (1Tm 2,6). Por isso, para ele não somente os católicos e quantos receberam o batismo, mas também cada um e todos os homens tornaram-se ‘um povo que ele adquiriu’ (1Pd 2,9)” (S.S. LEÃO XIII; carta encíclica Annum Sacrum, 25 de dezembro de 1898).
Cardeal Pie de Poitiers:
“… é o direito de Deus de comandar aos Estados assim como aos indivíduos. Não é para outra coisa que Nosso Senhor Jesus Cristo veio à terra. Ele deve reinar, inspirando as leis, santificando os costumes, esclarecendo os ensinamentos, dirigindo os conselhos, regulando as ações dos governantes assim como dos governados. Onde Jesus Cristo não exerce esse reino, existe desordem e decadência.”
“Porque nem um nem outro renegou os princípios da Revolução… porque o Evangelho social no qual se inspira o Estado é ainda a Declaração dos direitos do homem”. (Chanoine E. Catta, A doutrina política do Cardeal Pio, p. 303, apud; DANIEL LEROUX; Pedro, tu me amas?, Edições do Mosteiro da Santa Cruz, p. 48).
Entre outros inúmeros autores. Todavia, para termos um Estado católico, é patentemente necessária uma população católica. Para termos uma população católica, é necessário um árduo trabalho de evangelização.
A Santa Igreja nos ensina que fora da dela não há salvação nenhuma. Pouco adianta conservar os valores se não tiver a verdadeira religião. Esse é o grande defeito da mal chamada direita. Sobre isso, ensina Pio XII:
“Nós percebemos a numerosa classe daqueles que consideram os fundamentos especificamente religiosos da civilização cristã […] sem valor objetivo [para os dias de hoje], mas que gostariam de conservar o brilhoexterior dela para manter de pé uma ordem cívica que não poderia passar sem tal. Corpos sem vida, acometidos de paralisia, são eles mesmos incapazes de opor qualquer coisa às forças subversivas do ateísmo” (Discurso à União Internacional das Ligas Femininas Católicas, 12 de setembro de 1947. Grifos nossos).
O que queremos expor até aqui? O problema do Sr. Paulo Kogos, que focou mais na exterioridade e nos sentimentos do que na verdadeira e autêntica doutrina do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo.
No lugar da Realeza de Cristo, Kogos preferiu criar algo totalmente novo em seu lugar. Ele identifica o AC com uma espécie de mescla de virtudes ou de um tipo de axioma infalível típico do pensamento austríaco para justificar a suplantação disso sobre a Realeza de Cristo, pois, no final, é isso o que ele propõe. Por mais que negue, propõe de fato a substituição da Realeza de Cristo, tal como a Igreja entende, por AC. Isso leva a crer que o AC é diabólico.
Assim devemos concluir que o chamado anarcocapitalismo (aqui colocamos o nome com todas as letras) é incompatível em todas as sus formas: seja a rothbardiana (que se pretende jusnaturalista aos moldes lockeanos), seja a hoppeana (jusracionalista com base na teoria da linguagem e no apriorismo kantista), seja a utilitarista (teorizada por David Friedman, filho do liberal chicaguista Milton Friedman) e seja também a que podemos chamar kogosiana, que tenta casar algo tão nefasto com a filosofia aristotélico-tomista. Cremos ter sido suficientemente demonstrado que tal objetivo é impossível.
Kogos construiu uma nova ideologia, utiliza um nome repulsivo para ele e omitiu a necessidade imperiosa das pessoas se converterem à Fé Católica (sendo ele mesmo supostamente católico). Kogos construiu uma mentira. Assim espero ter conseguido desmascarar e refutar tal ideologia para a maior glória de Deus.
A.M.D.G.
[1] Rothbard utiliza o conceito do sociólogo alemão Franz Oppenheimer. Como se lê em seu opúsculo A Anatomia do Estado, na nota de ropé 3: Oppenheimer, The State, p.15: “O que é, então, o estado como conceito sociológico? O estado, na sua verdadeira gênese, é uma instituição social forçada por um grupo de homens vitoriosos sobre um grupo vencido, com o propósito singular de domínio do grupo vencido pelo grupo de homens que os venceram, assegurando-se contra a revolta interna e de ataques externos. Teleologicamente, este domínio não possuía qualquer outro propósito senão o da exploração econômica dos vencidos pelos vencedores”. MURRAY ROTHBARD; A Anatomia do Estado, Instituto Ludwig von Mises, p. 14.
[2] HANS-HERMANN HOPPE; Democracia – o deus que falhou, Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 26. Hoppe define Estado como “uma organização que exerce um monopólio territorial da decisão final obrigatória (jurisdição) e da tributação”.
[3] “… Como há diversas espécies de regime, como diz o Filósofo no livro III da Política [c. 7: 1279, a, 32-b, 10], as precípuas, porém, são o reino, no qual um só governa segundo a virtude, e a aristocracia, isto é, a potestade dos ótimos, na qual alguns poucos governam segundo a virtude. Por isso a melhor ordenação dos príncipes se dá numa cidade ou num reino onde um é posto segundo a virtude para presidir a todos; e sob ele estão alguns que participam do governo segundo a virtude; e todavia este principado pertence a todos, quer porque podem ser eleitos dentre todos, quer porque também podem ser eleitos por todos. Tal é, com efeito, a politia ótima, bem mesclada de reino, enquanto um preside; e de aristocracia, enquanto muitos participam do governo segundo a virtude; e de democracia, isto é, o poder do povo, enquanto os príncipes podem ser eleitos dentre os populares, e ao povo pertence a eleição dos príncipes…” (S.Th., I-II, q. 105, a. 1, corpus).
[4] “A lei, portanto, não pode compelir justamente os pais a alimentar um filho ou a sustentar sua vida. (Novamente, se os pais têm ou não têm mais propriamente uma obrigação moral ao invés de uma obrigação legalmente executável de manter seu filho vivo é completamente outra questão.) Esta regra nos permite resolver aquelas questões complicadas como: será que os pais deveriam ter o direito de deixar um recém-nascido deformado morrer (e.g., ao não alimentá-lo)? A resposta é claramente sim, resultando a fortiori do direito mais amplo de permitir que qualquer recém-nascido, deformado ou não, morra. (Não obstante, como iremos ver a seguir, em uma sociedade libertária a existência de um livre mercado de bebês irá fazer com que tal ‘desprezo’ seja mínimo.)” (MURRAY ROTHBARD; A ética da liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 163).
[5] Pelo em menos em dois lugares, Santo Tomás ensina que o imposto é legítimo em si mesmo. Primeiramente:
“Sucede, contudo, por vezes, que os príncipes não têm rendimentos suficientes para guarda da terra e para outras coisas iminentes que estão para suceder aos príncipes; e, em tal caso, é justo que os súditos mostrem onde possa ser procurada a utilidade comum deles. E é por isso que, em algumas terras, por costume antigo, os senhores impõem aos seus súditos determinadas coletas, que, se não são imoderadas, podem ser exigidas sem pecado, porque, segundo o Apóstolo: ‘ninguém combate com seus próprios soldos’ (1 Cor 9, 7). Daí o príncipe, que combate pela utilidade comum, pode viver das coisas comuns e procurar os negócios comuns, quer pelos rendimentos designados, quer, se tais faltaram ou não forem suficientes, por aquilo que é recolhido de cada um. E semelhante parece ser a razão, se algum caso surja de novo, em que seja preciso despender mais pela utilidade comum ou pela conservação de um estado decente do príncipe, para o que não bastam os rendimentos próprios ou as exações costumeiras; como, por exemplo, se os inimigos invadirem a terra ou algum caso semelhante surgir. Com efeito, os príncipes da terra, então, também poderão exigir licitamente dos seus súditos, além das habituais exações, algo pela utilidade comum. Se, porém, quiserem exigir além do que foi instituído, apenas pelo desejo de possuir ou por causa de desordenadas e imoderadas despesas, isto não lhes é lícito de nenhuma maneira. Daí João Batista ter dito aos soldados que vinham a ele: ‘Não tireis dinheiro de ninguém, não calunieis, mas sede contentes com vossos soldos’ (Lc 3, 14). Com efeito, são como soldos dos príncipes os rendimentos, com os quais devem estar contentes, para que não exijam além, a não ser pela predita razão e se há utilidade comum” (Ad ducissam Brabantiae, a. 6, ad.arg.)
E depois:
“O juiz e a testemunha prestam serviços comuns às duas partes; o juiz está obrigado a dar uma sentença justa, e a testemunha, um depoimento verdadeiro. Ora, a justiça e verdade não tendem para um lado mais que para o outro. Por isso, é o poder público que garante aos juízes um estipêndio pelo seu trabalho; quanto às testemunhas recebem uma indenização, não como preço do seu testemunho, mas para cobrir as despesas, o que lhes vem de ambas as partes ou da parte que as convocou” (S.Th., II-II, q.71, a.4, ad 3).
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