PRETENSAS CONTRADIÇÕES DO MAGISTÉRIO

Tortura e muito mais!

John S. Daly
2010

Faz uma semana que foi publicada, no Forum Catholique, uma mensagem intitulada “duas contradições do Magistério antes do Vaticano II”, cuja finalidade era explicitamente a de responder aos que creem necessário recusar o Concílio Vaticano II em razão de sua contradição com o ensinamento do magistério anterior – posição dos sedevacantistas e dos que deles se aproximam.

Esse panfleto, bem como os comentários por ele provocados, me motivam a fazer uma série de observações, as quais divido como segue:

1. Algumas observações gerais sobre o panfleto

2. Refutação de comentários abertamente modernistas

3. Refutação das duas pretensas contradições apontadas
(a) Sobre a matéria do sacramento da ordem
(b) Sobre a tortura

4. Diferença do caso da liberdade religiosa

5. Moral a tirar acerca do funcionamento dos fóruns

Cumpre notar que é o cúmulo da irresponsabilidade escrever em público sobre a religião sem conhecimento suficiente, e nenhuma injúria é tão séria quanto o engano de arrastar o próximo a erros graves referentes à natureza da Igreja de Jesus Cristo.

1. Algumas observações gerais sobre o panfleto

“Duas contradições do Magistério antes do Vaticano II”: esse título é escandaloso e ultrajante para a consciência católica, sendo notório que o Magistério da Igreja Católica é a regra de fé estabelecida pelo Verbo feito carne, Nosso Senhor Jesus Cristo, quando disse aos Apóstolos: “quem vos ouve a Mim ouve”. É escandaloso, também, porque foi em todos os tempos o próprio dos inimigos da Igreja, ou quando muito dos católicos mais malsãos, a busca e publicação de pretensas contradições nos ensinamentos do Magistério.

A primeira dessas supostas contradições, referente à matéria do sacramento da ordem, está tão longe de toda aparência de contradição, que mesmo um protestante encarniçado teria tido vergonha de não encontrar arma melhor para agredir nossa Mãe, a Santa Igreja Católica e Romana. Ademais, o próprio texto do decreto de Pio XII que pretendem estar em contradição com o Concílio de Florença explica por que é que não há contradição alguma. O queixoso tinha somente que ler o ato do Magistério em questão, ao invés de o deformar e enfraquecer aos olhos de seus irmãos. Logo veremos se exagero.

O segundo caso, relativo à tortura, revela uma disposição, antes a desorientar as almas no seu dever de submissão absoluta e sem reservas ao Magistério, do que de estudar seriamente a matéria da pretensa contradição, em espírito de docilidade e de confiança para com nossos pais, que são os Papas.

2. Refutação de comentários abertamente modernistas

Há quem tire dessas “contradições” a lição de, como comentou um modernista, “não absolutizar [sit venia verbo] os textos magisteriais do século XIX de maneira fundamentalista, fazendo abstração do grau de autoridade por vezes muito relativo desses documentos e de suas contingências históricas”.

Os textos do Magistério, até então os mais absolutos de todos os documentos, teriam se tornado então “relativos” durante o pobre século XIX, para que não devêssemos “absolutizá-los”?

As encíclicas de Gregório XVI, de Pio IX e de Leão XIII seriam parábolas ou alegorias, para que não devêssemos interpretá-las “de maneira fundamentalista”?

O que o panfleto analisado almejava, expressamente, era fazer uma analogia entre essas pretensas contradições e aquela que se encontra entre Quanta Cura (Pio IX) e Dignitatis Humanae (Vaticano II), tendo em vista que (i) Quanta Cura é documento do Magistério Extraordinário, protegido pela infalibilidade direta, (ii) os católicos são, de todo o modo, obrigados a crer todo o conteúdo das encíclicas, como foi ensinado por Pio XII (Humani Generis), e (iii) uma doutrina regularmente ensinada durante longos anos por numerosas encíclicas e outros documentos do Magistério, sustentada por todos os teólogos aprovados, transmitida pelos bispos do mundo, pertence ao Magistério ordinário e universal, que não é menos infalível que o extraordinário (é este um dogma de nossa fé: ver Denzinger 1792).

Ora alguns, querendo aderir ao ensinamento de antes do Vaticano II e de depois do Vaticano II, inventam uma nova concepção da natureza do Magistério, da obrigação que impõe o seu ensinamento e da natureza da verdade mesma. É assim que se termina afirmando, como o nosso modernista, que “a dificuldade vem justamente da incapacidade da maioria dos tradicionalistas de distinguir entre a Tradição e as tradições, entre a essência da mensagem cristã e certas formas condicionadas pelas circunstâncias históricas, doravante obsoletas”. Sim, o signatário dessa passagem não é Loisy nem Tyrrell, mas… um infeliz que, aparentemente, não se dá conta de que a sua teoria foi analisada, pulverizada e anatematizada por São Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis.

Nada substitui a leitura ou releitura da Pascendi, do Lamentabili e (sobretudo) do juramento antimodernista, mas tentemos resumir: A Igreja tem uma doutrina revelada por Deus Encarnado. Ela é a guardiã e a ensinante infalível dessa doutrina. Sua infalibilidade estende-se a tudo o que é necessário para proteger a Revelação e para a aplicação dessa Revelação às circunstâncias contingentes. O seu ensinamento não evolui; a evolução dos dogmas é estigmatizada como “ficção herética” (“haereticum commentum”) no juramento antimodernista, que é um símbolo da fé. (Convém saber que o livro de Newman no qual alguns se inspiram foi escrito antes da conversão dele e contém heresias… É lamentável que o que foi para ele um degrau rumo à verdadeira fé sirva para outros que marcham na direção contrária!) E esse ensinamento divino e imutável exprime-se geralmente (se bem que não exclusivamente) por palavras, as quais são necessariamente em certa medida “condicionadas pelas circunstâncias históricas” mas veiculam eficazmente, sem embargo, a verdade que nos deve salvar.

Não há, portanto, meio de se despojar do dever de submissão ao ensinamento dos papas do século XIX e da primeira metade do século XX invocando uma mudança de circunstâncias históricas. O ensinamento dado para todo o sempre e protegido pelo Espírito Santo é de um sentido perfeitamente claro para quem o estuda. Tempora mutantur et nos mutamur cum illis; veritas autem Domini manet in aeternum. Uma parte dessa verdade é o fato de que toda a sociedade humana, assim como todo o homem, deve perfeita submissão e culto explícito a Jesus Cristo na unidade da Igreja que Ele fundou e fora da qual não há salvação, e deve a essa Igreja proteção e uma certa cooperação com a sua missão divina, de que o exemplo mais modesto é proteger seus filhos, lá onde isso se faz possível, contra a livre difusão das falsas doutrinas. Um homem ou um estado podem até, em certos casos, ignorar inocentemente esse dever, mas a exceção que escusa do pecado formal não será jamais fundada num direito natural ou na Revelação divina.

3. Refutação das duas pretensas contradições apontadas

(a) Sobre a matéria do sacramento da ordem

Passemos às pretensas contradições do Magistério. Se nos anuncia que no decreto pro Armenis (“Exultate Deo” do Concílio de Florença, Denz. 695 et seqq., do ano 1439) o Papa Eugênio IV ensina que a matéria do sacramento da ordem consiste na entrega dos instrumentos, ao passo que na “Sacramentum Ordinis” (1947) Pio XII ensina que a matéria desse sacramento consiste unicamente na imposição das mãos (Denz. 2301). E se nos pergunta candidamente: “Qual dos dois tem razão?”

Quem ler a Sacramentum Ordinis verá de imediato a razão pela qual ambos os papas “tinham razão”. O sacramento da ordem foi instituído por Nosso Senhor in genere e não in specie. Ou seja, diferentemente do batismo e da Santa Eucaristia, o divino Salvador deixou para a Sua Igreja a determinação da matéria e da forma desse sacramento, contanto que estas signifiquem convenientemente sua natureza. Daí Pio XII precisar que “todos sabem que aquilo que a Igreja estabeleceu ela é capaz de mudar ou de ab-rogar”. E o Papa mostra que o Concílio de Florença não teve intenção alguma de determinar dogmaticamente a matéria essencialmente e imutavelmente necessária da ordem, a partir do fato de que esse mesmo concílio, ao efetuar a união dos greco-cismáticos com a verdadeira Igreja, deixou-lhes seu rito de ordem, o qual não continha, notoriamente, a entrega dos instrumentos.

Decididamente, mais valia folhear páginas de Lutero, de Hans Küng ou um panfleto dos Testemunhas de Jeová, para encontrar exemplos mais especiosos de autocontradição do Magistério. Perguntamo-nos como foi possível que nos tenham poupado da usura, da existência dos antípodas e de se a mulher tem alma…

(b) Sobre a tortura

A tortura. Aqui, temos três textos a reconciliar. O Papa Inocêncio IV, em 1252, e outros papas da Idade Média concederam aos inquisidores o direito de empregar a tortura. Contudo, em 1953, num discurso a um congresso de direito penal, Pio XII declarou que “A instrução judiciária deve excluir a tortura física e psíquica e a narco-análise, antes de tudo porque lesam um direito natural mesmo se o acusado é realmente culpado, e além disso porque com demasiada frequência dão resultados errôneos.”

Ainda que esse documento não tivesse grande valor magisterial, ocorre que – ainda bem! – o Papa invoca a célebre resposta do Papa Nicolau o Grande aos búlgaros, a qual tem estatuto bem sólido e repreende rispidamente os búlgaros, por, face a um acusado de roubo, “espancar-lhe a cabeça e furar-lhe os lados com pontas de ferro até que diga a verdade”. Esse tratamento, diz o Papa, “nem a lei divina nem a lei humana admitem”.

E agora, quem tem razão?

Convém abrir um livro sério de teologia moral e estudar um pouco o pensamento da Igreja sobre a tortura. Quem escolher Santo Afonso (Theologia Moralis, livro V, [art. III] nn. 202-5 – é o livro de teologia moral mais aprovado) aprenderá que a tortura é intrinsecamente ilícita salvo em certas condições extremamente limitadas:

1. A culpabilidade deve já ter sido estabelecida com certeza moral;

2. O sofrimento aplicado não deve ser insuportável a ponto de fazer até mesmo um inocente se acusar;

3. Numerosas categorias de pessoas estavam isentas de toda a tortura;

4. Toda a confissão assim obtida era inutilizável a menos que fosse livremente confirmada, sem tortura, no dia seguinte;

5. Se a tortura não obtivesse resultado, não se poderia recorrer a ela novamente.

Aí estão as condições de trabalho da Inquisição. Encontram-se expostas de modo similar no célebre Malleus Maleficarum. Ora, visivelmente, aquilo que Nicolau I condena não se assemelha a isso em nada. E a leitura do contexto das palavras de Pio XII confirma que tampouco ele falava de um tal uso da tortura. “Não é raro que elas cheguem exatamente às confissões almejadas e à condenação do acusado, não por ser ele culpado de fato, mas por sua energia física e psíquica estar esgotada…” A regra que Pio XII deseja ver imposta é a de Nicolau I. Ele não fala de maneira alguma de um emprego da tortura tão limitado e condicionado, a ponto de ela não ser contrária à lei moral, e no qual ninguém mais pensa.

Sem dúvida, se Pio XII tivesse querido pronunciar-se ex professo de maneira doutrinal, por exemplo numa encíclica, sobre a moralidade in se da tortura em todas as suas espécies, teria sido necessária uma definição explícita da tortura que caísse na condenação e uma precisão sobre a natureza exata do “direito natural” por ela lesado.

Esse direito natural, a meu parecer, só pode ser o de não ser privado pela força do domínio moral sobre seus atos, o qual é chamado de liberdade de coerção (“libertas a coactione”). E, presumindo que isso seja exato, constatamos que a tortura permitida à Santa Inquisição era precisamente circunscrita, de sorte a não lesar esse direito nem mesmo ter a aparência de o lesar.

Mas o objetivo de Pio XII não era o de acrescentar um tratado de tortura aos catecismos da fé, mas muito simplesmente dar alguns conselhos ou diretrizes para a implementação de um sistema uniforme de direito internacional (sancionado por tratado). Ele julga desejável que um tal sistema de direito condene a tortura. Esta, ele não a define, pois toda a sua audiência compreenderá bem a quais práticas recentes ou atuais, e de que país, ele faz alusão. Falar de uma exceção puramente histórica, sem atualidade, sem perigo de restabelecimento, pertencente a um contexto puramente eclesiástico, teria posto gratuitamente em perigo a eficácia prática dessa intervenção que se quer soberanamente prática.

Pois nenhum país do século XX quereria reivindicar para si o direito de torturar os acusados sob as condições que a Inquisição observava. E ninguém jamais conceberia ter confiança em quem quer que seja para respeitar um tal sistema fora do caso especial da Igreja, que confiou a sua Inquisição aos filhos de São Domingos.

A conduta da Igreja durante muitos séculos, bem como as intervenções dos Sumos Pontífices sobre o tema durante a época em questão, testemunham claramente a atitude da Igreja, que não pode se enganar em sua conduta nem em suas tolerâncias, assim como em seu ensinamento direto. É a contradição que é imaginária.

Eis aí, refutada, mais uma pretensa autocontradição da autoridade doutrinal estabelecida por Jesus Cristo. Magna est veritas et praevalebit.

4. Diferença do caso da liberdade religiosa

Mas ouço a resposta: eis que levastes em conta, para compreender o sentido exato do discurso de Pio XII, o seu contexto histórico; e só pedimos que aplique a mesma regra às encíclicas do século XIX, para limitar o alcance delas a um sentido que deixe de fulminar nosso querido Vaticano II. Caros amigos, convém certissimamente levar em conta o contexto histórico de um texto do Magistério a fim de apreender plenamente o seu alcance, mas não para contornar o seu sentido evidente. O contexto histórico de uma porção de atos do Magistério referentes à liberdade religiosa não foi outro que a apostasia nacional da França. Cada passo dessa degringolada foi condenado pela Santa Sé. E foram condenados a partir de princípios eternos, que foram enunciados o mais claramente que se pode conceber. E esses princípios constituem o legado doutrinal dos católicos há muitos e muitos séculos.

No século XIX, como sempre anteriormente, a Igreja Católica quis o estado católico e lamentou cada apostasia nacional como uma infração dos direitos de Deus e de Sua Igreja e uma calamidade para os homens. A partir de 1963 uma instituição que alegava ser essa mesma Igreja Católica quis o estado “neutro”, ou seja ateu e verdugo da fé, e impeliu sistematicamente todo estado que continuasse a privilegiar a fé de Jesus Cristo a renunciar a isso. A contradição não poderia ser mais clara. E não foi, de modo algum, a única divergência de doutrina e de prática entre as duas instituições.

5. Moral a tirar acerca do funcionamento dos fóruns

Fim da refutação das pretensas contradições encontradas no magistério. Mas não paremos aí! A história tem uma moral. É mil vezes mais fácil enunciar o erro do que o refutar. A refutação está geralmente disponível nalgum lugar, mas nem todos têm acesso a ela. Um homem de juízo leviano, crendo prestar serviço à Igreja acusando-a de contradições (das quais só se pode salvá-la adotando um relativismo doutrinal) utiliza um fórum de internet como tribuna para difundir suas ideias falsas sobre a natureza do Magistério, sobre o alcance da infalibilidade e sobre a extensão da obrigação de submissão ao ensinamento doutrinal ordinário da Santa Sé. Assim fazendo, ele despreza tanto a sã doutrina quanto o exemplo dos santos. Mas ele não é de todo carente de alguns argumentos especiosos. E poucos são os leitores que enxergarão isso com clareza. Um bom número sairá com uma vaga ideia de que existem ao menos bons argumentos sugerindo que a Santa Sé, pronunciando-se sobre questões doutrinais, tem o hábito de se retratar, mostrando que proposições que pareciam claras e formais não são necessariamente irreformáveis e, portanto, não são necessariamente verdadeiras.

Tanto a natureza do fórum quanto a maneira habitual como se servem dele muitos de seus participantes prestam-se a esse abuso, a esse escândalo. Ora, “É impossível que não haja escândalos, mas ai daquele por quem eles vêm!”

Numa palavra, longe de enfraquecer a doutrina da Igreja que condena a liberdade religiosa, o panfleto em questão põe-nos diante de um exemplo da necessidade dessa doutrina. O fato, que compreendo perfeitamente, de o autor crer estar defendendo e não atacando os papas só faz agravar o caso.

Em sua encíclica Mirari Vos, o Papa Gregório XVI fulminou o princípio da liberdade de disseminar o erro, sobretudo sob o pretexto francamente imoral de que a religião poderia talvez tirar alguma vantagem disso.

“O que há de mais letal à alma do que a liberdade do erro?”, cita ele de Santo Agostinho. Lendo a encíclica toda, não posso deixar de me perguntar o que teria dito o Papa desses fóruns onde numerosos erros contra a doutrina católica, contra a honra da Igreja e contra o bem das almas são disseminados todos os dias pelas pobres vítimas do Vaticano II: sejam aqueles que abonam as heresias, sejam os que deformam a doutrina católica para torná-la compatível com o Vaticano II, sejam os que minimizam a autoridade do Magistério para que as múltiplas contradições entre a doutrina da Igreja Católica e a do Vaticano II fiquem menos constrangedoras.

A vós, caros leitores, o juízo. De minha parte, não julgo bom contribuir com o fórum ordinário como se eu pudesse aprovar aquele caótico panteão doutrinal com a condição de que a doutrina católica não seja estritamente excluída de lá – pois é bem isso. Quanto ao fórum especializado sobre o sedevacantismo, da última vez foi possível aos defensores da doutrina da Igreja manter a dianteira, me parece. Daí que continuo por aqui, no momento.

Resta-me expor a verdadeira natureza e alcance da infalibilidade da Igreja, para mostrar que o ensinamento da Igreja condenando a liberdade religiosa é realmente ensinamento garantido pela infalibilidade e que os esforços por deformar ou relativizar esse ensinamento são fadados ao fracasso. Mas isso merece um artigo distinto, que se seguirá.

Após o quê, prevejo ainda outro artigo, para mostrar que a tentativa de reduzir a apostasia do Vaticano II e seus “papas” à sua adoção da abominação da liberdade religiosa não passa de uma escapatória. Igualmente bem se poderia pretender que o inferno difere do Céu por uma simples diferença de clima…

Que o Sagrado Coração de Jesus una todos os espíritos na verdade e todos os corações na caridade.

John DALY

Trad. por Felipe Coelho.

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