Padre Álvaro Calderón, F.S.S.P.X.
2003
Este artigo foi publicado em La conscience dans la religion de Vatican II. Études théologiques. Deuxième symposium de Paris 9-10-11 octobre 2003, editado pelos dominicanos do Convento da Hayeaux-Bonshommes, de Avrillé, pp. 139 a 170.
Introdução
Embora “a doutrina da fé que Deus revelou não tenha sido proposta como um achado filosófico que devesse ser aperfeiçoado pelas inteligências humanas, mas tenha sido entregue à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser fielmente guardada e infalivelmente declarada”1, a inteligência dos sagrados dogmas, porém, pode, deve e de fato foi crescendo e progredindo muito e intensamente2. O autor principal deste progresso na inteligência da Revelação não é outro senão o Espírito Santo; mas para esta tarefa o divino Espírito se digna a utilizar certos instrumentos ou “órgãos”, que Ele dota dos carismas necessários para realizá-la sob sua direção. Mas quais são os “órgãos” e quais os carismas pelos quais progride a compreensão da Revelação na Igreja?
A Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, responde a esta pergunta da seguinte maneira: “A Tradição apostólica vai crescendo na Igreja com a ajuda do Espírito Santo; ou seja, cresce a compreensão das palavras e das instituições transmitidas quando os fiéis as contemplam e estudam repassando-as em seu coração, quando compreendem internamente os mistérios que vivem, quando as proclamam os Bispos, sucessores dos Apóstolos no carisma da verdade”3. Estávamos acostumados a ouvir que o órgão de transmissão e de progresso da Revelação era exclusivamente o Magistério, isto é, o Papa e os bispos, e surpreende-nos ver aqui associado em primeira instância aos simples fiéis. Por acaso o ofício de explicar o depósito revelado não pertence ao Sacerdócio, para o qual goza do carisma da infalibilidade?
Efetivamente, responde desta vez a Lumen Gentium, mas não se devia esquecer que os simples fiéis também participam, e em primeira instância, do Sacerdócio da Igreja, e ficam assim associados à “função profética” “mediante o senso sobrenatural da fé” mesmo no exercício da infalibilidade: “A totalidade dos fiéis, que têm a unção do Santo, não pode equivocar-se quando crê, e esta prerrogativa peculiar sua se manifesta mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando ‘desde os Bispos até o último dos fiéis leigos’ [Santo Agostinho] prestam seu consentimento universal nas coisas de fé e de costumes”4.
A referência ao “sensus fidei” é um dato importante, porque assim o Concílio assinala qual é o princípio tradicional de que sairiam essas conclusões que nos parecem novas. Porque a doutrina católica já tinha aceitado como certa a sentença: “Universitas fidelium in credendo falli nequit”. Podemos então precisar o problema que agora formulamos: se a participação dos simples fiéis na inteligência da Tradição tal como a ensina a Dei Verbum flui legitimamente da doutrina do sensus fidei tal como o tinha ensinado a doutrina católica. Devemos então, em primeiro lugar, considerar o que ensina a doutrina católica acerca da infalibilidade do sensus fidei; convém depois ver a posição do modernismo neste ponto, para que o contraste destaque os contornos do ensinamento tradicional; só então estaremos em condições de julgar o texto da Dei Verbum e dar resposta à questão suscitada. Finalmente, em quarto lugar, assinalaremos as principais consequências que nossas conclusões possam explicar.
A. Doutrina católica acerca da infalibilidade do sensus fidei
1º A infalibilidade da fé
Ao tratar do objeto da fé, Santo Tomás pergunta-se se pode haver ato de fé de um objeto falso5; por exemplo, se um menino de catecismo pode ser levado por seu catequista mal instruído a fazer um ato de fé acerca de uma proposição falsa. Parece que sim, porque o menino está docilmente disposto a crer, em virtude de sua fé, em tudo o que o catequista lhe ensine em nome da Igreja, e não tem como distinguir o verdadeiro do falso em tudo aquilo que lhe ensina seu mestre. Mas não é assim: o objeto formal próprio da virtude sobrenatural da fé é a verdade divinamente revelada, na qual não pode dar-se o erro. Assim como a visão não pode ver senão a cor por meio da luz; assim como a inteligência não pode entender senão a verdade em razão de sua evidência; assim tampouco a fé sobrenatural pode crer senão na verdade formalmente revelada. O aluno poderia ser induzido pelo mestre a afirmar como concludente uma demonstração sofistica, mas o assentimento não seria induzido pela evidência do raciocínio, pois não a tem, e portanto não seria um ato da virtude intelectual de ciência. De maneira análoga, o menino poderia dar assentimento à falsidade que lhe propõe seu catequista, mas seria um ato de fé humana e não um ato de fé sobrenatural, que só pode exercer-se com respeito a verdades reveladas.
Mas, como já o sugere o exemplo dado, nesta vida o cristão não pode discernir com certeza se um ato seu é natural ou sobrenatural, porque o único hábito intelectual capaz de conhecer o sobrenatural por essência é o lumen gloriae dos bem-aventurados. Para cada ato sobrenatural de uma virtude infusa, pode dar-se um ato semelhante produzido por uma simples disposição natural, e, ainda que com bom discernimento de espírito uma pessoa possa distinguir com certa probabilidade os atos que vêm da graça, não o pode fazer com toda a certeza6.
Se assim é, como então pode o católico ser obrigado a fazer profissão externa de sua fé, se não pode discernir com certeza o que internamente crê com assentimento sobrenatural? Se o fiel não tivesse outro critério além do interior, não poderia ser obrigado a uma profissão de fé firme e absoluta. Uma criança nascida no protestantismo pode ter fé divina por graça de Deus e crer sobrenaturalmente em muitas verdades reveladas, mas nunca poderia moralmente assegurar a ninguém que aquilo em que crê é verdade de fé. Para a certeza do ato externo de fé divina é preciso um critério externo que seja divinamente isento de possibilidade de erro: o Magistério infalível da Igreja.
2º A infalibilidade do sensus fidei
Universitas fidelium in credendo falli nequit, ou seja, quando a totalidade moral dos fiéis católicos professa crer em alguma verdade como de fé, não pode equivocar-se; portanto, o consensus fidelium in doutrinam fidei, também chamado sensus fidei do povo cristão, é critério infalível da divina Tradição7. Isto é verdade de fé católica.
O sujeito deste ato (“id quod” agit) é a Igreja universal, sem distinção entre clérigos e leigos; e o princípio pelo qual se age (“id quo” agitur) é a fé sobrenatural. Mas a propriedade de infalibilidade deste ato não provém exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, mas do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, mas o Papa e os bispos, e cujo princípio não é a fé, mas o carisma da infalível verdade. Daí que a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduza própria e estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica. Embora ainda não se possa dizer que esta sentença seja dogma de fé, é todavia doutrina católica certa. Mas, como aqui está o quid da questão que estamos discutindo, expliquemo-nos um pouco mais.
Como dissemos, ainda que a virtude sobrenatural da fé seja infalível em seu ato interno, não pode servir de critério infalível da Tradição objetiva porque é essencialmente indiscernível nesta vida. Para que o povo fiel saiba com certeza o que deve crer como de fé, as verdades devem ser-lhe propostas oralmente por um mestre que seja infalível em seu ato externo, ou seja, que na mesma proposição oral da verdade seja instrumento fidelíssimo de Deus. Foram-no os profetas no Antigo Testamento, e o próprio Filho de Deus feito homem no Novo (Hebreus I, 1), o qual prolonga seu magistério por meio do Sacerdócio hierárquico.
Naturalmente, Deus poderia ter proposto as verdades de fé por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como ocorreu de fato com os anjos. No primeiro instante de sua criação, os anjos ainda não tinham a luz da glória, mas a luz da fé pela qual deviam crer em certas verdades reveladas por Deus. Pois bem, nem sequer a natureza angélica pode conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus formou sobrenaturalmente em sua inteligência certas espécies ao modo de revelação interior. Mas para os homens não convinha essa maneira de revelação, porque ela vai contra sua natureza social. É próprio de homem chegar à verdade ensinado pelo magistério oral de suas autoridades naturais. Daí que Deus, que faz tudo com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma autoridade divina.
Portanto, ainda que o católico fiel seja movido a assentir ao Magistério da Igreja pela virtude interior de fé, a certeza da profissão de fé depende formalmente dos critérios externos pelos quais ele pode reconhecer sua proposição por parte da Hierarquia eclesiástica. Se o fiel crê entender tal ou qual verdade na meditação dos mistérios cristãos, não pode estar certo daquilo em que crê senão na medida em que lho assegura o Magistério; não poderia estar certo nem sequer do que dizem os Evangelhos se o Magistério não lhe tivesse confirmado que são inspirados. Não importa então a fé? E claro que sim! Uma grande fé, acompanhada dos dons da sabedoria, do intelecto e da ciência, pode discernir com clareza e com persuasão internas muitas verdades, mas o católico fiel só pode ter certeza se o confirma e no grau em que o confirma o Magistério da Igreja.
Na infalibilidade do consensus fidelium in doutrinam fidei intervêm então ativamente dois elementos: a virtude da fé e a proposição do Magistério. Em razão da virtude da fé e pela santidade da Igreja universal, a universalidade dos fiéis é indefectivelmente dócil em seu conjunto ao ensinamento do Magistério. Mas, se vem a fazer profissão de fé em alguma verdade revelada, é necessária e exclusivamente porque o Magistério da Igreja lha propóe como tal com a garantia de sua autoridade infalível. Ou seja, o que dissemos de um único fiel vale para toda a universalidade: ela não pode crer senão no que o Magistério lhe propõe e no grau de certeza com que lho propõe; mas com esta diferença: a docilidade da fé de um único fiel pode falhar, não a da Igreja universal.
Por isso os teólogos distinguem com toda a propriedade a infalibilidade da Igreja in docendo e a infalibilidade in credendo, e reduzem esta àquela8. Elas se distinguem, como dissemos, porque nelas é diferente o sujeito (id quod) e o princípio (id quo): a infalibilidade in credendo é propriedade da profissão de fé (id quo) de toda a Igreja (id quod); enquanto a infalibilidade in docendo é propriedade do ato de magistério (id quo) da Hierarquia da Igreja (id quod). Mas uma se reduz à outra porque a infalibilidade in docendo é a causa da infalibilidade in credendo, que é seu efeito próprio: a proposição do Magistério, que goza com exclusividade do carisma da infalível verdade, é ao modo de causa eficiente e formal da profissão de fé; enquanto a virtude de fé da Igreja universal não é de per si propriamente infalível em seu ato externo, mas indefectível na santidade de sua docilidade ao Magistério. Há portanto um único princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: aquele concedido por Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos.
Por que então os teólogos falam da infalibilidade do sensus fidei como um critério ou “lugar teológico” diferente daquele do Magistério para julgar o que pertence ao tesouro da Tradição? Não teria de falar somente, segundo o que se disse, da proposição do Magistério? Não, porque muitas vezes as causas são invisíveis e só podemos julgar de sua existência através de seus efeitos. Há muitas verdades propostas infalivelmente pelo magistério ordinário universal de modo oral, cuja existência só pode ser conhecida pela profissão de fé da Igreja universal. Do que, sim, devemos estar certos é que a universalidade dos fiéis nunca teria feito profissão de fé com relação a alguma verdade se esta não tivesse sido proposta como tal pelo Magistério da Igreja, porque ela não tem outro critério para estar certa do que foi revelado por Deus.
B. Perversão modernista desta doutrina
1º A infalibilidade individual do “sensus fidei” protestante
O protestantismo, liberal por essência, considera intolerável abuso por parte da Hierarquia eclesiástica o atribuir-se o oficio de ensinar, como se o fiel cristão fosse uma criança de escola. Liberta-se então de seu magistério estabelecendo dois princípios:
a) “solo Scriptura”, pelo qual congela o Traditum revelado nas Sagradas Escrituras;
b) “livre exame”, pelo qual atribui o carisma da infalível verdade à fé individual.
Solo Scriptura. A Revelação divina tem certamente expressão privilegiada nas Sagradas Escrituras, que são infalivelmente inspiradas palavra por palavra; mas outro meio de expressão não menos privilegiado são os dogmas do Magistério infalível da Igreja, que completam e explicam o revelado por Deus. Para o católico, então, o Traditum revelado progride não em si mesmo, mas em sua expressão e explicação, até o fim dos tempos, constituindo-se assim como verdadeira Tradição9; e a expressão da Revelação adequada à condição de cada indivíduo (sejam párocos, adultos ou crianças de primeira comunhão) encontra-se nos diversos catecismos devidamente aprovados pela Hierarquia. Para o protestante, em contrapartida, o Traditum revelado foi fixado de uma vez por todas nas Sagradas Escrituras, e assim é oferecido por Deus imediatamente a cada indivíduo como expressão imutável, congelada, da Revelação. Não há progresso possível na expressão do Traditum, e portanto não há propriamente Tradição.
Livre exame. Para o protestante, além do mais, o carisma da verdade que permite conhecer o que é revelado e o que não o é, o que implica e como se aplica a Revelação, é certo “sensos” próprio da fé pessoal de cada fiel cristão. O protestante sente com seu “odoratus fidei” — algo que nada tem que ver com a razão — quais livros são inspirados e quais não o são, e qual é sua verdadeira interpretação; mas a doutrina que se possa seguir de sua meditação pessoal das Escrituras, conquanto seja certamente infalível pela inexorável inspiração do Espírito Santo a cada crente, não tem por que impor-se ao vizinho: toda teologia é pessoal e para proveito próprio, porque basta para cada um o que Deus lhe propõe imediatamente nas Escrituras: “Um só é o vosso Mestre, Cristo, e vós sois todos irmãos” (Mateus XXIII, 8): que ninguém pretenda, então, constituir-se mestre dos outros.
2º A correção modernista do “sensus fidei” protestante: “sentir” em comunidade
O modernista, ou seja, o católico liberal doutrinalmente justificado10, assim como Lutero, também odeia ser tratado como criança de primeiro grau por uma tirânica autoridade eclesiástica e alimenta o mesmo desejo de reforma. Mas, por um lado, a triste história do protestantismo, constantemente dividido pelo individualismo de seus princípios, ensinou-lhe que o livre exame não deve ser feito de modo individual, mas de modo comunitário; e, por outro lado, ao comer do fruto oferecido pela serpente kantiana, seus olhos se abriram e ele se viu nu, porque descobriu que toda a roupagem de fórmulas conceptuais com que se pretendia mostrar a fé divina eram apenas categorias humanas absolutamente inadequadas para expressar o mistério revelado.
Para evitar, portanto, a divisão tanto espacial (entre o cristão daqui e o dali) como temporal (entre o cristão de hoje e o de ontem), entendeu que é absolutamente necessário um “serviço de unidade”, que imprópria e temporariamente se poderá chamar de autoridade ou magistério eclesiástico. Para ele, então, os dois princípios do protestantismo permanecem substancialmente válidos, mas devem ser corrigidos em seu individualismo por um redimensionamento comunitário:
— A Revelação foi expressa especialmente nas Sagradas Escrituras, mas estas foram dadas imediatamente por Deus não a cada fiel individualmente, nem à Hierarquia eclesiástica exclusivamente, mas a toda a Igreja coletivamente.
— O “livre exame” não deve pois ser feito pelo fiel individualmente, mas tampouco pela Hierarquia exclusivamente , e sim por toda a Igreja em comunhão. Mas, para evitar que também a unificação atente contra a liberdade, basta ter presente — como disse Kant — que toda formulação dogmática é inadequada para expressar o que o “sensus fidei” percebe. Três princípios, então, intervêm na concepção modernista do “sensus fidei”: 1. a primazia da Escritura; 2. o livre exame comunitário; 3. a inadequação das fórmulas dogmáticas.
Primo Scriptura. Para o católico, as fontes da Revelação — Escritura e Tradição — foram entregues por Cristo ao Magistério hierárquico: “Ide e ensinai”; de maneira que, embora todas as vezes que o Magistério diz “tal texto é inspirado” ou “tal proposição é dogma de fé” fique submetido à sua própria definição, dado que é feita não em nome próprio, mas em pessoa de Cristo, o fiel cristão, porém, tem sempre no exercício infalível do Magistério vivo a regra ou critério imediato da Revelação, tanto para a proposição da verdade revelada como para sua explicação e aplicação: a Igreja discente recebe o Traditum da Igreja docente, e esta de Nosso Senhor. O modernista, em contrapartida, aprendeu com Lutero a maneira de arrebatar ao Magistério o domínio das fontes da Revelação: a Revelação recebe uma expressão não parcial, mas completa, nas Escrituras, e é assim oferecida não exclusivamente à Hierarquia, mas a toda a Igreja; daí que uma das reivindicações fundamentais do modernista seja que a Hierarquia libere o acesso de todos aos textos sagrados11. Agora o princípio não é solo Scriptura, porque o indivíduo deve integrar-se na interpretação unificada da comunidade eclesial, em que tem sua parte o “serviço de unidade” que a Hierarquia cumpre; mas continua de pé a primazia que a Escritura tinha para Lutero sobre todo magistério, primo Scriptura. “Se Deus me escreveu pessoalmente”, diz o modernista, “nem o Papa pode dizer-me o que devo ler e o que não devo, como faziam as superioras com suas freirinhas nos conventos”.
Livre exame comunitário. O modernista não diminui em nada o “sensus fidei” tal como o entendia Lutero. A fé dota o cristão de um infalível olfato pelo qual reconhece o caráter divino dos Textos sagrados, e não lhe falta inspiração do Espírito Santo para interpretá-los e aplicá-los. Mas — a história da reforma o demonstrou — o problema aparece na hora de expressar o que a consciência cristã experimentou. Para encontrar uma expressão unificada do que o Espírito inspirou à sua Igreja, é necessário haver um organismo que dirija um diálogo comunitário e declare com suficiente autoridade as conclusões a que se chegou. Esse organismo, que está a serviço do “sensus fidei” do povo cristão, é o mal chamado Magistério eclesiástico12.
Inadequação do dogma. Os dogmas que resultam do diálogo entre povo fiel e hierarquia não são mais que símbolos inadequados para expressar o inefável mistério revelado, mas necessários do ponto de vista prático para a unificação espacial e temporal da comunidade cristã. Conseguem a unificação espacial sem atentar contra a liberdade, porque permitem que exista uma profissão de fé comum; mas, como são inadequados, permitem também que os mesmos mistérios se expressem de outro modo, deixando liberdade para um pluralismo teológico: diversidade na unidade. E conseguem a unificação temporal sem fixismo, porque permitem a constituição de certa Tradição dogmática, mas por ser reinterpretada segundo a mentalidade de cada época13.
Para o católico, portanto, o sensus fidei recebe sua infalibilidade do carisma da verdade próprio da Hierarquia, Igreja docente, que discerne a Revelação e a explica aos simples fiéis, Igreja discente. Para o modernista, em contrapartida, o carisma da verdade que permite discernir e explicar a Revelação é o mesmo “sensus fidei” de todo o povo cristão, sem distinção entre clérigos ou leigos; enquanto o carisma próprio da Hierarquia está a serviço da unidade, pois deve interpretar e formular o sentir comum por meio do diálogo com os fiéis14. É instrutivo ressaltar as diferenças doutrinais do modernismo com respeito à Revelação:
| A REVELAÇÃO | |
| segundo a doutrina católica | segundo a doutrina modernista |
| É ação exterior de um Deus transcendente por missão visível dos Profetas (AT) e de Cristo (NT) manifestada em palavras à inteligência terminada com a morte do último Apóstolo | É ação interior de um Deus imanente por missão invisível do Espírito Santo manifestada em experiências ao coração continuada até o fim dos séculos |
| É recebida imediatamente pela Hierarquia dotada do carisma infalível do magistério. A Hierarquia escruta o depositum fidei e o ensina: é mestra da verdade, reitora do sensus fidei. A Revelação desce pela pregação da Igreja docente à Igreja discente. | É recebida imediatamente pelo Povo Fiel dotado do carisma infalível do “sensus fidei”. A Hierarquia escruta o “sensus fidei” e o expressa: é serva da unidade, regida pelo “sensus fidei”. A Revelação emerge pelo diálogo entre o Povo que “sente” e a Hierarquia que “diz” |
| A expressão adequada ao simples fiel é o Catecismo, palavra mediata de Deus, abaixo do Magistério. A Bíblia não ensina todos os mistérios revelados. É lida individualmente, mas explicada pelo Magistério | A expressão adequada ao simples fiel é a Bíblia, palavra imediata de Deus, acima do Magistério. A Bíblia simboliza todo o mistério revelado. É lida comunitariamente e explicada pelo Espírito Santo |
| Cada dogma significa adequadamente um artigo de fé definido para sempre no mesmo sentido e sentença. O Traditum progride sem contradição | O dogma simboliza inadequadamente o mistério de fé por redefinir em cada tempo em novo sentido e sentença. O Traditum refaz-se por contradição dialética |
| O sensus fidei é informado pelo Magistério. É infalível quando é dócil ao Magistério infalível A Hierarquia deve corrigir o sentir do Povo fiel | O “sensus fidei” é inspirado pelo Espírito Santo. É infalível quando é livre de toda autoridade humana. A Hierarquia deve assumir o sentir do Povo fiel |
Como se pode ver, realizou-se um perfeito giro democrático15, pois já não se sustenta a visão descendente do infantil cristão medieval:
Deus transcendente → [revelação exterior] → Hierarquia ← [magistério infalível]→ Povo fiel
Mas agora se estabelece finalmente a visão emergente do adulto cristão moderno:
Deus imanente ← [senso interno] → Povo fiel ← [diálogo dogmatizador] → Hierarquia
C. O sensus fidei no magistério conciliar
Tendo esclarecido a doutrina católica em contraposição às teses modernistas, podemos agora ler atentamente os textos de Vaticano II sobre o “sensus fidei” e sua função com respeito à Revelação e ao Magistério.
1º Constituição dogmática Dei Verbum sobre a divina Revelação
A Dei Verbum diz seguir “as pegadas dos Concílios de Trento e do Vaticano I” (n. 1), razão por que convém tê-los presentes para comparar os textos.
Quanto à natureza e objeto da Revelação (n. 2), ela ensina que “Deus invisível, movido por amor, fala aos homens como a amigos”, e que “a revelação se realiza por obras e palavras intrinsecamente ligadas”. Todo esse parágrafo dá a entender, assim, que não se trata de uma revelação exterior de um Deus visível pela encarnação, mas de uma revelação interior a cada um, a qual não é transmitida apenas pelas palavras da pregação, ex auditu, mas também pela experiência das ações divinas. A Revelação não transmite, pois, um conjunto de verdades em sentido “lógico”, quer dizer, ao modo de proposições, mas “a verdade profunda de Deus e da salvação”, ou seja, a verdade em sentido “ontológico”, o mistério em si de Deus. Trento e o Vaticano I, em contrapartida, apresentam claramente a Revelação como uma locução de Deus primeiro pelos Profetas e finalmente por Cristo (Hebreus 1, 1), isto é, um conjunto de proposições doutrinais transmitidas pela pregação e postas em parte por escrito (DS 1501 e 3004).
Em Cristo “resplandece” (n. 2) a Revelação. O n. 4 interpreta de modo novo o texto-chave de Hebreus, citado por Trento e pelo Vaticano I. Que Deus nos tenha “falado pelo Filho” não se deve entender propriamente das palavras [lógicas] que Cristo disse, mas da Palavra [ontológica] que é o próprio Cristo, “Dei Verbum”: “Quem vê Jesus Cristo, vê o Pai; Ele, com sua presença e manifestação, com suas palavras e obras […], leva à plenitude toda a revelação”.
O n. 5 fala da fé, de cujo objeto só se diz que é “o que Deus revela”: palavras? não, a Palavra. O subtítulo acrescentado ao n. 6 na versão espanhola: [As verdades reveladas], não tem correspondência com o texto, que diz que pela Revelação “Deus quis manifestar-se a si mesmo”, se participa de “bens divinos”, se conhecem “realidades divinas”, evitando sempre que se entenda por Revelação a transmissão de locuções verbais.
Com o n. 7 começa o capítulo II sobre a Transmissão da Revelação divina, que segundo o Relator Florit no Concílio é “como que o centro de todo o esquema”16. O primeiro parágrafo trata da função dos Apóstolos e seus sucessores na transmissão da Revelação. Os Apóstolos devem pregar “o Evangelho como fonte de toda verdade salvadora e de toda norma de conduta”. Agora, sim, diz-se que os Apóstolos “transmitiram de palavra o que tinham aprendido com as obras e palavras de Cristo”, e “para que este Evangelho se conservasse sempre vivo e inteiro” nomearam os Bispos sucessores. Temos finalmente uma Revelação de doutrina oferecida à inteligência? Não, porque se termina dizendo que a “Tradição com a Escritura de ambos os Testamentos são o espelho em que a Igreja peregrina contempla a Deus, de quem recebe tudo”. É preciso entender melhor o que é o “Evangelho […] vivo”, e como a Igreja recebe tudo imediatamente de Deus por certa contemplação.
O n. 8 trata da sagrada Tradição, e interessa-nos especialmente porque descreve a função do “sensus fidei” na referida contemplação de Deus. Há um duplo sujeito de transmissão [ou tradição ativa]: os Apóstolos e seus sucessores, os Bispos, que transmitem pela pregação; e a Igreja, que transmite por sua própria vida: “A Igreja, com seu ensinamento, sua vida, seu culto, conserva e transmite a todas as idades o que é e aquilo em que crê”. O Traditum, portanto, não é um conjunto de verdades doutrinais que possa ser mais ou menos explicitado, mas uma realidade viva, a palavra de Cristo “que habita intensamente” nos fiéis, “os mistérios que vivem”: “As palavras dos Santos Padres atestam a presença viva desta Tradição, cujas riquezas vão passando para a prática e para a vida da Igreja que crê e ora”. Essa Tradição “vai crescendo na Igreja com a ajuda do Espírito Santo”, mas não cresce como uma doutrina que os Bispos explicam cada vez mais aos fiéis, e sim como uma realidade misteriosa, presente imediatamente para a fé, e que os fiéis contemplam: “ou seja, cresce a compreensão das palavras e das instituições transmitidas quando os fiéis as contemplam e estudam repassando-as em seu coração, quando compreendem internamente os mistérios que vivem”. A realidade viva em que consiste o Traditum, pregada pelos Apóstolos e “expressa de modo especial nos livros sagrados”, é apta por si mesma para manifestar ao “sensus fidei” que textos são inspirados e como devem ser compreendidos: “A própria Tradição dá a conhecer à Igreja o cânon dos Livros sagrados e faz que os compreenda cada vez melhor e os mantenha sempre ativos”. Evidentemente, trata-se de uma contínua Revelação imediata: “Assim, Deus, que falou em outros tempos, continua a conversar sempre com a Esposa de seu Filho amado; assim, o Espírito Santo, por quem a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja, e por ela no mundo inteiro, vai introduzindo os fiéis na verdade plena”. Se se diz que a Revelação terminou com a morte do último Apóstolo, dever-se-á entendê-lo secundum quid e não simpliciter. Que parte cabe à Hierarquia em tudo isso? Não é certamente ela a que ensina o depositum fidei à Igreja discente, não é ela a que determina o cânon da Escrituras e as explica, senão que lhe compete “proclamar” externamente o que os fiéis “compreendem internamente” pelo “sensus fidei”.
É verdade que a expressão “sensus fidei” não aparece neste parágrafo em nenhum momento, mas “indubitavelmente está presente a doutrina. Analisando a contextura do documento, sabemos que também a terminologia estava em jogo. Sensus fidei e geralmente a fórmula sensus fidelium aparecem repetidas vezes nas Relações e Modos. O fato de que não apareça no texto definitivo pode explicar-se porque, no segundo esquema, o inciso sensu quoque fidelium subordinate concurrente, com que terminava o capítulo II, foi rejeitado por quatro conferências episcopais e alguns Padres”17. O advérbio subordinate teria sido um esclarecimento importante no sentido católico da doutrina.
No n. 9, fala-se da mútua relação entre Tradição e Escrituras. “As Sagradas Escrituras são locutio Dei enquanto escrita”; “a Tradição transmite integramente o verbum Dei”. Mas, como se viu, a palavra de Deus não é propriamente uma doutrina, e sim uma realidade viva, indivisível em si mesma, razão por que carece de sentido discutir se a Escritura contém ou não toda a Revelação.
Com o n. 10 termina o capítulo II, tratando o importante assunto da relação entre Escrituras, Tradição e Magistério. “A Tradição e as Escrituras constituem o depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja”. A “palavra [viva] de Deus” está depositada como que em dois recipientes: a Tradição e as Escrituras. As Escrituras são a palavra de Deus em recipiente estático, e a Tradição o é em recipiente dinâmico, pois, como se viu, é o Evangelho vivido em todas as idades da Igreja. Esta Tradição viva “se realiza em maravilhosa concórdia de Pastores e de fiéis”. A função dos fiéis já foi detalhada no n. 8; agora se explica a função complementar da Hierarquia: “O ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus, oral ou escrita, foi encomendado unicamente ao Magistério da Igreja, o qual o exerce em nome de Jesus Cristo”. Parece dar-se aqui a mais clássica doutrina tradicional, pois se está citando nada menos que Pio XII na Humani generis (DS 3886). Segue-se-lhe imediatamente, no entanto, uma advertência de dificil inteligência: “Mas o Magistério não está acima da palavra de Deus, e sim a seu serviço”. Se por “palavra de Deus” entendêssemos a sagrada doutrina ensinada pelos dogmas e pelas Escrituras, a advertência não seria verdadeira, porque tanto os dogmas como as Escrituras dependem, cada um à sua maneira, do Magistério infalível; mas, se por “palavra de Deus” entendemos a realidade divina significada pelos dogmas e pela Escrituras, capaz de manifestar-se por si mesma ao “sensus fidelium”, como se diz no n. 8, então, sim, tem sentido a advertência. Mas não é essa a doutrina da Igreja. Ainda que a expressão com que se descreve a função do Magistério seja a tradicional, no contexte deste documento conciliar deve ser interpretada de outra maneira.
É preciso reconhecer que a doutrina da Constituição Dei Verbum, tal como se encontra no texto, não quadra aos princípios católicos, mas aos princípios do modernismo condenado por São Pio X. No evidente cuidado que se teve para que nunca se entendesse a Revelação como sistema de doutrina, manifesta-se claramente o princípio de inadequação das fórmulas dogmáticas; e ensina-se breve mas explicitamente a primazia da Palavra sobre o Magistério e o livre exame comunitário, com o conseguinte giro democrático: o critério imediato da Revelação já não é o carisma da verdade da Hierarquia, mas o “sensus fidei” do Povo. A leitura do restante do documento não faz senão confirmar o que se disse18. Em particular o confirmam — e parece ser esta a intenção principal do documento — a primazia e a liberdade que o exegeta pós-conciliar alcança com respeito ao Magistério; mas este é um assunto que vai além daquilo a que agora nos propomos19.
2º Constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja
Quando se discutia no Concílio a Constituição Dei Verbum, já estava estabelecida e prestes a ser promulgada a Constituição Lumen Gentium sobre a Igreja, documento fundamental para toda a doutrina conciliar e em particular para o que diz respeito ao “sensus fidei”. Toca-se este ponto no parágrafo n. 12 do capítulo II, mas antes de analisá-lo convém que nos situemos no contexto geral da Constituição.
No capítulo I, ela trata do Mistério da Igreja com relação à sua origem no mistério de Deus; no capítulo II, passa a considerar a Igreja em si mesma sob a imagem de Povo de Deus; nos capítulos III a VI, trata da Igreja com relação a suas partes (hierarquia, leigos e religiosos); no capítulo VII, da Igreja com relação a seu fim escatológico; e finalmente, no capítulo VIII, da relação da Igreja com sua figura, a Santíssima Virgem20.
O capítulo II prioriza a noção de Povo para tratar a Igreja em si mesma, tomada de I Pedro I, 23: “Linhagem escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo de aquisição […] que em determinado tempo não era povo e agora é povo de Deus”, com a finalidade de sublinhar o caráter comunitário da salvação, como se diz desde as primeiras palavras (n. 9). Esse Povo tem por cabeça Cristo, por condição “a dignidade e liberdade dos filhos de Deus”, por lei o amor, e por fim “dilatar cada vez mais o Reino de Deus” (do qual de certa forma se distingue), fim para o qual serve de “instrumento de redenção universal”, porque, como se disse no início da Constituição, “a Igreja é em Cristo como um sacramento, ou seja, signo e instrumento da unidade íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (n. 1). Esse serviço de salvação com respeito a todos os homens é um oficio sacerdotal, e por isso este capítulo vai caracterizar o Povo de Deus, apoiando-se no texto de I Pedro, como Povo sacerdotal, que participa do oficio sacerdotal de Cristo e lhe dá continuidade.
Esta é uma das grandes descobertas da Lumen Gentium, a qual teria sido esquecida pelos escolásticos e negada a partir de Trento por reação a Lutero: o sacerdócio não pertence exclusivamente à Hierarquia, mas a todo o Povo de Deus. O sacerdócio, afirma (n. 10), é participado pela comunidade dos batizados como um todo “organicamente estruturado”: cada fiel tem um sacerdócio comum ou geral, e alguns deles possuem, além disso, o sacerdócio ministerial ou hierárquico, mas os dois sacerdócios “se ordenam um ao outro”, cooperando no exercício do sacerdócio comunitário do Povo de Deus. Os católicos tinham-se acostumado a pensar que da tripla função de Cristo como Sacerdote, Profeta e Rei participam apenas o Papa e os bispos, com seus poderes de santificar, de ensinar e de reger; mas a Lumen Gentium assinala que são funções de todo o Povo de Deus, das quais participa todo fiel em razão de seu sacerdócio comum:
— No n. 11 se diz que todos participam do oficio de santificar “pelos sacramentos e pelas virtudes”, tanto os simples fiéis como aqueles “que são selados pela ordem sagrada”.
— No n. 12 se ensina que “o Povo de Deus participa também da função profética de Cristo”.
— Finalmente, no n. 17 se assinala que não só a Hierarquia tem a responsabilidade de evangelizar, senão que o mandatum foi dado à Igreja como um todo: “Este solene mandato de Cristo de anunciar a verdade salvadora, a Igreja recebeu-o dos Apóstolos com ordem de realizá-lo até os confins da terra […]. A responsabilidade de disseminar a fé compete a todo discípulo de Cristo em sua parte” (n. 17). O oficio de conduzir a humanidade a Deus é próprio de todo o Povo de Deus, Povo de reis e de sacerdotes.
É esse o contexto em que, no n. 12, se descreve como a Igreja exerce sua função profética, dotada do carisma da infalibilidade: “O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo seu testemunho vivo sobretudo com a vida de fé e a difusão da caridade, e oferecendo a Deus o sacrificio de louvor, que é fruto dos lábios que confessam seu nome. A totalidade dos fiéis, que têm a unção do Santo, não pode equivocar-se quando crê, e esta propriedade peculiar sua é manifestada mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando ‘desde os Bispos até os últimos fiéis leigos’ (Santo Agostinho) prestam seu consentimento universal nas coisas de fé e de costumes. Com este senso da fé, que o Espírito de verdade suscita e mantém, o Povo de Deus adere indefectivelmente à fé confiada de uma vez para sempre aos santos, penetra mais profundamente nela com juízo certeiro e lhe dá mais plena aplicação na vida, guiado em tudo pelo sagrado Magistério, submetendo-se ao qual já não aceita uma palavra de homens, mas a verdadeira palavra de Deus”21.
Usam-se expressões que, à primeira vista e isolando-se o texto de seu contexto, fazem pensar que se reproduz a doutrina católica tal como a teologia clássica costumava ensiná-la. Trata-se da infalibilidade in credendo: “universitas fidelium in credendo falli nequit”, sob a condução do Magistério: “sub ductu sacrii magisterii”. Afirma-se a infalibilidade in credendo como efeito e consequência da infalibilidade in docendo da Hierarquia? É evidente que não, como o disseram e repetiram todos aqueles que não leem os documentos do Concílio com os antolhos de uma vontade determinada a não ver nada diferente da doutrina tradicional.
Neste ponto, o Concílio pretende explicar qual é a “infalibilidade de que o Redentor divino quis que fosse provida sua Igreja na definição da doutrina sobre a fé e os costumes” a que se referiu o Concilio Vaticano I ao tratar da infalibilidade própria do Romano Pontífice22, a qual porém nunca chegou a tratar. Aqui, pois, se trata da infalibilidade da Igreja como um todo, e depois, no n. 25 do capítulo III, se trata da infalibilidade própria do Magistério no cumprimento de suas especiais funções de condução do “sensus fidei”. A distinção, portanto, que a Lumen Gentium estabelece entre a infalibilidade da Igreja e a do Magistério não é como a de uma coisa para outra, mas como a do todo para a parte: agora se fala da infalibilidade da função profética total do Povo Deus, própria do sacerdócio comum auxiliado pelo sacerdócio ministerial; no n. 25, da infalibilidade da função profética especial do Magistério, a serviço da infalibilidade total da Igreja.
O sujeito quod, pois, da infalibilidade da Igreja é todo o Povo de Deus; e o princípio quo é composto: primeira e fundamentalmente, o “sensus fidei” da universalidade dos fiéis (incluindo os bispos não enquanto tais, mas enquanto simples crentes); secundária e complementarmente, o guiamento do Magistério. O “juízo certeiro” para explicar e aplicar “a fé confiada aos santos” (confiada a todos, não somente à hierarquia) é propriedade do “sensus fidei” inspirado imediatamente pelo Espírito Santo. Ao Magistério não compete ensinar como aquele que sabe ao que não sabe, mas guiar, prestando muita atenção ao que o Espírito Santo ensina à Igreja no coração dos fiéis, confirmando com autoridade o que se mostrou vir de Deus: “O juízo de autenticidade [dos carismas conferidos pelo Espírito aos fiéis] e de seu exercício razoável pertence aos que têm a autoridade na Igreja, aos quais compete antes de tudo não sufocar o Espírito, mas experimentar tudo e reter o que é bom” (n. 12 ao final). Uma vez que o que é sentido pela fé de todos recebe o selo de autenticidade da Hierarquia, só então “já não se aceita uma palavra de homens sem a verdadeira palavra de Deus”, que goza de infalibilidade.
Como cremos que fica claro depois de tudo o que se disse, esta concepção da infalibilidade da Igreja não corresponde aos princípios da doutrina católica, mas aos do modernismo. E, se alguém se perguntar como pôde então ser aprovado pelos bispos, é preciso recordar-lhe o método utilizado nos documentos conciliares: depois de se ter introduzido o veneno modernista, permitem-se expressões tradicionais como sedativos para uma morte tranquila. O n. 25, que trata extensamente da infalibilidade do Magistério, é um modelo de doutrina tradicional. Mas, embora implique no documento certa incoerência de linguagem, é claro que tudo o que ali se diz deve ser reinterpretado à luz (negra) do sacerdócio comum e da infalibilidade do “sensus fidei”. Isso é o que se fará cada vez mais explicitamente nos documentos posteriores ao Concílio.
3º O “sensus fidei” nos documentos pontíficios posteriores ao Concílio
A inversão democrática do ofício de interpretar a Revelação será posteriormente cada vez mais explicitada, acabando por tornar-se doutrina comum do “magistério conciliar”. Em 1970, Hans Küng publica Infalível? Uma pergunta23, onde leva ao extremo as tendências que apareceram no Concílio: as proposições são inadequadas para expressar a totalidade da realidade, sendo somente instrumentos das ideologias do homem, razão por que não tem sentido falar de infalibilidade. Ele propõe se substitua essa noção pela de indefectibilidade. O livro se difunde, entram outros neoteólogos na discussão, sobretudo K. Rahner, algumas Conferências Episcopais reagem, e, finalmente, a Congregação para a Doutrina da Fé dialoga com Küng e promulga, em 24 de junho de 1973, a Declaração Mysterium Ecclesiae, já citada mais acima, onde trata especialmente deste assunto.
Neste documento, repete-se a doutrina da dupla infalibilidade ensinada pelo Concílio. Em uma parte, trata da Infalibilidade da Igreja universal: “O próprio Deus, absolutamente infalível, quis dotar seu novo Povo, que é a Igreja, de certa infalibilidade participada, que se circunscreve ao campo da fé e dos costumes, que rege quando todo o povo sustenta, sem sombra de dúvida, algum ponto doutrinal pertencente a estes campos”24; e na seguinte, da Infalibilidade do Magistério da Igreja. Muitas vezes, diz-se, o Magistério só sanciona a posteriori o prévio consentimento dos fiéis, contra tudo o que tradicionalmente se ensinava, ainda que, moderando as afirmações de Küng, outras vezes não aconteça isso: “Por mais que o sagrado Magistério se valha da contemplação, da vida e da busca dos fiéis, sua função, no entanto, não se reduz a sancionar o consentimento expresso por eles; senão que até (oh! ousadia!], ao interpretar e explicar a palavra de Deus escrita ou transmitida, pode dispor a tal consentimento e até exigi-lo”25.
Segundo a Instrução Donum veritatis, sobre a vocação eclesial do teólogo, da Congregação para a Doutrina da Fé26, a “regra segura para guiar a reflexão do teólogo” já não é o Magistério, mas o “sensus fidei” pessoal: “Dado que o objeto da teologia é a Verdade, o Deus vivo e seu desígnio de salvação revelado em Jesus Cristo, o teólogo é chamado a intensificar sua vida de fé e a unir sempre a investigação científica e a oração. Assim estará mais aberto ao ‘senso sobrenatural da fé de que depende e que se lhe manifestará a ele como regra segura para guiar sua reflexão e medir a seriedade de suas conclusões” (n. 8). A interpretação infalível da Palavra de Deus é um carisma dado por Deus não exclusivamente à Hierarquia, mas ao conjunto dos fiéis. O Magistério tem uma função de autenticação, quer dizer, de legitimação da interpretação comum: “[Deus] deu à sua Igreja, pelo dom do Espírito Santo, uma participação de sua própria infalibilidade. O povo de Deus, graças ao senso sobrenatural da fé, goza dessa prerrogativa, sob o guiamento do magistério vivo da Igreja, que, pela autoridade exercida em nome de Cristo, é o único intérprete autêntico da Palavra de Deus, escrita ou transmitida” (n. 13). O Magistério não tem a missão de ensinar, como o nome o tinha sugerido até Pio XII, mas a de garantir o correto exercício do “sensus fidei”, “protegendo [o povoj dos desvios e extravios, e garantindo-lhe a possibilidade objetiva de professar sem erros a fé autêntica a todo momento e nas diversas situações” (n. 14).
A Pontificia Comissão Bíblica, ao falar do “papel dos diferentes membros da Igreja na interpretação” das Escrituras, faz um comentário já muito explícito do livre exame comunitário que nos era sugerido pela referência ao “sensus fidei” na Constituição Dei Verbum: “Este mesmo Concílio ensina que todos os batizados, quando participam da fé de Cristo, na celebração da eucaristia, reconhecem a presença de Cristo também em sua palavra, ‘pois, quando se leem na Igreja as Sagradas Escrituras, é ele quem fala’ (Sacrosanctum Concilium, 7). A esse escutar a palavra eles acrescentam ‘o senso sobrenatural da fé de todo o povo […]. Com esse senso da fé, que o Espírito de verdade suscita e sustenta, o povo de Deus, sob a direção do sagrado magistério, que ele segue fielmente, recebe já não a palavra dos homens, mas a verdadeira palavra de Deus (cf. 1 Tes. 2, 13); adere indefectivelmente à fé dada de uma vez para sempre aos santos (cf. Jud. 3), penetra mais profundamente nela com retidão de juízo e a aplica com maior plenitude na vida’ (Lumen Gentium, n. 12). Assim, todos os membros da Igreja têm um papel na interpretação das escrituras. […] O espírito também foi dado, certamente, aos cristãos individualmente, de modo que seu coração pode arder dentro deles (cf. Lc. 24, 32), quando oram e estudam na oração as Escrituras, no contexto de sua vida pessoal. Por isso, o Concilio Vaticano Il pediu com insistência que o acesso às Escrituras fosse facilitado de todos os modos possíveis (Dei Verbum, n. 22, 25). Esse tipo de leitura, deve-se notar, nunca é completamente privado, já que o crente sempre lê e interpreta a Escritura na fé da Igreja e dá à comunidade o fruto de sua leitura, para enriquecer a fé comum”27.
O Magistério tem uma função de oficialização da interpretação dada pela experiência de fé comum dos crentes, à qual chamam “interpretação autêntica”. Dai a necessidade que tem a Hierarquia de consultar os teólogos: “Se as Escrituras, como se recordou antes, são o bem da Igreja inteira, e fazem parte da ‘herança da fé, que todos, pastores e fiéis, ‘conservam, professam e põem em prática com um esforço comum, continua a ser verdade que ‘a função de interpretar autenticamente a palavra de Deus, transmitida pelas Escrituras ou pela Tradição, só foi confiada ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo’ (Dei Verbum, n. 10). Assim, em última instância, é o Magistério o que tem a missão de garantir a autêntica interpretação, e de indicar, quando necessário, que tal ou qual interpretação particular é incompatível com o Evangelho auténtico. Essa missão é exercida no interior da koinonía do Corpo, expressando oficialmente a fé da Igreja para servir à Igreja. O Magistério consulta para isso os teólogos, os exegetas e outros especialistas, cuja legítima liberdade reconhece e aos quais se liga por uma recíproca relação com a finalidade de ‘conservar o povo de Deus na verdade que torna livres’ (CDF, Instrução sobre a Vocação Eclesial do Teólogo, n. 21)”28.
4º O “sensus fidei” segundo a Comissão Teológica Internacional
A Comissão Teológica Internacional é mais livre que as Congregações romanas e pode dar-se ao luxo de falar mais explicitamente. O documento sobre “Magistério e teologia”, do ano de 1975, é muito claro em nosso assunto. A Revelação é conservada, transmitida e explicada primeira e principalmente não pela Hierarquia, mas pelo conjunto dos fiéis graças ao “sensus fidei”. Daí que, segundo este documento, tanto o Magistério como os teólogos “tenham a obrigação de atender ao ‘senso da fé’ possuído pela Igreja no passado e no presente. A Palavra de Deus, com efeito, propaga-se de maneira vital através dos tempos, no ‘senso comum da fé’, de que está animado o Povo de Deus em sua totalidade e segundo o qual ‘a coletividade dos fiéis, tendo a unção que provém do Santo, não pode equivocar-se na fé (Lumem Gentium, n. 12)”29. O carisma da infalibilidade não é exclusivo da Hierarquia, senão que também e primeiramente pertence aos fiéis. Daí que os teólogos, graças à excelência de seu “senso da fé”, não se subordinem mas se coordenem com a Hierarquia: “O carisma da infalibilidade é prometido à coletividade dos fiéis” (Lumem Gentium, n. 12), ao colégio dos bispos que mantém o laço de comunhão com o sucessor de Pedro e ao mesmo Sumo Pontífice, chefe deste colégio (Lumem Gentium, n. 25). Isto deve ter seu efeito na prática de uma corresponsabilidade e de uma cooperação, que reú nam colegialmente os titulares do Magistério e todos os teólogos”30.
Muito recentemente, no ano de 2014, a Comissão Teológica Internacional publicou um trabalho intitulado O Sensus Fidei na Vida da Igreja, que, como todos os documentos publicados pela CTI, recebeu a aprovação do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Card. Gerhard L. Müller. O documento conta com uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão. Os capítulos desenvolvem os seguintes assuntos: 1º O sensus fidei na Escritura e na Tradição. 2º O sensus fidei na vida pessoal do crente. 3º O sensus fidei na vida da Igreja. 4º Como discernir as manifestações autênticas do sensus fidei.
Não trata em especial da infalibilidade do “sensus fidei”, mas de sua natureza em geral e de sua relação com o magistério: “O propósito do presente documento não é de dar conta do sensus fidei de maneira exaustiva, mas simplesmente esclarecer e aprofundar certos aspectos importantes desta noção vital, a fim de encontrar uma resposta a certas questões, em particular aquelas que concernem à identificação do sensus fidei autêntico em situações de controvérsia, quando por exemplo se dão tensões entre o ensinamento do magistério e pontos de vista que pretendem expressar o sensus fidei” (n. 6). Desde os anos do Concílio estas tensões não fizeram senão crescer, e hoje a hierarquia já não consegue manter nem as aparências de unidade, como se tornou patente no último sínodo de bispos (2014).
O documento confirma plenamente a análise que havíamos feito. Ao tratar do “sensus fidei” e da Tradição, reconhece que “o conceito de sensus fidelium começou a ser elaborado e utilizado de maneira mais sistemática no momento da Reforma” (n. 22). Como sempre, interpretam a história em oposição dialética: “Os reformadores punham o acento sobre a primazia da palavra de Deus na Escritura santa (Scriptura sola) e sobre o sacerdócio dos fiéis” (n. 29), o que induziu os católicos a pôr o acento exageradamente na autoridade do sacerdócio hierárquico: “Outros teólogos do período pós-tridentino continuaram a afirmar a infalibilidade da Igreja (pelo que entendiam a Igreja inteira, incluindo seus pastores) in credendo, mas se puseram a distinguir de maneira antes taxativa as funções da ‘Igreja ensinante’ e da ‘Igreja ensinada’. O acento posto precedentemente sobre a infalibilidade ‘ativa’ da Ecclesia in credendo foi progressivamente substituído por um acento posto sobre a função ativa da Ecclesia docens. Chegou a ser corrente dizer que a Ecclesia discens não tinha mais que uma infalibilidade ‘passiva’” (n. 33). Na Introdução cuidam menos da linguagem ao classificar a opinião comum dos teólogos que trataram pela primeira vez o assunto de maneira explícita: “Deixando de lado a caricatura de uma hierarquia ativa e de um laicato passivo, e em particular a noção de estrita separação entre a Igreja ensinante (Ecclesia docens) e a Igreja ensinada (Ecclesia discens), o concilio ensinou que todos os batizados participam segundo o modo que lhes é próprio nas três funções de Cristo, profeta, sacerdote e rei” (n. 4) nossos novos teólogos tém uma alta ideia de si mesmos. Pretendem pôr como precursores da nova doutrina do “sensus fidei” no s. XIX Möhler, Perrone e Newman, mas reconhecem que o verdadeiro inspirador da nova doutrina conciliar foi Yves Congar: “De muitas maneiras, o ensinamento do Il concilio do Vaticano reflete a contribuição de Congar” (n. 44).
Quanto ao capítulo 2: O sensus fidei na vida pessoal do crente, desculpam-se porque “o quadro utilizado é em particular o dos argumentos e das categorias proporcionados pela teologia clássica”, pois “a visão bíblica da fé é mais ampla” (n. 48). Foi redigido por alguém que conhece o tomismo, e pode dizer-se que em substância não é mau, ainda que não deixe de queimar alguns grãos de incenso ante o altar do subjetivismo: “Trata-se de um conhecimento de outra ordem que o conhecimento objetivo, o qual procede por maneira de conceptualização e de raciocínio; é um conhecimento por empatia, ou um conhecimento do coração” (n. 50). E também ante o altar do ecumenismo: “A Igreja católica deve estar atenta, então, ao que o Espírito pode dizer-lhe por meio dos crentes das Igrejas e comunidades eclesiais que não estão plenamente em comunhão com ela” (n. 56).
O capítulo 3 maneja outro vocabulário, como, por exemplo, quando trata de “Os aspectos retrospectivos e prospectivos do sensus fidei”, o qual “não é somente reativo mas também proativo e interativo” (n. 70). Minha nossa! Mas o que mais nos interessa é quando trata ali “O sensus fidei e o magistério”. Os subtítulos resumem a posição que adota:
“O magistério está à escuta do sensus fidelium”. “Os batizados não somente têm o direito de ser ouvidos, senão que suas reações ao que se propõe como pertencente à fé dos Apóstolos devem ser tomadas com a maior seriedade, porque é pela Igreja inteira que a fé é levada no poder do Espírito. O magistério não tem a responsabilidade exclusiva” (n. 74).
“O magistério nutre, discerne e julga o sensus fidelium”. “O juízo que concerne à autenticidade do sensus fidelium pertence em última instância não aos mesmos fiéis, nem à teologia, mas ao magistério” (n. 77).
“A recepção”. A oposição certa que apresentam as duas funções anteriores, pois que pela escuta o magistério se subordina ao sensus fidei e pelo juízo o sensus fidei se subordina ao magistério, resolve-se pelo processo de recepção (n. 78). Advertem que se poderia pôr como objeção “o ensinamento do Vaticano I segundo o qual as definições infalíveis do Papa são irreformáveis por si mesmas e não pelo consentimento da Igreja’ [Denz. 3074]”, mas, reconhecendo embora que o magistério extraordinário “tem autoridade por si mesmo em virtude do dom do Espírito Santo, o charisma veritatis certum, que [o Papa e os bispos] possuem”, assinalam que as definições sempre se dão ao término de um processo de recepção (n. 79). Mais ainda, “ocorre que em certas ocasiões a recepção do ensinamento do magistério pelos fiéis encontra dificuldades e resistência”, caso em que os fiéis devem esforçar-se por compreender e aceitar, e o magistério em esclarecer e reformular (n. 80). De tais esforços já houve exemplos: “O desenvolvimento pasmoso, mesmo sendo homogêneo, entre a condenação das teses ‘liberais’ contidas na parte Xª do Syllabus de erros do Papa Pio IX (1864) e a declaração da liberdade religiosa Dignitatis humanae do Vaticano II (1965) não teria sido possível sem o compromisso de numerosos cristãos no combate pelos direitos do homem” (n. 73 III).
Fica claríssimo que, nesta nova versão, o órgão da verdade católica já não é o magistério mas o “sensus fidei”, que inclui o charisma veritatis certum da hierarquia como uma função subordinada sua. Nota-se que a intenção do documento não é limitar as supostas manifestações do “sensus fidei”, mas promovê-las com certa cautela, o que se toca no capítulo 4: “Como discernir as manifestações autênticas do sensus fidei”, onde se termina tratando de “As vias para consultar os fiéis”, como fez Francisco antes do último sínodo de bispos.
O mérito do trabalho, ou antes sua astúcia, está em dar seriedade ao assunto incorporando a doutrina tomista do sentir da fé. Se o mesmo Santo Tomás chega a dizer que “pelo hábito da fé o espírito do homem se inclina a assentir ao que convém à fé reta e não ao mais” (II-II, q. 1, a. 4, ad 3, citado no n. 53), e que “o hábito da fé possui a capacidade de que, graças a ele, o crente é impedido de dar seu assentimento ao que é contrário à fé, assim como a castidade retém em relação ao que é contrário à castidade” (De veritate q. 14, a. 10, ad 10, citado no n. 62), por que não reconhecer que o senso da fé da universalidade dos fiéis possa guardar a Igreja na verdade? Porque para que o sensus fidei funcione é preciso haver certa santidade, e a universalidade dos fiéis tem muito pouca vida espiritual. Poderia ter servido no regime de Justiça original, mas — uma vez mais — o Vaticano II está esquecendo-se de que houve pecado original. Sem o carisma da verdade do magistério hierárquico, instrumento de Jesus Cristo, tão adaptado à humana pobreza, que necessita de um mestre visível e audível, a universalidade das ovelhinhas termina no abismo, como de fato acontecia tão facilmente no Antigo Testamento.
Conclusões
O pensamento conciliar deu grande importância à doutrina acerca da infalibilidade do sensus fidei porque: 1. possui a dignidade de um dogma do mais alto berço tradicional; 2. é dificil precisar teologicamente sua natureza; 3. parece abrir uma brecha nos muros da infalibilidade do magistério, com que a Hierarquia faz da Revelação sua propriedade privada.
A falácia está na inversão da ordem de subordinação: já não se reconhece que a infalibilidade do sensus fidei depende da do magistério como o efeito de sua causa própria, como ensina a doutrina católica; mas põe-se o magistério em dependencia do sensus fidei assim como a função da parte serve ao fim do todo: o magistério unifica a pluralidade de sentires do povo fiel.
Feita esta inversão, a linguagem conciliar pode permitir-se repetir todas as sentenças dogmáticas do Vaticano I sobre a infalibilidade do magistério: agora elas têm um novo sentido, reinterpretadas à luz da doutrina do “sensus fidei”.
As consequências práticas são enormes, porque tal inversão inibe o exercício da autoridade magisterial da Hierarquia: em vez de formar o espírito dos fiéis apoiados na própria luz que lhes vem de Cristo, o Papa e os bispos consideram-se obrigados a escrutar o coração dos fiéis para descobrir ali o que o Espírito diz à Igreja.
Essa doutrina e esse espírito são os do modernismo denunciado e condenado por São Pio X, sem mudança em suas afirmações, aperfeiçoado em seu propósito de não mostrar-se formalmente herético, mas manifesto ao extremo, após esses quarenta anos, por seus frutos funestos.
Anexos ao apêndice segundo
Como complemento necessário ao exposto, apresentamos a explicação deste ponto de doutrina por dois prestigiados teólogos católicos, o Cardeal Franzelin S.J. e o Padre Marín-Sola OP. Tendo declarado suficientemente a parte que tem o magistério, como elemento externo, na infalibilidade do sensus fidei, agora buscamos precisar melhor a parte que tem o elemento interno da fé dos fiéis. A doutrina conciliar a exagera até à heterodoxia: Franzelin expõe o que julgamos ser a doutrina católica; Marín-Sola vai de encontro à posição modernista, mas nos parece que diminui excessivamente o elemento interno.
A doutrina católica: o sensus fidei segundo o Cardeal Franzelin31
DO MODO SEGUNDO O QUAL O CONSENSO DOS FIÉIS NA DOUTRINA DA FÉ É CRITÉRIO DA DIVINA TRADIÇÃO
O Espírito de verdade sempre conserva imune a erro a consciência e profissão da fé em todo o corpo unificado dos fiéis por meio do magistério autêntico da sucessão apostólica. Por conseguinte, ainda que cada um dos fiéis do povo ou as comunidades inteiras não possuam a faculdade de ensinar autenticamente, mas a obrigação de ser instruídos, o sensus catholicus de todo o povo cristão, porém, junto com o consenso no dogma da fé crista, deve ser considerado um dos critérios da divina Tradição.
I. Na primeira parte desta proposição, dizem-se duas coisas, a saber, que em virtude do Espírito Santo a integridade da fé é sempre conservada intangível na comunidade dos fiéis e que o Espírito Santo assim o garante não pela simples operação imediata sua e sem instrumento visível, mas também mediante o magistério autêntico da sucessão apostólica. O que alguns chamam infalibilidade passiva da Igreja32 compreende-se facilmente em razão da mútua relação entre os pastores e doutores autênticos e as comunidades dos fiéis, tal como aparecem dispostas e instituídas pelo próprio Cristo, seja nos escritos evangélicos e apostólicos, seja nos demais documentos no decurso de todos os séculos subsequentes.
1º. Isso se demonstra em primeiro lugar mediante um argumento geral, mas evidente. O fim para o qual foi instituído o magistério autêntico e com relação ao qual Cristo prometeu que estaria presente com seus enviados todos os dias até o fim dos séculos, quando os mandou batizar e ensinar a todos os povos e cuidar dos iniciados na fé, e que o Espírito de verdade permaneceria eternamente com estas testemunhas, são a própria conservação da doutrina e do testemunho recebido e a integridade da fé nos fiéis. Estes carismas foram prometidos e comunicados, com efeito, em atenção à utilidade e necessidade de todo o corpo33. Daí que a este magistério perpétuo, indefectível e infalível por própria instituição de Cristo corresponda uma perpétua “obediência da fé” nos crentes (tese IV). Portanto, assim como o Espírito Santo sempre conserva imune a erro a pregação e testificação na unidade dos pastores e doutores, assim também mediante este mesmo testemunho infalível dos docentes sempre conserva imune a erro a fé dos discentes que, por meio da obediência da fé, permanecem em consenso e comunhão com os pastores concordados: Cristo na sentença do Pai, os bispos dispersos pelo orbe (coligados pelo vínculo e atadura da unidade) na sentença de Cristo, os fiéis na sentença dos bispos (tese VIII, n. I).
2º. O argumento tomado do fim dos carismas na sucessão apostólica e da relação da autoridade dos docentes com respeito à obediência da fé nos discentes, considerado em geral pode ser abordado mais detalhadamente a partir das próprias palavras de Cristo e dos Apóstolos. Com respeito ao apostolado e ao ofício divinamente encomendado de pregar e ensinar, Cristo e os Apóstolos nunca o tratam sem considerar ao mesmo tempo a correspondente fé e profissão dos crentes como o fim e efeito a que se ordenam; de certo modo, algumas vezes apresentam esta fé e profissão em conexão com a pregação como com sua condição e causa (parcial, é verdade, ministerial e externa, cf. I Coríntios III, 4-9). Quando se referem à fé e profissão em conexão com a graça interna como causa principal, nestes casos fazem abstração, com efeito, da graça externa da pregação, mas não a excluem, uma vez que, conforme à economia universal e ordinária estabelecida por Cristo, a graça interna e invisível está unida à graça externa e visível da noticia da fé: auditus fidei. É como uma espécie de sorites34 divino: a saudável confissão e invocação [segue-se de] a fé, [que se segue de] a noticia da fé, [que se segue de] a pregação, [que se segue de] a missão divina dos Apóstolos e de seus sucessores, [que se segue] finalmente [de] a palavra revelada de Cristo. “Perto de ti está a palavra, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé que pregamos. […] Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. […] Como invocarão, pois, aquele em quem não creram? Ou como crerão naquele de quem não ouviram falar? […] E como pregarão eles, se não forem enviados? […] A fé vem pelo ouvido, e o ouvido pela palavra de Cristo”35. Por isso as nações são ensinadas a guardar tudo o que mandou Cristo, mas enquanto há enviados por Cristo a pregar e ensinar, com os quais Cristo permanece todos os dias36.
Cristo roga com uma oração que não pode carecer de efeito que todos sejam um no Pai e no Filho, mas também que os que vão crer sejam um graças à pregação dos Apóstolos37. Um corpo e um espírito, assim também uma a esperança da vocação; assim como um é o Senhor, uma é a fé, um o batismo; no entanto, para produzir e conservar perpetuamente essa unidade, “para a consumação (καταρτισμον articulada, disposição e perfeição) dos santos na edificação do corpo de Cristo, para que não sejamos crianças flutuantes e levadas à deriva por qualquer vento de doutrina”, com esta finalidade Ele mesmo estabeleceu tanto os oficios extraordinários nas origens da revelação da fé quanto os ordinários em ordem à conservação e propagação da fé. “E ele a uns constituiu apóstolos […] a outros pastores e doutores […] até que cheguemos todos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem perfeito, alcançando a estatura própria da plenitude de Cristo”38. As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, algo que Cristo produz, com efeito, por sua edificação sobre a rocha, enquanto se funda na rocha e é segura pela rocha39.
Não é necessário que acreditemos em idêntica operação do Espírito Santo em toda a Igreja por ministério da sucessão apostólica em razão da unânime doutrina dos mesmos custódios do depósito desde a época apostólica, dado que esta demonstração facilmente se pode transladar para aqui do dito antes. Ver tese VIII e IX n. II.
Portanto, o Espírito de verdade assiste toda a congregação dos fiéis, “não deixando as igrejas sentir outra coisa ou crer em algo diferente de quanto Ele pregou por meio dos Apóstolos”, o que com suave providência se efetua por meio do ministério visível dos pastores e doutores. O Espírito de verdade que conduz a toda a verdade opera nos pastores — considerados em comunhão e unanime assentimento — como princípio imediato em relação à conservação do entendimento católico; e pelo ministério destes como por graça externa, à qual se vincula como elemento muito mais importante a unção e graça interna, o mesmo Espírito de verdade é princípio de infalível formação e conservação da “consciência da fé” no rebanho unido aos pastores. Daí se compreende por que as promessas divinas em que se mencionam os carismas e ofícios próprios dos pastores, especialmente o oficio e carisma de ensinar infalivelmente (cf. tese V), se referem, imediatamente e como a seu sujeito, apenas aos Apóstolos e seus sucessores, ainda que mediatamente e como a seu fim concorram para a utilidade e fruto de toda a Igreja.
3º. Daí, ademais, que o Espírito Santo enquanto princípio da graça interna e unção em ordem a crer na palavra e conservar o mandato de Deus propostos pelo magistério autêntico seja prometido já não em atenção à diversidade de ofícios hierárquicos, mas aos fiéis indiscriminadamente, dando “a cada um o que quer”.
Se algumas vezes, pois, essa graça interna se chama doutrina, revelação, testemunho, estas expressões devem ser entendidas não com exclusão da graça da externa e autêntica pregação, mas com esta atribuição. Assim se interpreta o que se diz em I João II, 18-27: “Já agora há muitos Anticristos […]. Eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos […]. Porém vós recebestes a unção do Santo, e sabeis todas as coisas. Eu não vos escrevo como a ignorantes da verdade, mas como a quem a conhece […]. O que vós ouvistes desde o princípio permaneça em vós […]. Isto vos escreve acerca daqueles que querem extraviar-vos. […] Em vós, porém, permanece a unção que recebestes dele. E vós não tendes necessidade de que ninguém vos ensine, mas como sua unção vos ensina todas as coisas, e ela é verdade, e não é mentira, permanecei nele, como ela vos instruiu”. Quem ensina é o próprio Cristo, mas ensina duplamente, isto é, pela unção da graça interna e pela palavra externa proposta pelos enviados de Cristo, entre os quais está o próprio João, que de fato pregou o Evangelho para ensinar e escreveu esta mesma carta para instruir40. Daí que nesse mesmo lugar o Apóstolo una o ministério externo àquela graça interna: “O que vós ouvistes desde o princípio permaneça em vós”; e na introdução desta mesma carta sua [diz]: “O que foi desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos […] damos testemunho, e vos anunciamos”41. Suposta, sem dúvida, a pregação externa, os fiéis têm a unção que procede do Espírito Santo, e estão instruídos e conhecem todas as coisas; todas as coisas, que são aquilo mesmo que ouviram desde o princípio e em que lhes é ordenado permaneçam. Daí que João escrevesse efetivamente tanto esta carta como o Evangelho para os que já conheciam a verdade (ver supra tese VIII n. III, 3); contudo, escreveu para ensinar e como que para subsídio da pregação. Os doutores, porém, pelos quais os fiéis “não tem necessidade” de ser instruídos, são os mestres de novidades opostas aquilo que ouviram desde o princípio; ordena-se portanto aos fiéis que fujam deles e os rechacem para conservar a unção que receberam pela graça interna com a pregação externa dos Apóstolos. “Isto vos escrevo acerca daqueles que querem extraviar-vos. […] Em vós, porém, permanece a unção que recebestes dele. E vós não tendes necessidade de que ninguém vos ensine.” Em suma: na unção está incluída a pregação apostólica, e dela se exclui a pregação herética.
Do mesmo modo devem ser interpretadas aquelas profecias: “Todos os teus filhos serão discípulos do Senhor”42 que Cristo Senhor mesmo explica em João VI, 45 com respeito à necessidade de unir a graça interna à pregação externa, mesmo quando esta procede de seus próprios lábios divinos: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrair. […] Está escrito nos profetas: Todos serão ensinados por Deus (διδαχτους θεου). Todo aquele que escutou o Pai e aprendeu vem a mim”. Sem dúvida a graça interna e a santidade reológica são apresentadas como caracteres próprios do Novo Testamento em comparação com a economia mosaica, que enquanto peculiar ao povo exclusivo de Israel era externa e ordenada à justiça legal43. No entanto, não por isso se exclui o ministério externo no Novo Testamento, nem se promete uma revelação imediata de Deus a cada um à margem das causas ministeriais; assim como, por sua vez, tampouco se excluía na economia externa do Antigo Testamento a graça e a santificação internas, senão que pelo contrário elas devem entender-se como supostas e incluídas.
A outra profecia, de Jeremias, também deve ser explicada segundo a analogia da fé e de toda a nova economia, além do mais evidentíssima: “Eis virão dias, diz o Senhor, em que eu farei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá; não como a aliança que eu fiz com seus pais no dia em que os tomei pela mão para tirá-los das terras do Egito, aliança que eles violaram […]. Mas eis a aliança que farei com a casa de Israel, diz o Senhor, depois daqueles dias: Imprimirei a minha lei nas suas entranhas, e a escreverei nos seus corações, e serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E ninguém ensinará mais ao seu próximo, nem ao seu irmão, dizendo: Conhece o Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior, diz o Senhor”44. Aqui se compara o que prepondera na antiga aliança, isto é, a inscrição em tábuas de pedra e a economia externa e temporal, com o que prevalece no Novo Testamento, com a inscrição, com efeito, nos corações por meio da graça (sem excluir, mas incluindo, a pregação através dos enviados de Deus) (670), com a economia da santificação interna e que nunca caducaria.
Assim, também aquelas últimas palavras: “ninguém ensinará mais ao seu próximo, nem ao seu irmão […], pois todos me conhecerão”, devem ser interpretadas em comparação com o Antigo Testamento, mas não tomadas isolada e absolutamente se se restringirem ao estado presente, em que a Igreja ainda “caminha por fé e não por espécie. Como amiúde nas Escrituras proféticas as palavras se referem com o mesmo sentido menos pleno à incoação não ainda perfeita, enquanto com sentido pleníssimo significam a consumação perfeita, pode-se com Santo Agostinho referir os últimos incisos da profecia à Igreja consumada na visão beatífica, à ἐπιγνωσις em que todos “conhecerão como são conhecidos”45.“Agora certamente”, diz Santo Agostinho46, “já é o tempo do Novo Testamento, de que foi feita pelo profeta a promessa pelas palavras que recordamos daquela profecia. Por que então diz cada cidadão a seu irmão: conhece o Senhor? […] Se agora, pois, esta pregação cresce em todos os lugares, como pode ser o tempo do Novo Testamento […] senão porque ao prometer uniu o prêmio eterno desse mesmo Novo Testamento, isto é, a contemplação beatífica do próprio Deus?”
A comparação com o estado da fé no Novo Testamento tem triplo termo: a) o conhecimento terá uma extensão mais universal e uma intensidade muito mais profunda; b) a doutrina será antes interna e pela graça que externa: “não é nada nem o que planta, nem o que rega; mas Deus deu o crescimento”47; c) a própria doutrina externa não terá um puro homem como primeiro promulgador e homens instituídos por ele como ulteriores propagadores (ainda que revestidos de autoridade divina), mas seu primeiro promulgador visível será Deus-homem, que, pelo ministério dos que oficiam a legação em sua pessoa, continuará a pregação todos os dias até a consumação dos séculos. “Deus, tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos a nossos pais pelos profetas, ultimamente, nestes dias, falou-nos por meio seu Filho”48. “E Moisés na verdade era fiel em toda a casa de Deus, como um ministro, para testificar aquelas coisas que se deviam anunciar; mas Cristo está como Filho em sua própria casa”49. “O que é, pois, Apolo? e o que é Paulo? Ministros daquele a quem crestes […]. Somos cooperadores [συνεργοι] de Deus; sois cultura de Deus, sois edifício de Deus50. A isso se pode acrescentar d) em sentido mais pleno, porque a própria visão de Deus face a face pertence à promessa e prêmio do Novo Testamento.
II. A outra parte da tese decorre do demonstrado antes. Por certo o consenso dos fiéis em certa doutrina como dogma divinamente revelado é prova e critério da divina revelação e Tradição, pela mesma razão por que o Espírito de verdade sempre conserva todo o corpo dos fiéis imune a todo erro contrário à fe, ainda que o torne efetivo pelo ministério dos que ensinam autenticamente. Além disso, que esse consenso não possa conter erro na fé também se segue de que todo o povo cristão não pode crer numa doutrina como revelada sem que isso mesmo seja senso católico e interpretação de toda a Igreja, o que ora é evidente por si mesmo, ora surge da comunhão dos fiéis com os bispos (p. 66), ora do oficio muito mais importante dos pastores de velar pela integridade da fé. “A Igreja de Deus, estabelecida no meio de muita palha e joio, tolera muitas coisas, e, no entanto, não aprova nem cala nem faz nada do que vai contra a fé e os bons costumes”51. Daí que os Santos Padres costumem assumir o absurdo da hipótese de todo o povo cristão ter errado em questões de fé como prova evidente para demonstrar a verdade da doutrina antiga e a falsidade do ensinamento novo. Se as novidades introduzidas pelos hereges e contrárias à antiguidade são aceitas (assim argumenta ab absurdo Vicente de Lérins), “forçosamente se terá de violar em tudo ou em parte a fé dos bem-aventurados Padres; forçosamente se terá de achar que todos os fiéis de todas as idades, todos os santos, todas as virgens, castos, continentes, todos os clérigos, levitas e sacerdotes, tantos milhares de confessores, tantos exércitos de mártires, tanta celebridade e multidão de cidades e povos, tantas ilhas, províncias, reis, raças, reinos e nações, quase toda a redondeza da terra, finalmente, incorporada pela fé católica a Cristo, sua cabeça, em tão longa sucessão de séculos, tenham vivido submersos na ignorância, se tenham equivocado, tenham blasfemado, não tenham sabido em que coisa se teria de crer”52. Com as mesmas palavras tratam o mesmo argumento Tertuliano, Praescript. c. 29; Atanásio, de Synodis n. 4; Gregório Nazianzeno, ep. 2 a Cledon. T. II. p. 97. Daí que o próprio sumo Pontifice Pio IX, como preparação próxima para a definição dogmática da imaculada conceição da B. V. M., solicitasse aos bispos de todo o orbe que lhe informassem, entre outras coisas, “qual era a piedade e a devoção de seus fiéis com respeito à imaculada conceição da Mãe de Deus”, e que entre os critérios da divina Tradição o próprio Santo Padre enumere “o singular consentimento dos bispos e dos fiéis católicos” (Bula Ineffabilis). CF. Gregório de Valência, de Fide disput. 1. q. 1. P. 7 § 47. Analys. Fidei 1. VIII, c. 9; Bellarmin., de Ecclesia 1. III c. 14; Suárez, de Fide disp. V sect. 6.
É evidente por si mesmo que o consenso do povo cristão deve ser certo e claro para que o argumento a favor da Tradição extraia daí toda a sua força. Se o consenso numa doutrina como dogma revelado for ambiguo, certamente pode e deve ter maior ou menor peso; mas, de si, só ele não é suficiente para que se de um juízo definitivo. É também evidente que não se pode apelar para esse consenso do povo cristão senão naqueles pontos que ou estão sob o expresso conhecimento dos fiéis, ou estão certamente contidos em alguma prática e costume público e constante. Quem pode, com efeito, demonstrar o consenso em outras doutrinas mais sutis, em que a multidão dos fiéis só crê implicitamente na fé dos doutores e pastores53? No entanto, na comprovação das doutrinas que não escapam ao entendimento católico e explícito da multidão dos fiéis, acorreu-se com grande confiança nas disputas com os hereges a esse consenso e à força do costume. Assim, por exemplo, São Basílio54 diz de Orígenes que “não tem em tudo opiniões corretas sobre o Espírito Santo; no entanto, ele também pronunciou palavras piedosas sobre o Espírito Santo, venerando a força do costume”. Santo Agostinho prova o efeito da Eucaristia contra os pelagianos e seus remanescentes a partir do consenso da multidão55, o efeito do Batismo nos párvulos56, o pecado original57, a necessidade da graça para a infusão da fé e a perseverança58, etc. Quando Juliano deplorou que contra a doutrina pelagiana ele só opusesse o “murmúrio” do povo, Agostinho mostrou59 a importância desse testemunho: “O mesmo povo murmura contra vós, porque o assunto não é tal que possa escapar ao conhecimento de todos. Ricos e pobres, grandes e pequenos […] sabem que coisa se perdoa no batismo e em que idade […]. Por menor que seja a verdade desta asserção, neste fundamento firmíssimo e antiquissimo não discrepam entre si os da mesma multidão espalhada por todo o mundo”60.
Corolário. Aquele célebre dizer de Santo Hilário: “são mais santos os ouvidos dos fiéis que os corações dos sacerdotes”61, só tem aquele santíssimo e muito desejado sentido de que o povo prefira a comunhão e o consenso com os sacerdotes que permanecem na unidade e no consenso da Igreja à doutrina dos sacerdotes que abandonaram a unidade e a fé comum. Seria absurdíssimo, no entanto, que os corações dos sacerdotes fossem tomados indiscriminadamente ou que o povo fosse constituído em juiz dos sacerdotes. Em ordem completamente inversa, os corações dos sacerdotes, a unanimidade da fé e o consenso católico dos pastores que permanecem na unidade da Igreja são causa ministerial e órgão pelos quais o Espírito de verdade santifica os ouvidos do povo, isto é, o sentido e intelecto católico daqueles de quem é próprio ouvir, aprender e prestar a “obediência da fé” ou ὑπακοήν πιστεως62.
Pode certamente suceder que muitos bispos e muitas províncias completas reneguem a fé e que, no entanto, a maior parte dos rebanhos de fiéis em profissão ortodoxa conserve constantemente a comunhão e o consenso com a sucessão apostólica, a qual permanece em consenso e comunhão com o centro de unidade, isto é, a Sede de Pedro. Mas não pode suceder que todo o episcopado cometa defecção e não permaneça órgão de conservação da Tradição sob a assistência do Espírito Santo, mediante o qual, como por magistério ordiná rio externo, o mesmo Espírito contém e conserva a comunhão e a fé do povo católico. Para que isso tenha lugar, nem sempre se requer necessariamente que todo o episcopado defenda e proteja a fé ortodoxa contra seus adversários.com empenho e ardor extremo, senão que pode ser suficiente sua perseverança na mesma doutrina transmitida, sendo essa mesma constância norma imediata viva e reitora e vinculo imediato de união do povo católico. Isso mesmo é o que podem corroborar os fatos da história eclesiástica, particularmente a história de arianismo que aflorava no século IV, mas não assim aquilo que o autor anônimo da dissertação De consulendis fidelibus in rebus christianae63 doutrina julgou poder inferir a partir de tal história: “a Igreja docente não foi em todos os tempos instrumento ativo da infalibilidade da Igreja”. Mesmo tendo sido expulsos todos os bispos católicos, sua constância contra os arianos, a fuga do povo fiel dos bispos intrusos e sua comunhão com os desterrados, o relato de Sozomeno segundo o qual tinha sido mais perseverante o povo das cidades cujos bispos eram mais fortes e mais constantes na fé64, a cominação dos fiéis antioquenses para que comunicassem aos bispos ocidentais as fraudes do bispo ariano Leôncio 65 e outros fatos, todos referidos pelo mesmo autor anônimo da dissertação, demonstram que também naquele tempo “a Igreja docente tinha sido instrumento ativo da infalibilidade da Igreja”.
Uma posição mínima: o sensus fidei segundo o P. Marín-Sola OP
O Padre Marín-Sola, em sua obra A Evolução Homogênea do Dogma Católico66, trata longamente do senso da fé nos crentes e sublinha com razão que a infalibilidade não lhe pertence propriamente, mas ao magistério:
“Distinção entre o senso da fé e o magistério ordinário. — Convém distinguir bem entre o senso da fé […] e o magistério ordinário da Igreja […]. O primeiro encontra-se em todos os fiéis, sobretudo nos fiéis que estão na graça de Deus, e muito mais nos verdadeiros santos, ainda que não sejam teólogos nem bispos. O segundo é exclusivo dos bispos ou pastores.
O primeiro não é ensino nem magistério, mas simples persuasão experimental de uma verdade, e, embora, quando é de todos os fiéis, seja suficiente critério ou preparação para sua definição pela Igreja, não é por si mesmo definição. O segundo não é somente persuasão de uma verdade, mas também magistério ou ensinamento dela, e, quando esse magistério é universal e definitivo, constitui uma verdadeira definição de fé por magistério ordinário, do mesmo valor que as definições de fé por magistério solene.
Para possuir o primeiro, isto é, o senso da fé, basta estar na graça de Deus ou ao menos ter verdadeira fé divina; para possuir o segundo, isto é, o poder de magistério ordinário, é preciso e basta o ter jurisdição episcopal, que é por sua própria natureza jurisdição doutrinal, ainda que se careça de graça e até de fé. Tampouco se deve confundir o consentimento comum dos fiéis, quando é consequente com uma definição do magistério solene ou ordinário da Igreja, com esse mesmo consentimento quando é antecedente a qualquer definição ou ensinamento da Igreja. O primeiro versa sobre uma verdade já definida e é, portanto, infalível, como o é a definição. O segundo versa sobre uma verdade ainda não definida nem ensinada e não pode fundar-se, portanto, senão em uma de duas coisas: ou no raciocínio especulativo da teologia, ou no senso intuitivo e experimental da fé: ambas as coisas absolutamente falíveis enquanto não intervenha a definição do magistério solene ou ordinário da Igreja, unicamente ao qual é prometida e está ligada a assistência divina ou infalibilidade.
O fator principal do progresso dogmático. — Por aí se vê claramente que o único fator principal ou verdadeiramente eficaz do progresso dogmático é a definição da Igreja ou assistência infalível do Espírito Santo, pois essas duas coisas, definição e assistência, estão indissoluvelmente unidas e não formam senão uma só. Em contrapartida, todos os outros fatores, sejam especulativos ou práticos, não são senão meras vias ou instrumentos humanos e falíveis da ação infalível do magistério da Igreja.
Portanto, o magistério ou definição dogmática da Igreja não é somente um aparelho registrador nem um centro de repercussão da consciência social da comunidade cristă, como pretende hereticamente o modernismo, mas é, antes de tudo, uma verdadeira fonte, de onde explícita ou implicitamente nasce todo consentimento conseguinte, e um verdadeiro juiz e verdadeira regra divina de todo consentimento antecedente da consciência social ou povo cris tão, quer ral consentimento se tenha formado por raciocínio teológico, quer pelo senso prático e experimental da fë. Por isso, toda definição do magistério eclesiástico, seja solene ou ordinário, é infalível por si mesma e independente do consentimento antecedente, concomitante ou conseguinte dos teólogos e dos fiéis. Em contrapartida, nenhum consentimento de teólogos ou fiéis, por unanime e permanente que seja, é nem pode ser infalível senão enquanto seja expressão de uma definição anterior ou enquanto seja confirmado por uma definição posterior do magistério solene ou ordinário da Igreja”.
Observação crítica. Parece-nos errado considerar possível um consenso comum dos fiéis, e mesmo dos doutores, antecedente à intervenção (preferimos não dizer definição) do magistério ordinário; erro que implica o esquecimento ou menosprezo da obedientia fidei da Igreja e a negação da infalibilidade própria do sensus fidei, implicações evidentemente contrárias à intenção do autor.
Quando se verifica o consenso comum dos fiéis, já não é necessário investigar se houve ou não determinação antecedente do magistério da Igreja: é em si mesmo critério infalível da Tradição. Como se explicou, o consentimento universal é sempre consequente com o ensinamento do magistério, mas às vezes é mais fácil verificar o consenso dos fiéis (efeito) que a intervenção do magistério (causa), pois este pode ter atuado de modo oculto, mais permitindo que fazendo.
Um consentimento comum antecedente à intervenção do magistério supõe um pecado contra a docilidade própria do fiel cristão, que não deve crer senão naquilo que lhe é ensinado ou confirmado por seus pastores. Uma pessoa, uma diocese, mesmo uma parte da Igreja pode chegar a cometer este pecado por falta de virtude; mas não pode cometê-lo a Igreja enquanto tal, porque o Espírito Santo a conserva na santidade. Por isso dizemos que este erro implica um menosprezo da obedientia fidei da Igreja discente.
E implica também negar a infalibilidade própria do sensus fidei, porque, embora se deva afirmar que esta infalibilidade tem como causa eficiente a infalibilidade do magistério, pertence porém formalmente à profissão comum de fé da Igreja discente, que põe como causa dispositiva ou material sua santa docilidade. A profissão comum de fé é em si mesma infalível, ainda que não por si mesma: a infalibilidade se dá nela, mas não vem dela, e sim da infalibilidade do magistério.
Conclusão. Contra o democratismo modernista, devemos sustentar que a infalibilidade do sensus fidei depende como de sua causa da infalibilidade da Igreja docente assistida pelo Espírito Santo; mas nem por isso se deve esquecer que o mesmo Espírito assiste à Igreja discente para que não renegue sua fé. Hoje, quando os próprios pastores, infectados pela heresia modernista, renunciam ao exercício do magistério infalível, devemos crer que o Espírito Santo continua a assistir o comum dos fiéis para que não caiam na apostasia completa.
666. I João 1–5.
667. Isaías LIV, 13. Graec. διδκτους θεου. Cf. Mateus XXVIII, 19: μαθητεύσατε.
668. Isto certamente não deve ser entendido como se no Antigo Testamento faltasse a graça interna e a santificação teológica; mas 1° era mais moderada que no Novo Testamento; 2° em virtude dessa graça interna, a divina economia não estava restrita a um só povo, Israel, mas era universal; por isso 3° a graça e a santificação não eram próprias do pacto antigo, temporário, enquanto este difere especificamente do Novo e Eterno Testamento, senão que a graça e a santificação eram desde então herança do Testamento eterno dada aos antecessores antes da morte do testador, Cristo Deus. “Todos aqueles (os justos), conquanto no tempo da dispensação do Antigo Testamento administrassem em figuras, pela graça de Deus pertenciam ao Novo Testamento, apesar de ainda não revelado”. S. Agostinho, Contra adversar. leg. et proph. l. II n. 30; ep. 140, n. 5 e frequentemente em outros lugares. Cf. Tratado de Trin. Tese 48; de Incarnat. p. 496 e ss. 1ª edit.; p. 499 2ª edit.
Excerto de: Pe. ÁLVARO CALDERÓN, F.S.S.P.X.; A candeia debaixo do alqueire, Castela Editorial, 2020, Apêndice Segundo, pp. 369-409.
- Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática Dei Filius sobre a fé católica, 24 de abril de 1870, DS 3020. ↩︎
- Idem. ↩︎
- Constituição dogmática Dei Verbum sobre a divina revelação, c. 2, n. 8: “Haec quae est ab Apostolis Traditio sub assistentia Spiritus Sancti in Ecclesia proficit (Vat. I, DS 3020): crescit enim tam rerum quam verborum traditorum perceptio, tum ex contemplatione et studio credentium, qui ea conferunt in corde suo (Lc 2, 19 et 51), tum ex intima spiritualium rerum quam experiuntur intelligentia, tum ex praeconio eorum qui cum episcopatus successione charisma veritatis certum acceperunt”. Conservamos a tradução castelhana de L.A. Schöckel SE, que a BAC traz em sua sexta edição bilingue dos documentos do Concílio Vaticano II, conquanto seja pouco literal. Não é exato traduzir “assistentia” por “ajuda”, “perceptio” por “compreensão”, “spiritualium rerum” por “mistérios”, “experiuntur” por “vivem”, omitir “certum” e mudar a construção da última frase, que em lugar de “os Bispos…” deveria dizer: “aqueles que junto com a sucessão no episcopado receberam o carisma certo [= infalível] da verdade”. ↩︎
- Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, c. 2, n. 12: “Universitas fidelium, qui unctionem habent a Sancto (Io 2, 20 et 27), in credendo falli nequit, atque hanc suam peculiarem proprietatem mediante sobrenaturali sensu fidei totius populi manifestat, cum ‘ab Episcopis usque ad extremos laicos fideles’ [Santo Agostinho, De praed. Sanct.] universalem suum consensum de rebus fidei et morum exhibet”. ↩︎
- Suma Teológica, IIa-IIae, q. 1, a. 3: Utrum fidei possit subesse falsum. ↩︎
- Ver o que ensina Santo Tomás em De veritate, q. 10, a. 10, onde se pergunta se alguém pode saber com certeza se tem caridade. O que diz ali da caridade deve dizer-se também das demais virtudes infusas. ↩︎
- Cf. a Tese XII do Cardeal Franzelin, em seu Tractatus de divina Traditione, onde nos parece estar a melhor explicação deste ponto de doutrina (cf. Anexos ao “Apêndice segundo”). ↩︎
- Franzelin, Tractatus de divina Traditione, edit. 3ª, Romae 1882, p. 114, nota 1: “Como o magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial custodia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unidade da fé; por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma dizer-se ativa, e tem como finalidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é a infalibilidade passiva de todo o corpo da Igreja”. — H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6º Torino 1937, vol. 1, p. 450: “A infalibilidade da Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princípio: a infalibilidade ativa dos Pastores exige necessariamente a infalibilidade passiva dos fiéis”. ↩︎
- Como primeiro analogado do que significa “tradição” entre os homens. ↩︎
- O modernista pertence ao gênero do católico liberal, mas diferencia-se especificamente por justificar doutrinalmente sua atitude. Como a denominação “católico liberal” já se impôs, ter-se-ia de distinguir o católico católico”, ou seja, o que é católico em foro externo e tem mentalidade católica, mais ou menos formada no aspecto doutrinal. Quando em nosso texto nos referimos pura e simplesmente ao “católico”, entendemo-lo neste último sentido: “católico” com repetição. ↩︎
- Cf. os erros condenados no Decreto Lamentabili, DS 3401-3404. ↩︎
- São Pio X, Decreto do Santo Ofício Lamentabili sobre os erros modernistas, proposição reprovada, DS 3406: “Na definição das verdades colaboram de tal modo a Igreja discente e a docente, que só resta à docente sancionar as opiniões comuns da discente”. Encíclica Pascendi, Dz 2093 [numeração antiga]: “Com respeito ao magistério da Igreja, [os modernistas] fantasiam deste modo. Uma associação religiosa não pode de modo algum ter unidade, se não houver uma só consciência dos associados e uma fórmula única de que se valham. Mas ambas as unidades exigem uma espécie de inteligência comum, a quem caiba encontrar e determinar a fórmula que mais exatamente corresponda à consciência comum, e para essa inteligência é preciso ter suficiente autoridade para impor à comunidade a fórmula que ela tiver instituído. Pois bem, nessa conjunção e como que fusão tanto da inteligência que escolhe a fórmula como do poder que a prescreve põem os modernistas a noção do magistério eclesiástico”. ↩︎
- São Pio X, Encíclica Pascendi, Dz 2079 [numeração antiga]: “Tais fórmulas [os dogmas] não têm outro fim que propiciar ao crente um modo de dar-se a razão de sua fé. Por isso são intermediárias entre o crente e sua fé: no que se refere à fé, são notas inadequadas de seu objeto, as quais vulgarmente se chamam símbolos, no que se refere ao crente, são meros instrumentos. Daí que por nenhuma razão se possa estabelecer que contenham a verdade absolutamente; porque, enquanto símbolos, são imagens da verdade e, portanto, devem adaptar-se ao sentimento religioso [‘sensus fidei’], tal como este se refere ao homem; enquanto instrumentos, são veículos da verdade e, portanto, devem adaptar-se por sua vez ao homem, tal como este se refere ao sentimento religioso. Ora, o sentimento religioso, como quer que esteja contido no absoluto, tem infinitos aspectos, dos quais agora pode aparecer um, depois outro. De maneira semelhante, o homem crente pode achar-se em diversas situações. Logo, também as fórmulas que chamamos dogmas têm de estar sujeitas às mesmas vicissitudes [do sentimento religioso] e, por conseguinte, sujeitas a variação. E assim, para dizer a verdade, fica aberto o caminho para a intima evolução do dogma. Aí está um acervo de sofismas que arruinam e aniquilam toda a religião”. ↩︎
- São Pio X, Encíclica Pascendi, Dz 2095 [numeração antiga]: “Assim, pois, como definitivamente o magistério nasce das consciências individuais e é incumbido de seu público dever para comodidade das mesmas consciências, segue-se necessariamente que depende dessas consciências e deve dobrar-se às formas populares. Portanto, proibir às consciências dos indivíduos o professar pública e abertamente os impulsos que sentem, bem como fechar o caminho para a crítica para que impulsione o dogma a suas necessárias evoluções, não é uso mas abuso de um poder de que foi encarregado para utilidade. De modo semelhante, deve guardar-se temperança no uso mesmo da autoridade. Censurar e proibir um livro qualquer sem conhecimento do autor, sem admitir explicação nem discussão alguma, é certamente coisa que beira a tirania. Razão por que também aqui se deve achar um caminho médio, a fim de que fiquem intactos os direitos tanto da autoridade como da liberdade. Entrementes, o católico deve agir de modo que publicamente se mostre obedientíssimo à autoridade, mas nem por isso deixe de seguir sua própria inteligência”. ↩︎
- O Conciliábulo de Pistoia já defendera essa inversão democrática da autoridade, mas de modo demasiado explícito, sendo sua sentença condenada como herética: “A proposição que estabelece ‘que foi dado por Deus à Igreja o poder, para ser comunicado aos pastores que são seus ministros, para a salvação das almas’, entendida no sentido que da comunidade dos fiéis deriva para os pastores o poder do ministério e do regime eclesiástico: é herética”. Essa tese também havia entrado, por influência protestante, entre os “ortodoxos” cismáticos: ‘Já desde o século XVIII, alguns teólogos greco-russos começaram a opinar, acerca do sujeito da infalibilidade, quase o mesmo que Edmundo Richer e o sínodo de Pistoia, os quais ensinavam que tal sujeito era toda a Igreja ou universalidade dos fiéis, da qual os bispos reunidos em concílio não são senão legados ou mandatários […]. Segundo quatro patriarcas orientais, o próprio povo cristão, considerado separadamente, ao qual chamam corpo da Igreja, é o verdadeiro sujeito da infalibilidade” (Jugie, Theol. Dogm. Christianorum Orientalium, tomo IV, p. 487). O modernismo evita falar de subordinação perfeita da Hierarquia ao Povo Fiel, e propõe um conceito mais moderado de complementaridade de funções; mas não há mudança substancial no pensamento: segue dando-se a mesma inversão democrática da autoridade, porque a função da Hierarquia é subordinada ao “sensus fidei”. ↩︎
- Citado por Sancho Bielsa em Infalibilidad del Pueblo de Dios, Pamplona, Ed. Universidad de Navarra, 1979, p. 141. ↩︎
- Sancho Bielsa, Infalibilidad del Pueblo de Dios, p. 138. ↩︎
- Principio de inadequação: “As palavras de Deus, expressas em linguas humanas, tornam-se semelhantes à linguagem humana, assim como a Palavra do eterno Pai, assumindo nossa frágil condição humana, se torna semelhante aos homens” (n. 13). Segundo a doutrina católica, “as palavras de Deus” (ou seja, a Revelação) são palavras humanas (pois Deus nos falou como entendemos); segundo a doutrina modernista, em contrapartida, “as palavras” da Revelação assumem palavras humanas, tão inadequadas para significar essas “palavras divinas” (realidades) quanto a natureza humana assumida pelo Verbo é inadequada para dar a conhecer a natureza divina. Primazia da Escritura e livre exame comunitário: “A Igreja sempre considerou como suprema norma de sua fé as Escrituras unidas à Tradição, já que, inspiradas por Deus e escritas de uma vez para sempre, nos transmitem imutavelmente a palavra do mesmo Deus” (n. 21). A norma de fé já não é o Magistério vivo, e sim as Escrituras. Mas unidas à Tradição, isto é, interpretadas e vividas comunitariamente pelo “sensus fidei”.
Giro democrático: “Aos exegetas cabe aplicar essas normas em seu trabalho para ir penetrando e expondo o sentido das Sagradas Escrituras, de modo que com tal estudo o juízo da Igreja possa amadurecer” (n. 12). São os exegetas os que fazem amadurecer os juízos ou definições da Igreja, e não as definições do Magistério as que fazem amadurecer os exegetas. ↩︎ - Tratamos disto no Artigo segundo. ↩︎
- A mariologia tradicional considera a Virgem exemplar da Igreja. A figura é inferior e efeito do figurado, enquanto o exemplar é superior e causa de sua imagem. Antes a Igreja é que é imagem e figura da Virgem. ↩︎
- “Populus Dei sanctus de munere quoque prophetico Christi participat, vivum Eius testimonium maxime per vitam fidei ac caritatis diffundendo, et Deo hostiam laudis offerendo, fructum labiorum confitentium nomini Eius (cf. Hebr 13, 15). Universitas fidelium, qui unctionem habent a Sancto (cf. 1 Jo 2, 20 e 27), in credendo falli nequit, atque hanc suam peculiarem proprietatem mediante supernaturali sensu fidei totius populi manifestat, cum ‘ab Episcopis usque ad extremos laicos fideles’ [Santo Agostinho, De praed. sanct., 14, 27: PL. 44,980] universalem suum consensum de rebus fidei et morum exhibet. Illo enim sensu fidei, qui a Spiritu veritatis excitatur et sustentatur, Populus Dei sub ductu sacri magisterii, cui fideliter obsequens, iam non verbum hominum, sed vere accipit verbum Dei (cf. 1 Thess 2, 13), semel traditae sanctis fidei (lud 3), indefectibiliter adhaeret, recto iudicio in eam profundius penetrat eamque in vita plenius applicat.” ↩︎
- Constituição Dogmática Pastor Aeternus, DS 3074. ↩︎
- A versão espanhola foi publicada por Herder em 1972. ↩︎
- Congregação para a Doutrina da Fé, El Misterio de la Iglesia y la Iglesia como comunión, 2ª ed., Madri, Ediciones Palabra, 1995, p. 36. ↩︎
- Ibid., p. 38. ↩︎
- L’Osservatore Romano, edição semanal em língua espanhola, 1o de julho de 1990. ↩︎
- Pontifícia Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, 23 de abril de 1993, apresentado por um discurso de João Paulo II, São Paulo, III, B, 3, p. 92. ↩︎
- Idem. ↩︎
- C.T.1. Documentos 1970-1979, Cete, Madri, Tese 3, p. 131. ↩︎
- Ibid., Tese 4. ↩︎
- Card. Ioannes Bapt. Franzelin SJ, Tractatus de Divina Traditione et Scriptura, editio tertia, Romae, ex typographia polyglotta S.C. de Propaganda Fide, 1882, Tese XII. Tradução do P. Paulo Suárez. ↩︎
- De minha parte, preferirei distinguir a infalibilidade da Igreja in credendo e a infalibilidade in docendo; ou a infalibilidade na obediência da fé (της άκοης) e na pregação e definição da fé (τον κηρυγματος). ↩︎
- I Coríntios III, 22; Efésios IV, 16. ↩︎
- Sorites: raciocínio composto de muitas proposições encadeadas. ↩︎
- Romanos 10, 8-17. ↩︎
- Mateus XXVIII. ↩︎
- João XVII, 20-21. ↩︎
- Efésios IV, 4-14. ↩︎
- Mateus XVI, 18. ↩︎
- “E não tendes necessidade de que ninguém vos ensine […], pois o que fazemos nós, irmãos, que vos ensinamos? […] Digo ao próprio João […] por que escreveste essa carta? Que lhes ensinavas, em que os instruías, que construías? […] os ensinamentos externos e as admoestações são certos auxílios; aquele que ensina os corações tem sua cátedra no céu”, S. Agostinho em I Jn. Tract. III, n° 13. ↩︎
- I João 1–5. ↩︎
- Isaías LIV, 13. Graec. διδκτους θεου. Cf. Mateus XXVIII, 19: μαθητεύσατε. ↩︎
- Isto certamente não deve ser entendido como se no Antigo Testamento faltasse a graça interna e a santificação teológica; mas 1° era mais moderada que no Novo Testamento; 2° em virtude dessa graça interna, a divina economia não estava restrita a um só povo, Israel, mas era universal; por isso 3° a graça e a santificação não eram próprias do pacto antigo, temporário, enquanto este difere especificamente do Novo e Eterno Testamento, senão que a graça e a santificação eram desde então herança do Testamento eterno dada aos antecessores antes da morte do testador, Cristo Deus. “Todos aqueles (os justos), conquanto no tempo da dispensação do Antigo Testamento administrassem em figuras, pela graça de Deus pertenciam ao Novo Testamento, apesar de ainda não revelado”. S. Agostinho, Contra adversar. leg. et proph. l. II n. 30; ep. 140, n. 5 e frequentemente em outros lugares. Cf. Tratado de Trin. Tese 48; de Incarnat. p. 496 e ss. 1ª edit.; p. 499 2ª edit. ↩︎
- Jeremias XXXI, 31–34. ↩︎
- Cf. 2 Coríntios III, 3: “Vós sois a carta de Cristo, ministrata a nobis e escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de corações de carne”. ↩︎
- I Coríntios XIII, 12. ↩︎
- De Spirit. et littera, n. 34-41. ↩︎
- I Coríntios III, 7. ↩︎
- Hebreus III, 5-6. ↩︎
- 1 Coríntios III, 4-5; 9. ↩︎
- S. Agust. ep. 55, n. 35 ao. 119, ad Januar. ↩︎
- Conmonit. c. 33. ↩︎
- “Há duas classes de coisas em que crê a Igreja. Uma, que concerne igualmente a todos, e neste gênero não é muito dificil conhecer a fé e o consenso de todos […]. A outra é aquela espécie de coisas cujo conhecimento pertence não aos rústicos e imperitos na Igreja, mas aos superiores e sábios; no qual gênero indagar a opinião vulgar do povo equivale a requerer de um cego o senso da cor. Quando tais coisas aparecem por acaso na linguagem popular, aqueles que no vulgo são um pouco mais modestos, com cautela, pois, e prudentemente, não referem nada totalmente afirmativa e asseverativamente, mas confessam crer e sentir nessas coisas aquilo que a Igreja crê e sente, no que designam acertadamente os sábios e superiores na Igreja. […] Afirmemos agora o seguinte: nas questões comuns a todos, tira-se argumento certo com base no sentir comum dos fiéis, sem ser necessário estabelecer fidedignamente o parecer particular de todos. Com respeito à fé daquelas coisas que são próprias dos doutores e sábios, deve-se recorrer somente à opinião destes e não esperar, por certo, a do vulgo. […] Mas, quanto aos decretos e leis em ambos os assuntos, não constituem lugar [teológico] o vulgo nem todos os sábios, mas somente aqueles que são pastores da Igreja.” Melchor Cano, de Locis l. IV, c. 6, ad. 14m argumentum. Cf. L. V, c. 6, ad 12. ↩︎
- De Spiritu Santo, c. 29. ↩︎
- De peccator. merit, et remiss., l. 1., nº 34. ↩︎
- Serm., 294, nº 14 e 17. ↩︎
- Ibidem e Contra Juliano, 1. I., nº31 e 32. ↩︎
- De dono persever., n°63. ↩︎
- Contra Iulian., 1. c. ↩︎
- Ver Stapleton, I. XI, c. 4. ↩︎
- Contra Auxentium, n° 6, T. II., p. 597. ↩︎
- Romanos I, 5. ↩︎
- Na efeméride literária The Rambler, Iuly 1859, p. 218. ↩︎
- Soz. VI. 21. ↩︎
- Theodor. H. Ε. 11. 24. ↩︎
- P. Francisco Marín-Sola OP, La evolución homogénea del dogma católico, Madri, BAC, 1952, с. 4, secc. 5, pp. 408-410. ↩︎

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