A VALIDADE DAS ORDENS DOS SACERDOTES
ORDENADOS PELO ARCEBISPO DOM LEFEBVRE
John S. Daly
1991
[Ligeiramente editado – grifos no original. Isto foi publicado há muitos anos pela Britons Catholic Library como “Carta n.º 9”.]
Sustentou-se por vezes que as Ordens do arcebispo Dom Marcel Lefebvre fossem de validade duvidosa. Os fundamentos alegados para tanto são que o cardeal Achille Liénart, que ordenou e sagrou Lefebvre, era um franco-maçom de grau elevado do Grande Oriente (Lefebvre mesmo admitiu crer que Liénart fosse franco-maçom) e que deve haver fundamento para suspeitar de que a intenção sacramental de um franco-maçom de grau elevado possa muito bem ser o contrário das palavras do rito, já que sua finalidade em ser um oficial na Igreja deve certamente ser infligir nela máximo dano. E claro que, se as Ordens do próprio Lefebvre forem duvidosas, segue-se que as Ordens daqueles que foram ordenados por ele são também duvidosas.
A alegação da pertença do cardeal Liénart à franco-maçonaria é sem demonstração, já que sua única fonte original, o finado Marquês de la Franquerie, não apresenta nenhuma prova sólida para ela; mas, por outro lado, a alegação não é improvável, dado que Liénart foi um arquimodernista. No entanto, ainda que Liénart fosse sem dúvida alguma um franco-maçom, isso não faz diferença. O ensinamento comum dos teólogos católicos, capitaneados por seu príncipe Sto. Tomás de Aquino, e expressamente confirmado pelo Papa Leão XIII na Apostolicae Curae (1896), é que, quando um ministro realiza o ritual sacramental utilizando a matéria e forma corretas, sem nenhuma aparência de gracejo ou simulação, ele deve presumir-se ter agido validamente. (1)
[1. “O ministro do sacramento age na pessoa da Igreja toda, cujo ministro ele é, e nas palavras que ele profere a intenção da Igreja é exprimida. Essa intenção é suficiente para a perfeição do sacramento, a não ser que o contrário seja exteriormente expressado por parte do ministro ou do recebedor do sacramento.” (Sto. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, parte III, q. 64, a. 9, resp. ad secundam)
“Se uma pessoa usou seriamente e corretamente a devida matéria e forma, presume-se por essa razão mesma que ela teve intenção de fazer aquilo que a Igreja faz.” (Apostolicae Curae)
“…sempre que não houver aparência de simulação por parte do ministro, a validade dos sacramentos é suficientemente certa…” (Cardeal Billot, de Sacramentis, vol. 1, ed. 6, p. 201)]
É perfeitamente verdadeiro, claro, que um ministro pode invalidar um sacramento tendo uma intenção contrária positiva, e teoricamente podemos imaginar que um bispo-maçom, desejando prejudicar a Igreja, pudesse deliberadamente fazer isso. Mas, no mesmo diapasão, é sempre teoricamente possível que o ministro de qualquer sacramento possa falsificar sua intenção, de modo que se poderia argumentar que nunca podemos ter certeza da validade de nenhum sacramento. A isto os teólogos respondem que Nosso Senhor claramente quis que fôssemos capazes de nos fiar na validade dos sacramentos e que, portanto, quando Ele os fez depender da intenção interior do ministro, Ele tomou boas precauções para garantir que as ações exteriores do ministro fossem um indicador suficientemente fiável das intenções dele. Se as cerimônias exteriores do rito sacramental estão em ordem, os fiéis podem, e devem, presumir que a intenção também está.
De fato, o argumento principal da Apostolicae Curae é que os ministros anglicanos são de presumir que não têm sólida intenção de ordenar, em razão de eles terem mudado o ritual para refletir sua vontade deliberada de não ordenar sacerdotes no sentido católico. Se eles não tivessem alterado o ritual, a intenção deles deveria ter sido presumida suficiente; pois o que é interior e invisível só pode ser julgado pelo que é exterior e perceptível aos sentidos.
Em suma, a Igreja não nos abandona a fazer nossas próprias inferências. Ela nos diz que é errado julgar inválido um sacramento por intenção defeituosa a não ser que durante a cerimônia o ministro dê algum sinal claro de não estar falando sério [literalmente, de não estar querendo dizer aquilo que ele diz (N. do T.)].
O fato de entrar para uma loja maçônica realmente mostra uma oposição interior a, no mínimo, parte do ensinamento e missão da Igreja Católica, mas não prova um desejo habitual de causar dano à Igreja por todos os meios disponíveis, um [desejo] que seja tão profundamente arraigado e dominante na alma a ponto de suplantar a disposição ordinária de todos os homens de querer dizer aquilo que dizem e de realizar de fato aquilo que simbolizam por suas ações. Afinal de contas, para tornar um sacramento inválido é preciso estar mentindo deliberadamente enquanto se pronuncia a fórmula sacramental; mesmo uma doutrina sacramental grosseiramente errônea e a intenção de não produzir os efeitos sacramentais não destroem o sacramento se o ministro tiver uma intenção predominante de fazer o que Cristo instituiu, como é normalmente o caso. É por isso que a Santa Sé julgou válidos os batismos dos metodistas da Oceania não obstante estes avisarem expressamente os batizandos de que o batismo não tinha efeito nenhum na alma (Instrução do Santo Ofício ao Vigário Apostólico da Oceania, 18 de dezembro de 1872, Fontes n.º 1024).
Talvez se devam mencionar as opiniões do finado Dr. Hugo Maria Kellner, dos Estados Unidos, sobre o tópico da validade ou não das Ordens do Arcebispo Dom Lefebvre, já que essas opiniões desfrutaram de uma ressurgência de popularidade. Kellner sustentava que um franco-maçom era incapaz de ter a intenção necessária para receber o sacramento da Sagrada Ordem validamente, e que por isso Liénart, que era já um franco-maçom de alto escalão quando de sua consagração episcopal, não foi validamente consagrado. Noutras palavras, ainda que Liénart quisesse ordenar, ele não teria conseguido fazê-lo, dado que ele próprio não era bispo.
É bem impossível de reconciliar a posição do Dr. Kellner com a da Igreja Católica. Algumas das provas que estamos prestes a mencionar referem-se à intenção do ministro que confere sacramentos antes que à intenção da pessoa que os recebe, mas o que se aplica àquele se aplica tanto ou mais a esta última. Não somente nenhum grau maior de intenção é necessário para receber um sacramento validamente do que para conferi-lo, como de fato, falando geralmente, um grau menor de intenção é suficiente.
Assim, para o ministro de um sacramento uma intenção meramente virtual(uma disposição concebida antes da ação e que virtualmente continue durante a ação) é suficiente para a validade, mas uma intenção meramente habitual (a disposição da vontade que foi concebida antes da ação, não foi retirada, mas não é advertida quando da ação) não é. Em contrapartida, para o recebedor de um sacramento uma intenção virtual, novamente, sempre basta, mas também basta, normalmente, uma intenção habitual e mesmo, em alguns casos, uma intenção interpretativa (quando uma pessoa incapaz de intenção atual ou habitual, por exemplo em razão de inconsciência ou insanidade, tinha ao menos desejo implícito, antes da emergência, de receber o sacramento). [2. Ver Fundamentals of Catholic Dogma, do Dr. Ludwig Ott, pp. 343-346.] Ademais, mesmo crianças (antes do uso da razão) podem receber sacramentos validamente, incluindo a ordenação ao sacerdócio e mesmo a consagração como bispo, [3. Ibid., p. 460. Embora válidas, a ordenação e a consagração episcopal de crianças seriam, é claro, ilícitas.] ao passo que certamente não podem administrar sacramentos, sendo incapazes de formar qualquer uma das intenções necessárias já mencionadas. Em suma, toda intenção necessária num recipiente dos sacramentos é no mínimo tão necessária num ministro deles, e por isso, se uma espécie particular de intenção é suficiente para a validade num ministro, aí então, e mais ainda, essa mesma espécie é suficiente para o válido recebimento.
Eis agora as sete provas de que as alegações do Dr. Kellner não podem ser verdadeiras:
1(a). Dentre os impedimentos dirimentes (invalidantes) à válida recepção de Ordens Sacras, a pertença à franco-maçonaria não é listada, nem explícita nem implicitamente, no Código de Direito Canônico, apesar do fato de o Código lidar com os franco-maçons como uma categoria separada de incréus em diversos outros lugares.
1(b). Com efeito, o próprio Dr. Kellner reconheceu que o que ele sustentava estava em contradição com as provisões do Código de Direito Canônico, desculpando esse fato mediante a afirmação de que o Código deve ter sido infectado pela influência da franco-maçonaria. Este é um erro muito grave realmente, pois embora não seja parte da doutrina da Igreja que as leis dela sejam sob todos os aspectos tão perfeitas quanto podem ser, é bem parte da doutrina dela que a sua indefectibilidade impede que o erro infecte suas leis ou qualquer um dos meios pelos quais ela transmite a sua doutrina aos fiéis. Noutras palavras, a indefectibilidade dela abrange, não somente o ensinamento direto do Papa e bispos, mas também as leis dela, (4) sua liturgia, e tudo o mais que os fiéis consideram com direito ser manifestação da mente dela. É por isso que tais fontes são usadas pelos teólogos como prova da doutrina católica.
[4. O Papa Pio VI condenou o ensinamento do Pseudo-Sínodo de Pistoia de que “a Igreja…poderia estatuir uma disciplina que seja…perigosa ou prejudicial” como “falso, temerário, escandaloso, ofensivo a ouvidos pios, injurioso à Igreja e ao Espírito de Deus que a rege, e no mínimo errôneo” (Denzinger 1578).]
2. Se um franco-maçom não pode ter válida intenção de receber o sacramento da Ordem Sacra, é difícil de ver como ele pode ter intenção válida de receber qualquer outro sacramento. E a doutrina de que um franco-maçom é incapaz da intenção necessária para receber validamente um sacramento implicaria que ele não poderia, por exemplo, contrair matrimônio válido, já que tanto os ministros quanto os recipientes desse sacramento são os próprios cônjuges e, para validade, ambos os cônjuges precisam ter uma intenção sólida, suficiente tanto para conferir como para receber o sacramento. Porém, é certo que, quando um franco-maçom recebe o sacramento do matrimônio, ele está validamente casado, pois a Igreja nunca adotou a prática de exigir que os que abandonam a franco-maçonaria e retornam ao seio da Igreja tivessem de ser recasados.
3. Para receber um sacramento validamente, não é necessário que a intenção de alguém seja tudo aquilo que a Igreja deseja que ela seja: boa, santa, e associada ao desejo de promover a glória de Deus. Nem sequer é necessário que se creia naquilo que a Igreja ensina sobre os efeitos do sacramento. Os teólogos ensinam que, contanto que um ordenando não resista interior e exteriormente ao sacramento da ordenação, este é válido.
4. Na Apostolicae Curae, o Papa Leão XIII ensinou que, quando um sacramento é administrado seriamente de acordo com o rito da Igreja, a intenção do ministro deve presumir-se suficiente. E o Papa Leão XIII ensinou também (ibid.) que mesmo um herege ou um judeu pode conferir validamente um sacramento, descrevendo isto como uma “doutrina”.
5. Assim, como já foi mencionado, no caso dos Batismos metodistas na Oceania a Santa Sé julgou que aquele Batismo foi validamente administrado mesmo quando o ministro alertou expressamente os batizandos a não crerem que o Batismo produzisse na alma nenhum efeito que seja. O Santo Ofício ensinou que, não obstante esse erro fundamental e herético acerca da natureza do Batismo, a intenção geral subjacente de conferir e receber o sacramento tal como instituído por Jesus Cristo era suficiente, e que nem mesmo re-Batismo sob condição era permitido. O princípio subjacente a esta decisão é que o erro na mente acerca do que a Igreja é e faz nos sacramentos dela não é incompatível com a intenção na vontade de administrar ou receber o sacramento em questão.
6. No tempo da Revolução Francesa, Talleyrand, bispo de Autun, entrou para a igreja nacional cismática, saindo assim da Igreja Católica, e consagrou uma porção de bispos na nova igreja. Mais tarde, quando retornou à Igreja Católica, ele confessou muito abertamente que havia sido membro da franco-maçonaria durante esse período. Sem embargo, quando alguns dos bispos que ele consagrara quiseram ser reconciliados com a Igreja, o Papa Pio VII confirmou-os em seus ofícios episcopais sem exigir deles que fossem reconsagrados, nem mesmo condicionalmente. Logo, ele aceitou como certamente válidas as consagrações administradas por Talleyrand a despeito da pertença deste último à franco-maçonaria.
7. Na Inglaterra, durante a segunda metade do reinado do rei Henrique VIII, Thomas Cranmer, arcebispo da Cantuária, conformou-se exteriormente à doutrina e prática católica mas era interiormente um herege protestante e tinha a intenção e o desejo de subverter a Igreja, como não somente suas ações no reinado do rei Henrique VIII mas também suas ações subsequentes no reinado do rei Eduardo VI deixaram claro. Sem embargo, os católicos daquele tempo, incluindo as autoridades em Roma, não tiveram hesitação alguma em aceitar como válidas as Ordenações e Consagrações em que ele esteve envolvido.
Logo, não pode haver dúvida de que as Ordens de Lefebvre e aquelas conferidas por ele são válidas, ainda que Liénart fosse um franco-maçom.
APÊNDICE
Um argumento foi aduzido da Cum ex Apostolatus (1559) de Paulo IV, pretendendo mostrar que um herege não consegue ordenar. Isso se baseia ou num malentendimento, ou numa tradução errada. A bula diz que, se alguém for elevado ao episcopado após cair em heresia, sua elevação é “nula, sem efeito e sem valor” e que “todas e cada uma das (suas) palavras, feitos, ações e decretos…serão sem vigor…” (§ 6). Isso anula os atos de prelados heréticos de um ponto de vista jurídico; ou seja, um bispo herege não consegue designar alguém a um ofício, declarar sentença contra um delinquente, absolver de censura, etc. Mas isso não tem nada que ver com validez sacramental. Sobre essa matéria, o Direito Canônico diz que os ordenados por hereges precisam ser dispensados para terem permissão de operar, mas não têm necessidade de reordenação (Cânon 2372). E foi sempre esta a posição da Igreja (cf. Denzinger 358).
DO CARDEAL ACHILLE LIÉNART
A MONS. MARCEL LEFEBVRE
Padre Hervé Belmont
2013
Há afirmações que retornam de forma cíclica, sem se renovarem, mas provocando a cada aparição uma aparência de frescor, pelo simples fato de se dirigirem a uma nova geração que se encontra surpreendida e sem defesa.
Dentre essas afirmações, uma era corrente no debate dos anos 80, e vemo-la voltar com força trinta anos depois: O Cardeal Liénart era franco-maçom, e portanto Dom Marcel Lefebvre não foi nem sacerdote nem bispo, pois foi o mencionado Achille Liénart quem o ordenou sacerdote (em 1929) e sagrou bispo (em 1947). Com todas as consequências que daí decorrem, não é mesmo?
Dado que pessoas inteiramente honráveis parecem impressionadas (sobretudo pela desfaçatez daqueles que propagam essa afirmação), creio desejável examiná-la ponto por ponto.
A pertença do Cardeal Liénart à franco-maçonaria
não está provada
Quanto mais grave é uma acusação, mais ela tem de ser escorada por provas, por argumentos, por testemunhas. É a moral elementar que exige isso.
Ora, fazer a acusação de ser franco-maçom é de enorme gravidade: é acusar de pertencer a uma seita secreta cujo objetivo (inatingível) é a destruição da Santa Igreja através da subversão da Cidade cristã. É acusar de estar sob o efeito de uma excomunhão reservada ao Soberano Pontífice (cânon 2335).
Se nos debruçamos sobre as provas apresentadas pelos que afirmam a pertença do Cardeal Liénart à franco-maçonaria, não é pouca a surpresa que se tem com a indigência, ou mesmo com a total ausência de argumento sério. Não se pode basear toda uma cadeia de raciocínios sobre aquilo que não está provado de maneira nenhuma.
Um franco-maçom confere
validamente os sacramentos
Supondo que Monsenhor Liénart fosse realmente franco-maçom – o que permanece a ser provado –, disso não decorre, de maneira alguma, que as ordenações conferidas por ele sejam inválidas. Com efeito, nenhuma sentença pública de suspensão foi declarada contra ele (isso se saberia), e a excomunhão em que ele teria incorrido “ipso facto” não impede a validade de suas ordenações (cf. cân. 2261). E, até mesmo se a sentença de suspensão tivesse sido declarada, ela não teria impedido, tampouco, a validade dessas ordenações (cf. cân. 2284). Em parte alguma, no direito da Igreja, a validade dos sacramentos de um franco-maçom ou de um excomungado é posta em dúvida.
A malícia do ministro não impede a validade
de um sacramento
Santo Tomás, falando do sacramento da Eucaristia, diz que “o sacerdote consagra não por virtude própria, mas enquanto ministro de Cristo, na pessoa do Qual ele consagra esse sacramento. Ora, ele não cessa de ser um ministro de Cristo pelo fato de ser maldoso: pois o Senhor tem bons e maus ministros ou servidores. Por isso que está dito (em São Mateus XXIV, 45): Quem vós pensais que é o servo fiel e prudente? etc., e em seguida ele acrescenta: Se, porém, esse servo maldisser em seu coração, etc. E o Apóstolo diz (I Cor. IV, 1): Que o homem nos estime como ministros de Cristo; e, no entanto, ele acrescenta mais adiante: Minha consciência não me repreende por nada, mas nem por isso estou justificado. Portanto, ele tinha certeza de ser ministro de Cristo; contudo, ele não tinha certeza de ser justo. Logo, alguém pode ser ministro de Cristo mesmo sem ser justo. Isso é assim em razão da excelência de Cristo, a Quem, como a verdadeiro Deus, servem não somente as boas ações, mas também as más, as quais, por Sua providência, são ordenadas para a Sua glória” (Suma Teológica, IIIa, q. 82, art. 5).
E, mais adiante, acrescenta ele: “Aqueles que, pertencendo à Igreja, receberam na ordenação sacerdotal o poder de consagrar, possuem retamente esse poder, mas não fazem uso dele retamente, caso sejam separados ulteriormente da Igreja pela heresia ou o cisma ou a excomunhão” (loc. cit., art. 7).
Receber os sacramentos de um franco-maçom
pode até mesmo ser lícito
Santo Tomás prossegue afirmando que a licitude fica salva para aqueles que recebem os sacramentos da parte de tais ministros, a menos que a condenação desses ministros se torne pública e oficial: “Embora eles estejam suspensos por sentença divina, eles não o estão para os outros (os fiéis) por sentença da Igreja. E por essa razão, enquanto não houver sentença da Igreja, é permitido receber a comunhão da mão deles” (loc. cit., art. 9, c.). Essa sentença, a meu conhecimento, nunca foi fulminada contra o Cardeal Liénart.
Sim… mas e se o Cardeal Liénart
tinha má intenção?
É ainda Santo Tomás de Aquino que é preciso consultar: “O poder dos ministros da Igreja ordena-se a dois fins: primeiro, ao efeito próprio do sacramento; segundo, à finalidade desse efeito; e o segundo fim não suprime o primeiro. Logo, se um sacerdote tem a intenção de consagrar o Corpo de Cristo com vistas a um fim mau, para expô-lo à zombaria ou para confeccionar um veneno, ele peca, pois sua intenção visa um fim mau. Isso não obstante, por causa do poder que lhe foi conferido ele, consagra validamente” (IIIa, q. 74, art. 2, ad 2).
A doutrina católica sob dupla ameaça
O problema que estamos analisando diz respeito diretamente a dois pontos maiores da doutrina católica: o primeiro é a objetividade da ordem sacramental; o segundo é a apostolicidade da Igreja. Para se ver como é preciso evitar de se precipitar, de se fiar na própria “intuição”, de repetir sem discernimento os rumores emanados de não se sabe que ignorância.
A ordem sacramental é objetiva
Para um sacramento ser válido, é preciso que o ministro tenha a intenção de fazer aquilo que a Igreja faz: aí está a doutrina ensinada pelo Concílio de Trento. Aquilo que a Igreja faz não é uma doutrina etérea, é a realidade de seu rito que é sua fé professada e aplicada.
Não é a fé do ministro (fé possuída ou fé manifestada) que influi na validade de um rito sacramental (tal era a pretensão de Lutero); é a fé da Igreja, que, imanente ao rito, faz deste um instrumento de Jesus Cristo e obtém-lhe, pois, a eficácia (a validade). Um sacramento é a fé da Igreja em ato; através do rito católico, ela especifica a intenção do ministro, que tem de “querer fazer aquilo que a Igreja faz”.
É o vigoroso ensinamento de Santo Tomás de Aquino: “A eficácia – ou virtude – dos sacramentos provém de três coisas: da instituição divina, que é seu agente principal; da Paixão de Cristo, que é sua causa meritória primeira; da Fé da Igreja, que coloca o instrumento em continuidade com o agente principal” (IV Sent. d. I q. i a. 4 sol. 3).
Perder de vista a característica objetiva da ordem sacramental é torná-la universalmente duvidosa, pois dependente de uma intenção subjetiva. Fora do caso de simulação deliberada, pois, a intenção do ministro é especificada por aquilo que ele efetivamente faz, ou seja, pelo rito sacramental que ele utiliza, rito que é aquilo que a Igreja faz, por ser dado pela Igreja, por ser a fé da Igreja em ato — quer o ministro creia ou não creia!
Leiamos ainda Santo Tomás: “O ministro do sacramento age na pessoa de toda a Igreja, da qual ele é ministro; todavia, nas palavras que ele profere, exprime-se a intenção da Igreja, que é suficiente para a perfeição do sacramento” (IIIa, q. 64, art. 8, ad 2).
A Igreja é indefectível
O Catecismo de São Pio X (questão 111 da edição de 1912, aquela que é verdadeiramente obra de São Pio X) ensina o seguinte: “A Igreja é apostólica por estar fundada sobre os Apóstolos e sobre a pregação deles, e ser governada por seus sucessores, os Pastores legítimos, que continuam a transmitir sem interrupção e sem alteração tanto a doutrina quanto o poder.”
Fui eu que sublinhei estas últimas palavras, que mostram que a indefectibilidade da Igreja nos assegura de que não somente a doutrina dos Apóstolos chegou inalterada até nós, como também de que o poder deles (e, primordialmente, seu poder sacramental) permanece na Igreja. Sem essa garantia divina, sempre se poderia indagar-se se não houve, no curso da história, alguma interrupção na transmissão do sacerdócio, devida ao erro, à negligência ou à malícia dos homens.
É, pois, gravíssimo afirmar que haveria nessa transmissão uma ruptura liénartesca, sem nenhuma razão que dependa da ordem objetiva; e que, ainda por cima, a Igreja não teria remediado essa ruptura e a teria aceito, com máximo detrimento da ordem sacramental. É, portanto, a Igreja mesma que nos dá a garantia da validade da sagração de Mons. Lefebvre, não por um ato explícito, mas por sua vida cotidiana assistida pelo Espírito Santo.
Nota de passagem
Aqueles que se lançaram na aventura das consagrações episcopais sem mandato apostólico, ao introduzirem uma ruptura na apostolicidade, privaram-se da garantia trazida pela Igreja quanto à realidade da transmissão do poder sacerdotal. O que não é sem apresentar a priori um grave problema de fiabilidade, o qual se encontra por vezes (frequentemente) agravado a posteriori pela confusão factual e pela aberração doutrinal.
Conclusão
Os que propagam essa afirmação muitas vezes imaginam encontrar-se num grande rigor doutrinal e numa intransigência que merece estima… mas, na realidade, eles se comprometem em erros doutrinais que atacam a indefectibilidade mesma da Igreja. Só essa razão já deveria dissuadi-los de perseverar nessa via perigosa. Cumpre ajuntar a ela, com certeza, os danos que se pode infligir à justiça para com as pessoas.
Trad. por Felipe Coelho.

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