Daniel C. Scherer
2021
A distinção real entre
essência e ser
GALLUS MANSER JÁ OBSERVOU QUE “A PODEROSA SÍNTESE TOMISTA descansa, como em seu mais profundo cimento, na doutrina aristotélica do ato e da potência”1. E, de fato, a ideia filosófica capital de Santo Tomás a ideia mesma que lhe permitiu seus altos voos teológicos, qual seja, a distinção real entre essência e ser nas criaturas2 — é um desdobramento daquela doutrina aristotélica: o ser é actus essendi, a essência é potentia essendi. Nas criaturas, essência e ser distinguem-se, realmente, como potência e ato, respectivamente. Sem dúvida, Santo Tomás fez um acréscimo platônico fundamental à doutrina aristotélica recorrendo à noção de participação. A essência é potência, porque é uma participação do ser. A criatura participa do ser por sua essência. Ser e essência são coprincípios (ambos são id quo est, aquilo pelo que algo é) do supósito criado (que é id quod est, aquilo que é). Apenas em Deus essência e supósito se identificam, porque Deus é Ipsum Esse (tudo o que já explicaremos com vagar).
A distinção real, nas criaturas, entre essência e ser é o núcleo da metafísica de Santo Tomás. Cremos que não exageramos ao dizer, mais enfaticamente, que é a pedra angular de toda e qualquer metafisica que se queira realista. Apenas essa distinção possibilita a distinção ulterior e última entre Ens per essentiam e ens per participationem. Dela depende, portanto — e isso é o crucial — a correta consideração filosófica da transcendência. Sem ela, o pensamento escorrega de algum modo — cedo ou tarde, ao menos potencialmente — para o imanentismo. Tomando por base essa distinção, podemos dela se identificar duas grandes tendências na história da filosofia. Duas metafisicas fundamentais; ou — macintyrianamente — duas tradições metafísicas fundamentais: uma que tende a essa distinção, e que aqui chamaremos metafísica da transcendência, e outra que afasta, e que aqui chamaremos metafísica da imanência. Se é verdade, como estabelecemos na primeira parte deste livro, que toda reflexão ético-política pressupõe uma metafisica, podemos agora precisar que tradição metafisica específica respalda o liberalismo. E também que metafísica opor-lhe.
Em Platão e em Aristóteles, ainda há uma tensão entre esses dois camimnhos. A rota ao ápice da montanha do ser é aberta por esses dois gigantes com grandíssimo esforço. Mas a estrada eles descobriram não é reta; o caminho não é livre de perigos: há armadilhas à espreita do alpinista. A história posterior da filosofia nos mostra que houve autores, cristãos e não cristãos, que seguiram a via conduziria à doutrina tomista; e outros autores, cristãos que e não cristãos, que seguiram a via oposta, em grau maior ou menor. Esta última via também é seguida pela filosofia moderna e contemporânea. A modernidade filosófica é um prolongamento da tradição da imanência, cujo fruto maduro, no âmbito prático, é o liberalismo. Temos, então, razões estritamente filosóficas que opor — ao lado da Revelação — a autores como Voegelin e sobretudo Strauss, que pretendem contrapor-se à ordem liberal moderna por um retorno aos clássicos. Podemos dizer que eles retornaram a um ponto em que os caminhos ainda não estavam claramente diferenciados, e no qual ambas as vias se abriam de par em par: a da transcendência, sem dúvida, mas também aquela mesma que conduzirá à modernidade liberal. Não podemos opor simplesmente à modernidade um pensamento pré-moderno: a própria modernidade tem uma raiz pré-moderna; e, sobretudo, o pré-moderno não é homogêneo, não é uma coisa só. Devemos opor-lhe, antes, um pensamento de outro tipo, tão atual quanto pré-moderno. Não se trata de recuar da modernidade a algum ponto do passado. Trata-se de elevar-se acima dela, absorvendo e entendendo melhor que ela mesma suas descobertas — Mas adiantamos muita coisa. Caminhemos devagar.
First things first: “O ente é o objeto próprio do intelecto; de é pois o primeiro inteligível, como o som é o primeiro objeto proprio do ouvido”3. Ens é o particípio presente de esse, e indica aquilo que é ou tem ser. O ente é o primum cognitum de nossa potência cognoscitiva, seu objeto próprio e formal. Ele é o que primeiro conhecemos e aquilo sob cuja razão conhecemos tudo o mais. Diante de qualquer experiência sensível, o que primeiro apreendemos, como evidentíssimo, é que nos encontramos perante algo que é, id quod est. As determinações deste ente particular que alhamos de captar sensivelmente ainda nos são, em um primeiro momento, confusas e desconhecidas; mas sabemos com clareza meridiana que há, diante de nós, um “ente”, ou seja, algo atualmente existente. Como diz Calderón, a noção de ente não é clara e distinta, mas sim clara e indistinta4. O que significa que Descartes errou já no primeiro passo. E a consequência desse passo em falso só poderia ser trágica. Porque na noção de ente se inclui, potencialmente, tudo o que podemos saber. O ente não é apenas o primeiro conhecido; é, em certo sentido, “todo o conhecido”: “pois tudo o mais se conhece por ele e nele, como determinação sua. Todos os demais conceitos, sejam predicamentais, sejam transcendentais, se alcançam como modalidades e determinações do conceito de ente”5. Ou por outra: o intelecto “é homem de uma só palavra, que só sabe dizer ente”6.
O lógico logo nos dirá que a noção de ente é análoga. O acúmulo e a comparação das experiências sensíveis delimitam e determinam a noção basilar, evidentíssima e confusíssima, de ente. Notamos, antes de mais, que aquilo que nossos sentidos captam são formas de um sujeito: a cor, o gosto, a textura são determinações de algo que lhes subjaz. E alcançamos, então, a distinção entre ente substancial e ente acidental. O ente, propriamente, é a substância, que é em si. O acidente é menos propriamente ente que algo do ente, porque o que lhe é próprio é ser em outro. A substância, que é justo aquilo que sub-stat aos acidentes, também pode dizer-se sujeito, porque subjaz aos aspectos sensíveis do ente; subsistência, porque existe por si; ou supósito, porque é aquilo posto como fundamento do que existe apenas na substância. O acidente, por seu turno, é o que ad cadere, recai sobre, sobrevém, sucede àquilo que já existe.
Notamos, em seguida, que os acidentes não fazem parte da essência do ente. Essentia é o abstrato de esse. Pode dizer-se que é o mesmo que a quididade do ente. Mas há uma diferença de “enfoque mental” entre os dois termos: “A quididade de homem é aquilo que o homem propriamente é: ‘quod quid est’, considerada in concretione (…); em contrapartida, a essência de homem é aquilo que é ser homem: ‘quod quid est esse’, quer dizer, é a mesma quididade mas considerada in abstractione, como separada do sujeito em que se dá”7. A essência, portanto, entende-se como princípio ou parte do todo composto: aquilo pelo que algo é o que é; seu modo de ser. E a quididade refere-se, antes, ao próprio todo composto, aquilo mesmo que algo é. A essência do ente não inclui seus acidentes, mas o ente concreto é composto de substância e de acidentes. E, com isso, alcançamos a distinção entre ente per se e ente per accidens. Tanto a substância quanto os acidentes, considerados separadamente, são entes per se, conquanto não do mesmo modo: a substância é ente em si per se ou per essentiam, o acidente é ente em outro per se ou per essentiam (embora, a rigor, só se possa falar da essência dos acidentes quando os tomamos in abstractione, ao modo de substâncias, desconsiderando mentalmente o sujeito em que são: então, sim, a brancura, a doçura ou a rugosidade podem ser consideradas como aquilo pelo que a cor, o gosto ou a textura são os acidentes que são). Mas a combinação de substância e de acidentes — homem branco — é ente per accidens, porque é um composto de partes conceitualmente distinguíveis.
Ademais, notamos que as coisas mudam: a pedra fria é esquentada pelo sol, o café amargo é adoçado pelo açúcar, a parede branca agora é azul. Ente, portanto, não é apenas aquilo que atualmente é, mas aquilo que pode ser. E então alcançamos a distinção entre ente em ato e ente em potência. Actus é o particípio passivo de agere: significa o que foi posto em movimento, feito, levado ou conduzido a seu termo. “O ‘ente em ato’ é o ente levado à sua plenitude e acabamento”8. Potentia, como possibilitas, deriva de possum (potis + esse: que pode ser). Seu primeiro significado é ativo: o poder ou a força de pôr o ente em ato. Mas, por extensão, indica a possibilidade passiva de vir a ser algo. Ou, nas palavras de Calderón: “Potência não é outra coisa que a possibilidade real de ter atualmente certa perfeição”9; ou ainda, “capacidade ou possibilidade de ser”10. A descoberta aristotélica do par ato e potência traz a lume a composição real de forma e matéria nos entes sensíveis.
Finalmente, notamos que é possível negar que uma essência ou quididade esteja presente atualmente em um ente: o branco, o doce ou o rugoso podem não ser. Mas, como o intelecto concebe tudo sob a razão de ente, também a negação é concebida deste modo, como id quod est non tale: o azul é o não branco, o amargo é o não doce, o liso é o não rugoso. E então alcançamos a noção de ente de razão, que “não tem entidade real senão somente enquanto conhecido pela razão”11. — O ente, enfim, diz-se de muitos modos12. Sinteticamente: de um lado temos o ens rationis, e de outro o ens naturae, que pode dizer-se ens per se (substância e acidentes, isoladamente) ou ens per accidens (substância com acidentes) e, em qualquer caso, in actu ou in potentia. O ens rationis é ente no sentido mais débil do termo; em seguida, temos o ens in potentia, então, o acidente; e, por fim, a substância, ente quasi per se existens. Portanto, repisamos: a noção de ente é análoga; e o analogado primeiro e principal dos vários sentidos que acabamos de descrever é a substância, ente principaliter et prius.
É ainda o lógico quem nos informa que a analogia do ente é de atribuição intrínseca. O tema é de grande complexidade e não nos interessa aqui diretamente. É suficiente dizer que a analogia é dupla: (i) “de razão simples ou ‘atribuição’, quando os analogados secundários guardam razão proporcional a um primeiro e principal”; e (ii) “de razão composta ou ‘proporcionalidade’, quando a razão de dois termos guarda proporção à razão de outros dois”13. A analogia de atribuição pode ser intrínseca ou extrínseca, conforme os analogados recebam o nome por aquilo que são ou não são, respectivamente. Ora, todos os sentidos da palavra ente se entendem por uma relação com a substância (temos aqui, pois, uma razão simples ou atribuição); e, ademais, o ente de razão, o ente em potência e o acidente são ditos entes por aquilo mesmo que são, já que têm realmente entidade, conquanto em grau diminuído (ou seja, a razão pela qual lhes atribuímos entidade lhes é intrínseca). Razão por que devemos dizer que a analogia entis é de atribuição intrínseca.
Mas já agora precisamos ir além do âmbito lógico e pedir ajuda ao físico. “O problema fundamental que deve resolver o fisico”, diz Calderón, “é o do necessário e do contingente”14. E, de fato, quando percebemos que a substância é o primeiro analogado do ente, percebemos também que o supósito, que é a substância primeira e individual, tem uma essência necessária, mas uma existência contingente. O ente é aquilo que é, id quod est, a essência é o modus essendi do ente, ou id quo est, aquilo pelo que o ente é o que é. E ela distingue-se, mas apenas racionalmente, da existência — a qual significa “o fato de [o ente] estar hic et nunc”15 — justamente porque pode ser abstraída da existência concreta do ente. Pois bem, “a essência ou modo de ser dos entes, que se descobre gradualmente à luz da inteligência, é o reino do necessário; enquanto a existência, que conhecemos antes voltando-nos para os sentidos, se manifesta como o reino do contingente, do que pode ser e não ser”16. Na ótima expressão de Cornelio Fabro, a existência é o “fato de ser”17. Mas o fato de que, ponha-se, esta nogueira seja é contingente. A nogueira que agora vejo, amanhã deixará de existir; mas sua essência é necessariamente o que é. O homem é necessariamente animal racional; mas Sócrates pode ser ou não ser. Podemos dizer que, nos entes compostos, a forma é o princípio de necessidade, e a matéria o princípio de contingência. Portanto, quanto mais a forma é elevada, despegada da matéria, tanto mais o ente se aproxima da condição de ente necessário. Entendamo-lo.
O físico é capaz de nos mostrar que graus de perfeição nas há essências, de acordo com a maior ou menor separação da forma com respeito à matéria. O “plasma denso” é o grau de menor perfeição das coisas sensíveis (este parece ser o caso dos buracos negros).
Sua forma encontra-se enterrada na matéria prima (que é potencialidade), quase sumida, “com um mínimo de atualidade”18. Os átomos e as moléculas são estruturas mais estáveis, que já podem ser consideradas substâncias. Também há escalonamento o carbono, o que de perfeição entre os elementos simples e os mistos: por exemplo, “o ouro tem maior estabilidade e unidade que implica maior perfeição. Porém o carbono, junto com o oxigênio, o enxofre, o fósforo e o silício, são os minerais que têm maior perfectibilidade por suas possibilidades de combinação em mistos de grande variedade”19. Nos viventes, a unidade fundamental é a célula, estrutura de grande complexidade. Tal complexidade confere maior unidade e maior permanência aos vegetais. A árvore que perde suas folhas no inverno não diminui quantitativamente ao modo de uma substância mineral; e já a primavera a revestirá de nova folhagem. Ademais, a planta se alimenta e cresce. O vivente opera pelo todo, não pelas partes, que são instrumentos ou órgãos seus. As partes do vegetal ordenam-se ao bem do organismo. E, sobretudo, ele se reproduz, comunica sua forma a nova matéria, gerando novo ente numericamente distinto, mas idêntico a ele. Ou seja, a alma vegetativa — capaz de nutrição, especificamente crescimento e reprodução — domina a matéria de modo superior ao mineral.
A alma sensitiva revela um descolamento em relação à matéria em grau ainda maior. As partes materiais dos animais renovam-se de modo mais ou menos completo sem que sua unidade seja comprometida. Ainda: a potência motriz desliga-os do lugar e permite que encontrem paragens mais seguras para viver e criar sua prole. Sua estrutura tem uma unidade de ordem superior: para um carvalho pode ser benéfico ter um galho seu cortado; mas não se pode dizer o mesmo de um cão que perca uma pata. Cada parte do organismo animal tem uma relação mais estreita com o todo. E, sobretudo, o animal é capaz de conhecimento sensível. Para além de suas próprias qualidades, ele pode receber qualidades das coisas externas, e pode obrar, por conseguinte, de modos mais ricos e complexos. Finalmente, o homem tem como atos próprios, e propriamente espirituais, o entender e o querer A alma racional, por sua mesma imaterialidade, é incorruptível, subsistindo à corrupção do órgão corporal. Paremos por aqui. Mas se seguíssemos adiante, até as inteligências ou anjos e a Deus, veríamos o mesmo: a forma é o princípio de universalidade do ente; e o ente é tanto mais perfeito quanto mais sua forma se separa da matéria — podendo conceber-se como maxime perfeito o ente que seja forma pura, em si mesmo universal.
Em todas as coisas naturais, cuja perfeição escalonada o físico consegue contemplar, a perfeição mais alta e comum é o ser. Mas em todas elas — e também nas inteligências, que conhecemos apenas por fé — o ser não lhes é essencial. Ainda não alcançamos a distinção real entre essência e ser. Estamos nisto: a essência das coisas naturais, que têm formas mais ou menos universais, é necessária; sua existência é contingente. É importante não seguirmos a via do “tomismo fast-food”, como a chama Calderón20, que passa da distinção fácil entre essência e existência diretamente para a distinção dificílima entre essência e ser. Agora, nesta altura, o físico, confrontado com o problema da distinção entre o necessário e o contingente — mais do que com o problema da distinção entre o universal e o particular, que é mais próprio do lógico — , o físico, dizíamos, deve ceder passo ao metafísico.
Se, nas coisas é contingente, isso significa que, em todas elas, uma coisa é a cia essência, natureza ou quididade e outra o supósito; uma coisa é a humanidade, outra coisa é Sócrates. A humanidade contém tudo aquilo que pertence necessariamente ao homem; mas Sócrates inclui determinações — branco, grego, filósofo — que estão fora da essência “homem”. Em tudo o que é per se, é o mesmo a coisa e sua quididade. Se houvesse, com queria Platão, o homem per se, qual supósito no Hiperurano, tal supósito em nada se distinguiria da humanidade. Assim como se houvesse a brancura, fora de toda coisa branca, tal brancura não se distinguiria da essência do branco. (Por isso, no Ser per se, que de fato é e subsiste por si, e apenas n’Ele, supósito e essência se identificam). Mas em todo ente per accidens, isto é, ao qual sobrevenham determinações que não sejam da razão de sua essência, essência e supósito são distintos. A essência inclui apenas o que pertence à razão da espécie; o supósito inclui todos os acidentes que recaem sobre a substância individual. “Porque o supósito se refere ao todo, enquanto a essência, somente ao necessário”21. Nas palavras de Santo Tomás:
Nas coisas compostas de matéria e de forma há necessariamente distinção entre natureza ou essência e supósito. Isso porque a natureza ou essência compreende apenas o que está contido na definição da espécie; assim, humanidade compreende o que está contido na definição de homem. É pelo que está contido na definição que o homem é homem, e é o que significa a palavra humanidade, isto é, aquilo pelo qual o homem é homem [quo homo est homo]. Mas a matéria individual, com todos os acidentes que a individualizam, não está contida na definição da espécie; pois a definição de homem não contém esta carne, estes ossos, a brancura, a negritude, etc. Por conseguinte, esta carne, estes ossos e os acidentes que determinam essa matéria não estão incluídos na noção de humanidade, e, no entanto, estão incluídos no que é o homem. Segue se que o homem tem algum que a humanidade não tem. Assim, não são totalmente a mesma coisa [non est totaliter idem] homem e humanidade, mas a humanidade é entendida como sua parte formal [pars formalis]; pois os elementos da definição, com relação à matéria individualizante, se comportam como formas22.
Isso não é dificil de verificar nos entes compostos. Da matéria se segue a quantidade, e a corporeidade agasalha multidão de acidentes (somos gordos ou magros, altos ou baixos, estamos aqui e não lá, sentados ou de pé…), que não se incluem na essência do ente. Ademais, embora a forma seja princípio de necessidade e a matéria princípio de contingência, a forma não tem ser em si, mas na matéria; a matéria, por seu turno, recebe o ser pela forma e, alias, está sempre em potência para novas formas substanciais, pela geração e corrupção. Forma dat esse, sem dúvida, mas isso significa apenas que a forma é princípio de ser, não o mesmo ser da coisa. A forma dá ao supósito seu modo de ser. Ela limita o ser — informa-o — assim como a matéria limita, ou melhor, individua a forma. Mas quem tem o ser é o supósito. Este último, sim, é id quod est, não a forma em si mesma — o que justamente indica que, nos entes compostos, o ser é contingente, não necessário: ele pertence ao supósito, que amanhã poderá não ser, e não à sua forma, que lhe pertence necessariamente.
À primeira vista, parece que se passa algo diverso com as substâncias separadas (que incluem a alma separada e as inteligências). A alma separada não é forma pura por essência; é substância de natureza incompleta. Não pode dizer-se, portanto, propriamente supósito. As inteligências, sim, são formas puras por essência; são substâncias completas e, como tais, plenamente supósitos — ou pessoas. Mas em ambos os casos, em certo sentido, tudo é necessário. Como são formas sem matéria, e a matéria é princípio de contingência, o supósito (incompleto ou completo) identifica-se com a forma. Escreve Santo Tomás, na continuação do trecho citado logo acima: “Naquilo que não é composto de matéria e de forma, cuja individuação não vem de uma matéria individual, isto é, desta matéria [per hanc manteriam], senão que se individualiza pela própria forma, é necessário que esta forma seja supósito subsistente. Logo, nele, o supósito não se distingue da natureza”23.
No entanto, nas substâncias separadas, a identificação entre essência e supósito não é total. Santo Tomás diz o posto acima para imediatamente concluir que Deus é a própria deidade (esta é a pergunta do artigo: “Utrum sit idem Deus quod sua essentia vel natura”). Mas, tanto nas almas separadas quanto nas inteligências, há algo no supósito que escapa à essência. Na alma separada, isso é mais fácil de observar: a alma separada ainda é capaz de atos livres; retém os hábitos cujos sujeitos são suas potências espirituais (a inteligência e a vontade); e, sobretudo, não têm o ser por essência (não é desde sempre, conquanto já não possa deixar de ser, porque já não está, como a matéria prima, em potência para outra forma substancial). Atos, hábitos e ser pertencem ao supósito, mas não à essência da alma separada. As inteligências, por sua vez, não adquirem hábitos, têm-nos por natureza. Mas são capazes de atos livres; e, sobretudo, também seu ser lhes é comunicado de fora (são entes necessários, mas causados; não podem deixar de ser, mas poderiam não ter sido). E, novamente: atos e ser pertencem ao supósito, não à essência das inteligências. Portanto, também nas substâncias separadas, natureza e supósito não são totaliter idem. Di-lo o próprio Santo Tomás. Nas Quaestiones de quodlibet, Tomás pergunta-se “Utrum in Angelo sit aliud suppositum et natura”; e responde: “No anjo, non est omino idem [ou seja, o suppositum e a natura]: porque algo lhe acontece fora da razão de sua espécie: porque o próprio ser do anjo é de fora de sua essência ou natureza [ipsum esse Angeli est praeter eius essentiam seu natura]; e outras coisas lhes ocorrem que pertencem absolutamente ao supósito, mas não à natureza”24, como os atos livres.
De todas as substâncias cuja estrutura ontológica inspecionamos — do plasma aos anjos — pode-se afirmar que seu ser pertence ao supósito, mas não à sua essência; ou seja, pode-se dizer que têm ser contingente. Para sermos precisos: as substâncias corporais certamente não têm ser necessário; são mas podem não ser. As substâncias separadas são incorruptíveis. E, neste sentido, têm necessário (não podem não ser), mas não são por essência, e sim por alguma causa. Pelo que seu ser pode ser dito, em outro sentido, também contingente, porque lhes advém de uma causa extrínseca. “Apenas naquela Forma pura a que pertença o ser por essência, que não possa não ser” e que, ademais, “não tenha causa alguma de sua existência, será omnino idem o supósito e a natureza”25. No mesmo artigo de suas Questiones de quodlibet que acabamos de citar, no qual trata dos anjos, Santo Tomás o diz: “Somente em Deus não se encontra nenhum acidente fora de sua essência, porque seu ser é sua essência [quia suum esse est sua essentia], como dito; daí que em Deus [e apenas n’Ele] é absolutamente o mesmo o supósito e a natureza [in Deo est omnino idem suppositum et natura]”26.
Agora já estamos, plenamente, no marco da metafísica. Não é dificil reconhecer neste passo algo da terceira via para a demonstração de que Deus é: o contingente leva ao necessário com causa, e este ao necessário per se. Isso é importantíssimo: as cinco vias e a descoberta da distinção real entre essência e ser implicam-se mutuamente. Quando nos perguntamos o que é este ser que pertence ao supósito — é algo real, ao lado da forma, e também da matéria nos entes compostos? ou é apenas um nome que indica que a forma pura e o composto existem na realidade? — , só podemos afirmar que é um coprincípio do ente, distinto realiter de sua essência, quando antecipamos que há um Ser per se, o Ipsum Esse Subsistens: “‘ser’ começa a ter um sentido próprio quando se suspeita que há um Ser por essência”27. Reciprocamente, não se entende perfeitamente a conclusão das cinco vias se não se compreende que, em Deus, o ser é supósito e essência: “A conclusão das cinco vias não chega a compreender-se em todo o seu valor metafísico enquanto não se entenda que a Causa primeira é o Ser essência”28. A distinção real ilumina e esclarece as cinco por vias; e as cinco vias garantem que, ao propormos a distinção real, não incorremos em logicismo, não damos peso ontológico a um mero nome ou artifício da razão. Por isso, Calderón observa que “a distinção [real entre essência e ser] é anterior e posterior à demonstração da existência de Deus”29. Há certa circularidade no raciocínio metafísico: a distinção parte de uma primeira colocação, ainda imperfeita, das cinco vias, que então são mais bem compreendidas pela distinção real, a qual, enfim, ganha suma claridade. “Os que pretendem levar adiante uma ontologia que não parte da demonstração da existência de Deus nunca vão conseguir distinguir claramente a lógica da metafísica”30.
Não é à toa que Santo Tomás abre a Suma teológica, depois de uma questão introdutória em que trata da natureza da teologia sagrada, pondo as cinco vias (I, q. 2, a. 3), para logo em seguida propor a distinção real (sobretudo em I, q. 3, a. 4). Este é um ponto em que Calderón insiste com particular ênfase. Em seus Umbrales de la Filosofia, o argentino já havia observado que a resolutio metafisica é dupla, por divisão e por demonstração: “O primeiro [processo resolutivo na metafísica] procede por divisão e termina na distinção de ser e essência; o segundo deve recorrer à demonstração quia e termina na distinção entre Ato puro e participado”31. O que em El orden sobrenatural acrescenta é o seguinte:
A mesma resolução da distinção entre essência e ser pressupõe a colocação inicial das vias para a demonstração de Deus, ainda que confusa. Assim se vê que toda a consideração metafísica se desenvolve no ascenso e descenso da demonstração da existência de Deus — qual escada de Jacó — em recirculação contemplativa, pela qual a observação das coisas nos permite conhecer por analogia algo de Deus, sua existência e quodammodo sua natureza, e o conhecimento de Deus nos permite conhecer melhor as coisas, à luz desta Causa primeira. Parece-nos que não há maior desorientação metodológica que a daquelas metafísicas (ainda tomistas) que desenvolvem primeiro uma ontologia e somente depois se atrevem a colocar a teologia, com a demonstração das cinco vias. A metafísica é uma visão teológica de todas as coisas à luz da Causa divina, pelo que começa com a demonstração da existência de Deus e, de certa maneira, nunca sai dela32.
A premissa maior de todas as cinco vias é “sempre algum aspecto do princípio de causalidade”; a menor, “sempre um atributo causado das coisas que se oferecem à nossa experiência sensível”, a saber: elas “são movidas (1ª via), são causadas (2ª via), são contingentes (3ª via), são participadas (4ª via), são dirigidas a seus fins (5ª via)”33. Estabelecido que há um Ato puro, pode-se agora compreender que, n’Ele, ser e essência coincidem e que, em tudo o mais, o ser é um coprincípio — ao lado da essência, e distinto realiter dela — que o Ipsum Esse lhes participa. Deus éo Ser per se que as cinco vias alcançam, e já agora o ser que atribuímos ao supósito (mas não à essência) de tudo o mais não é mero nome ou artifício da razão, e sim coprincípio real que funda sua existência — com o que se escapa de qualquer logicismo. “A demonstração da existência de Deus é o contexto de toda a metafísica”34.
Porque Deus é o Ser por essência, n’Ele não se distinguem essência e supósito. Em tudo o mais, o ser pertence antes ao supósito que à essência, razão por que há que distinguir realmente, em sua estrutura ontológica, essência e ser. Podemos mostrá-lo por três argumentos35. O primeiro é o seguinte: tudo aquilo que pertence ao supósito e não à essência é causado; mas pode sê-lo pelos princípios da própria essência ou por alguma causa exterior; ora, tudo o que se tem por uma causa, intrínseca ou extrinseca, não se tem por essência; portanto, tudo o que se tem mas não por essencia distingue-se realiter desta última. Pode-se acrescentar ainda que tudo aquilo que não tem o ser por essência, tem-no necessariamente por uma causa eficiente exterior. E impossível que o ser substancial seja causado eficientemente pelos principios da própria essência (é causado apenas formal e materialmente por tais princípios, como já diremos), à maneira dos acidentes próprios: já porque o ser substancial preexiste aos acidentes próprios e algo não pode preexistir ao próprio ser, já porque os princípios essenciais dos entes per accidens são a só forma, ou a forma e a matéria (no caso dos entes sensíveis), e é impossível que a forma e matéria preexistam ao ser substancial, porque então a coisa seria causa eficiente de si mesma.
Conclusão: “Daí resulta que todas aquelas coisas que não tem o ser por essência senão que são causadas têm o ser substancial casado eficientemente por algo exterior, tendo nos princípios essenciais sua causa formal e, se é o caso, sua causa material”36.
O ser lhes é comunicado de fora, ab aliquo exteriori, por meio de seus princípios essenciais, que o limitam e determinam formal e materialmente. A arduidade de percebê-lo está em que o ser é concomitante aos princípios essenciais. Mas isso é natural, porque estes são as causas formal e eventualmente material do ser, mas não sua causa eficiente, que, como dito, é exterior, e a anterioridade da causa com respeito ao efeito é própria apenas da causa eficiente. Agora o célebre brocardo forma dat esse faz pleno sentido: ele não significa que a forma é causa eficiente do ser, porque neste caso ela teria de preexistir ao seu próprio ser, como indicamos; antes, a fórmula significa que a forma é, justamente, causa formal do ser porque põe o ser em uma espécie — dá ao ente seu modo de ser específico — , assim como a matéria, no caso dos entes sensíveis, põe o ser em um indivíduo. O ser é intrínseco ao supósito, mas distinto realmente de seus princípios essenciais. O ser não é causado eficientemente pela essência, mas recebido e limitado por esta. Ser e essência são, em suma, coprincípios do supósito; são os princípios pelos quais (id quo) o supósito é o que é (id quod est). — Eis o argumento completo nas palavras de Santo Tomás:
O que é em algo que não pertence à sua essência tem de ser causado ou pelos princípios da essência, como os acidentes próprios da espécie: o riso, por exemplo, pertence ao homem e é causado pelos princípios essenciais de sua espécie; ou por algo exterior, como o calor da água é causado pelo fogo. Portanto, se o próprio ser de uma coisa é distinto de sua essência, é necessário que este ser seja causado ou por algo exterior ou pelos princípios essenciais dessa coisa. É impossível, no entanto, que o ser seja causado apenas pelos princípios essenciais da coisa: pois alguma coisa é capaz de ser causa de ser, se este ser é causado. É preciso, pois, que o que tem o seu ser distinto de sua essência, tenha-o causado por outro [ab alio]. Ora, não se pode dizer isso de Deus, porque dizemos que Ele é a causa eficiente primeira. Logo, é impossivel que em Deus uma coisa seja o ser e outra a essência37.
O segundo argumento é o seguinte: tudo aquilo que pertence ao supósito mas não à essência é recebido no supósito por algo nele que está em potência para recebê-lo; ora, o que o ente tem por essência não o tem como ato de uma potência, porque tal ato não se tem por si, mas é recebido; portanto, tudo o que se tem mas não por essência distingue-se realiter desta última. Este argumento continua o anterior, se o ser é um efeito causado eficientemente na coisa, então há um agente em ato que o causa e, na coisa, uma potência capaz de receber tal efeito. Ou por outra: há um Ser per se que comunica o ato e uma “abertura potencial”38 no ente que recepciona tal ato. Aqui vemos como a doutrina aristotélica do ato e da potência é levada por Santo Tomás até suas últimas consequências. Aquilo que não tem o ser por essência, tem-no por potência. Isso significa que a própria essência do ente é um princípio potencial com respeito ao ser. Essência e ser distinguem-se, realiter, como potência e ato. O ser é actus essendi, que a essência, como potência receptiva, acolhe e delimita, conferindo ao ente seu modus essendi próprio. Esta é a resolutio mais fundamental da metafísica: a compreensão da essentia ut potentia e do esse ut actus.
Conclusão: “Assim como a matéria é potência com respeito à forma substancial, e a substância é potência com respeito às formas acidentais, assim também a essência deve ser considerada ut potentia com respeito ao ser39. O ente em potência, como vimos, é algo real. Assim como a matéria é algo real, em correlação com uma forma substancial também real; e a substância é algo real, em correlação com uma forma acidental também real; assim também a essência é algo real, em correlação com o ato de ser também real que lhe é comunicado por alguma Potência ativa suma — já que o ente que não é por essência não é capaz de dar-se o ser a si mesmo, como nos mostrou o argumento anterior. Reciprocamente, “assim como a forma substancial é ato com respeito à matéria, e a forma acidental é ato com respeito à substância, assim também o esse deve ser considerado ut actus com respeito à essência”40. É o esse o que dá atualidade às mesmas formas. Como diz Santo Tomás: “O ser é o que há de mais perfeito entre todas as coisas, pois a todas se refere como ato. E nada tem atualidade senão enquanto é; o ser é, portanto, a atualidade de todas as coisas, até das formas. Por conseguinte, não se refere às coisas como o recipiente ao que é recebido, e sim como o que é recebido ao recipiente”(491). A rigor, nos entes sensíveis o esse dá atualidade ao composto, porque a matéria não existe sem a forma e a forma (de tais entes) também existe apenas na matéria (a alma separada, como dito, é substância incompleta). Nas inteligências, o esse dá atualidade à forma substancial (a que se resume sua essência) e às formas acidentais. — Novamente, citamos o argumento completo nas palavras do Aquinate:
O ser é a atualização de qualquer forma ou natureza. Não se entende a bondade ou a humanidade em ato a não ser enquanto entendemos que tais coisas são. É preciso então que o ser seja referido à essência, que é distinta dele, como o ato em relação à potência [sicut actus ad potentiam]. E como em Deus nada é potencial, como já se mostrou, segue-se que nele a essência não é distinta de seu ser. Sua essência é, portanto, seu ser41.
Finalmente, o terceiro argumento diz o seguinte: tudo o que pertence ao supósito mas não à essência pertence ao supósito por participação; ora, o que se tem por essência distingue-se realiter do que se tem por participação; portanto, tudo o que se tem mas não por essência distingue-se realiter desta última. Este argumento, novamente, completa o anterior: “O que se recebe em um princípio potencial recebe-se ao modo do recipiente, cuja natureza ou essência é diversa da natureza ou essência da coisa recebida, pelo que não pode recebê-lo plenamente, mas só parcialmente”42. Santo Tomás, em seu comentário ao De Hebdomadibus de Boécio, observa de modo simples e lapidar que “participar é como tomar parte [est autem participare quasi partem capere]”43. Participar é receber, de modo particular e diminuído, algo que outro possui de modo universal e pleno. O participante “toma parte”, de modo (por definição) limitado, na perfeição participada. O essencial se tem plenamente; o participado, parcialmente: “O que não é essencial se dá em parte”44. O que o ente não tem por essência, ele o recebe, de modo parcial, de outro ente, do qual participa: “O que se tem por essência tem-se pleno e per se, enquanto o que não se tem assim tem-se participado e per aliud”45. Aqui vemos o acréscimo platônico que Santo Tomás faz à doutrina aristotélica do ato e da potência. Mas vemos também como a doutrina platônica da participação é, por assim dizer, lida aristotelicamente por Tomás. Porque há per- feita correspondência entre participante e potência, de um lado, e participado e ato, de outro.
Conclusão: em todo ente que não tem o ser por essência, “a essência é plena e o ser participado”46. O ente que não tem o ser por essência recebe-o, de modo limitado, do Ente que o tem per se e ilimitadamente. O homem é animal racional por essência e plenamente; mas tem o ser por participação, o que significa que toma parte, limitadamente, no ser por meio de sua essência. Vimos que as essências das coisas podem ser dispostas em uma hierarquia, ordenadas por seus graus de perfeição. Agora, finalmente, podemos ver estes últimos como graus de perfeição do ser das coisas. É o ser das coisas o que é mais ou menos perfeito, porque é o ser das coisas o que participa, mais ou menos perfeitamente, do Ser per se, que reúne em si todas as perfeições (porque não há perfeição que não seja de algum modo); assim como uma brancura subsistente, hipoteticamente, teria em si, de modo pleno, a perfeição de que participariam, escalonadamente — em maior ou menor grau, de modo mais ou menos perfeito — , as várias coisas brancas. As essências, em si mesmas, não se comparam quanto a mais ou menos. A essência, em si, é simples; não tem contrários — nem mais e menos. O cavalo tem uma essência simples, especificamente distinta da essência do homem. Pode dizer-se que um cavalo é “mais cavalo” que outro apenas quanto às suas formas acidentais. Mas não se pode comparar a essência do cavalo com a essência do homem. O homem não é mais ou menos humano que o cavalo, nem o cavalo mais ou menos equino que o homem. A comparação das essências impossível. É o ser o que comporta gradações, mais e menos. Nas palavras de Calderón: “homem e cavalo são incomparáveis quanto a suas essências, porque nada é mais ou menos equino que o cavalo, nem nada é mais ou menos humano que o homem. Porém (…) podemos compará-los quanto ao ser, como o homem tem mais ser que o cavalo que monta, e o cavalo mais que a água que toma”47.
A essência é a razão da diferença; o ser, a razão da comunidade. Na distinção numérica entre indivíduos dentro de uma mesma espécie, a matéria, que é potência, é o princípio da individuação e da multiplicidade, e a forma, que é ato, é o princípio da unidade e da semelhança. As coisas sensíveis da mesma espécie são distintas pela matéria, mas participam da mesma forma. Do mesmo modo, na distinção entre as espécies, a essência, que é potência, é o princípio da diversidade, e o ser, que é ato, é o princípio e aglutinante. As diversas espécies são distintas por sua essência, mas participam do mesmo ser, conquanto em graus de perfeição diferentes e hierarquizáveis. Em uma palavra: “Os entes participam mais ou menos da comum perfeição de ser segundo a incomparável diversidade de suas essências. As essências constituem os múltiplos sujeitos participantes (princípio potencial), e o ser [princípio atual] é o comum participado segundo graus”48. As essências dos vários supósitos — desde os corruptíveis até os necessários com causa — participam do ser comum, mas de modo específico e escalonado, mais ou menos próximo do Ipsum Esse. — Eis, nas palavras sintéticas de Santo Tomás, o argumento inteiro:
Assim como o que tem fogo e não é o fogo por participação, assim também o que tem o ser e não é o ser é um ente por participação [ens per participationem]. Ora, Deus é sua essência, como já foi apontado. Portanto, se não fosse seu próprio ser, Ele seria um ente por participação, e não por essência. Não seria então o primeiro ente [primum ens], o que é um absurdo. Logo, Deus é o seu ser, e não apenas a sua essência49.
A distinção real entre essência e ser é o distintivo da filosofia de Santo Tomás em relação às demais filosofias. É o que lhe permitiu aperfeiçoar a doutrina das inteligências ou anjos — afinal, Santo Tomás é o Doutor Angélico. A única maneira de conceber as inteligências como formas puras, absolutamente imateriais, e, no entanto, criadas e compostas — mesclas de ato e potência — , é distinguir em sua estrutura ontológica esse e essentia. Por não terem alcançado essa distinção, alguns Santos Padres e não poucos escolásticos atribuíam às inteligências alguma matéria, ainda que sutil, para dar razão da distinção entre elas e o Ato puro e infinito. Santo Tomás, em seu De Substantiis separatis, obra da última maturidade, pôde pôr, com tranquilidade: “Não se segue que, se as substâncias espirituais carecem de matéria, não se distingam de Deus, porque, retirada a potencialidade da matéria, permanece nelas certa potência, enquanto não são o ser mesmo, senão que participam do ser”50. Avicebrão — contra quem Tomás se dirige neste passo de seu opúsculo — objetava que, se as inteligências fossem formas puras, seriam infinitas como Deus. Mas a ausência de matéria não lhes confere senão uma “infinitude formal”, o que significa simplesmente que sua forma não é limitada por nenhuma matéria; e não uma “infinitude ontológica”, como a divina, já que ainda é limitado por sua essência.
Santo Tomás esclarece que há dupla ordem de participação: (i) a participação do ser nas essências (que Cornelio Fabro chama “participação transcendental”); e (ii) a participação das essências nos individuos (a “participação predicamental”, na dicção de Fabro). As essências das inteligências não são recebidas em uma matéria (cada uma delas, portanto, é uma espécie inteira), razão por que se pode falar em “infinitude formal” nos anjos. Mas há ainda assim uma “finitude ontológica” nas inteligências, porque cada uma tem un modo de ser especifico, determinado por sua essência. Por outro lado, Deus é “infinito absoluto ou duplamente infinito”51. E as substâncias materiais, por fim, são duplamente finitas52. Remata Tomás: “É necessário afirmar que os anjos, e tudo o que é fora de Deus, são criados por Deus. Pois somente Deus é seu ser: em todas as outras coisas, distinguem-se a essência e o ser [differt essentia rei et esse eius], como ficou evidenciado. Por isso é manifesto que somente Deus é ente por sua essência [solus Deus est ens por suam essentiam]: pois todas as demais coisas são entes por participação [entia per participationem]. Tudo aquilo que é por participação é causado por aquilo que é por essência”53.
A doutrina da distinção real culmina, portanto, em um Ente que tem o ser por essência. Um Ente omnino necessário, necessário per se e não per aliud. Um Ente cuja essência é o próprio Ser. Em suma, um Ens per essentiam — ou, ainda melhor, o Esse per essentiam — e não per participationem. Em tal Ente, a essência é o próprio supósito. N’Ele, nada há no supósito fora da essência, porque Sua essência é Ser, e nada há fora do ser. Um ente, enfim, capaz de causar, atuar e participar o ser pelo qual tudo o mais é. Et hoc omnes intelligunt Deum. — A distinção entre Ente por essência e ente por participação é o cume da metafisica tomista. É o ponto em que a razão natural toca a Revelação, porque alcança o próprio nome divino: “Ego sum qui sum”, YHVH. Este é cume do que chamamos metafísica da transcendência. Dela depende, como dissemos, a correta consideração da transcendência. Porque, se o ser não se distingue realiter da essência, a distinção entre Deus e criaturas, premida por dois “abismos”, corre o risco de perder-se. Eis o que nos diz Calderón:
Ao compreender que Deus é Ente por essência e as criaturas são entes por participação, acha-se o equilíbrio exato, ou melhor, o cume superior entre os dois abismos das teologias excessivamente negativas da transcendência e as teologias excessivamente positivas da imanência. A consideração do teólogo não tomista se acha sempre tentada pelas duas posições extremas da superimanência ou da supertranscendência. Se se exagera a distinção entre Deus e as criaturas, termina-se caindo em uma teologia puramente negativa, equivocista, em que não pode atribuir-se a Deus de nenhuma maneira a noção de ente, própria das criaturas, pelo que Deus seria o Não Ente. Assim Deus estaria fora de tudo, transcendendo tudo de tal maneira que tampouco o podemos entender como Criador e Pai das coisas. Ao passo que, se o teólogo exagera a semelhança, termina caindo em uma teologia excessivamente positiva, univocista, em que Deus é o Ente que se predica de todos os entes. Assim Deus é imanente a tudo de tal maneira que tudo é Deus e Deus é tudo, resultando em um panteísmo ontologista segundo o qual Deus tampouco é Criador, pois as coisas nunca saem dele. A explicação tomista nos coloca de maneira simples e clara na verdadeira transcendência e imanência divina — mais transcendência que imanência. Deus transcende infinitamente as coisas porque é o Ser por essência, necessário em sua existência e infinito em sua essência; enquanto as coisas são entes por participação; não necessários em sua existência e finitos em sua essência. Porém na medida em que as coisas participam do ser, que é o princípio de Deus, dependem d’Ele e se referem a Ele, proclamando-o seu Criador, pelo que as coisas permanecem em (manent in) Deus como os efeitos na causa propriíssima e imediatíssima, e Deus nas coisas como nos efeitos está presente a causa intimíssima, porquanto é a causa do esse54.
O trecho é precioso. Indica que aquilo que chamamos “metafísica da imanência”, que não reconhece a distinção entre essência e ser, comporta dois extremos: um extremo excessivamente negativo, e outro extremo excessivamente positivo. Mais adiante os correlacionaremos, respectivamente, com os extremos da gnose e do panteísmo. — Antes, porém, de fazê-lo, é preciso considerar a relação entre o Ipsum Esse e os demais entes também do ponto de vista do obrar, isto é, também do ponto de vista dinâmico, e não apenas do ponto de vista estático, como fizemos até aqui.
A ordem do obrar
É Cornelio Fabro quem observa que tanto a participação predicamental quanto a participação transcendental podem ser consideradas duplamente55: (i) do ponto de vista “da composição do participante com respeito ao participado” — ou seja, do ponto de vista da estrutura ontológica mesma do vários entes; a isso Fabro chama “participação estática”, e ela foi nosso objeto de análise no tópico anterior, e (ii) do ponto de vista da “dependência causal do participante com respeito ao participado” — isto é, do ponto de vista do fieri ou do obrar dos vários entes; a isso Fabro chama “participação dinâmica”, e ela será nosso objeto de análise agora. Esses são dois níveis de análise que não se separam senão didaticamente, porque se dão ao mesmo tempo. Mas a distinção tem especial relevância para nós, porque o liberalismo pressupõe uma maneira específica de considerar as causas segundas.
Quando examinamos o obrar das coisas criadas, percebemos que elas são, de fato e a justíssimo título, causas. Podemos dizer que este homem, Sofronisco, é causa da geração deste outro homem, Sócrates. Mas há um resíduo de mistério na causalidade criada. As coisas são individuos mas obram por sua forma específica e universal. Sofronisco não gera um mini-Sofronisco; gera outro ente individual, numericamente distinto, mas da mesma espécie. Ora há um axioma escolástico que reza: proter quod unumquodque tale, et illud magis (que significa algo como: “aquilo em razão de que algo é tal é, ele mesmo, mais”). Deve haver proporcionalidade entre causa e efeito. Ninguém dá o que não tem. A causa deve ter em si mesma, e em grau maior, aquilo que produz como efeito. Mas isso nos põe perante um problema quando examinamos a causalidade criada: as coisas são individuais, mas seus efeitos são de algum modo universais. Sofronisco, enquanto supósito ou substância individual, apenas participa da forma da espécie “homem” (participação predicamental); ele não a tem por inteiro, mas recebida. Ele não é causa de sua própria essência. E, no entanto, parece comunicá-la (por inteiro, e não apenas como a tem, recebida em uma matéria signata quantitate) a seu filho Sócrates. Ele parece, em suma, dar algo que não tem. Existe aí uma desproporção entre causa e efeito. Ao lidar com a obra de Finnis, lembramo-nos daquele outro axioma escolástico: agere sequitur esse. Mas agora parece que na geração das substâncias individuais vemos o agere das coisas criadas exceder seu esse. Esse problema — de que, nas coisas criadas, encontramos “uma eficiência universal com um princípio eficiente individual”56 — o físico o constata, mas é o metafísico quem o resolve.
A solução vem da tradição platônica, ou, mais exatamente, da tradição neoplatônica (que, em sua vertente cristã, soube enriquecer a tradição platônica com a noção de criação, ausente do pensamento grego). É preciso que haja um princípio universal obrando de modo concomitante ao princípio individual, para que o efeito quodammodo universal deste último encontre explicação última. A comunicação de uma forma universal a Sócrates não se explica apenas pelo obrar de Sofronisco — que, nada obstante, é legitimamente causa de que tal forma seja eduzida da matéria —, mas também do obrar de outro agente, capaz de participar (dinamicamente) essa forma universal: “Assim como a geração de coisas artificiais de um mesmo desenho se explica pela universalidade da ideia que reside na mente do artífice, assim também a geração de coisas naturais de uma mesma espécie se explica pela universalidade da ideia divina que reside na mente do Artífice divino”57. As essências das coisas existem universaliter em Deus, como modos pelos quais a própria essência divina pode ser participada, e são comunicadas por meio das coisas naturais, que atuam como instrumentos de um agente superior. A comparação das formas específicas com o instrumento do artífice, como explica o próprio Calderón, não é de todo própria, porque o efeito universal do cinzel deve atribuir-se inteiramente ao escultor, mas as coisas naturais têm em seu próprio modo de ser uma condição universal. Ainda assim, a comparação é esclarecedora.
O obrar das coisas naturais não se explica completamente sem o obrar divino. A essência das coisas naturais, comunicada por geração, não é causada por elas mesmas, exclusivamente, porque nenhuma delas é causa de sua própria essência, ou seja, nenhuma delas explica por que ela própria tem tal essência.
Antes, as essências são causadas por Deus por meio das coisas criadas, atuando estas últimas como que instrumentalmente. E, depois de comunicadas universalmente, as formas específicas são ainda sustentadas ou conservadas por Deus no ser. Deus, portanto, também conserva a capacidade causal das coisas criadas. As coisas criadas são, então, causas segundas, cuja própria causalidade, real e verdadeira, depende, nada obstante, da Causa Primeira (é justamente porque sua ação não se explica sem uma Causa Primeira que as coisas criadas podem ser ditas causas segundas). A ideia divina dos vários entes é a causa exemplar das coisas criadas (e não apenas no que têm de universal, senão também no que têm de singular, porque Deus é a causa do ente todo, como já diremos), e também sua causa eficiente e final, porque a operação das coisas criadas “é dirigida (finaliter) e conformada (efficienter) pela operação divina”58. A participação das essências aos entes individuais, obrada pelo Ipsum Esse, no qual tais essências preexistem como exemplares, e depois sua manutenção na existência, com capacidade causal própria, foi o que escapou a Aristóteles — e o que recuperamos de Platão pela tradição neoplatônica cristä.
Mas há um mistério ainda mais profundo na causalidade criada, mistério que escapou à própria tradição neoplatônica, e que se esclarece apenas com a distinção real entre essência e ser: as coisas criadas, ao obrar, não comunicam apenas a forma da espécie, mas o próprio ser, perfeição comuníssima, que não é própria de nenhum indivíduo criado e tampouco é própria de nenhuma espécie. “O único que tem o ser por essência é Deus, pelo que dar o ser é o próprio e exclusivo de Deus, e ninguém pode dar o ser senão obrando em dependência absoluta de Deus como causa primeira”59. Ou seja, há uma participação dinâmica também na ordem transcendental do esse; e não apenas na ordem predicamental das espécies. O homem singular, que não explica a essência universal “homem”, menos ainda explica o ser, de que o homem participa justamente por essa essência ou modo de ser. “E nem por isso se suprime a realidade da causalidade das coisas, porque as coisas têm realmente potência ativa para obrar; porque são realmente o que são por sua essência; e porque têm realmente ser”60.
A causalidade criada depende, portanto, quanto à essência e quanto ao ser, da causalidade divina. Nas palavras de Calderón: “A distinção real no criado entre essentia e esse se funda nesta distinção da dupla ordem de participação de Deus [predicamental e transcendental]”. Por um lado, “as múltiplas essências das coisas criadas participam da Essência divina segundo as múltiplas Ideias divinas que se dão nela”. E, por outro, “o esse das coisas criadas participa mais ou menos, segundo as essências, do próprio e único Esse divino, que é o essencial de Deus e que não pode pertencer essencialiter a nenhuma criatura”61. Ou por outra: assim como há uma participação estática predicamental e transcendental, há uma participação dinâmica nesses dois âmbitos; e, em ambos, as criaturas são verdadeiramente causas, ainda que causas segundas
Ao longo de sua obra, Santo Tomás contrasta a causalidade divina e a causalidade criada usando diferentes fórmulas. Em suas primeiras obras, como o Comentário às Sentenças, põe que Deus é causa essendi, causa do ser, enquanto as coisas criadas são causa fiendi, isto é, causas do fieri ou do motus: “Como diz Avicena, a diferença entre o agente divino e o agente natural reside em que o agente natural é somente causa do movimento [est tantum causa motus], enquanto o agente divino é causa do ser [est causa esse]”62. A menção a Avicena é interessante. Calderón observa que Santo Tomás, em sua juventude, teve um “período aviceniano”, em que, valendo-se da terminologia e da autoridade do filósofo árabe, já expressava, nada obstante, e ainda que imperfeitamente, sua própria doutrina da distinção real entre essência e ser (não alcançada por Avicena). Quanto a certos temas, a terminologia aviceniana foi depois abandonada por Santo Tomás, porque se prestava a confusões, como ainda diremos. Mas a presente distinção, entre Deus como causa do esse e a criatura como causa do fieri, é preservada, e repetida, por exemplo, na Suma teológica:
Deve-se considerar que há agentes [as coisas criadas] que são causa apenas secundum fieri, e não diretamente secundum esse. Isso acontece entre as coisas artificiais e as naturais. O construtor, por exemplo, é causa da casa, quanto a seu fieri, e não diretamente quanto a seu esse [que depende da natureza dos materiais utilizados] (…). O mesmo argumento deve ser considerado nas coisas naturais. Quanto um agente não é causa da forma enquanto forma [como sucede entre as coisas criadas, que são causa de sua própria forma], tampouco será causa do esse que se segue [consequitur] de tal forma, mas apenas do efeito secundum fieri63.
As coisas criadas são causas do vir a ser de outras criaturas na medida em que são causas de que a forma da coisa gerada seja eduzida da matéria (isto, justamente, é o motus ou fieri); mas são causas apenas segundas: porque esta mesma forma é participada predicamental e dinamicamente pela Causa Primeira à coisa gerada; e, sobretudo, porque, por meio desta forma, o ser — efeito propriíssimo de Deus, Ser por essência é participado transcendental e dinamicamente pela Causa Primeira à coisa gerada. Deus é causa do ser e da forma; as criaturas são causa do eduzir a forma de tal matéria, forma pela qual forma o ser é comunicado. Deus é causa per se da forma e, portanto, do próprio esse que a forma dat.
Mas a fórmula mais adequada para expressão a distinção entre causalidade divina e causalidade criada é aquela em que Santo Tomás põe que Deus é causa totalis do ente, ou seja, é a causa de todo o ente, ao passo que as criaturas são certa causa formalis, ou seja, são causa apenas da forma. A fórmula é precisa, porque dizer que Deus é causa essendi poderia levar à compreensão (indevida, sem dúvida) de que Deus meramente acrescenta o esse a uma coisa já pronta, como se desse o último acabamento a uma obra feita alhures. No entanto, o ser é o ato de todos os atos. Tudo aquilo que é nos entes criados — forma, matéria e acidentes é pelo esse. O esse é o que põe tudo em ato. Ser causa essendi é, portanto, ser causa da totalidade do ente, o que a expressão causa totalis, justamente, deixa claro. A causa formalis, por outro lado, é apenas causa de que ente receba certa forma, pressupondo-se uma matéria (no caso dos entes sensíveis). Escreve Santo Tomás:
Algo perfeito que participa de uma natureza faz o que lhe é semelhante, não produzindo essa natureza de forma absoluta, mas comunicando-a a alguma coisa. Pois este homem [Sofronisco, por exemplo] não pode ser a causa da natureza humana considerada de modo absoluto, porque seria causa de si mesmo, mas ele é causa de que a natureza humana exista neste homem que ele gerou [Sócrates]. Assim sua ação pressupõe a matéria determinada pela qual ele é este homem. Da mesma forma que este homem participa da natureza humana, assim todo ente criado participa, por assim dizer, da natureza do ser [naturam essendi]; pois só Deus é seu próprio ser, como já foi dito. Portanto, nenhum ente criado pode produzir um ente de modo absoluto a não ser enquanto causa o ser nisto [como que instrumentalmente, como causa segunda]64.
E logo adiante: “De fato, é preciso entender de um modo o agente particular [criatura), que pressupõe uma coisa e causa outra [e que atua, portanto, como causa formalis], e de outro modo o agente universal [Deus], que produz tudo [producit totum]”65. Causar a totalidade do ente no ser, o que é propriamente criar, é próprio da Causa Primeira, cuja causalidade é, portanto, pressuposta pela causalidade criada, e sustenta, ademais, esta última. — A distinção real entre essência e ser é o que nos permite compreender corretamente a relação entre causalidade divina e causalidade criada; é o que nos permite entender as coisas criadas como legítimas causas, mas ainda assim causas segundas, cuja causalidade depende da Causa Primeira. Sem aquela distinção, é fácil o pensamento escorregar, novamente, para extremos problemáticos: podem-se absorver as causas segundas na Causa Primeira, negando àquelas verdadeiro poder causal; ou, inversamente, absolutizar as causas segundas, tornando-as livres e independentes de qualquer influxo superior. A noção da Causa Primeira como causa total do ente — que a Revelação expressa pelo dogma da criação ex nihilo — destaca a absoluta dependência da realidade criada; mas, ao mesmo tempo, em vez de suprimir sua causalidade segunda, funda-a, porque as coisas criadas obram de acordo com a essência e o ser de que participam. Em uma palavra: Deus “é causa de todo causar criado”66. As coisas criadas de fato obram, mas a partir de uma natureza que lhes é participada. Eis o que diz Calderón em outro trecho precioso:
Assinalamos mais acima (…) como a visão tomista se coloca como um cume entre dois excessos ou defecções teológicas [trata-se dos extremos que mencionamos no final do último tópico: o extremo excessivamente negativo e o extremo excessivamente positivo]. O mesmo ocorre na consideração da causalidade divina e da causalidade criada. As posições teológicas extremas são o ocasionalismo, por uma parte, que pretende destacar tanto a intervenção da Causa primeira que nega realidade à causalidade segunda, e, por outro lado, o excesso contrário, em que se cai ao querer defender a liberdade do obrar humano, pelo qual este é independentizado de alguma maneira do obrar divino67.
E já agora encontramos o princípio liberal — a independência do obrar humano com respeito ao obrar divino; a capacidade humana de determinar, para si e por si, o que é a vida boa, como se não tivesse uma natureza teleológica recepta — como decorrência, no âmbito prático, de certa visão metafísica da realidade (a metafísica da imanência), caracterizada pela indistinção realiter entre essência e ser.
Excerto de DANIEL C. SCHERER; A Metafísica da Revolução: Pressupostos do Liberalismo, Edições Santo Tomás, 2021, pp. 215-247.
- La essencia del tomismo, 1947, p. 63. ↩︎
- O Padre Álvaro Calderón, em sua obra magistral El orden sobrenatural, que aqui seguiremos de perto, observa que “a distinção entre essência e ato de ser é a alma da metafisica tomista, e portanto será a chave da explicação teológica dos mistérios revelados” (2020, p. 181). ↩︎
- Santo Tomás, Summa Theologiae, I, q. 5, a.2, c. ↩︎
- El orden sobrenatural, 2020, p. 59. ↩︎
- Id., p. 56. ↩︎
- Id., p. 60. ↩︎
- Id., p. 51. ↩︎
- Id., p. 63. ↩︎
- Id., p. 107. ↩︎
- Id., p. 109. ↩︎
- Id., p. 64. ↩︎
- Aristóteles, Metafísica, IV, 1003 a 33. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 67. ↩︎
- Id., p. 73. ↩︎
- Id., p. 71. ↩︎
- Id., p. 73. ↩︎
- E.g., Partecipazione e causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, 2010, p. 257: “É claro que tal existência indica o fato de ser [il fatto di essere], a realização em ato, ou ainda, o ato da realização de uma essência”. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 36. ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Id., p. 76. ↩︎
- Id., p. 95. ↩︎
- Summa Theologiae, I, q.3, a. 3, resp. ↩︎
- I, q. 3, a. 3, resp. ↩︎
- I, q. 2, a. 2, c. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 99. ↩︎
- I, q. 2, a. 2, c. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 100. ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Id., p. 117. ↩︎
- Ib., p. 110. ↩︎
- 2011, p. 509. ↩︎
- El orden sobrenatural, 2020, p. 81–82. ↩︎
- Id., p. 80. ↩︎
- Id., p. 81. ↩︎
- Todos são apresentados por Santo Tomás na questão capital da Suma teológica a respeito da distinção real entre essência e ser: I, q. 3, a. 4. A pergunta a que Santo Tomás responde neste artigo é “Utrum in Deo sit idem essentia et esse”. ↩︎
- Id., p. 103. ↩︎
- Summa Theologiae, I, q. 3, a. 4, c. ↩︎
- Id., p. 108. ↩︎
- Id., p. 109. ↩︎
- Id., p. 110. ↩︎
- Id., I, q. 3, a. 4, c. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 112. ↩︎
- Lectio 2. ↩︎
- Id., p. 112. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 113. ↩︎
- Id., p. 114. ↩︎
- Id., p. 115, grifo nosso. ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Summa Theologiae, I, q. 3, a. 4, c. ↩︎
- C. 8. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 181. ↩︎
- Calderón ainda precisa: “tudo isto por parte do ato, pois as substâncias materiais são infinitas pela matéria, porque têm um princípio aberto à infinidade de formas” (Ibid.). ↩︎
- Summa Theologiae, I, q. 61, a. 1, c. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 186-187. ↩︎
- Partecipazione e causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, 2010, p. 28. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 214. ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Id., p. 217. ↩︎
- Id., p. 230. ↩︎
- Id., p. 232. ↩︎
- Id., p. 241. ↩︎
- Scriptum super Sententiis, I, d. 37, q. 1, a. 1, resp. ↩︎
- I, q. 104, a. 1. ↩︎
- I, q. 45, a. 5, ad. 1. ↩︎
- I, q. 46, a. 1, ad. 6. ↩︎
- Padre Álvaro Calderón, El orden sobrenatural, 2020, p. 241. ↩︎
- Id., p. 242-243, grifo nosso. ↩︎

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