TRADIÇÃO OU HERMENÊUTICA?

Padre Jean-Michel Gleize, F.S.S.P.X.
2023

Bento XVI descreve a Tradição como “o rio vivo no qual as nascentes estão sempre presentes” (Catequese, 26 de abril de 2006) (1).

Em 11 de outubro de 2017, o Papa [sic] Francisco se dirigiu aos participantes de uma reunião organizada pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. O discurso ocorreu no vigésimo quinto aniversário da Constituição Apostólica Fidei depositum, pela qual seu predecessor, o Papa [sic] João Paulo II, promulgou o Novo Catecismo da Igreja Católica em 1992, trinta anos após a abertura do Concílio Vaticano II.

I. A herança do Vaticano II

Recorrendo às palavras de João XXIII em seu discurso de abertura em 11 de outubro de 1962, Francisco acredita que pode resumir a missão da Igreja quanto ao depósito da fé nestas duas palavras: “guardar e prosseguir”. Com efeito, falando sobre a Tradição e a doutrina da Igreja, João XXIII afirmou: “Não devemos apenas guardar esse precioso tesouro como se estivéssemos preocupados apenas com o passado, mas também devemos nos dedicar com alegria e determinação ao trabalho exigido por nossos tempos, prosseguindo no caminho pelo qual a Igreja vem caminhando há quase vinte séculos”. Em comentário a essa declaração de seu predecessor, Francisco se refere à famosa passagem da constituição Dei Verbum: “Esta Tradição progride […] cresce, […] tende constantemente à plenitude da verdade divina, até que nela se cumpram as palavras de Deus” (nº 8).

II. Uma releitura do Concílio?

É marcante que o Papa [sic] apresente essa passagem como uma descrição do que ele chama de “dinâmica interna” de um processo que a constituição Dei Verbum descreve algumas linhas antes, no mesmo nº 8: “A Igreja perpetua em sua doutrina, sua vida e seu culto, e transmite a cada geração tudo o que ela é, tudo o que ela crê”. E Francisco comenta: “Os Padres do Concílio não poderiam ter encontrado uma expressão sintética mais feliz para a natureza e a missão da Igreja. Não é somente na ‘doutrina’, mas também na ‘vida’ e no ‘culto’ que os crentes podem se tornar o Povo de Deus”. E é justamente com base nisso, diz ele, que a Tradição é “vida e culto” e não apenas “doutrina”, que essa mesma Tradição, assimilada por Francisco à própria Igreja, “tende à plenitude da verdade”. É digno de nota que, enquanto o texto de Dei Verbum fala literal e precisamente da “Igreja” para dizer que ela está se esforçando para alcançar a plenitude da verdade, o Papa [sic] Francisco fala da “Tradição”, reproduzindo assim uma citação modificada do texto do Vaticano II. Ao introduzir essa modificação, será que o Papa [sic] pretende declarar, com a autoridade de seu magistério, o sentido autêntico de Dei Verbum? Seria esse apenas mais um exemplo da famosa hermenêutica pela qual o novo “magistério” do Vaticano II e de Bento XVI constantemente se reinterpreta? E o que o Papa [sic] quer dizer com isso? Que definição ele pretende dar da Tradição, na continuidade renovada (ao preço da modificação mencionada) de Dei Verbum?

O Papa [sic] explica isso no restante de seu discurso. “A Tradição”, diz ele, “é uma realidade viva, e somente uma visão parcial pode pensar no ‘depósito da fé’ como algo estático”. E, para ilustrar esse ponto, ele usa uma de suas expressões secretas: “A Palavra de Deus não pode ser mantida em naftalina como se fosse um cobertor velho do qual os parasitas devem ser removidos! Não. A Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre viva, progredindo e crescendo em direção a uma realização que os homens não podem impedir”. Mas, pouco depois, o Papa [sic] acrescenta o seguinte esclarecimento: “Esta lei do progresso, segundo a feliz fórmula de São Vicente de Lérins — ‘annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate’ (Commonitorium, XXIII, 9) — pertence à condição particular da verdade revelada tal como é transmitida pela Igreja, e não significa de modo algum uma mudança de doutrina”.

O Papa [sic] faz uso de quatro expressões distintas aqui. Ele fala da “Tradição”, do “depósito da fé”, da “Palavra de Deus” e da “doutrina”. A quais realidades essas quatro expressões se referem? Elas são uma e a mesma realidade ou várias realidades distintas?

III. A Tradição e o Magistério antes do Vaticano II

Segundo as explicações herdadas da teologia tradicional (2), podemos dizer que a Palavra de Deus, a verdade revelada e o depósito da fé são uma e a mesma realidade. Essa realidade não pode mudar em seu significado. Esse é o ensinamento da Constituição Dei Filius do Concílio Vaticano I: “A doutrina da fé que Deus revelou não foi proposta como uma descoberta filosófica a ser desenvolvida pela reflexão humana, mas como um depósito divino confiado à Esposa de Cristo para ser fielmente guardado e infalivelmente apresentado. Por conseguinte, o significado dos sagrados dogmas que devem ser preservados perpetuamente é aquele que a nossa santa Mãe Igreja apresentou definitivamente, e nunca é permitido afastar-se dele sob o pretexto ou em nome de uma compreensão mais sofisticada” (DS 3020). Com efeito, São Vicente de Lérins, referido nesta Constituição Dei Filius, diz: “Que a inteligência, a ciência e a sabedoria cresçam e progridam ampla e intensamente […] mas exclusivamente na mesma crença, no mesmo sentido e no mesmo pensamento”.

A doutrina é a formulação dessa verdade revelada, tal como o Magistério a propõe de maneira cada vez mais precisa: a doutrina não muda na medida em que expressa sempre o mesmo significado, mudando apenas em sua formulação verbal e na medida em que corresponde a uma expressão mais precisa.

Por fim, a Tradição pode ser compreendida em dois sentidos. No primeiro sentido, ela é dita em distinção da Revelação e designa a transmissão da verdade já revelada, conforme é realizada pelo Magistério da Igreja, com a assistência do Espírito Santo. Em um segundo sentido, é dita em distinção da Sagrada Escritura, e ambas são precisamente as fontes, as duas fontes da Revelação. Essa expressão de “fontes” designa as verdades objetivas reveladas por Deus, como foram originalmente comunicadas, às vezes por meio dos Livros Sagrados do Antigo e do Novo Testamento, às vezes por meio da pregação oral de Cristo e dos Apóstolos ensinando sob o ditame do Espírito Santo. Nesse segundo sentido, a Tradição designa o modo pelo qual parte das verdades reveladas por Deus foi comunicada aos homens, e esse modo da Tradição se contradistingue do modo da Escritura.

IV. A Tradição no pensamento de Francisco

Qual é o pensamento do Papa [sic]? Antes de mais nada, vejamos o livro publicado em 2017, no qual Francisco resumiu os principais pontos de seus “encontros” com o sociólogo francês Dominique Wolton (3). Nele, ele já fala sobre a Tradição e o possível “progresso” a que ela pode dar origem. Ele define a Tradição como um “movimento”. A Tradição, diz ele, é “doutrina em movimento, que avança”(4). Ele ilustra seu ponto de vista imediatamente com o exemplo da pena de morte, decretada, segundo ele, pelos bispos na Idade Média e hoje considerada imoral pela Igreja: “A Tradição, portanto, mudou? Não, mas a consciência evolui, a consciência moral evolui. […] Na tradição dinâmica, o essencial permanece: ela não muda, mas cresce. Cresce em explicitação e compreensão. Essas três fases de Vicente de Lérins são muito importantes. De que modo a tradição cresce? Ela cresce como uma pessoa cresce: por meio do diálogo, semelhante à amamentação de uma criança. Diálogo com o mundo ao nosso redor. […] O diálogo nos faz crescer e faz a tradição crescer. Ao dialogar e ouvir outra opinião, posso, como no caso da pena de morte e da escravidão, mudar meu ponto de vista. Sem mudar a doutrina. A doutrina cresceu com a compreensão. Essa é a base da tradição”(5).

No pensamento do Papa [sic], portanto, há uma diferença entre “tradição” e “doutrina”. A doutrina não muda, enquanto a tradição cresce à medida que a consciência evolui, e isso se dá por meio do diálogo. O que é essa “doutrina” que não muda? O que é essa “tradição” (com um “t” minúsculo) que vemos ser tão exaltada pelo Santo Padre [sic] e que cresce? É realmente a Santa Tradição (com “T” maiúsculo), assistida pelo Espírito de Nosso Senhor, para transmitir o depósito da fé à Igreja?

A Tradição é o ato coletivo do Povo de Deus

Em um discurso de 2013 à Pontifícia Comissão Bíblica, o Papa [sic] falou da Tradição em sua relação com as Escrituras. “O exegeta”, diz ele, “deve estar atento para perceber a Palavra de Deus presente nos textos bíblicos, inscrevendo-a dentro da fé da própria Igreja. A interpretação da Sagrada Escritura não pode ser meramente um trabalho científico individual, mas deve ser sempre confrontada, inscrita e autenticada pela tradição viva da Igreja”. Sobretudo, acrescenta: “Essa norma é decisiva para esclarecer a correta e recíproca relação entre a exegese e o Magistério da Igreja”. Isso pressupõe uma distinção entre: 1° as Escrituras; 2° a “tradição viva da Igreja”, tal como ele a entende; 3° o Magistério da Igreja. O restante de suas observações confirma essa suposição: “Os textos inspirados por Deus foram confiados à comunidade dos crentes, à Igreja de Cristo, para alimentar a fé e guiar a vida da caridade. O respeito por essa natureza profunda das Escrituras condiciona a própria validade e eficácia da hermenêutica bíblica”. A interpretação (ou “hermenêutica”) dos textos bíblicos deve, portanto, respeitar o fato de que “os textos inspirados por Deus foram confiados à comunidade dos crentes”, que, portanto, não são apenas os destinatários, mas também os depositários iniciais. O Papa [sic] tira a conclusão que necessariamente decorre disso: “Isso implica a inadequação de qualquer interpretação que seja subjetiva ou simplesmente limitada a uma análise incapaz de aceitar em si mesma esse significado global que, ao longo dos séculos, constituiu a Tradição de todo o Povo de Deus, que ‘in credendo falli nequit’ (Concílio ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, nº 12)”(6). Para o Papa [sic], a “tradição” deve, portanto, ser definida como o ato de todo o Povo de Deus que dá seu significado global aos textos inspirados.

Sob essa lógica, 1° as Escrituras são a Palavra de Deus presente nos textos bíblicos; 2° a “Tradição” é a vida coletiva do Povo de Deus, com todas as intuições que ela comporta, e que constantemente descobre na fé o significado global dessa Palavra, além da letra dos textos; 3° a “doutrina” é a conceitualização dessas intuições coletivas e sua expressão verbal.

Essa lógica foi claramente expressa dois anos depois, em 2015, em uma mensagem de vídeo que o Papa [sic] dirigiu ao Congresso Internacional de Teologia na Pontifícia Universidade Católica da Argentina. Lá, Francisco diz que “nossas formulações de fé são a expressão de uma vida vivida e expressa eclesialmente”. Há uma inversão aqui, e ela é extremamente grave. O Magistério, instituído por Cristo e assistido pelo Espírito Santo, deve desenvolvê-las e propô-las à adesão dos fiéis. Os fiéis levam uma vida santa na Igreja à medida que conformam suas ações a essas verdades reveladas por Deus e propostas à sua adesão por essas formulações do Magistério. É, portanto, por assim dizer, a vida vivida eclesiasticamente que é a expressão ou a tradução concreta, ou seja, a prática, das formulações da fé. Em contrapartida, para Francisco, as formulações da fé são a expressão da vida do Povo de Deus, o que supõe que é essa vida que representa não apenas a tradição viva da Igreja, no sentido da transmissão do que já foi revelado, mas também uma fonte da Revelação, no sentido de um modo de revelar a verdade. A Revelação é, portanto, identificada com a experiência ou consciência comum do Povo de Deus. Ela também é identificada com a tradição que comunica essa verdade revelada. Revelação e Tradição são um e o mesmo ato, o ato coletivo e eclesial do Povo de Deus, pois — como disse Francisco a Dominique Wolton — a Tradição é movimento, no sentido de uma Revelação incessante. E as formulações da fé são a expressão direta disso. O Papa [sic] também destaca que essas formulações são o resultado da experiência eclesial do diálogo com o mundo: “Nossas formulações de fé”, diz ele, “nascem do diálogo, do encontro, do confronto, do contato com diferentes culturas, comunidades, nações, situações que exigem maior reflexão diante do que não foi antes explicado”. E acrescenta: “Não nos esqueçamos de que o Espírito Santo no Povo que reza é o sujeito da teologia”. O sujeito da teologia, em outras palavras, a fonte de sua reflexão. E é por isso que, ele continua dizendo, “o teólogo é, antes de tudo, um filho de seu povo. […] Ele é o homem que aprende a valorizar o que recebeu como sinal da presença de Deus, pois sabe que a fé não lhe pertence. Ele a recebeu gratuitamente da Tradição da Igreja, graças ao testemunho, à catequese e à generosidade de diversas pessoas. Isso o leva a reconhecer que o Povo crente no qual ele nasceu tem um significado teológico que não pode ser ignorado. Ele sabe que foi incorporado a uma consciência eclesial e mergulha nessas águas”. E o Papa [sic] termina sua mensagem concluindo que, fortalecidos por essa ideia de tradição, “nos tornaremos cada vez mais parte desse Povo crente que profetiza, um Povo crente que proclama a beleza do Evangelho”.

Mas o que ocorre então com o Magistério e qual é o seu papel, senão o de manter essa vida do Povo crente em sua coesão, dando-lhe a expressão adequada do que vive eclesialmente, através das formulações da fé? O “Magistério” deve, portanto, ser definido como a função ministerial cuja tarefa é desenvolver essas formulações e empregá-las para devolver ao Povo de Deus a expressão conceitual e verbal que garante sua unidade. Basta reler a Encíclica Pascendi de São Pio X para notar que a ideia de Francisco sobre a Tradição e o Magistério está imersa no modernismo. O Decreto Lamentabili não condena a seguinte proposição (nº 6), a qual reflete precisamente o pensamento do atual Papa [sic]? “Na definição das verdades, a Igreja docente e a Igreja discente colaboram de tal modo que só resta à Igreja docente sancionar as concepções comuns da Igreja discente” (DS 3406).

Outros trechos da prédica do Papa [sic] confirmam a natureza modernista dessa ideia de Tradição.

A Tradição é o ato da vida do Povo de Deus

Em um Discurso proferido aos luteranos quatro anos mais tarde, o Papa [sic] deu esta outra definição de Tradição, que se liga à anterior e a torna ainda mais precisa: “A tradição refere-se ao verbo latino tradere, que significa registrar. Com efeito, a tradição não é algo de que temos de nos apropriar para nos distinguirmos, mas uma instrução que nos foi confiada para enriquecer-nos mutuamente. Somos sempre chamados a retornar à instrução original da qual o rio da Tradição flui: o lado perfurado de Cristo na cruz. Foi ali que Ele se entregou inteiramente a nós, entregando também o seu Espírito (cf. Jo, XIX, 30 e 34). É aqui que nossa vida como crentes começou, é aqui que encontramos nossa regeneração eterna. É aqui que encontramos a força para carregar os fardos e as cruzes uns dos outros. Precedidos e apoiados por todos aqueles que deram suas vidas por amor ao Senhor e a seus irmãos e irmãs, somos chamados a nunca nos cansarmos ao longo do caminho”(7). A ideia central dessa definição, que é no mínimo estranha, é sugerida por uma imagem: a de uma instrução da qual a Tradição brota como um rio, uma instrução que é o lado perfurado de Cristo: desse lado perfurado de Cristo brota precisamente (ainda estamos no nível de uma metáfora?) “nossa vida como crentes”. A Tradição seria uma vida? No pensamento de Francisco, ela se apresenta aqui como a vida coletiva do Povo de Deus, que brota de Cristo sob o impulso do Espírito Santo, a vida da comunidade dos crentes, que dá pleno significado aos textos inspirados da Escritura mediante uma experiência constantemente renovada.

A Tradição é o dinamismo da liberdade do Povo de Deus

Ainda dois anos depois, em uma catequese dada durante uma audiência geral, o Papa [sic] esclareceu seu pensamento — decididamente difuso — em outros termos. “Pense”, disse ele, “em como somos chamados a proclamar o Evangelho neste momento histórico de grande mudança cultural, quando a tecnologia cada vez mais avançada parece ter a vantagem. Se pretendermos falar de fé como fazíamos nos séculos passados, corremos o risco de não sermos mais compreendidos pelas novas gerações”(8). Isso está de acordo com o que João XXIII disse originalmente em seu discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 12 de outubro de 1962: “É necessário”, disse ele, “que essa doutrina, que é certa e imutável, e à qual se deve dar fiel assentimento, seja aprofundada e exposta como exigem nossos tempos — [ea ratione pervestigetur et exponatur, quam tempora postulant nostra]. Pois uma coisa é o depósito da fé, ou seja, as verdades contidas em nossa venerável doutrina; outra é a maneira pela qual elas são proclamadas, [contudo] sempre no mesmo sentido e significação”. O que Francisco está dizendo — que se presume ser a interpretação autêntica de seu predecessor — é que a nova expressão da mesma doutrina é comandada pela liberdade da fé: “A liberdade da fé cristã — a liberdade cristã — não indica uma visão estática da vida e da cultura, mas uma visão dinâmica, uma visão também dinâmica da tradição. A tradição cresce, mas sempre do mesmo modo. Portanto, não afirmamos estar de posse da liberdade. Recebemos um presente que devemos guardar. Ao contrário, é uma liberdade que exige que cada um de nós esteja em constante movimento, orientado rumo à sua plenitude. Essa é a condição dos peregrinos; é o estado dos viajantes, em um êxodo contínuo: libertados da escravidão para caminhar em direção à plenitude da liberdade. E essa é a grande dádiva que Jesus Cristo nos concedeu. O Senhor nos libertou da escravidão gratuitamente e nos colocou no caminho para trilharmos a liberdade”(9). Aqui encontramos novamente a mesma ideia: a “Tradição”, no sentido em que o Papa [sic] a compreende, é a expressão de uma vida, o que implica um dinamismo. Essa vida é o dom do Espírito, que impele o crente a caminhar como um peregrino em direção à plenitude, tornando-se cada vez mais livre para prosseguir. E essa afirmação repete a do Discurso anterior, dirigido dois anos antes aos luteranos, onde se fala da “instrução”, da qual brota, como que do lado trespassado de Cristo, uma exigência de vida. A elucidação fornecida por essa catequese, dois anos depois, é que essa exigência é a da liberdade. A Tradição é, então, a vida coletiva do Povo crente, que se torna cada vez mais livre em sua peregrinação terrena. E é o dinamismo dessa liberdade que deve falar ao mundo de hoje. E para que ele fale ao mundo, não devemos mais “proclamar o Evangelho como nos séculos passados”, mas sim explicar e aprofundar a doutrina que expressa esse dinamismo “como exigem nossos tempos”. É por isso que o novo Magistério do Vaticano II tem se esforçado para desenvolver formulações renovadas da fé, “seguindo os modos de investigação e formulação literária do pensamento moderno”(10). De João XXIII a Francisco, tudo se encaixa.

V. Na continuidade de Bento XVI

E isso também se aplica a Bento XVI. Em uma mensagem de vídeo de 2015 para o Congresso Internacional de Teologia na Pontifícia Universidade Católica da Argentina, o Papa [sic] Francisco fez referência explícita ao ensinamento de seu predecessor: “Há uma imagem proposta por Bento XVI de que gosto muito. Referindo-se à tradição da Igreja, ele afirma que ela “não é uma transmissão de coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A tradição é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes” (Audiência Geral, 26 de abril de 2006) (11). Esse rio irriga diferentes terras, alimenta diferentes geografias, extraindo o melhor daquela terra, o melhor daquela cultura. Desse modo, o Evangelho continua a se encarnar em todas as partes do mundo, de maneiras sempre novas (cf. Evangelii gaudium, n. 115)”. Essa catequese de Bento XVI, à qual Francisco está se referindo aqui, deve permanecer mais importante do que nunca. Nela, o predecessor do atual Papa [sic] dá uma definição de Tradição que é exatamente a mesma dada por seu sucessor, e esclarece de modo impressionante o assunto.

Em sua quinta alocução na Audiência de 26 de abril de 11 (12), Bento XVI disse: “Graças ao Paráclito, a experiência do Ressuscitado, feita pela comunidade apostólica nas origens da Igreja, poderá sempre ser vivida pelas sucessivas gerações, à medida que for transmitida e atualizada na fé, no culto e na comunhão do Povo de Deus, peregrino no tempo. […] É nessa transmissão dos bens da salvação, que faz da comunidade cristã uma atualização permanente, na força do Espírito, da comunhão original, que consiste a Tradição apostólica da Igreja”. A Tradição não é, portanto, primeiramente a transmissão de dogmas, o ensino perpétuo de verdades divinamente reveladas, ou a administração dos sacramentos e a celebração do culto. Ela é essa transmissão, mas à medida que prolonga a experiência comunitária das origens: por meio dessa transmissão, a comunhão de hoje continua a comunhão de ontem.

Um pouco mais adiante, Bento XVI dá uma segunda definição que expressa a mesma ideia: “Esta atualização permanente da presença ativa de Jesus, o Senhor, em seu povo, realizada pelo Espírito Santo e expressa na Igreja através do ministério apostólico e da comunhão fraterna, é o que se entende teologicamente pelo termo Tradição”(13). A Tradição, então, é a continuidade de uma presença ativa, a de Jesus que vive em seu Povo, realizada pelo Espírito Santo e significada através do serviço do ministério apostólico. O Papa [sic] insiste: a tradição, acrescenta, “não é simplesmente a transmissão material do que foi dado inicialmente aos Apóstolos, mas a presença efetiva do Senhor Jesus, crucificado e ressuscitado, que acompanha e guia no Espírito a comunidade que ele reuniu”(14).

Há ainda uma terceira definição: “A Tradição é a comunhão dos fiéis em torno de seus legítimos pastores no curso da história, uma comunhão que o Espírito Santo alimenta ao assegurar o vínculo entre a experiência da fé apostólica, vivida na comunidade original dos discípulos, e a experiência atual de Cristo em sua Igreja”(15). E, por fim, a quarta e última definição, aquela à qual Francisco se refere: “A tradição não é uma transmissão de coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A tradição é o rio vivo que nos liga às nossas origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz às portas da eternidade”(16).

Em sua sexta alocução na Audiência de 3 de maio de 2006, Bento XVI resumiu suas observações assim: “A Tradição Apostólica não é uma coleção de coisas, de palavras, como um caixão cheio de coisas mortas; a Tradição é o rio de vida nova que vem das origens, de Cristo para nós, e que nos faz participar da história de Deus com a humanidade”. E acrescenta um pouco mais adiante: “A Tradição é, portanto, a história do Espírito que atua na história da Igreja por meio da mediação dos Apóstolos e de seus sucessores, em fiel continuidade com a experiência das origens”(17).

Segundo essa catequese de Bento XVI, bem como o ensinamento de Francisco, a Igreja, o Povo crente, é originalmente uma comunidade reunida por Cristo, para a qual todas as pessoas são chamadas e na qual podem experimentar a salvação dada pelo Pai. É uma comunhão que o Espírito Santo alimenta no curso da história, garantindo o vínculo entre a experiência da fé apostólica, vivida na comunidade original dos discípulos, e a experiência atual de Cristo vivida em sua Igreja. A Tradição é a vivência da comunidade ao longo dos diferentes períodos de sua história, com os vínculos que ela implica entre esses diferentes períodos. É por isso que ela é viva e dinâmica. As formulações da fé são a expressão dessa experiência. Elas são necessárias para garantir a coesão dessa vida coletiva e dessa experiência eclesial, tanto no espaço quanto no tempo. E a missão do Magistério é desenvolver essas formulações. Nessa definição, a Igreja é, sobretudo, uma experiência coletiva. O ministério hierárquico é apenas sobreposto à essência da Igreja e está a serviço da comunhão que logicamente a precede no ser. A comunhão e o ministério são distintos e inseparáveis, assim como o são uma experiência e o que garante sua permanência no espaço e no tempo.

VI. A hermenêutica

Por isso, é completamente lógico pensar na “tradição” assim redefinida em termos de hermenêutica, como fez Bento XVI em seu Discurso-chave de 22 de dezembro de 2005. Diante da crise que abalou a Igreja desde o último Concílio, o Papa [sic] declarou: “Tudo depende da justa interpretação do Concílio ou — como diríamos hoje — de sua justa hermenêutica, a chave certa para lê-lo e aplicá-lo”. Os problemas da recepção surgiram do fato de que duas hermenêuticas opostas foram confrontadas e entraram em conflito”. O resto é bem conhecido. Bento XVI contrapõe duas hermenêuticas, a da “descontinuidade e da ruptura”, de um lado, e, de outro, “a hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos deu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, mas permanece sempre o mesmo, o único sujeito do Povo de Deus em movimento”.

Há uma ideia notável e essencial aqui, pois ela é a consequência necessária da nova ideia de Tradição, que serve como seu princípio, tanto em Bento XVI quanto em Francisco. A hermenêutica — ou seja, a interpretação ou a justa compreensão da tradição — refere-se à ruptura ou à renovação na continuidade em relação ao “único sujeito Igreja” — e não mais em relação ao objeto da verdade revelada. Com efeito, a tradição é definida precisamente como a experiência vivida desse sujeito único Igreja, o Povo de Deus em movimento de Bento XVI ou o Povo crente em peregrinação de Francisco. A tradição assimilada por Francisco à Igreja, ao Povo crente, não é outra coisa senão a experiência eclesial desse Povo, que “se esforça constantemente para alcançar a plenitude da verdade divina”.

Evidentemente, sabemos que, tendo a verdade divina sido revelada em sua plenitude na morte do último apóstolo, a Igreja docente a possui perfeita e definitivamente, e se, por sua vez, a Igreja docente tende a alguma plenitude que ainda não possui, esta só pode ser a plenitude da compreensão da verdade, e não a plenitude da verdade mesma. A declaração citada de Dei Verbum, portanto, peca gravemente por omitir duas distinções absolutamente fundamentais: distinção entre a Igreja docente e a Igreja discente, por um lado; distinção entre a verdade do depósito da fé confiada à Igreja docente e a compreensão da verdade na Igreja discente, por outro. A omissão dessas distinções abre a porta para o erro condenado com a proposição nº 5 do Syllabus de Pio IX: “A Revelação Divina é imperfeita e, por isso, sujeita a um progresso contínuo e indefinido que corresponde ao desenvolvimento da razão humana”. O mesmo erro também é condenado na proposição nº 21 do Decreto Lamentabili de São Pio X: “A Revelação, que é o objeto da fé católica, não foi encerrada pelos apóstolos”. Entretanto, a nova lógica do Vaticano II não concebe mais a “plenitude da verdade” no sentido objetivo até então previsto. A plenitude em questão deve ser entendida em um sentido subjetivo e imanentista, no sentido de que a verdade é a experiência nunca concluída do Povo crente, no vínculo incessante entre a experiência das origens e a experiência da Igreja hodierna.

A justa hermenêutica da renovação na continuidade é, pois, aquela que mantém a unidade do sujeito Igreja “ao assegurar”, diz Bento XVI, “o vínculo entre a experiência da fé apostólica, vivida na comunidade original dos discípulos, e a experiência atual de Cristo em sua Igreja”. Por outro lado, a hermenêutica da ruptura se encontra, aos olhos de Francisco, naqueles a quem ele se refere, em um recente Discurso de 2022, como “retrocedistas”, como aqueles que querem voltar atrás, “fora”, diz ele, “dessa direção vertical, na qual cresce a consciência moral, cresce a consciência da fé, com esta bela regra de Vicente de Lérins: ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Esta é a regra do crescimento. Em contrapartida, o retrocedismo conduz-lhe a dizer que sempre fizemos assim, é melhor continuar assim, e não lhe permite crescer”(18).

Isso nos leva de volta às Dubia apresentadas ao Papa [sic] pelos cinco cardeais no ano de 2023. “É possível”, perguntaram eles na primeira de suas cinco perguntas, “que a Igreja hoje ensine doutrinas contrárias às que ensinou anteriormente em matéria de fé e moral, seja pelo Papa ex cathedra, seja nas definições de um Concílio Ecumênico, seja no Magistério ordinário universal dos bispos dispersos pelo mundo? Apresentar a questão nesses termos é fazer parte do que Francisco não pode deixar de ver como a lógica de uma hermenêutica da ruptura, em uma abordagem radicalmente oposta àquela pretendida pelo Concílio Vaticano II, a abordagem exatamente destes tais “retrocedistas”.

Notas:

1. Francisco, “Discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional”, no Vaticano, quinta-feira, 24 de novembro de 2022.

2. Sobre este assunto, confira a edição de novembro de 2017 do Courrier de Rome, bem como o esquema elaborado em 1962 pela Comissão Preparatória do Concílio Vaticano II, “De fontibus revelationis”, capítulo I em Acta, série II, vol. III, pars I, p. 15 et seq., cuja tradução está sendo providenciada para publicação pela Editions du Courrier de Rome. Confira também Johann Baptist Franzelin, S.J., La Tradition divine, Courrier de Rome, 2008 e Louis Billot, Tradition et modernisme, Courrier de Rome, 2007.

3. Confira o artigo “Propos de table?” na edição de novembro de 2017 do Courrier de Rome.

4. Papa [sic] Francisco, Encontros com Dominique Wolton. Política e sociedade, Edições do Observatório/Humensis, 2017, p. 316.

5. Ibidem, p. 317-318.

6. Francisco, Discurso aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica, 12 de abril de 2013.

7. Francisco, Discurso a uma delegação da igreja luterana da Finlândia, 19 de janeiro de 2019.

8. Francisco, Catequese sobre a Epístola aos Gálatas na Audiência Geral de 13 de outubro de 2021.

9. Ibidem.

10. João XXIII, Alocução ao Sacro Colégio, 23 de dezembro de 1962.

11. Sobre essa catequese de Bento XVI e sobre a ideia de Igreja e Tradição que ela implica, os leitores podem conferir nossa contribuição ao Congresso de janeiro de 2007 do Courrier de Rome, “La notion d’Eglise dans la catéchèse de Benoît XVI” em Les crises dans l’Eglise aujourd’hui: les causes, effets et remèdes. Actes du VIIe Congrès théologique de Sì Sì No No en partenariat avec l’Institut Universitaire Saint Pie X et DICI, Paris, 5–6–7 de janeiro de 2007, Publicações do Courrier de Rome, 2008.

12. Bento XVI, “A comunhão no tempo: a Tradição”, Discurso de 26 de abril de 2006, em L’Osservatore Romano nº 18, 2 de maio de 2006, p. 12.

13. Bento XVI, ibidem.

14. Bento XVI, ibidem.

15. Bento XVI, ibidem.

16. Bento XVI, ibidem.

17. Bento XVI, ibidem.

18. Francisco, Discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, 24 de novembro de 2022.

Trad. por Dominicus; da edição n. 670 do “Courrier de Rome”.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑