O VERDADEIRO SENTIDO DO CÂNON VICENTINO

Cardeal Johann Baptist Franzelin, S.J.
1875

Tese XXIV. Sobre o verdadeiro sentido do Cânon Vincentino

1. O Cânon [ou regra teológica] de São Vicente de Lerins (Commonitorium capítulos 2, 4, 27 e 29) que designa a universalidade, a antiguidade e o consenso da fé como características da doutrina católica é perfeitamente verdadeiro em sentido afirmativo. Noutras palavras, uma doutrina que traga essas notas distintivas é certamente um dogma da fé católica. Ele [esse Cânon] não é verdadeiro, todavia, em sentido exclusivo, isto é, se for entendido como significando que nada pode pertencer à fé católica que não tenha sido explicitamente crido sempre, por toda parte e por todos.

2. No contexto do próprio Commonitorium, o sentido da regra é simplesmente afirmar duas notas, cada uma das quais suficiente para provar a antiguidade absoluta, ou apostolicidade, de uma doutrina, a saber: (a) o consenso presente da Igreja, e (b) o consenso de antiguidade relativa, ou seja, aquele que existia antes de surgir a controvérsia.

I.

O Cânon em questão é enunciado por São Vicente de Lerins nos seguintes termos: “Ademais, na própria Igreja Católica, todo o cuidado possível deve ser tomado para que aceitemos aquela fé que foi crida por toda parte, sempre, por todos. Pois isso é verdadeira e propriissimamente católico… Essa regra nós observaremos se seguirmos a universalidade, a antiguidade e o consenso.” (Capítulo 2). Note-se, primeiro, que a referência não é a todos e quaisquer pontos que sejam aceitos e observados dentro da Igreja irrespectivamente da maneira como são aceitos. É àqueles que são cridos, isto é, aceitos com fé. Ora, uma coisa pode ser crida de uma ou de outra dentre duas maneiras: explicitamente, ou somente implicitamente. Tudo aquilo que está contido no depósito da revelação objetiva certamente foi crido ao menos implicitamente por toda parte, sempre e por todos os católicos, e nada pode estar contido no depósito da revelação que não seja crido assim. De imediato se deixaria de ser católico, caso não se estivesse pronto a crer em tudo o que lhe foi suficientemente proposto como divinamente revelado; ou ainda, caso o seu hábito da fé não se estendesse ao assentimento que deve ser prestado a tudo o que está incluído na revelação. Mas nesse sentido “ter sido crido sempre e por toda parte” não pode ser dado como critério e pedra de toque teológica para reconhecer o que está contido na revelação, pois objetos de fé implícita não são em si mesmos conhecidos como revelados. E, por outro lado, investigar se alguma coisa foi crida ao menos implicitamente por toda parte, sempre, por todos, é o mesmo que investigar se ela está contida na revelação objetiva e Tradição; e ela precisa, portanto, ser demonstrada à luz de algum outro critério: ela não pode ser ela própria um meio de demonstrá-la. Logo, embora seja verdadeiro, tanto em sentido afirmativo como em sentido exclusivo, que pertence ao depósito da fé tudo aquilo que ao menos implicitamente foi crido por toda parte, sempre e por todos, e que nada pertence a este depósito que não tenha sido crido assim, contudo não pode ser esse o sentido do Cânon Vicentino. Donde se segue que o critério proposto só pode ser entendido da fé explícita. Ora, foi demonstrado na tese anterior que um consenso universal no reconhecimento de algum dogma como doutrina de fé, em qualquer período que esse consenso possa existir, é um critério certo de que a doutrina foi divinamente transmitida.[93] Não há dúvida, portanto, de que uma tal concordância ou consenso na antiguidade prova Tradição divina, e que o consenso universal em todas as épocas o faz com máximo esplendor.[94] Logo, o que quer que tenha sido crido sempre, por toda parte e por todos só pode ter sido revelado e divinamente transmitido.

Todavia ficou igualmente provado, no que precede, que certos pontos de doutrina podem estar contidos no depósito da revelação objetiva que não estiveram contidos sempre na pregação manifesta e explícita da Igreja, e que enquanto não foram suficientemente propostos era possível que fossem objeto de controvérsia dentro das fronteiras da Igreja sem perda da fé e da comunhão.[95] Logo, um dado ponto de doutrina pode estar contido na revelação objetiva e pode também, com a passagem do tempo —quando tiver sido suficientemente explicado e proposto—, passar a pertencer àquelas verdades que necessariamente devem ser cridas com fé católica, ao mesmo tempo todavia que essa verdade, embora sempre contida no depósito da revelação, não tenha sido crida explicitamente sempre, por toda parte e por todos; nem tampouco houvesse qualquer necessidade de que fosse crida assim. Portanto, bem que as notas listadas no Cânon, se estiverem presentes, constituem prova manifesta de que a doutrina a que se referem é um dogma da fé católica, a ausência delas não prova necessariamente, de jeito nenhum, que uma dada doutrina não estava contida no depósito da fé; nem, tampouco, prova que uma doutrina que, por falta de proposição suficiente, num dado tempo não necessitava ser crida explicitamente, não possa nalgum outro tempo ser objeto de crença obrigatória. Logo, o Cânon é verdadeiro em sentido afirmativo, mas não pode ser admitido em sentido negativo e exclusivo.

II.

Considerando-se o Cânon no contexto, e juntamente com as explicações apresentadas por São Vicente, fica manifesto que o sentido dele é o seguinte:

a) A antiguidade absoluta ou apostolicidade de uma doutrina não é proposta como nota por meio da qual se prove algo mais; ela é que é o ponto que está sendo investigado!
b) Como sinais pelos quais pode ser conhecida a apostolicidade de uma doutrina, são propostas duas características: (i) a universalidade, isto é, o consenso presente da Igreja, e (ii) o consenso da antiguidade,[96] que deve ser entendido em sentido relativo, isto é, um consenso que se demonstrou ter existido antes que a controvérsia surgisse. Com qualquer uma dessas duas notas, a antiguidade absoluta pode ser conhecida e inferida. Pois quando, em virtude quer de um juízo solene do magistério autêntico (seja de um Concílio ecumênico ou do Papa) ou então pela pregação unânime da Igreja, um consenso presente universal está claro e manifesto, somente isso já basta, por si só; mas se pelo surgimento da controvérsia esse consenso se tornasse menos aparente ou não fosse reconhecido pelos adversários que têm de ser confutados, aí então — afirma Vicente — deve-se recorrer ao consenso manifesto da antiguidade, ou então a juízos solenes, ou às convicções consensuais dos Padres.

Finalmente, se em alguma altercação polêmica os hereges chegassem ao ponto de nem sequer venerar a autoridade do Padres anteriores, ele admite que não nos sobra qualquer princípio comum, entre eles e nós, salvo a autoridade da Escritura. Que a interpretação que precede é a verdadeira está claro pelo inteiro contexto do Commonitorium de São Vicente.

a) Ele diz que se deve aceitar “aquilo que foi crido por toda parte, sempre e por todos”, sem distinguir se isso foi crido assim implícita, ou explicitamente (Capítulo 2). Mas aí então ele indica notas pelas quais podemos vir a saber se alguma coisa foi assim crida por toda parte, sempre e por todos, e essas notas são: a universalidade, a antiguidade e o consenso. “Essa regra nós observaremos se seguirmos a universalidade, a antiguidade, o consenso.” Donde, “aquilo que foi crido por toda parte, sempre e por todos” não é um critério [do dever de crer] mas, sim, é algo a ser demonstrado mediante critérios distintos, a saber: a universalidade, a antiguidade e o consenso.

b) O que Vicente quer dizer com universalidade, ele imediatamente explica: “Nós seguiremos a universalidade se confessarmos ser verdadeira aquela fé única que a Igreja inteira pelo mundo todo confessa.” Por onde, universalidade é o consenso da inteira Igreja, e, enquanto distinta da nota de antiguidade, ela é o consenso da Igreja neste tempo presente quando já surgiu a controvérsia. Isso fica manifesto pelo Capítulo 3, no qual Vicente contrasta a universalidade, enquanto consenso presente que pode ser perturbado por erros recém-inventados, com a antiguidade, ou seja o consenso da época anterior “que hoje já não pode mais ser seduzida por fraude ou novidade alguma”. Ademais, no Capítulo 29, ele afirma que o consenso universal tem de ser seguido “para que nós … não sejamos arrancados da integridade da unidade e arrastados ao cisma”, coisa que ele ilustra no Capítulo 4 pelo exemplo dos católicos na África que, “detestando o cisma profano [de Donato], continuaram em comunhão com todas as igrejas do mundo [que estavam naquele tempo em acordo].”

c) A nota de antiguidade é entendida por Vicente no sentido de antiguidade relativa, mediante a qual a antiguidade absoluta ou apostolicidade deve ser inferida: isso está claro por toda a maneira de argumentar dele. Pois ele invariavelmente situa a antiguidade no juízo dos Padres e Concílios precedentes — juízo existente antes do aparecimento da heresia a ser refutada ou da controvérsia a ser dirimida. “Na antiguidade mesma…, à temeridade de um ou de pouquíssimos, eles devem preferir, primeiro que tudo, os decretos gerais, se os houver, de um Concílio Universal, ou se não houver nada do tipo, aí então, a segunda melhor coisa: devem eles seguir a crença concorde de muitos e grandes mestres.” (Capítulo 27).[97] E, no Capítulo 28, ele afirma que, às heresias antigas, devemos opor concílios realizados antes que essas heresias surgissem, ao passo que, se até mesmo esses concílios forem condenados pelos hereges, resta apenas a fonte comum da Escritura, para ser utilizada na discussão contra eles.

d) Finalmente, São Vicente de Lerins ensina claramente por toda parte que qualquer uma dessas duas notas — isto é, o acordo universal e o consenso da antiguidade — é suficiente para demonstrar a apostolicidade de uma doutrina. Assim, no Capítulo 3, ele escreve: i) “O que fará então um cristão católico se uma pequena porção da Igreja tiver se separado da comunhão da fé universal? O que senão, certamente, preferir a saúde do corpo inteiro à insalubridade de um membro corrupto e pestilento?” (Aqui, consenso universal se opõe a erro local.) ii) “E se algum novo contágio procurar infectar não meramente uma porção insignificante da Igreja, mas o todo? Aí então, o cuidado dele estará em aferrar-se à antiguidade.” (Aqui, recorre-se à antiguidade no caso de as controvérsias contemporâneas terem turvado as águas e tornado difícil de provar por ora a crença da Igreja universal.) Logo, não pode haver dúvida alguma de que o verdadeiro sentido do Cânon Vicentino é o sentido explicado em nossa tese. Qualquer doutrina que não esteja respalda por nenhuma dessas duas notas tem de ser considerada, na melhor das hipóteses, como não tendo sido ainda suficientemente proposta à fé católica; e uma doutrina que repugne a qualquer uma das duas notas tem de ser considerada uma novidade profana.

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93. Ver as Teses V, n. iii; VIII, nn. i, ii; o Corolário i à Tese IX; a Tese XI, n. ii.

94. Ver as Teses XIV e XV.

95. Ver o Corolário ii à Tese IX e a Tese XXIII.

96. A divisão aparentemente tripartida de Vicente em certos capítulos: universitas, antiquitas, consensio, na realidade contém não três, mas só duas partes distintas, como se evidencia pela explicação do próprio autor e, no Capítulo 29 (isto é, na Recapitulação que é tudo o que subsiste do segundo Commonitorium), ele próprio reduz as três a duas: “Cumpre atentar para a voz consensual da universalidade (em pé de igualdade) com a da antiguidade.”

97. Não existe fundamento algum para enxergar nesta ou noutras passagens de São Vicente de Lerins erro contra a autoridade infalível das definições do Romano Pontífice. A intenção de São Vicente é expor critérios de apostolicidade doutrinal não somente para benefício dos católicos, mas também para utilização polêmica contra as novidades dos hereges — critérios que ninguém será capaz de recusar.
a) Ele oferece esses critérios contra “somente … aquelas heresias que sejam novas e recentes, e isso ao erguerem-se elas pela primeira vez” (Capítulo 28). Assim, dado o pressuposto dele de que nenhum juízo direto tenha sido ainda proferido contra elas, ele não podia apropriadamente recorrer a uma definição papal, tampouco.
b) Os critérios que ele aduz são inteiramente verdadeiros. A escolha deles por ele não implica que ele negue e exclua outros critérios que possam ser aplicáveis conforme as circunstâncias.
c) Nos critérios que ele apresenta, o juízo autêntico da Sé Apostólica está no mínimo implicitamente incluído. Pois quando um tal juízo existe, ou ele declara autenticamente a universalidade ou então a antiguidade do consenso, ou ele com certeza acarreta a universalidade. Por onde, se subsiste definição pontifícia promulgada na antiguidade (pois é da antiguidade que se trata imediatamente aqui), sempre será possível recorrer à “crença concorde de muitos e grandes mestres” (Capítulo 27).
d) Para Vicente de Lerins, tal como para Ireneu antes dele, é suficiente recorrer à autoridade da Sé Apostólica para provar a apostolicidade de uma doutrina. Ele deixa isso bastante claro no Capítulo 6: “Sempre foi o caso, na Igreja, que quanto mais um homem está sob influência da religião, tanto mais pronto ele é a opor-se às inovações. Há disso exemplos sem conta: mas, para ser breve, tomaremos um, e este de preferência aos demais, da Sé Apostólica, para que fique mais claro do que o dia, para todos, com que grande energia, com que grande zelo, com que grande afinco os bem-aventurados sucessores dos bem-aventurados Apóstolos [ou seja, os Romanos Pontífices] defenderam constantemente a integridade da religião uma vez recebida.” Ele relata então a inovação dos rebatizadores de Agripino de Cartago, antes de prosseguir nos seguintes termos: “Quando, então, todos os homens protestaram contra a novidade, e o sacerdócio por toda parte, cada um na medida em que seu zelo o impeliu, contrapôs-se a ela, o Papa Estêvão de santa memória, Prelado da Sé Apostólica, em conjunção de fato com seus colegas mas todavia ele o principal, impugnou-a, julgando digno, não duvido, que assim como ele superava a todos outros na autoridade de sua posição [“loci auctoritate superabat”], assim ele devia também na devoção de sua fé. No final, em uma epístola enviada na ocasião à África, ele estipulou esta regra: Não haja inovação alguma — nada além do que foi transmitido… Qual foi então o resultado de toda a questão? Qual outro, senão o usual e costumeiro? A antiguidade foi conservada, a novidade foi rejeitada.”

Trad. de Felipe Coelho, da trad. inglesa feita por John S. Daly, do: De Divina Traditione et Scriptura (Roma, 1875), Thesis XXIV. De vero sensu canonis Vincentiani.

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