UM PADRE ORDENADO NO CISMA ORIENTAL…

… E QUE TENHA ABJURADO PODE EXERCER O SACERDÓCIO?

Padre Hervé Belmont
2014

Para responder a uma tal questão, duas coisas bem distintas têm de ser consideradas: a sua pessoa e o seu sacerdócio.

1. A pessoa desse padre

Um cismático (trata-se aqui de um cismático “de nascença”) pode sempre – como é necessário para sua salvação eterna – integrar a Santa Igreja Católica. Ele tem de abjurar o cisma e obter o levantamento das censuras nas quais incorreu. Essa absolvição das censuras é [relativamente] fácil, pois pode ter havido ignorância da censura (ignorância que faz com que não se incorra na censura — cânon 2229 § 3); nas circunstâncias presentes de ausência de autoridade pontifícia, há caso urgente (cânon 2254 § 1) e recurso impossível à autoridade (cânon 2254 § 3). A censura na qual incorre um cismático é uma excomunhão especialmente reservada ao Soberano Pontífice.

Cânon 2314 § 1.
Todos os apóstatas da fé cristã, todos os hereges ou cismáticos e cada um dentre eles:
1º Incorrem, pelo fato mesmo, em excomunhão;
2º Se, após monição, eles não vierem à resipiscência, sejam privados de todo benefício, dignidade, pensão, ofício ou outro encargo, se os possuíam na Igreja, e sejam declarados infames; após duas monições, os que forem clérigos devem ser depostos.
3º Se eles tiverem inscrito o seu nome em uma seita acatólica ou tiverem aderido a ela publicamente, são infames pelo fato mesmo; tendo em conta a prescrição do Cânon 188 n. 4, que os clérigos, após uma monição ineficaz, sejam degradados.
§ 2. A absolvição dessa excomunhão, a ser dada no foro da consciência, é especialmente reservada à Sé Apostólica. Se contudo o delito de apostasia, de heresia ou de cisma tiver sido levado ao foro externo do Ordinário do lugar, não importa de que maneira, mesmo por confissão voluntária, o mesmo Ordinário, mas não o vigário geral sem mandato especial, pode, em virtude de sua autoridade ordinária, absolver no foro externo o réu arrependido, após abjuração feita juridicamente e realização das outras obrigações do direito. Depois dessa absolvição o penitente pode ser absolvido de seu pecado no foro da consciência por todo e qualquer confessor. A abjuração é considerada realizada juridicamente quando ela é feita diante do Ordinário do lugar ou de seu delegado ou ao menos de duas testemunhas. [Fim do cânon 2314]

Logo, não há dificuldade alguma em aceitar de todo o coração e calorosamente congratular uma pessoa que renega sinceramente o cisma, para integrar a Santa Igreja Católica submetendo-se à sua lei; é, pelo contrário, uma grande misericórdia do Bom Deus e um belo motivo de ação de graças.

2. O sacerdócio desse padre

É inteiramente diferente o caso de seu sacerdócio, cujo exercício lhe é estritamente interdito. Com efeito, ele contraiu uma irregularidade ex delicto (cânon 985 § 3), que é uma incapacidade perpétua para todo exercício das santas ordens (cânon 968 § 2). Perpétua significa que a irregularidade não cessa com o fim do cisma ou do escândalo, mas unicamente por dispensa (Capello, III, 1, 7, 5 n. 281). Diferentemente de uma censura como a excomunhão, a ignorância da existência da irregularidade não impede que nela se tenha incorrido. Nesse caso preciso, no foro externo é presumido sempre que o cisma foi pecado formal (Capello, ibid.). A dispensa de irregularidades ex delicto pertence unicamente ao Sumo Pontífice. O Ordinário (o Bispo da diocese ou, para os religiosos de uma ordem isenta, o Padre Abade ou o Superior maior) não pode dar a dispensa aos seus súditos senão para casos ocultos (cânon 990 § 1); o confessor, para casos ocultos urgentíssimos (cânon 990 § 2). A pertença a uma “igreja” cismática não é, de jeito nenhum, um caso oculto. Logo, unicamente o Papa é capaz de autorizar um sacerdote proveniente do cisma a exercer o sacerdócio dele. Ele decide isso soberanamente e prudentemente.

Com efeito, o Papa, se contemplar dispensar da irregularidade, toma em consideração previamente outro aspecto sumamente importante: o exame da validade da ordenação sacerdotal. Decerto que os orientais conservaram escrupulosamente os ritos sacramentais em vigor no século XI, mas também é necessário que não tenha havido interrupção nem deturpação. Uma garantia dessas não pode ser dada a não ser por um juízo da Igreja Católica. O Papa inquietar-se-á também (e mais ainda) acerca da ciência sacerdotal do cismático que abjurou, especialmente quanto aos pontos que os cismáticos negam em teoria ou na prática:

– verdades das quais o cisma dele era diretamente negação: natureza, unidade e romanidade da Igreja Católica; primado e infalibilidade do Romano Pontífice; natureza e determinação da regra da fé;

– verdades negadas pelos orientais, ou ao menos por alguns deles, já que são numerosas as obediências: Procissão do Espírito Santo Filioque; distinção entre a ordem natural e a ordem sobrenatural; Imaculada Conceição e Assunção da Santíssima Virgem Maria, existência e natureza do Purgatório, Indulgências.

Eis aqui um excerto do diagnóstico feito por Louis Jugnet em 1946 (texto completo no Caderno Louis Jugnet no. 2 pp. 51-68). Esse texto deve ser lido integralmente pelos que não queiram falar em falso e sem saber, sobre o que é que separa os orientais cismáticos e a Santa Igreja Católica.

“Nossos irmãos separados do Oriente e nós, não nos opomos unicamente acerca da autoridade do Papa, como creem frequentemente pessoas pouco informadas. Há, para começar, uma perpétua subestimação do nosso conhecimento de Deus, chamada de apofatismo (de apófase: negação) e que ignora o conhecimento realmente válido, embora pobre e analógico, que podemos obter das realidades divinas. Esse ponto é importantíssimo e opõe enormemente o Oriente à Teologia romana. Há o Filioque, e é uma palavra ponderosa! Há o palamismo, que reina geralmente como doutor nas “Igrejas do Oriente”. Há a rejeição, mais ou menos alardeada, mas real, da Imaculada Conceição. […] Há, no mínimo, ambiguidades e preterições acerca da transubstanciação eucarística. (Sem dúvida, a Igreja do Oriente crê na Presença Real, mas ela precisa mal o modo de conversão do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo, e os especialistas católicos não estão de acordo quanto ao sentido que deve ser dado às asserções greco- russas sobre esse ponto). Há inquietantes silêncios, mesclados a erros mais ou menos larvados sobre o Purgatório e a vida além-túmulo; sobre as indulgências; sobre o número dos sacramentos (a teologia sacramental do Oriente é muito mais hesitante do que a nossa, e não tem um septenário claramente determinado). Há diferendos sobre o papel da epiclese na consagração, sobre o progresso dogmático […].
“Finalmente, permanece o principal ponto de oposição: é o ódio, muitas vezes feroz, da Igreja do Oriente por Roma, sua incompreensão total da função do Papa na Igreja, aquela espécie de orgulho congelado que caracteriza o episcopado ortodoxo e que leva os popes ortodoxos a injuriar o Catolicismo de uma forma às vezes inacreditável (nos lugares santos, nos Bálcãs, etc.). É aí que se revela todo o veneno cismático, e é aí que está o ponto doloroso. Grandes teólogos russos como Serguei Bulgakov perdem visivelmente o sangue-frio ao falarem da Cátedra de Pedro: acumulam-se aí acusações de papolatria, de legalismo e juridicismo romano, etc.”

— Mas e se esse padre tiver sido recebido e aceito pela Fraternidade São Pio X, e se foi diante de um dos bispos dela que ele abjurou, isso não o autoriza a fazer uso do sacerdócio recebido no cisma?

— Os membros da Fraternidade S. Pio X não têm poder especial nenhum, os bispos que dela são membros não são do corpo episcopal da Igreja Católica: jamais um Soberano Pontífice agregou-os a ele, nem diretamente (por mandato pontifício) nem indiretamente por intermédio das leis em vigor na cooptação do episcopado. E, portanto, a passagem pelas mãos da Fraternidade não modifica em nada a situação de um sacerdote proveniente do cisma. O que é necessário compreender bem é que não há somente uma irregularidade que precisa de ser levantada (o que já é muito!): há uma legitimidade fundamental que carece de ser assegurada. Conforme a constituição mesma da Igreja e segundo o direito dela, a admissão ao ministério sacerdotal é da alçada de um bispo, de um verdadeiro bispo católico sucessor dos Apóstolos por sua pertença ao corpo episcopal.

“Fora de uma comissão recebida da Igreja Católica, a administração dos sacramentos é ilícita e sacrílega. […] A autoridade para dispensar os sacramentos vem toda ela da missão dada aos Apóstolos. […] A missão apostólica não se encontra senão na Igreja Católica… Bem que seja possível, de fato, dispor dos bens de outrem sem ter recebido dele missão para tanto, nada é mais certo do que o fato de que ninguém dispõe legitimamente daquilo que pertence a outrem sem ser por mandato deste. Ora, os sacramentos são o bem de Cristo. Logo, eles não são legitimamente dispensados senão por aqueles que têm missão da parte de Cristo, ou seja, por aqueles aos quais provém a missão apostólica.”
(Cardeal Billot, De Sacramentis, tomo I, tese XVI).

Além disso, para que seja admitido um sacerdote proveniente do cisma, os Papas reservaram a si o exame e a resolução do caso. Em razão da gravidade – tanto doutrinal quanto sacramental – do que está em jogo, eles não deixaram aos bispos a decisão a esse respeito (o que teria sido possível, em vista da missão episcopal).

— Sim mas, o senhor vem sempre com direito canônico e companhia. Então não se apercebe de que há necessidade, urgência, necessidade das almas? O seu juridicismo, o seu legalismo, ele se choca com o próprio bem da Igreja, logo não se aplica!

— Como acaba de ser explicado, há bem mais do que uma lei em jogo: há a ordem de coisas que se enraíza na constituição mesma da Igreja tal como Jesus Cristo a instituiu. O Cardeal Billot não lhe ocultou a gravidade do caso. E depois, é bom mesmo eu lhe dizer, há algo de mil vezes pior que juridicismo ou legalismo: é o anarquismo. Não surpreende que essa tendência, que já existe na natureza humana como sequela do pecado original, se desenvolva com uma dinâmica medonha: a ausência prolongada de autoridade é disto um fator poderoso. Mas isso não torna o anarquismo menos perigoso nem menos corrosivo do espírito cristão. Esse anarquismo manifesta-se de várias maneiras, das quais seguem aqui algumas (lamentavelmente, acumuláveis).

A primeira consiste em dizer que, não havendo mais Papa, não há mais lei… É um anarquismo radical, destrutivo, que se esquece de um pequeno e simples fato: o cabeça da Igreja é Jesus Cristo! A Sé à direita do Pai não está vacante! O Papa tem autoridade soberana sobre o Corpo da Igreja, mas autoridade vicária com relação a Jesus Cristo. Aquilo que o Papa ata ou desata na terra fica ligado ou desligado nos céus pelo poder de Jesus Cristo e assim permanece, mesmo quando o Papa cessa de existir (salvo estipulação particular). E, por isso, a lei da Igreja permanece com todo o seu vigor, e ela permanece no estado em que a deixou o último ato pontifício.

A segunda forma de anarquismo, mais ordinária, consiste em decretar que há necessidade e, portanto, que toda lei que entrave o capricho sacerdotal, ah, perdão! o ministério sacerdotal, é de aplicação suspensa. Rapidamente essa anarquia se torna habitual e cega, e decreta-se a inaplicação da lei sem nem sequer se dar ao trabalho de examinar o teor da lei, sem nem mesmo investigar o que foi que a Igreja permitiu ou proibiu em casos particulares. É um anarquismo de preguiça e de ignorância, mas um verdadeiro anarquismo.

A terceira forma consiste em não ver distinção alguma entre a Constituição da Igreja e a legislação da Igreja, entre aquilo que pertence à natureza das coisas e aquilo que pertence à disciplina, entre o que é da alçada do direito divino e o que é da alçada de direito puramente eclesiástico. Não se está mais diante de uma epiqueia prática (e frequentemente ilegítima) como no caso anterior, mas no caso de uma epiqueia semi-teologal que faz de cada qual um “constitucional” que tem a Igreja à sua mercê.

O anarquismo é uma epidemia por vezes reivindicada, não raro surda e dissimulada, que torna toda discussão impossível – mais não seja, porque o anarquista (de direito divino!) saca mais rápido do que a própria sombra a acusação de juridicismo, de legalismo… sem bem saber o que querem dizer essas palavras, mas pouco importa, o essencial sendo o impacto, para descredibilizar a quem se esforça por avançar dizendo consigo: O verdadeiro bem das almas, aquele que é frutuoso e durável ainda que menos visível (ou entravado pelos meus defeitos), é aquele que se faz conforme a vontade de Deus. E essa vontade de Deus, ela não é decretada de acordo com o humor do momento; ela está inscrita na natureza das coisas tal como Deus a instituiu, tal como ela se manifesta a quem se disponha a procurá-la ali onde ela é ensinada: no Evangelho de Jesus Cristo, no Magistério da Igreja Católica Romana, na preservação da unidade da Igreja, no direito canônico, na teologia de Santo Tomás de Aquino, no exemplo dos santos.

*

— Pelo menos os orientais cismáticos escaparam da influência do modernismo: quando se convertem, eles são por isso de uma ortodoxia na qual podemos fiar-nos, e a doutrina deles é deveras segura!

— Está aí uma derradeira ilusão que é preciso dissipar, por meio da qual se tenta reconfortar as bravas gentes que ainda teriam alguma hesitação. Ilusão tola, mas a experiência mostra que ela é tenaz. Louis Jugnet enumerou-nos, mais acima, os erros doutrinais que separam os cismáticos da verdade católica. São abundantes. Porém, mais até que abundantes, são profundos e dizem respeito ao que é fundamental na inteligência da fé (essa inteligência que é, precisamente, o alvo do modernismo). Seria aliás espantoso que fosse diferente, pois seria inverossímil que dez séculos de cisma não tivessem deixado grave vestígio algum nas mentalidades e nas doutrinas.

Um rápido exame revela três erros desse tipo. O primeiro refere-se ànecessidade mesma da doutrina. Ela é uma referência externa (a pertença a uma obediência) ou uma necessidade interna, vital, para a vida da fé e a conduta da vida? O segundo é uma indistinção permanente entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, que é contudo um ponto crucial e permanente da doutrina católica. O terceiro é o fideísmo, erro que pretende que Deus (Sua existência e Seus atributos) não possa ser conhecido pela luz da razão mas somente pela Revelação divina. E esses três erros estão nas fontes do modernismo…

Trad. por Felipe Coelho

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