SOBRE O PAPEL DE CARLO MARIA VIGANÒ NA ATUAL CRISE

UMA ANÁLISE SOBRE A IMPORTÂNCIA DO “ARCEBISPO” NA CRISE.
PARA O BEM OU PARA O MAL

Luciano Takaki
2024

CONTEXTO E TRAJETÓRIA

No dia 28 de junho de 2024, o Mons. Carlo Maria Viganò, ex-membro da hierarquia novus ordo como arcebispo, publicou em uma declaração grave intitulado “J’accuse” (“Eu acuso”, em francês). Viganò se inspirou no livro panfletário J’accuse le Concile, de Mons. Marcel Lefebvre.

O que diferencia o  Italiano do Francês é que o italiano chegou às devidas conclusões: aquele que se apresenta como papa na verdade não o é. Viganò, no entanto, antes de assumir publicamente a sua resistência, buscou seguir fielmente a sua função de Núncio Apostólico nos Estados Unidos entre 2011 e 2016. Viganò foi muito mais longe na hierarquia que Mons. Lefebvre. Ele foi ainda Secretário Geral do Governo da Cidade do Vaticano de 2009 a 2011. Ele teve contato direto com três “papas” (João Paulo II, Bento XVI e Francisco).

O embate contra Bergoglio começou quando o argentino “promoveu” Cardeal Theodore McCarrick a seu “homem de confiança” mesmo já sendo fortemente condenado. McCarrick foi acusado por Viganò de severos desvios morais, incluindo abusos de menores e seminaristas. McCarrick, segundo Viganò, é um predador sexual. McCarrick foi o primeiro “cardeal” a renunciar por conta de acusações de abusos sexuais. Viganò estava muito convicto das acusações e tudo parece bem fundamentado.

McCarrick foi condenado pelo Vaticano (mas não diretamente por Bergoglio, que colocou panos quentes no caso) e o removeu do cargo o laicizando em 2019. Ainda em 2019, em agosto, foram tornadas públicas cartas que evidenciam gravemente os abusos de McCarrick. 

Viganò, no entanto, insatisfeito com a demora da formalização da pena, acusa Bergoglio de acobertador do caso desde pelo menos 23 de junho de 2013, há mais de 11 anos. Assim, ele se convenceu de que estava diante de uma elite de conspiradores. Viganò viu que a hierarquia daquilo que cria ser a Igreja Católica estava moralmente corrompida. No entanto, isso nem de longe é pior dos problemas.

Não demorou para Viganò perceber que o problema ia para além da moral. O caso do Cardeal McCarrick é um grão de areia no deserto perto do que perceberia. Viganò passou a dar razão para os tradicionalistas, a começar por Mons. Lefebvre, o maior expoente do tradicionalismo no século XX. Ele parou de rezar o rito novus ordo e passou a ser cada vez mais crítico do Vaticano II. Fundou o seu apostolado Fundação Exsurge Domine e hoje segue seu combate.

VIGANÒ E O SEU SEDEVACANTISMO

Recentemente, Viganò declarou a ilegitimidade e a falta de autoridade de Bergoglio, isto é, declarou que ele não é papa. Não demorou muito para o Vaticano o intimar a comparecer para ser julgado. No dia 20 de junho deste ano (2024), Viganò, na sua declaração “Attendite a falsis prophetis”, reiterou as suas denúncias contra Bergoglio. Isso inclui a cooperação com a agenda 2030, a “agenda LGBTQ+”, a sua eleição por parte da Máfia de Saint Gallen. Viganò sequer mencionou o caso McCarrick, que o despertou para a crise.

Em sua mais recente publicação, Viganò aprofundou as suas críticas. Elas estão mais teológicas e aponta as heresias. Podemos ler as suas críticas teológicas na seção “A ‘diminuição’ do papado sinodal”:

“A isso se soma o Documento de Estudo O Bispo de Roma [tradução livre] que o Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos publicou recentemente e o rebaixamento do Papado que nele é teorizado em aplicação à Encíclica de João Paulo II Ut [unum] sint, que por sua vez se refere à Constituição Lumen Gentium do Vaticano II. Parece inteiramente legítimo — e necessário, em nome da primazia da Verdade Católica consagrada nos documentos infalíveis do Magistério papal — perguntar-se se a escolha deliberada de Bergoglio de abolir o título apostólico de Vigário de Cristo e optar por se chamar simpliciter Bispo de Roma não constitui de alguma forma uma deminutio do próprio Papado, um ataque à constituição divina da Igreja e uma traição do Munus petrinum. E em retrospectiva, o passo anterior foi dado por Bento XVI, que inventou — juntamente com a ‘hermenêutica’ de uma ‘continuidade’ impossível entre duas entidades totalmente estranhas — o monstrum de um ‘Papado colegiado’ exercido pelo jesuíta e pelo Emérito.
“O Documento de Estudo cita, não por acaso, uma frase de Paulo VI: O Papa […] é sem dúvida o maior obstáculo no caminho do ecumenismo (Discurso ao Secretário para a Promoção da Unidade dos Cristãos, 28 de abril de 1967). Montini tinha começado a preparar o terreno quatro anos antes, depondo enfaticamente a tiara. Se esta é a premissa de um texto que deve servir para tornar o Papado Romano ‘compatível’ com a negação da Primazia de Pedro que os hereges e cismáticos rejeitam; e se o próprio Bergoglio se apresenta como primus inter pares na reunião das seitas e denominações cristãs não em comunhão com a Sé Apostólica, falhando na proclamação da doutrina católica sobre o Papado definida solene e infalivelmente pelo Concílio Vaticano I, como se pode pensar que o exercício do Papado e a própria vontade de aceitá-lo não são afetados por um vício de consentimento (aqui e aqui), tal que tornar a legitimidade do ‘Papa Francisco’ nada ou pelo menos fortemente duvidosa? De qual ‘igreja’ eu poderia me separar, qual ‘papa’ eu me recusaria a reconhecer, se a primeira é definida como ‘igreja conciliar e sinodal’ em antíteses à ‘igreja pré-conciliar’ — ou seja, a Igreja de Cristo — e a segunda demonstra que o Papado considera sua própria prerrogativa pessoal para dispor, modificando-a e alterando-a à vontade, e sempre em coerência com os erros doutrinários implicados pelo Vaticano II e pelo ‘magistério’ pós-conciliar?
“Se o Papado Romano — o Papado, para ser claro, de Pio IX, Leão XIII, Pio X, Pio XI, Pio XII — é considerado um obstáculo ao diálogo ecumênico e o diálogo ecumênico é perseguido como prioridade máxima da ‘igreja sinodal’ representada por Bergoglio, de que outra forma poderia esse diálogo se materializar, senão na remoção daqueles elementos que tornam o Papado incompatível com ele, e, portanto, adulterando-o de forma completamente ilegítima e inválida?”

Percebemos nesse trecho que a sua crítica já está mais teológica, mas sem deixar de lado as críticas no âmbito moral. Os escândalos de ordem moral de Bergoglio, hoje veladas com uma capa conservadora com declarações recentes que iludem a muitos que vivem no novus ordo. E também não resta nenhuma dúvida de que ele é um sedevacantista convicto e parece (veja bem, parece) reconhecer os papas até Pio XII:

“Rejeito com convicção as doutrinas heterodoxas contidas nos documentos do Vaticano II e que foram condenadas pelos Papas até Pio XII, ou que de alguma forma contradizem o Magistério Católico.
“Também condeno, rejeito e rejeito as doutrinas heterodoxas expressas no chamado ‘magistério pós-conciliar’ originadas pelo Vaticano II, bem como as recentes heresias relativas à ‘igreja sinodal’, à reformulação do Papado em chave ecumênica, à admissão de concubinários aos Sacramentos e à promoção da sodomia e da ideologia de ‘gênero’. Também condeno a adesão de Bergoglio à fraude climática, uma superstição neomalthusiana louca que deu à luz por aqueles que, odiando o Criador, não podem deixar de odiar sua Criação, e o homem com ela, feito à imagem e semelhança de Deus.”

Aqui podemos adentrar num ponto: até que ponto podemos confiar em Viganò?

A IMPORTÂNCIA DE VIGANÒ E AS RESSALVAS

Inegavelmente Viganò tem uma importância ímpar na crise pós-conciliar. Ele hoje mostrou a crise ao mundo com uma projeção muito maior que o próprio Mons. Lefebvre. Não apenas por ter aparecido mais na mídia tradicional que o Francês ou por conta da internet, senão também porque também ele foi mais longe na hierarquia, ainda que seja uma falsa hierarquia de fato, é a hierarquia reconhecida pela maioria que se vê como católicos.

No entanto, apesar de tudo o que foi exposto até aqui, Viganò também merece ressalvas. Ele sempre tem um discurso muito politizado. A sua proximidade com Trump e movimentos perenialistas (pelo menos até 2022) é objetivamente problemática.

Por conta do seu excessivo engajamento político, Viganò chegou a soltar esse disparate:

“Talvez a providência tenha estabelecido que Moscou, a terceira Roma, assumirá hoje diante do mundo o papel de katechon (2Ts 2,6-7), um obstáculo escatológico ao Anticristo.”
(Declaração sobre a Crise Russo-ucraniana, 2 de março de 2022)

Antes de tomar Viganò como um pastor a quem podemos seguir, como uma voz que clama no deserto, devemos ter a prudência de avaliá-lo. Não li tudo o que ele escreveu e nem tenho tempo para tal. Os últimos escritos seus pareceram-me muito satisfatórios, mas ainda não encontrei uma retratação sobre outras declarações escandalosas e que cheiram a heresia como a declaração acima. Eu espero, muito, que ele tenha se corrigido.

Viganò tem tudo para ser o mais importante clérigo da Igreja nos últimos sessenta anos. Mas precisa deixar mais enfática a sua posição. Viganò não deixa claro ainda quem foi o último papa e tampouco sabemos se ele foi realmente sagrado por Mons. Richard Williamson (ao menos sabemos que ele é padre validamente ordenado). Ele reconhece a validade dos novos sacramentos? Não sabemos nada ainda.

Devemos ter a prudência de acompanhá-lo por conta do seu potencial, pois pode ser um personagem importante. Mas ao mesmo tempo devemos tomar cuidado porque se ele insistir nos antigos erros, o potencial para o estrago será muito grande.

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