Frei Martinho de Cochem, O.F.M. Cap.
1677
Na companhia do inferno
Existem muitos pecadores ousados que, quando são punidos por seus crimes e ameaçados com o fogo do inferno, costumam responder audaciosamente: “Aonde quer que eu vá, de qualquer forma não terei falta de companhia”, como se a presença de outros pudesse permitir qualquer consolo para eles ou qualquer alívio de seu tormento. A fim de que esses pecadores desavergonhados vejam como estão errados ao falar assim, e quão pouco motivo eles têm para antecipar qualquer alívio da companhia em que se encontrarão, este capítulo será dedicado a mostrar-lhes quão lamentável essa companhia será e como isso agravará sua miséria.
A sociedade dos condenados consiste em demônios e almas perdidas. Ambos são incontáveis em número. Quanto à sociedade dos demônios, ela é tão detestável que pode ser considerada a pior penalidade para os condenados ao inferno. Esse lugar de tormento seria muito menos merecedor desse nome se não houvessem demônios nele. Por causa da multitude de demônios lá existentes, a tamanha confusão, a tamanha tristeza, a tamanha miséria, a tamanha tirania prevalecem, o que é de partir o coração só de pensar nisso.
Nós, mortais, não temos pior inimigo do que o diabo, que nos odeia com um ódio tão intenso que anseia a cada momento que caiamos no abismo da perdição. E quando finalmente consegue ter alguém sob seu poder, ele lida com ele de forma mais bárbara do que um déspota selvagem jamais tratou seu pior inimigo.
Toda a inveja e ódio que no momento de sua queda o diabo concebeu contra Deus e que não pode sobre Ele descarregar, os arremessa sobre os condenados, atormentando-os com pragas tais que só o pensar sobre elas faz o sangue de um homem gelar. Mesmo que os demônios não fizessem nenhum mal aos condenados, o simples fato de morar com eles por toda a eternidade seria uma miséria tão terrível para os infelizes pecadores, que o horror de sua situação seria como uma morte contínua para os condenados ao inferno.
De todos os espíritos caídos, nenhum é tão abominável quanto o chefe de todos, o arrogante Lúcifer, cuja crueldade, malícia e rancor o tornam um objeto de pavor não apenas para os condenados, mas também para os demônios que estão sujeitos a ele. Este Lúcifer é chamado por vários nomes nas Sagradas Escrituras, todos indicando sua malignidade. Por causa de sua repulsa, ele é chamado de dragão; por causa de sua ferocidade, de leão; por causa de sua malícia, de a antiga serpente; por causa de seu engano, de o pai da mentira; por causa de sua arrogância, de rei de todos os filhos do orgulho; e por causa de seu grande poder e força, de o príncipe deste mundo.
Ouça o que os Padres da Igreja e alguns exegetas das Sagradas Escrituras dizem sobre a aparência terrível que Satanás apresenta. Eles aplicam a ele a descrição dada do leviatã no livro de Jó: “Quem levantou a dianteira de sua couraça? Quem penetrou na dupla linha de sua dentadura? Quem lhe abriu os dois batentes da goela? Em torno dos seus dentes, só terror! Sua costa é um aglomerado de escudos, cujas juntas são estreitamente ligadas: uma encaixa na outra, nem sequer o ar passa por entre elas; uma adere tão bem à outra, que são encaixadas sem se poderem desunir. Seu espirro faz jorrar a luz e seus olhos são como as pálpebras da aurora. De sua goela saem chamas e escapam centelhas ardentes. De suas ventas sai fumaça como de uma panela que ferve entre chamas. Seu hálito queima como brasa e a chama jorra de sua goela. Em seu pescoço reside sua força, diante dele salta o espanto. As dobras de seus músculos são aderentes, esticadas sobre ele, elas são inabaláveis. Firme como a pedra é seu coração, firme como a mó fixa de um moinho. Quando ele o elevar, os anjos temerão e, estando amedrontados, recorrerão a Deus em busca de proteção. Faz ferver o abismo como uma caldeira e transforma o mar num queimador de perfumes. Deixa atrás de si um sulco luminoso, como se o abismo tivesse cabeleira branca. Não há nada igual a ele na terra, pois foi feito para não ter medo de nada. Ele afronta tudo o que é elevado. Ele é o rei dos mais orgulhosos animais” (Jó 41, 4-15, 22-25).
É a opinião de São Cirilo, Santo Atanásio, São Gregório e outros eruditos exegetas das Igrejas grega e latina, que embora esta descrição, tomada literalmente, seja a de um monstro do mar, ainda assim se aplica em sentido místico, a Lúcifer. E se alguém comparar o que é dito do leviatã com os atributos conferidos ao príncipe das trevas, é impossível negar sua coincidência; além disso, sabe-se como um fato geral que as coisas más têm seus tipos e figuras no mundo natural, assim como as coisas boas, aquelas nos servem de advertência e essas de exemplo.
Além do príncipe das trevas, existem centenas de milhares de demônios inferiores, que embora menos maus e abomináveis do que ele, são tão perversos e horríveis que dificilmente se poderia olhar para eles e viver.
Santo Antão relata que um dos irmãos de sua Ordem deu um grito agudo ao ver um demônio que apareceu a ele. Seus companheiros monges, correndo em sua direção alarmados, encontraram-no mais morto do que vivo. Depois de dar-lhe algo para reanimá-lo e fortalecê-lo, eles perguntaram qual tinha sido o problema. Ele então disse a eles que o diabo lhe havia aparecido e o aterrorizado tanto que toda a vida tinha dele se esvaído. E ao perguntarem como era o diabo, ele respondeu: “Isso eu realmente não posso dizer; só posso dizer que, se me fosse dada a escolha, preferiria ser colocado em uma fornalha em brasa do que olhar novamente para o semblante do demônio”.
Lemos quase a mesma coisa na vida de Santa Catarina de Siena. Ela também declarou que preferia caminhar através de um fogo flamejante do que olhar por um instante para o diabo.
Se a simples visão do maligno é tão apavorante que os santos pensam que é mais intolerável do que a dor da exposição a um fogo ardente, o que, meu Deus, deve ser o medo e o horror dos condenados que habitam para sempre no meio de incontáveis demônios!
Quão apavorado tu ficarias se um cão louco de repente saltasse sobre ti, puxasse-te para o chão e começasse a te rasgar com seus dentes! Não penses que o diabo cairá sobre os condenados com menos fúria ou os tratará mais misericordiosamente. O relato que Jó faz de seus perseguidores descreve com muita precisão o estado de uma alma perdida no inferno:
“Ele range os dentes contra mim. Meus inimigos aguçam os olhos sobre mim. Abrem a boca para me devorar. Batem-me na face para me ultrajar. Segurou-me pela nuca e me pôs em pedaços. Tomou-me como seu alvo. Suas setas voam em volta de mim. Ele rasga os meus rins sem piedade. Abre em mim brecha sobre brecha, ataca-me como um guerreiro”. Essa passagem nos dará uma ideia do tipo de terrível companhia em que os condenados se encontrarão no inferno.
O réprobo pode, no entanto, talvez se consolar com o pensamento: de qualquer forma, teremos nossos semelhantes conosco no inferno e eles também não nos faltarão. Cuidado como vos iludis com esse falso conforto. Cada alma perdida preferiria estar sozinha no inferno, se a opção fosse a ela dada.
Pois como no inferno não há caridade divina, também não há amor ao próximo; pelo contrário, todos os condenados estão tão amargurados uns com os outros, que apenas desejam o mal uns para os outros, e mutuamente zombam e se amaldiçoam da maneira mais cruel.
E já que na terra é muito doloroso ser forçado a viver com um inimigo que lhe faz todo tipo de mal, portanto não é uma pequena tribulação estar continuamente com milhares de pessoas, todas as quais se odeiam e se detestam do fundo de seu coração.
Quais seriam teus sentimentos, se fosses dolorosamente atormentado, maltratado e perseguido por demônios, de modo que não pudesses te conter em proferir altos gritos de dor e humilhação? E ainda se entre todos os milhares que te acompanhassem, tu não pudesses encontrar um único para mostra-te a mais ligeira simpatia, mas fosses ridicularizado e amaldiçoado por todos, pois todos se regozijariam com a tua miséria? Até mesmo teu pai e mãe, tua esposa e filhos, teus irmãos e irmãs, teus amigos e parentes seriam então teus inimigos declarados e, em vez de te mostrar qualquer gratidão, só procurariam ferir-te.
Mas, entre todos os teus inimigos, os mais inveterados serão aqueles aos quais deste escândalo com o teu mau exemplo, a quem conduziste ao pecado por conselho ou exemplo e que devem a ti o fato da perdição deles. Eles irão te odiar e execrar tão amargamente e te atormentar com tal animosidade que eles parecerão menos como homens do que demônios encarnados.
Em conexão com este assunto, São Bernardino relata o seguinte exemplo: “Um usurário rico tinha dois filhos, um dos quais entrou para uma ordem religiosa, enquanto o outro permaneceu no mundo com seu pai. Não muito depois da morte do pai, em pouco tempo foi seguido ao túmulo por seu filho, a quem havia legado todos os seus bens. O outro filho, que se tornara monge, estava muito preocupado com o destino de seus parentes e implorou sinceramente a Deus Todo-Poderoso que lhe revelasse sua sorte em outro mundo. Suas súplicas finalmente prevaleceram; ele foi um dia transportado em espírito para o inferno, mas embora olhasse em todos os lugares ao seu redor, não conseguiu ver seu pai e seu irmão. Logo ele notou um abismo de fogo, cujas chamas subiam até uma grande altura.
“Nesse poço de fogo ele viu aqueles a quem estava procurando, presos com correntes de ferro, delirando e se enfurecendo uns com os outros. pai amaldiçoava seu filho, colocando toda a culpa de sua condenação sobre ele, dizendo: ‘Eu te amaldiçôo, ó filho mau, tu és sozinho a causa da minha perdição. Por amor a ti, para te enriquecer, pratiquei a usura; se não fosse por ti, eu não estaria agora nesta miséria’. Então o filho respondeu a seu pai, dizendo: ‘Eu te amaldiçôo, ó pai ímpio, pois tu és a única causa da minha perdição. Se tu não tivesses tomado a usura e me legado teus ganhos injustos, eu não teria sido o possuidor de riquezas ilícitas, e não teria chegado a esta miséria’”.
Assim será contigo, se tu és de alguma forma responsável pela perda de uma alma. Tua esposa e filhos vão te anatematizar e reprovar-te pelas ocasiões de pecado que tu colocaste no caminho deles.
O homem rico sentiu isso tão intensamente que implorou fervorosamente ao Pai Abraão para enviar Lázaro à casa de seu pai, para testemunhar a seus irmãos os sofrimentos que suportou, para que não viessem também àquele lugar de tormentos. Isso ele não fez por amor aos irmãos, como diz Santo Antão, mas porque sabia muito bem que se eles se unissem a ele no inferno, isso agravaria muito seu tormento.
Mas supondo que a afeição natural ainda existisse no inferno, especialmente entre aqueles que se amaram sinceramente na terra, e que não foram a causa da condenação um do outro, a companhia de alguém que te era caro aumentaria em vez de diminuir a tua dor, e isso em proporção ao amor que tinhas por ele. Pois que angústia seria para ti ver teu amigo mais querido torturado e atormentado de todas as maneiras possíveis. Seria o suficiente para despedaçar teu coração de tristeza e compaixão. E, além da dor mental e da tristeza, os malditos aumentam enormemente os sofrimentos externos e corporais uns dos outros. Em primeiro lugar, porque encontram-se espremidos uns sobre os outros. Em segundo lugar, porque todos eles emitem um fedor extremamente lesivo e insuportável. Em terceiro lugar, porque eles gritam de forma tão deplorável e fazem o inferno ressoar com suas lamentações abomináveis. Disto Cristo fala quando diz: “Ali haverá choro e ranger de dentes” (Lc 13, 28). Ele repete essas palavras mais de uma vez, para dar-lhes maior força e para imprimir em nossa mente a magnitude da tortura infligida aos condenados.
Os demônios, também, unirão seus uivos aos gritos dos condenados e o clamor será tamanho que o próprio inferno estremecerá.
O tormento dos condenados será ainda mais agravado pela aparência assustadora de seus corpos e o horror que inspiram uns aos outros. Pois Santo Anselmo diz: “Assim como nenhum fedor pode ser comparado ao fedor dos condenados, nada neste mundo pode dar uma idéia de sua aparência pestilenta”.
Assim, sempre que uma alma perdida olha para outra, ela estremece de nojo, ódio e aversão. Se não houvesse outra tortura senão esta no inferno, seria suficiente para tornar seus prisioneiros os mais miseráveis.
Finalmente, o tormento do inferno é grandemente intensificado pela vergonha eterna que provocará.
Santo Tomás de Aquino nos diz que os pecados de cada um serão de inteiro conhecimento dos demais, como se eles pudessem contemplá-los com os olhos do corpo. Cada qual pode imaginar que angústia deve ser esta. Afinal, o que é mais doloroso na terra do que ser exposto à vergonha?
Para um homem que perdeu seu bom nome, a vida não vale a pena ser vivida; é apenas um fardo para ele. Antigamente, em alguns países, era costume marcar malfeitores, ladrões, por exemplo, com uma marca na testa ou no ombro. Que ignomínia para quem tem uma centelha de amor próprio! Sempre que alguém olhasse para ele, deveria corar de vergonha.
O diabo marcará todos os réprobos com a marca da vergonha em suas testas, ou na parte do corpo com que pecaram, a fim de que todos os atos vergonhosos que cometeram em suas vidas possam ser conhecidos. É esta desgraça eterna que Deus prediz ao pecador pela boca de Seu profeta: “Eu vos afligirei com um perpétuo opróbrio, uma eterna vergonha, inesquecível” (Jr 23, 40). Que os condenados façam o que quiserem; nenhum esforço de sua parte jamais servirá para apagar essa marca, ou ocultá-la de seus semelhantes. Assim, como diz Santo Efrém, essa vergonha e infâmia serão mais insuportáveis do que o próprio fogo do inferno, porque manterá constantemente diante de sua lembrança os pecados com os quais se contaminaram na terra.
Dionísio, o Cartuxo, fala de um de seus irmãos religiosos na Inglaterra, que, depois de uma perda de consciência que durou três dias, fez, a pedido insistente dos monges, o seguinte relato do que tinha visto: “Fui conduzido pelo meu guia por um longo caminho até chegarmos a uma região de escuridão e horror, onde havia uma multidão incontável de homens e mulheres, todos sofrendo terríveis tormentos. Essas foram as pessoas que pecaram com seus corpos; foram atormentados por enormes monstros de fogo, que saltavam sobre eles e, apesar de sua resistência, os agarravam e os abraçavam com suas patas até que gritassem de dor. Entre os que foram atormentados dessa maneira, vi um homem que conhecia muito bem e que havia sido muito estimado e respeitado no mundo. Ao me ver, ele gritou em voz alta em tom deplorável: ‘Ai, ai de mim, por ter pecado como pequei em minha vida, pois agora a dor que sofro fica maior a cada dia. Mas o pior de tudo, o que eu sinto mais agudamente, é a vergonha e a desgraça a que meus pecados me expõem, pois todos os conhecem, e todos me desprezam e zombam de mim por causa deles’”
Portanto, dentre os incomensuráveis tormentos do inferno, por causa de seus pecados, os malditos temerão mais o desprezo e o escárnio por seus semelhantes do que os tormentos físicos. E assim sua miséria, longe de ser diminuída pela companhia de outros, é imensamente aumentada. Portanto, não penses em te consolar com a idéia dos companheiros que tu encontrarás no inferno, pois sua companhia deve ser muito temida. E para que tu nunca sejas levado a tal companhia, cuidado para não te associar neste mundo com qualquer pessoa que possa te levar ao pecado e porventura te levar à perdição.
Sobre a perda da visão beatífica de Deus
Já falamos de muitos castigos terríveis infligidos aos condenados, mas estes são apenas uma parte insignificante do todo. Eles são incontáveis em número; e tão grande e terrível que, como diz Santo Agostinho, todo o sofrimento deste mundo não é nada quando comparado com o fogo eterno e os tormentos do inferno.
Tal como diz o Apóstolo Paulo: “Coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (1Cor 2, 9) assim pode-se dizer: os olhos não viram, nem ouvidos ouviram, tais são castigos que Deus preparou para aqueles sobre os quais Seus justos julgamentos recaem. E quando lemos os terríveis castigos com os quais Deus ameaça subjugar, mesmo neste mundo, os transgressores de Sua santa lei, acaso não podemos ter certeza de que Ele derramará toda a fúria de Sua ira sobre aqueles pecadores ousados que desprezam Seus avisos, e que com malícia diabólica, persistem em sua iniquidade até o fim de suas vidas? Lembre-se do que Deus disse ao povo de Israel:
“Sim, acendeu-se o fogo da minha cólera, que arde até o mais profundo da habitação dos mortos; devora a terra e os seus produtos, e consome os fundamentos das montanhas. Acumularei desgraças sobre eles, contra eles esgotarei minhas flechas. Serão extenuados pela fome, devorados pela febre e pela peste mortal. Incitarei contra eles o dente das feras e o veneno dos animais que rastejam pelo chão. Fora, a espada a semear a orfandade; dentro, um pavor de estarrecer tanto o adolescente como a jovem, tanto o menino de peito como o ancião” (Dt 32, 22-25).
A Sagrada Escritura contém muitas ameaças semelhantes e igualmente terríveis. Não há dúvida de que no outro mundo, onde a justiça, e não a misericórdia, governará, Deus castigará os violadores insolentes de Seus santos mandamentos com mão implacável. Os castigos da eternidade serão sem número e sem limite. Os condenados serão cercados de angústia e tristeza, de agonia e tormentos inumeráveis. São Bernardo diz que as dores dos condenados são incontáveis, nenhuma língua mortal pode enumerá-las.
Por isso, de todas essas dores, a que causa a maior angústia é ser privado da visão de Deus. Jamais será concedido ao condenado contemplar o semblante divino. Essa dor superará em muito todos os outros tormentos de que falamos. É impossível para o homem mortal entender como isso pode ser uma tribulação tão grande para os condenados.
No entanto, esse é o ensino dos Padres; todos eles sustentam que não há nada que os condenados lamentem tão amargamente como serem excluídos para sempre da visão de Deus. Enquanto vivemos neste mundo, pensamos muito pouco na visão de Deus e no que seria para nós sermos privados dela para sempre. Isso surge da aspereza de nossa percepção, que nos impede de compreender a infinita beleza e bondade de Deus, e o deleite experimentado por aqueles que O contemplam face a face.
Mas, depois da morte, quando estivermos livres das amarras do corpo, nossos olhos se abrirão e, pelo menos até certo ponto, perceberemos que Deus é o Bem supremo e infinito, e a fruição dEle nossa maior felicidade. E então um desejo tão ávido tomará posse de nossa alma para contemplar e desfrutar este Bem supremo, que ela será irresistivelmente atraída a Deus, e desejará com todas as suas forças contemplar Sua beleza inefável. E se por causa de seus pecados ela for privada desta visão beatifica, isso lhe causará a mais intensa angústia.
Nenhuma dor, nenhuma tortura conhecida neste mundo pode ser de alguma forma comparada a ela.
São Boaventura dá testemunho disso, quando diz: “A pena mais terrível dos condenados é ser excluído para sempre da contemplação feliz e alegre da Santíssima Trindade”. Novamente, São João Crisóstomo diz: “Eu sei que muitas pessoas só temem o inferno por causa de suas dores, mas eu afirmo que a perda da glória celestial é uma fonte de dor mais amarga do que todos os tormentos do inferno”.
O próprio Maligno reconheceu isso, como lemos na hagiografia do Beato Jordão, outrora Geral da Ordem Dominicana. Pois quando Jordão perguntou a Satanás, na pessoa de um possesso, qual era o principal tormento do inferno, ele respondeu: “Ser excluído da presença de Deus”. “É Deus, então, tão belo de se olhar?”, Jordão perguntou. E quando o diabo respondeu que Ele era realmente muito belo, ele perguntou ainda: “Quão grande é a Sua beleza?” “Tolo que és, foi a réplica, por me fazes tal pergunta! Não sabes que a Sua beleza é incomparável?” “Não consegues sugerir qualquer semelhança, Jordão continuou, que possa me dar, até certo ponto, pelo menos, uma idéia da beleza divina?” Então Satanás disse: “Imagines uma esfera de cristal mil vezes mais brilhante do que o sol, em que a beleza de todas as cores do arco-íris, a fragrância de cada flor, a doçura de cada sabor delicioso, o custo elevado de cada pedra preciosa, a bondade dos homens e a fascinação de todos os anjos combinados; a beleza e a preciosidade deste cristal seria, em comparação com a beleza divina, feio e impuro”. “E me diga, perguntou o bom monge, o que tu darias para ser admitido à visão de Deus?”, E o diabo respondeu: “Se houvesse um pilar estendendo-se da terra ao céu, cercado de pontas afiadas, pregos e ganchos, eu concordaria de bom grado em ser arrastado para cima e para baixo daquele pilar de agora até o Dia do Juízo, se eu pudesse apenas olhar para o semblante divino por alguns breves momentos. Portanto, podemos deduzir quão infinita é a beleza da face de Deus, se até mesmo o espírito do mal se submeteria à tortura física como ele descreve, para desfrutar por alguns momentos a visão daquele semblante gracioso e majestoso. Logo, sem dúvida, nada é fonte de tanta angústia para os demônios e os condenados, como o serem privados da visão beatífica de Deus.
Conseqüentemente, se Deus enviasse um anjo aos portais do inferno, com esta mensagem aos miseráveis habitantes daquele lugar de tormento: “O Todo-Poderoso, em Sua misericórdia, teve compaixão de vós e deseja que sejais libertados de uma das penalidades que vós sofreis; qual deve ser?” Qual tu achas que seria a resposta? Todos eles, em uníssono, exclamariam: “Ó bom anjo, ore a Deus que, se ao menos por Sua generosidade, Ele não mais nos privasse de ver Seu semblante!”. Este é o único favor que implorariam a Deus. Se fosse possível para eles, no meio do fogo do inferno, contemplar o semblante divino, pela alegria disso, não prestariam mais atenção às chamas devoradoras. Pois a visão de Deus é tão bela, tão abençoada, tão cheia de êxtase e infinito deleite, que todas as alegrias e atrações da terra não lhe podem ser comparadas a ela no grau mais remoto.
Na verdade, toda felicidade celestial, por maior que seja, seria transformada em amargura se faltasse a visão de Deus; e os remidos prefeririam estar no inferno, se pudessem desfrutar dessa visão beatífica, do que estar no céu sem ela. Uma vez que o privilégio de contemplar a Face Divina constitui a felicidade principal dos bem-aventurados, não contemplá-La impediria que todos os demais privilégios lhes alcançassem qualquer felicidade, assim é a principal miséria do inferno que as almas perdidas sejam para sempre privadas da visão beatífica. Sobre este assunto, diz São João Crisóstomo: “Os tormentos de mil infernos nada são em comparação com a angústia de ser banido da bem-aventurança eterna e da visão de Deus”.
Para perceber, em certa medida, o quão grande é essa dor da perda, devemos ter em mente que fomos criados por Deus para sermos felizes para sempre. Esse amor pela felicidade, esse anseio por ela, que cada um de nós sente no coração, jamais será destruído, nem mesmo no inferno. Durante esta vida, os homens, impelidos por esse desejo e cegos pela paixão, buscam a felicidade nas riquezas, nas honras, na gratificação sensual. Essas vãs imagens de felicidade nos enganam enquanto nossa alma está unida ao nosso corpo. Mas depois que a alma cortou sua conexão com o corpo, todos esses prazeres falsos e fugazes desaparecem, e ela se dá conta de que só Deus é a fonte de toda felicidade e que ela só pode encontrar a felicidade na posse dEle.
Não mais enganada por falsas aparências, não mais cega pela paixão, ela percebe claramente a beleza inefável e arrebatadora de Deus e Suas perfeições infinitas; ela vê Seu poder infinito em criar o mundo, Sua sabedoria infinita em governá-lo, Seu amor excessivo por ela em fazer-se homem, em morrer por ela, em dar-se a ela como o alimento de sua alma no Santíssimo Sacramento, em destiná-la para compartiIhar sua própria felicidade para sempre no céu. Este conhecimento da grandeza, da bondade e da beleza de Deus permanecerá profundamente impresso nela por toda a eternidade. Ela também verá a justiça das punições que Deus inflige para sempre no inferno a todos aqueles que não guardam Seus mandamentos.
Assim, a alma réproba, ansiando por felicidade e sentindo-se irresistivelmente atraída por Deus, o único que pode fazê-la feliz, se esforça para correr para Deus com toda a impetuosidade de sua natureza, a fim de contemplá-Lo, desfrutá-Lo, estar unida a Ele; mas ela se encontra repelida pela força infinita de Deus e odiada por Ele por causa de seus pecados. Se todas as riquezas, honras e prazeres do mundo agora fossem oferecidos a essa alma, ela se afastaria deles e até mesmo os amaldiçoaria, pois ela anseia somente por Deus e só pode ser feliz em Deus. A alma réproba no inferno, estimulada por dores terríveis, olha ao seu redor em busca de algum alívio, de alguma palavra de conforto; mas sequer recebe um olhar de compaixão, pois ela está cercada por demônios cruéis e inimigos ferrenhos.
Não encontrando nenhuma compaixão onde está, ela levanta os olhos para o céu e o vê tão lindo, tão encantador, tão delicioso, tão cheio de verdadeira felicidade. Ela lembra que foi criada e destinada a gozar de sua bem-aventurança e agora, em meio a suas dores mais excruciantes, anseia por seus prazeres com um anseio ainda mais indescritível e faz esforços extraordinários para chegar lá, mas não consegue deixar sua morada de tormento. Ninguém no céu parece dar atenção a ela. Ela vê o Trono que Deus, em Sua bondade, preparou para ela, agora ocupado por outra pessoa. Não há mais lugar para ela no céu. Ela vê ali alguns de seus parentes, de seus companheiros e conhecidos; mas eles não lhe dão ouvidos. Ela vê todos os eleitos no céu cheios de alegria e contentamento. Eles nem mesmo dela se compadecem, mas como canta o salmista, “O justo terá a alegria de ver o castigo dos ímpios” (Sl 57, 11).
Em vão a alma réproba invoca os santos, a Santíssima Virgem e o próprio nosso divino Salvador. Ela se sente atraída a Deus por um impulso irresistível e entende que só Deus pode saciar sua sede de deleite e fazê-la feliz. Ela anseia por vê-Lo e possuí-Lo; ela repetidamente se esforça para saltar em direção a Ele, mas ela se sente repelida por Ele com força invencível; ela se vê objeto da ira divina, do anátema divino. Ela está ciente de que seu caso é desesperador e que nunca será admitida nas mansões dos bem-aventurados, ou deixará a morada da miséria sem fim. O desespero se apodera dela; ela profere as mais terríveis imprecações contra Deus e os eleitos, contra o céu, contra si mesma, seus pais, seus companheiros, contra todas as criaturas. Todo o inferno ressoa com suas horríveis blasfêmias, e ela se torna, em seus delírios, um objeto de terror para todos os outros réprobos.
Excerto de: FREI MARTINHO DE COCHEM, O.F.M. Cap.; As Quatro Últimas Coisas — Morte, Julgamento, Inferno e Céu, Editora Realeza, 2021, pp. 110-123.

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