A FÉ INTEIRA, NADA ALÉM DA FÉ

Padre Hervé Belmont
2011

[N.d.E.: Não estamos de acordo com a parte onde o Rev. Pe. Belmont trata sobre as sagrações (ainda que esteja certo em partes devido a abusos de muitas linhagens. No entanto, acreditamos que podemos sim aplicar a epiqueia na atual situação para manter as missões de caridade. O texto aqui servirá como parte do tesouro de escritos sedevacantistas para serem lidos e consultados.]

Certos católicos dão a impressão, às vezes, de estar obnubilados pela “questão do Papa” e de imaginar que todos os problemas da Igreja se resumem ao status e à personalidade de Bento XVI. Outros alardeiam uma indiferença que se quer sábia e ponderada. Ainda outros inventam falsas doutrinas que lhes permitem, creem eles, fazer a espargata e manter unidas coisas contraditórias. Muitos, enfim, haurem sua “ciência”, não das fontes autorizadas que são os atos do Magistério e os auctores probati, mas de publicações de segunda mão, o mais das vezes bem superficiais, ou pior: em fóruns onde são os ignorantes que pontificam sem vergonha.

Quando se trata, pois, do problema da autoridade, da realidade do poder pontifício, da ocupação da Sé Apostólica, que atitude se deve ter, então, para conhecer o que é verdadeiro e salutar, e para ser habitado pelo amor da verdade?

A justa medida de cada coisa é difícil de assinalar, mas não há que se velar a face: encontramo-nos perante uma questão que se põe à fé católica, à virtude teologal da fé de cada um de nós. Essa questão talvez não seja concretamente a mais urgente, mas é impossível de não se deparar com ela um dia, porque o Soberano Pontífice é a regra viva da fé católica e porque é necessário obedecer-lhe para pertencer à Santa Igreja. Esqueceu-se em demasia desses dois últimos pontos, que no entanto pertencem à doutrina permanente, certa e mil vezes ensinada pela Igreja.

Se se reconhece a autoridade apostólica em Bento XVI, o dilema é inelutável:
— ou se adere ao seu ensinamento e ao seu governo, como se deve fazer com um Papa; professa-se então doutrinas que foram solenemente condenadas pela Igreja, admite-se a reforma litúrgica e sacramental infestada de protestantismo; aceita-se os frutos trazidos pelo Vaticano II…;
— ou se recusa aos erros e reformas, mas não se o pode fazer senão ao preço de uma negação da doutrina católica sobre a autoridade e a infalibilidade do Soberano Pontífice e da Igreja.

Na hipótese desse reconhecimento de Bento XVI, não há terceira via possível, e as duas que acabo de enunciar levam a erros, diversos talvez, mas ambos bem caracterizados; e igualmente condenados pelo Magistério certo, infalível, permanente da Santa Igreja Católica Romana. A fé católica e a doutrina certa da Igreja levam, portanto, a negar a autoridade de Bento XVI, a afirmar que ele está privado daquela assistência particular de Jesus Cristo que constitui a autoridade específica do Papa. Essa negação não é a conclusão de um juízo pessoal (bem frágil e inadequado), mas ela se deve a uma impossibilidade de exercer a virtude da fé a respeito dele e sob a influência dele.

Não se trata aqui de um juízo sobre a pessoa de Bento XVI, mas simplesmente da impossibilidade, no exercício mesmo da fé, de reconhecer sua autoridade. De minha parte, detenho-me aí; não quero ir além daquilo a que a fé me obriga (pois creio ser “teologalmente” impossível de ir mais longe, mas esta é uma outra história). É por isso que considero verdadeira a “Tese de Cassicíaco”, que, reconhecendo que Bento XVI assegura um “prolongamento” da Sucessão Apostólica (ele é papa materialiter), comprova que ele está privado da autoridade pontifícia (ele não é Papa formaliter) e conclui que o testemunho da fé obriga a abster-se de todo ato que fosse um reconhecimento dessa autoridade.

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Dentre esses atos, existe um especialmente grave, porque é cotidiano e toca no coração do coração da Igreja: o Cânon da Santa Missa.

O Cânon da Santa Missa é a oração mais preciosa, mais solene e mais eficaz de toda a liturgia católica; ele está no coração do mistério da fé, que ele realiza e exprime perfeitamente. A sua santidade e a sua ortodoxia são garantidas por um Cânon do Concílio de Trento (Sessão XXII, cânon 6).

A Missa é oferecida pela Igreja, por esta Igreja que é identificada pelo Soberano Pontífice: …Ecclesia tua sancta catholica… una cum famulo tuo Papa nostro… A Missa é o ato soberano de adesão à Igreja, na ação mesma em que a Igreja oferece o sacrifício que é a sua razão de ser.

A menção do Soberano Pontífice no Cânon concerne, pois, diretamente à catolicidade do Santo Sacrifício, do celebrante, dos assistentes. Exprime a adesão que cada católico deve ter ao Papa regra viva da fé e detentor da plenitude do poder de Ordem na Igreja. Ela realiza (ela torna real) nossa pertença à Igreja una cum o Vigário de Jesus Cristo.

A menção do Soberano Pontífice é, pois, um ato de vassalagem ao Papa, um ato de pertença à Igreja da qual o Papa é o cabeça que possui na pessoa dele a plenitude da Autoridade, e é um ato de fidelidade de especial eficácia, pois estamos no coração do sacramento por excelência. Essa menção é, por conseguinte, um ato grave que diz respeito tanto ao sacerdote celebrante quanto aos fiéis participantes, pois ela explicita a união à Igreja na sua ação mais nobre e mais fundamental. É bem evidente que o caráter católico da Missa não suporta a menção de Bento XVI no Cânon.

Assim como é-me impossível nomear Bento XVI no Cânon da Missa, é-me impossível deixar crer que eu o faça, é-me impossível favorecer por minha atitude algum indiferentismo (doutrinal ou prático) a essa questão – que professo, pelo contrário, ser crucial para a fidelidade católica.

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Mais ainda, em razão dessa vontade de me ater ao que é exigido pela fé católica, e de nada fazer nem aprovar que seja contrário a ela, oponho-me firmemente a toda consagração episcopal realizada sem mandato apostólico: uma tal sagração se me manifesta irremediavelmente contrária à constituição hierárquica da Santa Igreja Católica. Em consequência, recuso tudo o que, na ordem sacramental, decorre de tais sagrações.

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Com a graça de Deus e malgrado todas as minhas deficiências, esforço-me em não ter posição pessoal, mas em me adequar ao máximo à doutrina católica em toda a sua amplidão, apoiando-me nos fatos comprovados e rejeitando deliberadamente os rumores oficiosos e as questões de pessoas. O resultado parece-me referir-se à fé católica, e toda outra posição se me manifesta, num ou noutro ponto, incompatível com a fé tal qual a Igreja a ensina, a entende e pratica. Essa posição é, portanto, para mim regra de conduta imperativa, incessantemente presente e esclarecedora, para toda a minha conduta e para tudo o que se passa sob minha responsabilidade.

Mas essa convicção não pode ter influência além daí, senão pelos argumentos que ela traz e a coerência que manifesta; ela não pode, em caso algum, substituir-se à autoridade do Magistério e do Governo da Igreja, e portanto não me permite julgar e condenar as pessoas que difiram de parecer. O fato de não possuir nenhuma autoridade especial não dispensa, contudo, do dever de denunciar o erro e o mal: é questão de zelo pela glória de Deus e de caridade com o próximo, e até mesmo de justiça quando o silêncio aparentasse aprovação. Quem vê o perigo e se cala, podendo apontá-lo sem provocar mal mais grave, é um cão dos mais desprezíveis: um cão mudo.

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Passo ao problema prático, pois se poderia objetar-me (e com alguma razão) que os dois graves problemas do una cum Benedicto e da ordenação sacerdotal recebida de um bispo sagrado sem mandato apostólico são problema do padre; quanto aos fiéis, eles só teriam de se preocupar com isto: que os padres sejam validamente ordenados, que eles não estejam separados da Igreja Católica e que eles utilizem o rito tradicional.

É verdade que o problema fundamental é do sacerdote: ele é quem recebeu as Ordens, ele é quem pronuncia o una cum. No que lhe concerne, está claro: ele não tem direito algum de exercer um sacerdócio recebido em contradição com a constituição divina da Igreja (e por vezes duvidoso, que ninguém se engane); ele não tem direito algum de prestar vassalagem a uma pseudo-autoridade, e de prestá-la na oração mais solene de toda a Igreja, o Cânon da Missa. É grave, é ilícito e, com a graça de Deus, mais valeria sofrer a morte que profanar assim as coisas mais santas.

O problema do fiel assistente é um pouco diferente daquele do sacerdote celebrante; é um problema de cooperação: estando presente à Missa nessas circunstâncias, o fiel não age, ele próprio, segundo a dupla ilicitude que acabo de evocar, mas ele coopera com ela.

Querendo-se saber se isso é permitido aos olhos da lei do Bom Deus, cumpre considerar as leis gerais da cooperação:

— a cooperação formal nunca é permitida. Chama-se cooperação formal aquela que aprova o mal, aquela que tem como objeto o mal mesmo, do qual a pessoa se torna deliberadamente cúmplice;
— a cooperação material imediata não é permitida, tampouco: ela é obra daquele que, embora desaprovando o mal, toma parte decisiva no ato delituoso mesmo;
— a cooperação material próxima – que tem lugar quando, sem tomar parte no ato delituoso, se o torna possível atuando sobre as condições necessárias para a sua existência, ou quando se assiste ativamente no caso da Missa – exigiria razões gravíssimas e raríssimas, realmente excepcionais;
— a cooperação material remota (mais ou menos remota: trata-se da cooperação com as condições que facilitam a realização do ato delituoso; ou, no caso da Missa, da assistência passiva) não pode ser lícita a não ser com razão proporcionada (proporcionada à gravidade do mal, à proximidade da cooperação e ao escândalo a que isso possa induzir).

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Apliquemos isso à Missa una cum ou celebrada por um neo-sacerdote (quero dizer um padre ordenado por um bispo sagrado sem verdadeiro mandato apostólico).

Toda cooperação formal deve ser rejeitada sem hesitação. Quem escolhe assistir à Missa una cum ou à de um neo-sacerdote coopera formalmente com a grave distorção (eventualmente dupla) que tem lugar com relação à santidade da Missa, à unidade da fé, à constituição divina da Igreja. É uma grave deficiência na fé. E escolhe-se toda vez que se poderia fazer de outro modo, ainda que ao preço de um esforço significativo (distância, horário…) ou de superar uma grande repugnância, uma antipatia etc.

É impossível prestar cooperação material imediata, como seria a de desempenhar o ofício de diácono.

A cooperação material próxima ou remota é, também ela, interdita, salvo tendo razão grave para seguir em frente, salvo portanto não se podendo fazer de outro modo. E essa razão grave deve ser proporcionada, e há que evitar o escândalo, e há que combater os efeitos maus em si mesmo (pois é preciso não se iludir: a vassalagem mesmo indireta e detestada a Bento XVI, a habituação ao atentado à unidade hierárquica da Igreja que constituem as sagrações sem mandato, tudo isso deixa marcas profundas na alma e na integridade da fé católica, malgrado nossas reticências). Além disso, caso algum dia se assista a uma Missa “distorcida”, cumpre detestar interiormente a distorção, para evitar cooperação formal.

Quanto mais próxima e habitual for a cooperação, mais será preciso que a razão seja grave. Compreendeis que pode haver aí diferenças de apreciação[1], e que cada qual deve decidir diante de Deus, por si mesmo e por aqueles de que ele carrega a responsabilidade, com muita pureza de intenção e fé esclarecida.

[1. Essa apreciação deve afastar toda razão mundana, isso vai de si: mais vale a sociedade de Deus pela integridade da fé, que a sociedade dos homens, por mais amáveis que os suponhamos. Cumpre notar que, se formos vítima de uma espécie de chantagem (chantagem na escola, por exemplo), o dever de testemunhar a fé torna-se ainda mais imperioso. Assim, para tomar um exemplo num domínio inteiramente outro, tenho o direito (e mesmo o dever) de comer carne em dia de abstinência se isso me salva a vida; mas tenho o dever de não comê-la se alguém ameaça a minha vida para me fazer faltar ao preceito da abstinência.]

Quanto mais a cooperação arrisca ser próxima e habitual, mais se haverá de buscar escapar dela, às custas da sua tranquilidade, do seu conforto ou do seu bolso.

Quanto mais a cooperação for próxima e habitual, mais será preciso detestar interiormente, e prestar tendo oportunidade o testemunho exterior desse desacordo.

Quanto mais a cooperação for próxima e habitual, mais será preciso tudo empreender para não se habituar (pois o hábito modifica o julgamento), mais será preciso instruir-se para não se deixar arrastar às falsas doutrinas subjacentes ao una cum e às sagrações sem mandato.

Há um último ponto sobre o qual chamo vossa atenção: não diz respeito diretamente à assistência à Missa, mas à frequentação dos meios una cum ou sem mandato. São muitas vezes pessoas virtuosas, dignas e simpáticas: mas há precisamente o perigo de ser atraído por simpatia às suas falsas doutrinas sobre o magistério, sobre a jurisdição e sobre a necessidade da obediência na Igreja, ou no mínimo de deixar de atribuir a importância necessária a esses pontos doutrinários gravíssimos. A desenvoltura em face daquilo que a Igreja considera pontos cruciais da ortodoxia católica tem, com frequência, efeitos deletérios nos que não se mantêm em guarda absoluta na matéria. Uma certa mentalidade de “livre-exame” apodera-se facilmente daqueles que os frequentam.

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— Por que então, no que precede, pondes no mesmo plano a pronunciação do una cum Benedicto no Cânon da Missa, e o fato de ter sido ordenado por um bispo desprovido de mandato apostólico?
— Nos dois casos, trata-se de um profundo atentado à catolicidade do Santo Sacrifício: seja da parte da unidade da hierarquia, seja da parte da integridade da fé, e há numerosas pontes entre os dois.

Minha teologia é um pouco curta para discernir com certeza e precisão qual seja a mais grave dessas duas carências, mas estimo, sem embargo, que são da mesma ordem (da mesma desordem).

Passando da ordem do ser à do conhecimento, vê-se que a Igreja pronunciou-se com muito mais frequência e mais gravemente contra as sagrações sem mandato do que ela legiferou sobre o una cum.

Quanto ao una cum, não conheço, além das rubricas, senão o Papa Pelágio I (556-561), que enuncia-lhe a extrema gravidade ao afirmar que omiti-lo é separar-se da Igreja universal (citado por Inocêncio III, de Mysteriis Missæ, P.L. CCXVIII, col. 844; e por Lebrun, Explication… de la Messe, tomo I, Paris, 1726, pp. 327-328). Além disso, é necessária uma inferência para aplicá-lo a Bento XVI e consortes (o que não impede que isso seja grave e necessário).

Ao passo que, em matéria de sagrações, o direito e a prática da Igreja são explícitos, assim como o é seu ensinamento permanente: de Pio VI, de Leão XIII e de Pio XII, para falar dos mais recentes.

Trad. por Felipe Coelho

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