[N.d.E.: Particularmente não estou de acordo com o artigo, mas devido à posição de um legalismo seletivo por parte de alguns membros do clero sedevacantista, julgo necessária a publicação deste. Afinal, como católicos, devemos ter o nosso sim como sim e o não como não. Se for para ser legalista, que ao menos siga até às últimas consequências como faz o Pe. Hervé Belmont.]
Padre Hervé Belmont
2000
“Unicamente o Papa institui os bispos.
Esse direito pertence a ele soberanamente,
exclusivamente e necessariamente,
pela constituição mesma da Igreja
e pela natureza da hierarquia”
Dom Adrien GRÉA,
L’Église et sa divine constitution,
Casterman 1965, p. 259.
“A Igreja sabe melhor do que eu como ela quer ser servida,
o meu juízo não pesa nada perante o dela, exatamente nada,
e prefiro ficar sem fazer nada ‘super hanc petram’,
se ela assim o entender,
que ir construir sobre a areia à revelia dela.”
Pe. V.-A. BERTO,
Notre-Dame de Joie,
N.E.L., 1974, p. 222.
Prefácio
Constituição da Santa Igreja Católica, preocupação com o bem comum, prudência exacerbada por sermos órfãos, necessidade de paciência, primado do testemunho da fé e da retidão doutrinal… aí estão argumentos que, em nossos tristes tempos, não tornam eficaz um discurso, mesmo entre os católicos decididos a permanecer fiéis em meio à terrível tempestade que se abate sobre a Santa Igreja. Preferem ater-se à facilidade de assistência à Santa Missa, à comodidade na recepção dos sacramentos, à perenidade das obras empreendidas… Certamente, estes são grandes bens, mas são bens que não se pode desejar nem obter a qualquer preço.
Será mister recorrer às sagrações episcopais sem mandato apostólico? Esse recurso é suscetível de ser a santa vontade de Deus? Nas últimas duas décadas, muitos responderam afirmativamente. Por aí se vê como é necessário debruçar-se muito seriamente sobre a questão, e a presente brochura tenta fazê-lo à luz da teologia e da prática da Igreja. Para dizer a verdade, deveria ser impossível sequer contemplar fazê-lo de outro modo!
Este opúsculo reúne escritos de circunstância produzidos ao longo de vinte anos; nisso, falta-lhe unidade e expõe-se a numerosas repetições. Em compensação, apresenta a vantagem de expor um pensamento que vemos formar-se aos poucos, à medida que as questões se põem e que a necessidade se faz sentir: não se trata de “música de câmara”, trata-se de um dique edificado pouco a pouco à medida que as vagas do recurso ao episcopado aumentam e ameaçam tudo submergir.
Poder-se-á, ainda, fazer notar que este estudo foi e continua ineficaz, pois a quase totalidade do pequeno mundo tradicionalista recorre a essas sagrações que boa teologia e verdadeiro sentido da Igreja fazem julgar inaceitáveis. Aos olhos humanos, tal ineficácia é fato certíssimo! Mas, ao olhos do Bom Deus e de Nossa Senhora, não consiste a eficácia em permanecer fiel, quaisquer que sejam as consequências, e em esclarecer seu próximo, na medida de suas possibilidades?
Constituição da Santa Igreja Católica, preocupação com o bem comum, prudência exacerbada por sermos órfãos, necessidade de paciência, primado do testemunho da fé e da retidão doutrinal… é bem sob esta luz que é preciso colocar-se. Isso significa que a publicação desta brochura parece oportuna; chega mesmo a ser urgente, de tanto progride a aceitação do episcopado sem mandato: o fato consumado, o desejo de encontrar algum conforto sacramental, o obscurecimento do sentido da Igreja são disso a causa. É preciso reagir e reencontrar o brilho da santa doutrina.
As filhas de Ló1
A crise, pela qual é misteriosamente afetada a Santa Igreja Católica, perdura e perdura ainda, e à vista humana seu termo não aparece. São muitos os que estimam que o recurso a sagrações episcopais [realizadas sem nenhum mandato apostólico] é a única solução para sobreviver até o retorno da ordem, e que essa solução é abençoada por Deus, não obstante a lei ou a constituição da Igreja Romana. Eles já faz tempo que passaram ao ato, a ponto de os bispos “ilegais” serem numerosos e os haver de todos os gêneros e de todas as posições. Cada qual pode encontrar aquele que lhe convém.
Essa via episcopal, pelo contrário, parece-nos impossível em termos de doutrina e de um perigo temível em termos de prudência. É o que queremos exprimir no presente parecer. Resignamo-nos a falar disso novamente, porque não é sem grande tristeza que vemos os adeptos dessa via ganhar terreno, pondo aos poucos os católicos perante o fato consumado (o que não é um modo de progressão muito evangélico), por vezes ao arrepio de toda a dignidade (não vemos um desses bispos fazer publicidade como se faria a de uma marca de sabão?… Dom Fulano lava mais branco?). Além disso, tememos que essa questão se torne, por um lado, itinerário de fuga para longe da doutrina e da prática católicas e, por outro, pomo de discórdia entre católicos que são de resto bons amigos, pelos quais temos estima e reconhecimento. Este parecer não tem outra ambição que a de esclarecer-lhes, pondo a questão sob a única e verdadeira claridade: a da santa doutrina.
Este parecer não tem autoridade alguma em razão de seu autor, que não passa de um pobre pecador. Sua única autoridade é a dos argumentos que apresenta. Mas atenção: os argumentos são graves, enraízam-se na doutrina perene da Igreja e em reflexão de mais de quinze anos. Essa estabilidade não é de modo algum prova de verdade, mas, num universo de opiniões que flutuam com os anos e os interesses2, pode ser um título a se fazer escutar. E atenção, ainda, à gravidade das consequências de uma atitude na qual a salvação eterna de uns e de outros está envolvida.
Não tendo o lazer de compor tratado sintético da questão, procederemos em forma de retrospectiva, apresentando textos que abrangem uma quinzena de anos, acrescentando-lhes um complemento doutrinal e a resposta a algumas dificuldades, tirando por fim conclusão do conjunto. O leitor benévolo quererá bem desculpar o tom um pouco pessoal dado ao todo, mas não soubemos como evitá-lo.
Retrospectiva
A primeira ocasião de refletir precisamente sobre a natureza do episcopado em relação à crise da Igreja foi-nos propiciada por um curioso documento, primeira extrapolação do poder episcopal e primeira abertura longínqua rumo às sagrações: numa ordenança do 1.º de maio de 1980, Dom Lefebvre concedia aos padres da Fraternidade São Pio X “poderes” literalmente exorbitantes, chegando até à faculdade de dar o sacramento da confirmação ou de dispensar de impedimentos ao matrimônio. Tais poderes eram nulos, sem dúvida alguma, mas mostram até que ponto os católicos estavam prontos a aceitar, sem nenhuma reflexão, tudo o que lhes obtivesse conforto sacramental. Tivemos assim ocasião de começar a estudar a natureza dos poderes episcopais e as relações entre a ordem e a jurisdição. Este estudo foi publicado no n.° 6 dos Cahiers de Cassiciacum [Cadernos de Cassicíaco].3
Em 7 de maio de 1981 (quase simultaneamente e nas mesmas condições que dois sacerdotes mexicanos, os padres Carmona e Zamora), o Rev. Pe. Guérard des Lauriers, O. P., recebia secretamente a sagração episcopal das mãos de Dom Ngo Dinh Thuc, que fora arcebispo de Hué. Tão logo souberam dessa notícia (no mês de janeiro seguinte), os Rev.s Pe.s Georges Vinson e Louis-Marie de Blignières e os clérigos Jacques-Marie Seuillot, Philippe Guépin, Bernard Lucien e Hervé Belmont difundiram uma declaração renovando sua adesão à “tese de Cassicíaco” sobre a vacância formal da Sé Apostólica, afirmando seu total desacordo com essa sagração, por razões teológicas e canônicas, afirmando também não acreditarem ter havido cisma e excomunhão. Lia-se aí, particularmente, o seguinte:
“Nestas condições, não vemos como a transmissão do episcopado ao Reverendo Padre Guérard des Lauriers possa se justificar do ponto de vista teológico. Não podemos, portanto, subscrevê-la de modo algum. Nós a deploramos, em razão do perigo próximo ao qual é exposta a ordem hierárquica na Igreja, e reprovamo-la, na medida em que está em nós fazê-lo. Nós desaprovamos, então, todo o eventual exercício de seu poder episcopal.”4
A questão era posta aí na perspectiva correta, a da constituição da Igreja e da natureza do episcopado.
Passam os anos. A reflexão progride, o estudo também.
Dom Castro Mayer, que entregara sua demissão de bispo de Campos, hesita em ordenar padres sem diocese. Uma nota teológica que redigimos em 1985 (ou 1984?), a pedido e para convencê-lo de que essas ordenações seriam legítimas na situação presente, argumenta, entre outras coisas, com a distinção essencial que deve ser feita entre o padre e o bispo do ponto de vista da relação com o Corpo Místico de Jesus Cristo, que é a Igreja. É esse argumento que será desenvolvido num pequeno estudo redigido em 1986, em resposta a uma pergunta que se ouve com frequência: dado que pode ser legítimo ordenar padres ilegalmente, por que não se poderia sagrar bispos? Eis aqui o essencial desse estudo:
« I. Dado dogmático.
a] A Ordem é um sacramento e um único sacramento (Concílio de Trento, D. 959).
b] Nesse sacramento, há sete ordens (D. 958).
c] É por disposição de Deus mesmo (divina ordinatione) que existe, na Igreja, hierarquia composta por bispos, padres e ministros (D. 966).
d] o bispo é superior ao padre; ele possui o poder de confirmar e de ordenar, e esse poder não é partilhado pelos padres (D. 967).
e] Estes últimos, como os clérigos de ordem inferior, não têm poder algum sobre essas funções: quarum functionum potestatem reliqui inferioris ordinis nullam habent (D. 960).
f] Os bispos foram estabelecidos pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus: regere Ecclesiam Dei (Atos X, 28).
II. O ensinamento de Santo Tomás de Aquino.
a] O sacramento da ordem é essencialmente ordenado à Santa Eucaristia (Suma Teológica, supl. Q. XXXVII, aa. 2 & 4); ora, com relação à Santa Eucaristia, o poder do bispo não é distinto do poder do padre; logo, enquanto a ordem é sacramento, o episcopado não é uma ordem (supl. Q. XL, a. 5).
b] Enquanto a Ordem é ofício relativo a certas funções sagradas, o episcopado é uma ordem, pois o bispo possui poder superior ao do padre sobre as ações hierárquicas relativas ao Corpo Místico (supl. Q. XL, a. 5).
Santo Tomás confirma essa doutrina no seu opúsculo XVIII, c. 24: Habet enim ordinem episcopus per comparationem ad Corpus Christi mysticum, quod est Ecclesia… sed quantum ad Corpus Christi verum, non habet ordinem supra presbyterum; o bispo tem ordem relativa ao Corpo místico de Cristo, que é a Igreja…; relativamente ao Corpo físico de Cristo, o bispo não tem ordem acima do sacerdote (in Billuart, Cursus theologiæ, de sacramento ordinis, c. X, d. IV, a. 2, ad 4um).
c] O episcopado é estado de perfeição ativo, de tal sorte que os bispos são, não perfecti (perfeitos) como os religiosos, mas perfectores (aperfeiçoadores ou fazedores de perfeitos) (Suma Teológica, IIa IIæ Q. CLXXXIV, a. 7).
III. Explicações teológicas.
O episcopado pode ser considerado de duas maneiras:
— seja adequadamente, segundo todo o poder que ele comporta essencialmente, poder de consagrar, de absolver, de ordenar, de confirmar e de governar; nesse sentido, o episcopado é verdadeiro sacramento, é a plenitude do sacerdócio;
— seja inadequadamente, segundo aquilo que ele acrescenta ao simples sacerdócio: poder de governar, de ordenar e de confirmar; nesse sentido, o episcopado não é sacramento, mas complemento intrínseco do sacramento da Ordem: a sagração episcopal não modifica essencialmente o caráter sacerdotal mas estende-o a novos efeitos (cf. Billuart, loc. cit.; Garrigou-Lagrange, de Ordine [in de Eucharistia], a. 1).
Feita essa distinção, comparemos o presbiterado (ou simples sacerdócio) com o episcopado inadequadamente considerado.
O simples padre é primeiro que tudo e essencialmente ordenado ao Corpo físico de Nosso Senhor Jesus Cristo – a Santa Eucaristia – e é em razão dessa ordenação que ele possui um certo poder sobre o Corpo Místico (absolver os pecados, gerere personam Ecclesiæ).
O bispo, enquanto é distinto do padre, é primeiro que tudo e essencialmente ordenado ao Corpo Místico – regere personam Ecclesiæ – e é em razão dessa ordenação que ele possui poder de ordem superior ao do padre, superior não intensive (pois não há nada de maior que celebrar a Santa Missa) mas extensive (estendido a novos efeitos).
Assim se explica facilmente como o Soberano Pontífice, que não possui nenhum poder direto sobre os caracteres sacramentais, pode dar a um simples padre o poder de confirmar (cf. Código de Direito Canônico, 782 § 2) ou de conferir certas ordens (Código, 951), ao passo que este último não tem, por si mesmo, nenhum poder para isso (nullam potestatem, D. 960).
O Soberano Pontífice tem a plenitude do poder na Igreja (Papa in Ecclesia habet plenitudinem potestatis, Santo Tomás de Aquino, IIIa, Q. LXXII, a. 11). De maneira transitória e precária, ele pode fazer um padre participar dessa regência do Corpo Místico que é própria dos bispos e, em razão dessa ordenação ao Corpo Místico, dar-lhe certos poderes episcopais, isto é, adaptar a novos efeitos seu poder sacerdotal.
Há na Igreja um só sacerdócio, que abrange dois graus diferenciados, não segundo o poder de ordem propriamente dito – pois haveria então dois sacerdócios especificamente distintos – mas segundo sua relação com o Corpo Místico (com consequências quanto ao poder de ordem).
O caráter do sacramento da Ordem é uma participação no poder sacerdotal de Cristo. Já a consagração episcopal faz o eleito participar no poder de realeza de Cristo: é em razão desse poder que seu poder sacerdotal é, não aumentado, mas estendido a novos efeitos, em domínios nos quais o bispo age na qualidade de dirigente da ordem eclesiástica.
A ordenação sacerdotal, de ordem estritamente sacramental, não pede por si mesma alguma jurisdição, embora torne apto a isso (há padres ordenados unicamente ad missam).
A sagração episcopal, por conferir sobre o Corpo Místico o poder de regência de Cristo (de maneira subordinada ao poder do Papa), cria uma exigência de jurisdição (todos os bispos são pelo menos in partibus).
IV. Consequências.
Não se pode, então, fazer o raciocínio seguinte:
Já que é lícito, na situação presente da Igreja, ordenar padres sem incardinação e sem cartas dimissórias, pode ser lícito sagrar bispos sem mandato apostólico; não passa de um grau a mais na aplicação da mesma regra, que necessita de razão mais grave certamente, mas que remonta ao mesmo princípio.
Porque a situação da Igreja é a ausência da Autoridade, e na medida em que essa situação é reconhecida como tal – assim como o exige o testemunho da fé –, é bem verdadeiro que é lícito ordenar assim padres, em razão do bem da Igreja, que requer a colação dos sacramentos contanto que a sua unidade não seja posta em perigo. Mas não se pode raciocinar assim com relação ao episcopado, por três razões:
1. Não há diferença de grau mas de natureza entre a transmissão “selvagem” do sacerdócio e a do episcopado; com efeito, o caráter “selvagem” dessas transmissões reside na relação delas com o Corpo Místico, e é precisamente essa relação mesma que é essencialmente distinta no sacerdócio e no episcopado.
2. Diferentemente do presbiterado, o episcopado é transmissível; ele é assim facilmente princípio, de início, de isolamento e de desinteresse pelo bem da Igreja, em seguida, de ruptura com ela. Isso é tanto mais “natural” pois o bispo é por natureza um dirigente, um hierarca.
3. Não se pode conceber um “episcopado diminuído” que seria legítimo de transmitir porque comportaria somente os poderes de ordem (confirmação, ordenação etc.) mas seria privado de sua relação de realeza com o Corpo Místico. Uma tal noção é um círculo quadrado, pois é precisamente essa relação que é o constitutivo do episcopado (inadequadamente considerado) e o fundamento de todos os poderes próprios ao bispo. E, portanto, uma sagração sem mandato apostólico será a usurpação de uma função hierárquica na Igreja.
V. Conclusão.
Demonstramos que o sacerdócio é de natureza essencialmente sacramental, ao passo que o episcopado é de natureza essencialmente hierárquica. Cremos que aí reside a solução da questão de uma sagração episcopal fora das normas canônicas. Nenhuma suplência é possível nesse domínio, pois tudo aí está em dependência essencial da Autoridade, que ninguém pode arrogar para si.
Sendo o simples sacerdócio essencialmente sacramental, sua transmissão tende por natureza à permanência da ordem sacramental na Igreja. Ora, essa ordem sacramental não depende da Autoridade senão em seu exercício e sua organização; logo, não é impossível contemplar uma suplência na situação presente.
Em contrapartida, o episcopado é essencialmente hierárquico, e sua transmissão tende, portanto, por natureza à constituição da hierarquia eclesiástica. Dado que a ordem hierárquica está em dependência essencial da Autoridade, nenhuma suplência é possível.
Definitivamente, o que está em causa é a própria natureza da Igreja, posta em perigo pelo projeto de uma sagração sem mandato; uma tal sagração, com efeito, equivale a negar nos atos sua estrutura hierárquica divinamente estabelecida. »
Em 30 de junho de 1988, por sua vez, Dom Lefebvre sagra quatro bispos. Ele o faz publicamente, ao mesmo tempo que protestando reconhecer plenamente a Autoridade de João Paulo II. Estamos aqui em plena incoerência, e é inteiramente compreensível que numerosos fiéis tenham sido desorientados por essas sagrações. Em nota publicada nessa ocasião, nossa preocupação é, no entanto, a de não uivar com os lobos, mas de mostrar que a ruptura que todo o mundo proclama não está no ato de Dom Lefebvre, mas
“situa-se então no nível da autoridade. Paulo VI e João Paulo II, que retomou e confirmou a obra daquele, romperam com a função que eles têm o dever de exercer e estão privados da assistência especial prometida por Jesus Cristo a São Pedro e a seus sucessores.”5
Em setembro de 1991, a angústia que se pode legitimamente sentir perante a situação da Santa Igreja impele-nos a redigir um pequeno estudo intitulado Angor Ecclesiæ. Na enumeração dos erros que fazem estrago, inclusive, nos que fazem profissão de defender a Santa Igreja (a liberdade religiosa, o retorno do galicanismo ou a presença do gnosticismo), consagramos um parágrafo à inflação episcopal. Essa proliferação de bispos é sinal indubitável do enfraquecimento do sentido da Igreja; citávamos um estudo que estima o número deles, na ocasião, na casa do milhar (!) e que afirma que uma lista nominal deles contém mais de quinhentos6. Dizíamos em conclusão:
“Será possível reconhecer a Igreja una e santa nessa auto-atribuição de funções que só podem existir em dependência essencial da Autoridade, nessa multiplicação de grupos que não aspiram senão à sua autonomia sacramental e eclesial? Como distinguir o que está ligado à Igreja Católica do que não mais está?”
Enfim, no mês de julho de 1994, em Réflexions sur la situation de l’Église [Reflexões sobre a situação da Igreja], um levantamento geral daquilo que nos parece exigido pela fé e por seu testemunho na situação presente, consagramos dois parágrafos à questão que nos ocupa. Ei-los aqui, esses dois parágrafos, que se situam mais particularmente no ponto de vista da prudência:
« A via episcopal.
A consideração da Apostolicidade, que se manifesta claramente como a chave de um juízo fundado na fé sobre a situação da Santa Igreja, determina-nos igualmente a permanecer em extrema reserva a respeito das sagrações episcopais sem mandato apostólico. Numerosos católicos veem nelas a única solução à qual é mister resignar-se, para o acesso aos sacramentos autênticos da Igreja ser possível.
Claro que enxergamos bem que a necessidade dos sacramentos é premente e que há aí um problema urgente ao qual não somos de modo algum insensível, mas enxergamos com a mesma agudeza que é preciso não atentar contra a unidade da Santa Igreja, enxergamos com inquietude os perigos bem reais de se empenhar numa via da qual não conhecemos o resultado e da qual é de temer que arraste seus partidários muito mais longe do que queriam; nós enxergamos que há aí um grande risco de perder totalmente o sentido da Igreja e de sua hierarquia, sentido que já está bem solapado por todos os tipos de teorias “em voga” e que fazem estrago nas inteligências católicas.
Enfim, não vemos como justificar em face da teologia católica tal recurso às sagrações ilegais. Parece-nos que a natureza do episcopado – que é essencialmente hierárquico na medida em que se distingue do simples sacerdócio – faz com que só possa haver aí usurpação daquilo que pertence exclusivamente ao Soberano Pontífice. Não pretendemos resolver a questão, mas temos aí, de modo suficiente, elementos para alertar do perigo e manter a reserva.
As duas linhagens.
A consideração das condições concretas em que foram realizadas as sagrações só faz aumentar essas reservas. Duas linhagens episcopais compartilham entre si7 os sufrágios dos católicos. [7. Teríamos feito melhor em escrever: “Duas linhagens episcopais se oferecem aos sufrágios dos católicos”, pois não são raros aqueles que, com justiça, recusam o princípio das sagrações.]
A que saiu de Dom Lefebvre tem a seu favor o caráter público, a unidade e o caráter “sério” e limitado; mas foi feita ao arrepio da doutrina católica, tanto nos fatos, pois feita com o reconhecimento de João Paulo II como Soberano Pontífice (ao mesmo tempo que negando a ele o poder de reservar para si as nomeações episcopais), quanto na doutrina subjacente às justificativas aberrantes que acompanham as sagrações que estão em sua origem.
A segunda linhagem é a que saiu de Dom Ngo Dinh Thuc, ex-arcebispo de Hué; encontramo-nos aí em presença de uma proliferação de sagrações mais ou menos clandestinas, de u’a mescla de ramos católicos e de seitas que é por vezes muito difícil de distinguir, pois estão inextricavelmente misturados. A situação dos ramos católicos é muito mais coerente que a da primeira linhagem e não comporta a mesma negação implícita da doutrina católica, mas essa multiplicação e (semi) clandestinidade das sagrações, assim como uma certa afinidade com movimentos duvidosamente católicos ou francamente sectários, obrigam a ampliar a reserva de princípio que fizemos.
Essa reserva não ignora as vantagens trazidas por essas sagrações, mas considera que a unidade da Igreja é um bem muito maior, permanente e inalienável, e não somente de ocasião. »
Aí estão as principais etapas desta retrospectiva, etapas que mostram a estabilidade do parecer que expomos e sua independência de toda a questão de pessoas. Seu cerne é a expressão de uma impossibilidade doutrinal referente à natureza mesma do episcopado.
Complemento doutrinário
O episcopado é essencialmente hierárquico, como dissemos, mostramos, repetimos. Por sua sagração episcopal, o bispo é membro da Igreja docente, ele participa na regência do Corpo Místico, ele chama8 uma jurisdição, cujas determinações e aplicação pertencem ao Papa.
Cumpre acrescentar que a recíproca é verdadeira: a jurisdição eclesiástica é essencialmente episcopal, a hierarquia da Igreja é uma hierarquia de bispos. Longe de nós pregar algum tipo de episcopalismo: o Papa tem a plenitude do poder na Igreja – ele não é um bispo dentre outros, um primus inter pares –, ele tem o primado de jurisdição, ele é a fonte de toda a jurisdição eclesiástica. Mais precisamente, o Papa é soberano, dotado de infalibilidade a título pessoal e da Autoridade suprema da Igreja, porque ele é o bispo de Roma, o bispo da Igreja mãe e mestra, o bispo dos bispos (Apascenta as minhas ovelhas, disse Nosso Senhor a São Pedro). O Papa, tendo além disso jurisdição imediata sobre todos os fiéis, é o bispo de cada um dos católicos (Apascenta os meus cordeiros). O Concílio do Vaticano, ao querer caracterizar essa jurisdição do Papa, diz que é uma jurisdição episcopal:
“Ensinamos, pois, e declaramos que a Igreja Romana, por disposição divina, tem o primado do poder ordinário sobre todas as outras Igrejas, e que este poder de jurisdição do Romano Pontífice, poder verdadeiramente episcopal, é imediato… jurisdictionis potestatem, quæ vere episcopalis est, immediatam esse” Pastor Aeternus, D. 1827, 18 de julho de 1870.
Há, portanto, equivalência (implicação recíproca) entre episcopado e jurisdição.
Aceder ao episcopado fora da jurisdição da Igreja é, portanto, um atentado, não simplesmente contra a legislação da Igreja9, mas contra a constituição mesma da Igreja: logo, isso não é admissível jamais. A epiqueia nunca se pode exercer contra a natureza das coisas: isso é verdadeiro em toda a ordem natural, mas bem mais ainda no que concerne à natureza sobrenatural da Igreja.
Queira-se ou não, uma sagração episcopal é, pois, a instauração de uma hierarquia; e, se essa sagração não é efetuada por ordem pontifícia, é a criação de uma nova hierarquia, outra que não a da Igreja Católica. Sinal indubitável disso é também que essas sagrações transtornam toda a vida da Igreja e invertem a prática a que ela se atém por sua constituição divina. Assim:
— escolhe-se ser bispo, não se é escolhido;
— escolhe-se ligar-se a tal bispo, não se o recebe da Igreja.
Perguntas
1. Mas não fizestes a mesma coisa? Fostes vós que escolhestes ser ordenado por Dom Lefebvre! É fácil falar, agora que sois padre!
É verdade. Dom Lefebvre não era um bispo que a Igreja nos tivesse dado [no sentido da jurisdição]… e é a triste consequência da crise presente. Mas Dom Lefebvre era um bispo que a Igreja havia se dado a si mesma [e, portanto, indiretamente a nós]. Ora, o problema está aí: encontramo-nos agora em presença de bispos que a Igreja não nos deu, e que ela nem sequer se deu a si mesma. A que título poderíamos, e mais ainda deveríamos, reconhecê-los e nos ligarmos a eles recorrendo ao episcopado deles?
Ser padre é uma graça imensa, mas não é, em nenhum caso, um direito. Não se deve, pois, desejar ser padre a qualquer preço. Não se pode desejar sê-lo de encontro à constituição da Santa Igreja; há aí desordem grave, que não pode ser a vontade de Deus. Se uma vocação é real, é certo que Nosso Senhor a ajudará a chegar a bom termo (quando Ele quiser) e é mais certo ainda que Ele não quer que ela vingue não importa como, em desprezo da natureza da Santa Igreja. De modo mais geral, nos tempos de perturbação e de incerteza, é insensato regrar sua conduta segundo seus próprios desejos ou segundo sua própria perspectiva do futuro: é cair, com certeza, na ilusão e no juízo particular. É preciso regrar sua conduta com base na doutrina, nos princípios e na prática da Igreja. Mesmo se temos a impressão de não avançar, não extraviamos nem a nós mesmos nem àqueles que confiam em nós.
2. E quanto ao aspecto prudencial que anunciastes?
O aspecto prudencial foi evocado aqui e ali nos textos citados acima; é uma evidência para quem abre os olhos e é, além disso, consequência inelutável do aspecto teológico.
Antes de tudo, podemos dizer que somos contra as sagrações sem mandato apostólico porque não somos a favor: em matéria tão grave, cujas consequências podem ser incalculáveis tanto em efeitos desastrosos quanto em extensão no tempo [não há hierarquias cismáticas que duram há quinze séculos?], seria necessária uma certeza bem embasada e bem sólida para passar ao largo da lei da Igreja – à qual está ligada a mais severa das excomunhões – que estrutura sua vida hierárquica e sacramental. Ora, essa certeza, nós não a possuímos, muito pelo contrário.
Além disso, a proliferação das sagrações, o espírito de anarquia que daí resultou, a dificuldade de discernir quem é católico e quem não é, a perda da solicitude para com a Igreja universal, as estranhas doutrinas que circulam para justificar as sagrações, tudo isso pode encher o espírito de inquietude e de angústia: isso não é católico, isso não é justificável, isso é fruto de uma falsa doutrina sobre a unidade da Igreja e do episcopado, é queda em uma tentação sob aparência de bem que lisonjeia secretamente o espírito anarquista e presunçoso que carregamos desde o pecado original.
Em outubro de 1992, o diácono Zins publicava um número especial de sua revista Sub tuum præsidium consagrado ao que ele chama “gentilmente” de conluios dos “guérardo-thucistas” com as seitas.
Esse número é uma mixórdia onde é difícil de se encontrar; mas, mesmo pondo as coisas em perspectiva, mesmo fazendo abstração dos amálgamas prematuros e partidários que ele poderia manifestar, permanece o fato de que não há como não ficar vivamente impressionado ou mesmo assustadíssimo com esse mundo mais ou menos subterrâneo de sagrações e desastres. Quantos fatos indubitáveis e escandalosos, quantas catástrofes espirituais e humanas, que mundo dúbio repleto de perturbações! Está aí a Igreja?
3. Não há, então, ninguém de virtuoso dentre os que aderiram [se sont ralliés – N. do T.] ou se resignaram à via episcopal?
Claro que sim! Mas é pôr-se em má perspectiva discutir a virtude deste ou daquele… sem falar dos riscos de juízo falso ou subjetivo. Pois a virtude de uma pessoa, por maior que a suponhamos, não garante a verdade dos princípios que ela professa ou aplica. Essa virtude pode compensar por um tempo os efeitos perversos dos falsos princípios, mas a longo prazo, seja nele seja em seus sucessores ou discípulos, esses falsos princípios acabam dando seus frutos, e por vezes de modo tanto mais violento quanto foram mais tempo impedidos pelas qualidades pessoais daquele que os professa. A virtude de um homem pode dar uma presunção favorável, mas não dispensa jamais de examinar o que ele professa do ponto de vista da verdade, isto é, do ponto de vista da fé, da doutrina e da prática da Igreja; foi a isso que nos esforçamos, fazendo abstração das questões de pessoas.
4. O que propondes fazer?
Nada! O que o Bom Deus nos pede é, primeiro, sermos fiéis, custe o que custar: “Que os homens nos considerem como os ministros de Jesus Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, o que se requer nos despenseiros é que cada um se encontre fiel”10. Não temos solução substituta, a não ser a fé que nos ensina que Nosso Senhor cuida Ele Mesmo da perenidade de Sua Igreja: nossa preocupação principal deve ser a de permanecer nesta Igreja, sem comprometer sua unidade e nossa salvação por atos que atentem contra a sua constituição, levando o testemunho da fé e nos santificando no lugar a que o Bom Deus nos designou.
A esse respeito, ouve-se frequentemente a objeção: se não tivesse havido sagrações, não haveria mais sacramentos… Pode-se pensar, com igual verossimilhança, que, se não tivesse havido sagrações, Deus mesmo as teria provido, pondo fim à crise da Igreja. Estais dizendo que, se não tivesse havido sagrações, a crise da Igreja teria terminado? Por que não? Fica manifesto por aí, em todo o caso, que isso é pôr-se em má perspectiva. Não é com “E se” que se raciocina, mas com os princípios da Igreja.
Conclusão
Queremos crer que soubemos manifestar a impossibilidade [doutrinal] e a gravidade [prudencial] das sagrações episcopais sem mandato apostólico. Compreender-se-á então que, como conclusão, nós afirmemos que não queremos ter parte alguma, nem direta nem indireta, nisso que consideramos um atentado contra a constituição da Igreja e uma via perigosa. Em caso algum, queremos deixar crer que nós a aprovamos. Supondo que nos enganemos (o que nos parece impossível, no caso, pois Deus não vai contra a Sua Igreja, e não a desmente), teremos ao menos o papel do velho rabugento que terá impedido dois ou três imprudentes de ir depressa demais ou longe demais.
Definitivamente, a história dessas sagrações é análoga à das filhas de Ló11. Essas infelizes, transtornadas com o dilúvio de fogo que destruiu Sodoma e Gomorra e com a morte da mãe, transformada em estátua de sal, acreditando que seu pai e elas seriam os únicos sobreviventes da espécie humana, creram-se autorizadas aos atos mais monstruosos: elas embriagaram duas vezes o pai, a fim de assegurar-se descendência à revelia dele – pois ele nunca teria consentido com aqueles abomináveis incestos. Assim nasceram a raça dos moabitas e a dos amonitas, que foram inimigos terríveis do povo de Israel. Essas duas filhas não podiam invocar a desculpa da necessidade, pois nunca necessidade alguma autoriza a violar a lei natural e, além do mais, elas eram joguete de uma ilusão: o mundo continuava a existir além delas.
Do mesmo modo, há sempre ilusão e grande perigo em crer que nós somos os únicos e que nada de bom, nada de verdadeiro, nada de autêntico existe além de nós e de nossos amigos. Nosso temor é que os partidários das sagrações se deixem hipnotizar por uma necessidade que eles invocam equivocadamente como permitindo atos que a Igreja só pode reprovar. É preciso verdadeiramente embriagar a doutrina católica sobre a constituição da Igreja, para fazê-la admitir que as sagrações sem mandato apostólico são legítimas. Esperamos que delas não nasçam novas gerações de moabitas e amonitas.
Digitus Dei non est hic
Um abismo intransponível:
O episcopado autônomo12
A revista Sodalitium publicou, sob a pluma do Sr. Pe. Francesco Ricossa,13 longa refutação de nosso artigo As filhas de Ló, publicado no n.° 3 de Les Deux étendards, artigo no qual expusemos nossa recusa das sagrações episcopais realizadas sem mandato apostólico, assim como os motivos dessa recusa.
A crítica de Sodalitium é severa. Nossa exposição sobre a natureza do episcopado é qualificada ali de vincada pelo galicanismo e de tirada do ensinamento do Vaticano II. Ai, ai, ai! Vale a pena determo-nos aí um pouco, tanto mais que nos encontramos em presença de verdadeiro paradoxo: nós recusamos um episcopado autônomo, apoiando-nos numa doutrina que, se nos diz, concede demasiada autonomia ao episcopado!
O nó da questão é, pois, a natureza do episcopado, e de suas relações com a constituição hierárquica da Igreja.
A dificuldade de tratar essas questões é grande, ao menos por três razões.
A primeira é uma diferença na nomenclatura dos poderes da Igreja; o Magistério14, conforme o Santo Evangelho, distingue três poderes: ensino (ou Magistério), santificação (ou Ordem) e governo (ou Jurisdição); o Direito Canônico, situando-se no plano prático, e na esteira dele alguns teólogos como Journet, distinguem somente dois: Ordem e Jurisdição15. Cumpre, pois, atentar sempre para a compreensão e a extensão das palavras que se emprega, sobretudo se se passa de uma a outra, sob pena de construir um quebra-cabeça mal ajambrado. Tanto mais que, seja qual for a nomenclatura adotada, a jurisdição diz-se de maneira analógica nos diferentes domínios em que se aplica.
A segunda é que a Igreja tem uma hierarquia, e essa única hierarquia ordena-se segundo duas razões diversas: a ordem e a jurisdição.
A terceira provém do fato de Santo Tomás de Aquino não ter escrito nenhuma obra tratando ex professo da Igreja; é preciso então ir procurar a luz teológica noutros tratados, em particular no tratado do sacramento da ordem.
Essas dificuldades fazem com que grande número de teólogos sobrevoem rapidamente a questão do episcopado, com frequência só tratando do episcopado uma vez recebida a jurisdição do Soberano Pontífice, mal distinguindo, na dignidade e poderes dos bispos, aquilo que provém dessa jurisdição e aquilo que provém de sua consagração episcopal.
Tanto para corrigir algumas imprecisões ou erros de linguagem de que fomos culpado16, quanto para mostrar que nosso tratamento do episcopado é inteiramente clássico, e tomista, e incontestável, eis aqui longos excertos de L’Église du Christ, son sacerdoce, son gouvernement [A Igreja de Cristo, seu sacerdócio, seu governo] [pp. 67-79], estudo do Pe. Ch.-V. Héris, O.P., que – será mister precisá-lo? – não é nem galicano, nem conciliar, nem influenciado pelo Pe. de Blignières, nem está sob o império da paixão ou da amargura, nem especialmente desejoso de atingir ou de beneficiar a quem quer que seja, mas simplesmente preocupado em dizer aquilo que é.
« o padre, com efeito, por esse caráter [sacerdotal] recebe poder direto e imediato sobre o corpo verdadeiro de Cristo; ele pode consagrar o pão e o vinho ao Corpo e ao Sangue de Jesus, e oferecê-los a Deus em sacrifício, renovando o gesto do Calvário. Este é o seu ofício próprio e principal. Desse poder sobre o corpo de Cristo na Eucaristia, deriva para o padre o poder de santificação sobre os fiéis pelos outros sacramentos: pois, estando encarregado do culto eucarístico, cabe a ele preparar as almas e torná-las dignas de nele participar. Os sacramentos são precisamente instituídos para ordenar as almas à Eucaristia; o padre poderá então administrar esses sacramentos, em vista de encaminhar as almas a uma união mais estreita com Cristo no sacrifício e na comunhão eucarísticos. Há entre o poder do padre sobre o corpo verdadeiro de Cristo e o poder sobre Seu corpo místico a mesma ordem que entre a Eucaristia e os sacramentos: a Eucaristia é a finalidade dos sacramentos; o poder eucarístico do padre é também a finalidade e a razão de ser do seu poder sacramental. Esse poder não é, pois, falando propriamente, um poder de regência, é um poder de santificação do corpo místico, um poder de mediação sacerdotal.
Daí que, toda a vez que os sacramentos, por sua própria natureza, pedirem, para serem administrados validamente, não somente um poder de santificação, mas um verdadeiro poder de regência, será exigido, para conferi-los, algo além do simples caráter sacerdotal. É o que ocorre com o sacramento da Penitência:17 é o que se produz de maneira muito mais elevada na colação dos sacramentos da Ordem e da Confirmação. »
« Não se pode esquecer, com efeito, que, ao mesmo tempo que santificam as almas, os sacramentos, pelos três caracteres que produzem, estabelecem uma sociedade cultual orgânica composta de simples membros, defensores autorizados, os sacerdotes. Para constituir uma tal sociedade e conferir a seus membros uma dignidade que os distingue dos outros, não seria suficiente somente o poder sacerdotal de santificação: é preciso ter um poder direto sobre o corpo místico de Cristo, é preciso ser apto a regê-lo e a governá-lo. O batismo, é verdade, dirigindo-se a homens que ainda não fazem parte da Igreja e não estão submetidos à sua autoridade, não requer, por si, para ser administrado, esse poder de regência: um simples padre pode introduzir na Igreja a quem quer que exprima tal desejo. Mas a partir do momento em que o homem, por seu caráter batismal, faz parte da sociedade cultual cristã, ele está submetido imediatamente àqueles que têm autoridade para regê-la. Por conseguinte, quando se tratar, no interior mesmo do culto cristão, não somente de santificar as almas, mas de elevá-las a uma dignidade que as faça participar de maneira mais íntima do sacerdócio de Cristo, o simples padre não poderá por si mesmo operar essa elevação. Será preciso que ele seja revestido de uma autoridade que lhe dê poder direto e imediato sobre os membros do culto cristão. “Pela Ordem e pela Confirmação”, escreve ainda Santo Tomás, “os fiéis são deputados a ofícios especiais: uma tal deputação pertence propriamente ao cabeça. É por isso que a colação desses sacramentos pertence unicamente ao bispo que desempenha na Igreja encargo de príncipe” (Sum. Teol., IIIa, q. 65, art. 3, sol. 2).
Notemos que não se trata aqui de simples questão de licitude: sob esse aspecto, todo o padre, na administração dos sacramentos, está submetido à autoridade da Igreja. É a própria validade do sacramento que está em jogo: em razão de sua natureza especial, que é de conferir uma certa excelência na ordem cultual, a Confirmação e a Ordem supõem, para serem dadas validamente, um poder de regência que somente o bispo possui.
Mais ainda, tratando-se do sacramento da Penitência, o que é necessário, falando propriamente, é um poder de jurisdição que dê o direito de proferir um julgamento autorizado sobre o pecador e de o absolver. Totalmente diverso é o caso dos sacramentos da Ordem e da Confirmação: o ato propriamente sacramental que os constitui não confere somente a graça, mas também uma certa deputação em ofícios e encargos do culto cristão. Para estar em posição de transmitir uma tal deputação aos membros desse culto, não parece suficiente, então, possuir o poder sobre o corpo eucarístico de Cristo, nem o poder de santificação que dele deriva e que é conferido pelo caráter sacerdotal; nem mesmo é suficiente estar investido de uma jurisdição mais ou menos estendida, pois não se trata aqui nem de julgar nem de sancionar. É preciso com toda a necessidade possuir, na ordem cultual mesma, um poder hierárquico que autoriza a conferir sacramentalmente aos membros do corpo místico um ofício ou uma função referentes ao culto cristão. Esse poder é o poder propriamente episcopal.
Mas quer dizer, então, que o episcopado deve ser considerado verdadeiro sacramento, assim como o presbiterado e as outras ordens menores? Sabemos, com efeito, que o sacramento da Ordem divide-se em várias ordens, sintetizadas todas na unidade pela referência delas ao culto eucarístico, e, por esse fato, que as ordens inferiores são participações da ordem suprema. Essa ordem suprema não seria precisamente o episcopado? Numerosos teólogos modernos, na esteira de Pedro Soto, são desse parecer. Não é esse, porém, o pensamento de Santo Tomás: segundo o nosso Doutor, o sacramento da Ordem tem relação direta e imediata com a Eucaristia; os poderes que ele confere referem-se primeiramente ao corpo verdadeiro de Cristo oferecido sobre nossos altares; é somente por derivação que o sacramento da Ordem nos ordena ao corpo místico, visando dispor as almas para o culto divino. Ora, com relação à Eucaristia, o bispo não possui poderes mais estendidos que os do padre: como este, ele consagra e oferece a vítima divina e não tem como fazer mais do que isso. O episcopado não é, pois, como se poderia crer, o sacramento da Ordem em seu grau supremo.
Por outro lado, o episcopado investe o bispo com uma dignidade que o ordena diretamente à regência do corpo místico. Essa dignidade é uma consagração, porém inteiramente diferente daquela que confere o caráter sacramental. O caráter nos consagra imediatamente a Deus e nos une a Ele visando permitir-nos tomar parte nos atos do sacerdócio cristão. O episcopado vota o bispo e o consagra ao corpo místico, que é, sim, também algo de divino, pois ligado a Deus pela cabeça, isto é, por Cristo; mas a pertença do bispo a Deus é indireta, e é antes de tudo para o corpo místico que sua consagração o orienta. Essa consagração dá a ele, evidentemente, um poder hierárquico, uma dignidade de regência de primeira ordem. “Por sua promoção ao episcopado, escreve Santo Tomás, o bispo recebe um poder que permanece perpetuamente nele. Mas não se pode dizer que seja um caráter: pois, pelo poder episcopal, o homem não é diretamente ordenado a Deus, mas ao corpo místico de Cristo. Esse poder não é menos indelével que o caráter, e é dado por meio de uma consagração” (S. Theol., supl., q. 38, art. 2, sol. 2).
Pela consagração episcopal o bispo é, pois, estabelecido verdadeiramente chefe do corpo místico e dos membros do culto cristão. E a partir daí ele tem a autoridade necessária para agir sobre esses membros e instituí-los nas funções oficiais referentes ao culto. Ele pode nomear os defensores da religião de Cristo, ele pode escolher seus ministros e seus padres. Sem dúvida alguma, é em virtude de seu caráter sacerdotal que ele os consagrará e lhes dará sacramentalmente os poderes anexos ao encargo deles; mas será previamente mister que o caráter tenha sido elevado de tal sorte que seja um caráter de chefe e de príncipe da Igreja. É a consagração episcopal que realiza essa elevação. Assim a realeza de Cristo eleva seu sacerdócio ao ponto de lhe permitir exercer os seus atos com autonomia e maestria perfeitas.
[…] Conforme tudo o que dissemos até aqui, é fácil de compreender por que ordinariamente divide-se o poder de regência do bispo em poder de ordem e poder de jurisdição. O poder de ordem vem ao bispo, ao mesmo tempo, do caráter sacerdotal e da consagração episcopal: é um poder hierárquico que o estabelece chefe do culto cristão e dá a ele direito de reger sacramentalmente os membros desse culto. Chega a estender-se, de um certo modo, à Eucaristia, no sentido de que permite ao bispo consagrar os objetos que têm relação com a liturgia eucarística como os cálices, os altares, as igrejas. […] Também Santo Tomás não vê dificuldade em reconhecer que o episcopado é verdadeiramente uma ordem, não no sentido sacramental da palavra, mas no sentido em que a palavra significa grau, dignidade hierárquica.
[…] Permanece igualmente verdadeiro que o poder de jurisdição do bispo, ao qual cumpre conectar seu poder de ensinamento, encontra-se inteiramente distinto de seu poder de ordem. Certamente que este último, ao conferir ao bispo uma dignidade de realeza, fazendo dele príncipe da Igreja, cria nele uma aptidão radical para governar e para ensinar o povo cristão. Como, porém, esse governo e esse ensinamento só têm valor verdadeiro e eficácia real na medida em que os bispos estão unidos ao Soberano Pontífice, é ao Papa, e a ele somente, que incumbe conferir ao bispo o poder de jurisdição. Esse poder não está em dependência essencial do poder hierárquico: o bispo possui-o a partir do momento em que ele é instituído pela autoridade suprema na chefia de uma diocese e antes mesmo de ser consagrado; ele perde-o mesmo depois de sua consagração, a partir do momento em que aconteça de ele se separar do Pontífice Romano, de cair no cisma. Pois uma coisa é ensinar, legislar, julgar o povo cristão; e outra coisa é ter controle sobre a constituição mesma do culto divino e sobre as funções essenciais do culto. A primeira função pertence ao poder de jurisdição dado por Cristo a Pedro e aos Apóstolos e transmitido, por via de autêntica sucessão, ao Papa e aos bispos. A segunda função pede um poder hierárquico conferido por via de consagração, e intimamente ligado a esta outra consagração que é o caráter sacerdotal. O Papa e os bispos não são simples doutores nem simples legisladores ou juízes: eles são também consagrados hierarquicamente e sacerdotalmente. Mas, ao passo que o Papa é superior aos bispos sob o aspecto da jurisdição, ele é seu igual do ponto de vista da consagração hierárquica; e, ao passo que o Papa e os bispos são superiores ao simples padre tanto pela jurisdição quanto pelo poder hierárquico, eles não estão de maneira alguma acima dele no que tange ao objeto próprio de seu poder sacerdotal, a consagração eucarística. »
Essa longa citação afirma muito bem a natureza essencialmente hierárquica do poder episcopal, tal como este é dado pela consagração mesma: é uma regência sobre o corpo místico, é um poder de príncipe. A jurisdição lhe é distinta, e somente pode vir do Papa, porém ela é seu complemento intrínseco, já que necessária ao exercício do poder de príncipe do bispo, desse poder de regência. Esse chamado à jurisdição que a dignidade hierárquica conferida pela consagração episcopal comporta é exprimido assim pelo Padre V. A. Berto (e é difícil de ser mais romano do que ele foi!):
“Bispo e Igreja particular18 são termos sempre e em toda a parte correlativos. Isso é tão verdadeiro, que até hoje os bispos não residenciais recebem o título de uma sé suprimida. Isso é tão verdadeiro, que o Bispo dos Bispos é, ele próprio, pastor particular da Igreja particular de Roma; a Igreja universal não é governada por um Bispo sem diocese, ela o é pelo Bispo de Roma”19.
O que é bem posto em foco é que, passando do sacerdócio para o episcopado, muda-se de ordem (passa-se da ordem principalmente sacramental à ordem principalmente hierárquica); muda-se de objeto primordial (passa-se do Corpo físico de Jesus Cristo para o seu Corpo místico); muda-se de relação com a jurisdição (de acidental – concernente ao exercício derivado do poder sacerdotal –, ela se torna essencial – concernente ao exercício primordial do poder episcopal). Há, portanto, diferença de natureza e não de grau entre sacerdócio e episcopado, um abismo intransponível sem mandato explícito da autoridade legítima e suprema da Santa Igreja Católica. A profundeza desse abismo é manifestada também pelo fato de que a Igreja admite, e chega a organizar, suplências para o exercício do poder sacerdotal, e de que ela nunca admitiu suplência no que concerne ao poder propriamente episcopal.
Nunca. Nem mesmo no caso de Santo Eusébio de Samosata que se alega. Lamentamos muito que o Sr. Pe. Ricossa a ele se refira, pois essa história, juntamente com algumas outras como aquela de Honório ou como a de uma pretensa queda do Papa Libério, faz parte de um arsenal utilizado pelos inimigos da doutrina católica (galicanos, anti-concordatários, anti-infalibilistas, …) reciclado para o uso dos “tradicionalistas” nos últimos vinte ou vinte e cinco anos. É deplorável ir se abastecer num tal arsenal, de que se servem ora para diminuir a infalibilidade ou as prerrogativas do Soberano Pontífice, ora para tentar justificar a desobediência, ora para atentar contra a constituição da Igreja.
Dom Guéranger já restabeleceu, em seu tempo, a justiça perante as calúnias contra Libério ou os exageros deformantes da falta de Honório20. Não temos lembrança de que ele tenha tratado de Santo Eusébio de Samosata, mas este caso encontra-se bem exposto e analisado em dois artigos do frade A.M. Lenoir, publicados nos números 22 e 23 de Sedes Sapientiæ21. Resulta desse estudo que Santo Eusébio observou fielmente as leis canônicas, a vida inteira, e que a atribuição que fazem a ele de sagrações episcopais realizadas por conta própria repousa sobre uma única fonte histórica – Teodoreto de Ciro, no século seguinte (o quinto) – cuja interpretação é, ainda por cima, difícil. Essa interpretação não pode ser feita nos antípodas de toda a vida dele e, em todo o caso, não tem como ser aquela adotada para justificar sagrações ilegais.
Mantemos, portanto, integralmente o juízo que exprimimos no fascículo precedente de Les Deux Étendards, tanto do ponto de vista doutrinal quanto do ponto de vista prudencial. Não insistimos além disso, porque reproduzimos em anexo a resposta que fizemos a algumas pessoas que nos interrogaram sobre a atitude prática a observar.
O Padre Ricossa se espanta de não nos ver empregar a palavra cisma. É muito natural. Fora de uma declaração dos interessados, com o silêncio do direito canônico, em razão da clara intenção de muitos de não se separar da Igreja, caberá à Autoridade, e a ela somente, decidir e excluir. Todos já sofremos demais com um emprego indistinto e inchado da acusação de cisma, para que nos caiba contemplar um tal qualificativo. Isso não nos impede de pensar e de afirmar que uma sagração episcopal sem mandato apostólico tende por natureza ao cisma: basta-nos isso para recusá-la, para nos mantermos à margem, para nos opormos a ela.
Anexo I
Resposta acerca da atitude prática a adotar com respeito aos padres ordenados por bispos sagrados sem mandato apostólico
Em seguida à publicação do artigo “As Filhas de Ló” em Deux Étendards [Dois Estandartes] n.° 3, perguntaram-nos diversas vezes que atitude adotar com respeito a esses padres que receberam o sacerdócio das mãos de um bispo “ilegal”. Pode-se assistir à Santa Missa que eles celebram?
A questão só se põe, evidentemente, com relação a padres cuja ordenação não apresenta nenhuma dúvida quanto à validade22, que têm a firme intenção de pertencer à Igreja Católica e nunca a abandonaram, que professam integralmente a fé e não se arrogam nenhuma jurisdição que seja, padres “sérios” portanto. Cumpre reconhecer que, por causa da proliferação dos bispos e da abundância de sua descendência, é muito difícil de se localizar; esses padres, não podendo alegar ordenação por um verdadeiro bispo da Igreja, não trazem, tudo somado, garantia além daquela de suas qualidades pessoais – o que é frágil, e por vezes enganador.
Supondo então que todas essas condições estejam reunidas, permanece o fato de que o sacerdócio desses padres foi obtido ao preço da adesão em ato a um falso princípio relativo à jurisdição e à unidade da Igreja, e que seu sacerdócio permanece maculado… e o permanecerá enquanto a Igreja não os tiver sanado disso. Esse falso princípio, essa adesão a uma falsa regra da unidade hierárquica da Igreja, marca cada um de seus atos, assim como o una cum Johanne-Paulo marca cada missa que o contém. Não é ao léu que fazemos essa comparação, mas antes porque há verdadeira analogia, que se encontra logicamente no estudo do comportamento que se deve adotar. É por isso que cremos poder repetir aqui (corrigindo-o levemente sem mudar-lhe o sentido) aquilo que escrevemos outrora [23. Boletim Notre-Dame de la Sainte-Espérance [Nossa Senhora da Santa Esperança], n.° 98, de julho de 1994] acerca da assistência às missas una cum:
“A menção do Soberano Pontífice no Cânon da Missa é de particular gravidade, primeiro em razão da santidade dessa que é a mais preciosa, a mais solene e a mais eficaz oração de toda a liturgia da Igreja, dessa oração que está no coração do mistério da fé. Essa menção concerne diretamente à catolicidade do Santo Sacrifício, do celebrante, dos assistentes; ela exprime a adesão que deve ter cada católico ao Soberano Pontífice como regra viva da fé e como detentor da plenitude do poder de ordem na Igreja; ela realiza (ela torna real) nossa pertença à Igreja e nossa submissão ao Soberano Pontífice. É assim que a Igreja sempre a entendeu.
Assim, é certíssimo que um fiel não pode fazer nenhuma cooperação formal com o una cum Johanne-Paulo que um padre pronuncia no Cânon da Missa, é-lhe impossível de se unir a um tal ato, que é subordinação a uma falsa regra da fé, que é dependência sacramental proclamada para com quem não está na cabeça dos verdadeiros sacramentos da Igreja.
É possível assistir à Missa una cum sem fazer essa impossível (moralmente falando) cooperação formal; dito de outro modo, é possível não prestar senão cooperação material moralmente permitida?
Parece-nos que sim, com as duas condições seguintes:
— recusar interiormente esse una cum e protestar perante Deus que queremos nos conformar a todas as exigências da fé católica;
— ter razão grave (ou seja, proporcional) para o fazer. É bem evidente que temer um aumento de distância ou de fadiga, querer beneficiar-se de horários mais cômodos, ou evitar um encontro pouco simpático, não poderiam constituir razão suficiente. Em contrapartida, a necessidade de pôr os filhos numa escola de boa moralidade ou de não se expor a uma perigosa privação de sacramentos pode ser essa razão grave.
Numa palavra, não deve essa assistência à missa maculada pelo una cum ser voluntária: é preciso que não tenhamos opção. Se nos repreenderá talvez por não sermos bastante rigorosos sobre esse ponto, mas receamos incorrer na reprimenda de Nosso Senhor aos fariseus: “Eles atam cargas pesadas e impossíveis de levar, e as põem sobre os ombros dos homens, mas nem com um dedo as querem mover” [Matth. XXIII, 4].”
Eis então nossa resposta à questão inicial: NÃO, NÃO, NÃO, MAS. Não, para não aderir a um princípio que afasta da unidade da Igreja; não, para não aprovar o que não é conforme à doutrina católica sobre a jurisdição e o episcopado; não, para não se extraviar e para evitar encorajar quem quer que seja a se extraviar num caminho perigosíssimo – e que o será cada vez mais; mas, por razões graves23, “sob reserva, no máximo”, para retomar uma expressão que Jean Madiran empregou no momento da irrupção do novo ordo missæ, no aguardo de um juízo mais aprofundado.
Para ter certeza de não se afastar da Igreja, para não arriscar ir contra ela cada vez que for preciso decidir – em razão da dolorosa crise que ela padece – sobre algo que se aparta de sua lei ordinária, cumpre ater-se a este princípio (que está no fundamento da “tese de Cassicíaco”):
— afirmar e fazer tudo o que é exigido pela fé e seu testemunho, pois a fé é indivisível;
— nada afirmar nem fazer além do que é exigido pela fé, pois o juízo próprio, que facilmente se lhe substitui, é cego; ele não é, em nada, regra de ação com respeito à Igreja; ele conduz ao abandono ou à aventura, que nunca produziram nada além de injustiças e catástrofes.
O recurso ao episcopado sem mandato, não sendo possível em face da doutrina católica, não pode ser uma exigência da fé; eis por que a responsabilidade dos que utilizam, encorajam ou respaldam o “caminho episcopal” parece-nos enorme. Os católicos fiéis, por mais zelosos e corajosos que sejam, são frequentemente já corroídos pelo esquecimento da Igreja e de sua unidade, pela indiferença para com partes inteiras de sua doutrina, pela perda do sentido de sua autoridade; eles verdadeiramente não têm necessidade de ser arrastados, por mais que não se o queira admitir, à adesão a uma pseudo-hierarquia.
Aí está grande causa de tristeza e de inquietude.
Usquequo, Domine, usquequo ?… In te confido, non erubescam.
Anexo II
Excerto da carta de apresentação ao número 5
de Les Deux Étendards (dezembro de 1997)
Notar-se-á também que, neste número, a controvérsia acerca das sagrações episcopais não é levada adiante. Para dizer a verdade, nunca esteve em nossa intenção entregarmo-nos a uma controvérsia: somente a necessidade de corrigir uma expressão verdadeiramente defeituosa de nosso primeiro texto (expressão que fora acrescentada apressadamente, no último minuto – coisa que nunca dá certo) compeliu-nos a retornar ao assunto.
Para nós, com efeito, após longas ruminações, o caso está encerrado: simplesmente quisemos exprimir que não se devia contar conosco para entrar nessa aventura ou para aprová-la como quer que fosse, em palavras ou em ato. Com efeito, de que adianta ter lutado por mais de vinte e cinco anos contra os fermentos de dissolução da unidade da Igreja24 à medida que estes apareciam na realidade ou na consciência, para entregar-se, em seguida, a esse jogo mortal?
De que adianta ter recusado repetidamente o que rompe a tríplice unidade católica:
— a liberdade religiosa, a falsa concepção de Igreja ensinada no Vaticano II, a adesão a João Paulo II [falsa regra da fé] e as divagações dos tradicionalistas acerca do Magistério, que dissolvem a unidade da fé;
— a reforma litúrgica de Paulo VI, o una cum e o carismatismo, que dissolvem a unidade da ordem sacramental;
— a adesão a uma pseudo-autoridade, o conclavismo, o carismatismo ainda e a pretensa justificação da desobediência, que dissolvem a unidade hierárquica…;
…de que adianta, então, se é para fazermos, por nossa parte, algo de análogo?
É a unidade hierárquica da Igreja Católica que está em causa. Essa hierarquia é una, e ela se ordena segundo duas razões diversas: a ordem e a jurisdição. A unidade desses dois aspectos existe no episcopado, o único que, por instituição divina, se estabelece simultaneamente na hierarquia de ordem e na hierarquia de jurisdição. O episcopado é, pois, realmente o “tijolo elementar” com que está edificada a hierarquia da Igreja. Por conseguinte, fazer um bispo é fazer uma hierarquia; e, se esse bispo não é feito pelo Papa – fundamento único da hierarquia católica –, é fazer uma outra hierarquia. Disso não há escapatória.
Para exprimir a mesma coisa de modo “existencial”, podemos dizer que na crise da Igreja a que assistimos, nessa crise que agravamos com nossos pecados, nessa crise que sofremos, é preciso saber onde deter-se, em matéria de decisões a tomar, de atitudes a adotar com vistas a conservar a fé e a pertença à Igreja Católica. No que se refere a recusar reconhecer a autoridade de Bento XVI, não há escolha a fazer: a fé impera claramente; há apenas verificações a fazer, sérias verificações, pois o caso é gravíssimo. O prolongamento do mesmo imperium da fé faz com que o julgamento se limite à questão da autoridade, deixando de lado as pessoas, seu estado, sua culpabilidade, sua pertença à Igreja.
Mas, na atitude prática a adotar, o leque das possibilidades é amplo, e a distância é grande entre, de um lado, a perigosa abstenção de toda a vida sacramental e, de outro, a louca iniciativa da reunião de um “conclave”. Perante esse leque, o pior será determinar-se conforme seu próprio juízo. Somente a prática da Igreja e a teologia de Santo Tomás de Aquino25 podem dar critério de escolha seguro; e ocorre que ambas concordam em marcar a fronteira entre o exercício do sacerdócio, por um lado, e o acesso ao episcopado, por outro. O primeiro, de ordem essencialmente sacramental, pode ser objeto de suplência da Igreja; o segundo, de ordem essencialmente hierárquica, não.
Estamos repletos de temor de que o episcopado autônomo se torne um imenso e irreparável desastre: é por isso que não se encontrará no presente número nada que venha a diminuir ou contradizer aquilo que já escrevemos; ademais, a controvérsia tomou um rumo que não nos agrada em nada, bastando como razão o fato de que se pode legitimamente perguntar: “os pobres são evangelizados?”. É bastante evidente que nossa oposição às sagrações episcopais “não resolve nada”; ela não tem como objetivo trazer soluções a um problema que nos ultrapassa infinitamente, mas assegurar a fidelidade à santa vontade de Deus pela fidelidade à Sua Igreja: isso sempre é possível e necessário. Quanto à angústia que se pode sofrer perante a dificuldade da vida sacramental e a questão das vocações26, ela é a cruz que é preciso carregar corajosamente em união com a de Nosso Senhor.
Anexo III
Excerto de carta a alguns jovens sobre a vocação
(primavera de 1999)
[…] É o problema da vocação. Matéria delicadíssima, pois toca no plano que Deus tem para cada um de nós, na intimidade que Deus quer estabelecer conosco, na mediação da Igreja, na liberdade de cada um e na crise da Igreja.
Para tratar da questão de modo completo, haveria que remontar à vocação eterna do Filho de Deus e, em seguida, à vocação de Nosso Senhor e de Nossa Senhora no mistério da Encarnação Redentora, mas isso nos levaria longe demais, e além de minhas competências. Começarei então pela vocação da Igreja. Anteriormente à destinação de cada um e à vocação de alguns, há a vocação da Igreja. O plano de Deus é de constituir para o Seu Filho único uma Igreja que lhe seja um “pleroma”, uma plenitude, uma irradiação de glória, uma sociedade celeste que será para ele Corpo e Esposa. É nessa eleição da Igreja que a vocação de cada um de nós tem a sua fonte: Deus nos destina a assumir um determinado lugar na Sua Igreja: lugar quanto ao grau de caridade e de glória, lugar quanto a um ofício particular. A eleição a tal grau de glória permanece misteriosa, um grande mistério da Sabedoria infinita de Deus. Novamente, não posso me pôr a tratar disso; minha teologia se veria rapidamente bem curta, e não é isso que se nomeia estritamente vocação.27
A vocação em sentido estrito concerne a uma função na Igreja, e é aqui que cumpre ler a meditação do Padre Berto: “Há entre Cristo e a Igreja unidade de vida (é o que exprime a ideia de Corpo Místico) e reciprocidade de amor (é o que exprime a ideia de Núpcias Místicas). Essas duas grandes realidades sobrenaturais encontram cada qual sua expressão nas duas instituições mais essenciais da Igreja: o sacerdócio e a sagrada virgindade. Pelo sacerdócio, com efeito, é Nosso Senhor que incessantemente vivifica sua Igreja, alimenta nela, por meio dos sacramentos, a vida da graça, e a governa. Pela sagrada virgindade, é a Igreja que, incessantemente também, se apresenta como Esposa a Cristo seu Esposo e Lhe declara novamente sua fidelidade e seu amor.”28
Tudo está demarcado nesse texto admirável: a origem e a distinção das duas grandes vocações, a vocação sacerdotal e a vocação religiosa, que são irredutíveis entre si como as duas partes do mistério da Igreja que elas realizam. Pois, ao falarmos de vocação, cumpre distinguir desde a origem a vocação sacerdotal e a vocação religiosa, que apresentam mais diferença que semelhança.
À primeira se aplica a palavra de Nosso Senhor: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi a vós” (Jo. xv, 16). Essa vocação é, pois, verdadeiro chamado, mas ainda aí cumpre não se enganar. O chamado interior, quero dizer o desejo do sacerdócio, a atração a ele não é senão preparatória para o único chamado que constitui a vocação sacerdotal: o chamado da Igreja na pessoa do bispo legítimo. É o que ensina mui claramente o Catecismo do Concílio de Trento: “Vocari autem a Deo dicuntur qui a legitimis Ecclesiæ ministris vocantur – São ditos chamados por Deus os que são chamados por legítimos ministros da Igreja” (de Ordine § 1). É claro que o bispo somente chama aqueles que se apresentam livremente, que têm as qualidades e a ciência exigidas, que têm reta intenção; mas a vocação propriamente dita é dada pelo Bispo, ela é o chamado que ele faz em nome da Igreja.
À vocação religiosa se aplica esta outra palavra de Nosso Senhor: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; e depois vem e segue-me” (Mat. xix, 21). Aí, a vocação está na vontade de perfeição. Essa vontade, como toda a vontade normal, deve proceder da compreensão da inteligência: “Qui potest capere capiat”, diz Nosso Senhor ao falar da castidade perfeita pelo Reino de Deus, “quem pode compreender compreenda” (Mat. xix, 12). É preciso também que essa vontade seja razoável, estável e reta; mas permanece o fato de que a vocação religiosa consiste na vontade.
Vê-se assim, então, a diferença fundamental entre a vocação sacerdotal, na qual a própria Igreja chama em nome de Jesus Cristo, e a vocação religiosa, na qual Deus dá a vontade de consagra-se a Ele e na qual a Igreja só faz organizar (aprovando e supervisionando as ordens religiosas) a vida daqueles que respondem ao chamado geral feito por Nosso Senhor.
A vocação, seja sacerdotal, seja religiosa, não consiste na atração interior. Ademais, essa atração (que é uma pré-vocação) não é principalmente uma atração sensível; ela pode ser convicção da inteligência apesar de certa repugnância do coração. Ela desempenha um papel, mas somente um papel preparatório. Essa pré-vocação é necessária, seja porque leva a “provocar” o chamado da Igreja no apresentar-se ao sacerdócio, seja porque vai arrastar a vontade e determiná-la firmemente a consagrar-se inteiramente a Jesus Cristo. Quem quer que tenha tido essa atração (sensível ou intelectual) e que não mais a tenha não “perdeu a vocação” (que ele ainda não tinha); mas pode ser que ele seja infiel a uma graça de escol que lhe reservara Nosso Senhor. Há que refletir nisso seriamente.
Na vocação, a Santa Igreja está particularmente presente, pois se trata do lugar de cada um na Igreja de Jesus Cristo. Nosso Senhor faz sentir particularmente àqueles a quem Ele reserva um lugar particular na Sua Igreja que Ele os espera; Ele os chama. Esse chamado de Nosso Senhor tem seu cumprimento tanto na vontade que Ele dá quanto no chamado do Bispo. Esse chamado levado a bom termo é a vocação.
Naquilo que se convencionou chamar de a crise da Igreja, o problema da vocação, sobretudo da vocação sacerdotal, é muito mais espinhoso, e convém dizer uma palavra sobre isso. Consagrar-se a Deus e à Sua Igreja não pode ser virtuoso e conforme à vontade de Deus senão na reta doutrina, nos verdadeiros sacramentos e na justa pertença à Sua Igreja; é uma evidência. Mas então para onde ir?
— para os “São Pedro”? Lamentavelmente, a adesão a Bento XVI (falsa regra da fé) provoca a adesão ao Vaticano II, destruidor da inteligência da fé e portador de graves erros condenados pela Igreja, como a liberdade religiosa, e uma falsa concepção da Encarnação e da Igreja mesma. De resto, a aceitação dos novos sacramentos por princípio faz duvidar legitimamente da validade de certas ordenações sacerdotais;
— para os “São Pio X”? Lamentavelmente, a adesão a Bento XVI e a simultânea recusa dos erros do Vaticano II conduzem a inventar doutrinas heterodoxas que destroem a autoridade do Magistério da Igreja e do Soberano Pontífice. De resto, é empenhar-se na via episcopal de que passo a tratar;
— para a “via episcopal”? Lamentavelmente, as sagrações sem mandato do Soberano Pontífice são contrárias à constituição mesma da Igreja: “Unicamente o Papa institui os bispos. Esse direito lhe pertence soberanamente, exclusivamente e necessariamente, pela constituição mesma da Igreja e pela natureza da hierarquia”29. Bispos sem vocação não podem dar o que não têm, e ordenam padres sem vocação; pode-se temer muito pelo futuro…
As indicações dadas acima não passam de resumo demasiado rápido de convicções doutrinais que eu quisera escrever com letras de sangue, de tanto me parecem importantes. Nunca se fará nada de durável, de frutuoso, de benéfico para a glória de Deus contra a doutrina católica ou fora dela. Teremos sem dúvida ocasião de voltar ao assunto.
O problema é grave, portanto, mas de modo algum desesperado. É sempre possível consagrar-se a Deus, mesmo se isso tornou-se mais difícil; nunca houve tantos motivos para consagrar-se a Ele, para consolar Seu coração, pelo esplendor de Sua Igreja tão desfigurada, para a imolação de si mesmo em meio a um mundo de gozo, pela irradiação da doutrina católica no momento em que é negada, diminuída, menosprezada por todas as direções. Quanto ao sacerdócio, é possível almejá-lo e mesmo preparar-se para ele de maneira longínqua, tendo o firme propósito de nada desejar nem fazer que seja contra a doutrina católica ou a constituição da Santa Igreja. Deus, que não abandona a Sua Igreja, não abandonará jamais os que querem trabalhar por ela e consagrar-se a ela.
Anexo IV
Excerto de carta a um moço que acaba de entrar no seminário (outono de 1999)
[…] Eu me interrogo hoje, e me pergunto por que aquilo que me deveria profundamente regozijar me desola.
Ah, certamente que é verdadeiro júbilo ver uma alma empenhar-se na via da consagração ao Bom Deus e, para tanto, renunciar ao mundo onde a tentação permanente é de tomar parte no “caminho das três concupiscências”, que domina e reina quase universalmente. É verdadeiramente um júbilo ver preferir, a uma carreira terrena que teria podido ser brilhante, uma carreira celestial começada desde aqui embaixo. — E isso não me espanta em nada da parte de X!
Mas então por que, pelo que estou desolado? Pela perspectiva de uma ordenação sacerdotal conferida por um bispo sagrado sem mandato apostólico. Como já deves esperar, pois eu disse isto em tempo e fora de tempo: meu desacordo é total, e é um desacordo fundado no que a Igreja ensina sobre sua própria constituição, e no que a experiência (por vezes a triste experiência) me mostrou.
Hoje, só posso repetir as mesmas coisas “mudando o tom” e apresentando a gravidade do caso sob outra luz; mas no fundo trata-se sempre da constituição da Santa Igreja e de nossa dependência com relação a ela.
Não quero falar nem um pouco, desta vez, da validade das ordens nos diferentes ramos episcopais — se bem que essa questão me incomode cada vez mais: para crer nessa validade, é preciso multiplicar os atos de fé (humana) à medida que nos distanciamos da fonte, e que a seriedade e catolicidade das intenções se perde na confusão. Não, mesmo sem isso, a questão episcopal – e tudo o que dela depende – já é suficientemente grave e preocupante.
Tratando do sacerdócio, São Paulo escreveu (Heb. v, 4): “Ninguém se arrogue esta honra, senão o que é chamado por Deus, como Aarão”. Com as consagrações episcopais sem mandato apostólico (CESMA, para os íntimos), ninguém mais é chamado.
É por natureza, por instituição divina, pela constituição da Igreja, que o Papa chama os bispos e que estes chamam os padres. Mas eis que, com as CESMA, a cadeia é rompida; quando os bispos se atribuem o episcopado (é bem isso o que ocorre, mesmo que eles se “deixem chamar” por um bispo que não tem esse poder), os padres não são legitimamente chamados. Na crise da Igreja, por mais profunda que a suponhamos, pode muito bem ser permitido contornar uma legislação que delimita e organiza a transmissão do sacerdócio, mas é impossível que seja permitido ir contra a natureza das coisas.
Acrescento, além disso, se bem que eu não tenha no momento o lazer de aprofundar a questão, que me parece que as confirmações conferidas por um bispo-CESMA apresentam problema análogo. Com efeito, esse sacramento é ao mesmo tempo uma perfeição pessoal e uma função da Igreja; e, se ele é sumamente útil a cada um, ele é necessário à Igreja: o aspecto eclesial tem, pois, um primado ao menos de necessidade na Confirmação. Para fazer uma comparação, o sacramento dá ao confirmado armas para o combate, e constitui o exército da Igreja ao alistá-lo a serviço da fé e da cristandade: é por isso que este é um sacramento episcopal. Mas o que há de mais perigoso – para continuar a comparação – que soldados sem exército? Um bispo-CESMA, não sendo chamado pelo chefe da Igreja, tem incapacidade radical (e não uma incapacidade jurídica superável) de constituir o exército da Igreja. Estas são questões que atormentam tão logo as formulamos seriamente.
Eis outro aspecto das coisas igualmente grave, senão mais grave ainda: nós pertencemos à Santa Igreja Católica, e essa pertença a uma sociedade visível deve ser, por natureza, visível. Em razão da crise da Igreja, essa visibilidade da pertença não mais é garantida pela adesão ao Magistério vivo, pois esse poder (sempre presente) não mais se exerce; nem pela submissão à jurisdição, pois a autoridade está em falta. É, pois, ao poder de ordem que cabe realizar e garantir essa visibilidade. Se se suprime essa terceira via, não resta mais nada nessa matéria. A experiência o confirma: no mundo fervilhante dos CESMA, não há mais nenhum critério objetivo de catolicidade: cada ramo se erige “pela defesa da fé”, cada ramo é necessário “pois é o único sério”, ninguém mais se reconhece nesses prelados-CESMA surgidos não se sabe de onde, que aparecem e desaparecem. Então, cada qual erige seu próprio critério: os que ele conhece e aprecia são os “únicos bons”… Onde está a catolicidade nesse meio? Como é que a Igreja permanece visível no sentido (real) de seus membros aderirem a ela visivelmente, de maneira objetivamente constatável? Eu me exprimo mal, mas a realidade é essa.
Tudo isso, eu o submeto à tua reflexão, meu caro X. E ponho-me a desejar ainda mais fortemente que a crise da Igreja seja resolvida antes que o irreparável te suceda. Certamente que há outros motivos, e mais imperativos, de desejar isso: mas aí está mais um.
Anexo V
A fé inteira, nada além da fé.
Excerto de nota enviada a alguns pais de alunos.
Pois, afinal, não havemos de velar a face: encontramo-nos perante uma questão que se põe à fé católica, à virtude teologal da fé de cada um de nós. Essa questão pode não ser concretamente a mais urgente, mas é impossível de não ser confrontado com ela um dia, pois o Soberano Pontífice é a regra viva da fé católica e, portanto, é necessário obedecer-lhe para pertencer à Santa Igreja. Foram demasiadamente esquecidos esses dois últimos pontos, que, contudo, pertencem à doutrina permanente, certa e mil vezes ensinada da Igreja.
Se se reconhece a autoridade apostólica de João Paulo II, o dilema é inelutável:
— ou se adere a seu ensinamento e a seu governo, como se o deve fazer com relação a um Papa; professa-se então doutrinas que foram solenemente condenadas pela Igreja, admite-se a reforma litúrgica e sacramental infestada pelo protestantismo; aceita-se os frutos trazidos pelo Vaticano II…;
— ou se recusam erros e reformas, mas não se o pode fazer senão ao preço de uma negação da doutrina católica sobre a autoridade e a infalibilidade do Soberano Pontífice e da Igreja.
Não há terceira via possível, e as duas que acabo de enunciar terminam em erros, diversos talvez mas igualmente caracterizados, e ambos condenados pelo Magistério certo, infalível, permanente da Santa Igreja Católica Romana. A fé católica e a doutrina certa da Igreja conduzem, pois, a negar a autoridade de João Paulo II, a afirmar que ele está privado dessa assistência particular de Jesus Cristo que constitui a autoridade específica do Papa. Essa negação não é um juízo pessoal (que seria ilegítimo) mas é devida a uma impossibilidade de exercer a virtude da fé para com ele e sob a influência dele.
Podeis observar que não se trata de modo nenhum de um julgamento sobre a pessoa de João Paulo II, mas simplesmente da impossibilidade, no exercício mesmo da fé, de reconhecer a autoridade dele. De minha parte, detenho-me aí; não quero ir além daquilo a que a fé me obriga (pois creio ser “teologicamente” impossível ir mais longe, mas essa é uma outra história). Por isso considero verdadeira a “tese de Cassicíaco”, que, reconhecendo a eleição pontifical de João Paulo II e a continuidade da sucessão apostólica que ele assegura (ele é papa materialiter), comprova que ele está privado da autoridade pontifical (ele não é Papa formaliter) e conclui que o testemunho da fé obriga a abster-se de todo o ato que seja reconhecimento dessa autoridade (principalmente, não se pode no Cânon da Missa prestar-lhe sujeição proclamando que a Igreja Católica é una cum Johanne Paulo).
Mais ainda, em razão dessa vontade de me ater ao que é exigido pela fé católica, e de nada fazer nem aprovar que seja contrário a ela, oponho-me firmemente a toda a consagração episcopal realizada sem mandato apostólico: uma tal sagração se me manifesta irremediavelmente contrária à constituição hierárquica da Santa Igreja Católica.
Perdoai-me por ter-me alongado um pouco nesta nota e por ter dado a ela um toque pessoal. Creio, não obstante, necessário fazer ainda uma grave precisão concernente à importância que atribuo ao que acabo de enunciar.
Com a graça de Deus e malgrado todas as minhas deficiências, esforço-me em não ter posição pessoal, mas em me adequar ao máximo à doutrina católica em toda a sua amplidão, apoiando-me nos fatos comprovados e rejeitando deliberadamente os rumores oficiosos e as questões de pessoas. O resultado parece-me pertencer à fé católica, e toda outra posição se me manifesta num ou noutro ponto incompatível com a fé tal qual a Igreja a ensina, a entende e a pratica. Essa posição é, portanto, para mim regra de conduta imperativa, incessantemente presente e esclarecedora, para toda a minha conduta e para tudo o que se passa sob minha responsabilidade. Mas essa convicção não pode ter influência além daí, senão pelos argumentos que traz e a coerência que manifesta; ela não pode, em caso algum, substituir-se à autoridade do Magistério e do Governo da Igreja, e portanto não me permite julgar e condenar as pessoas que diferem de parecer. O fato de não possuir nenhuma autoridade particular não dispensa, sem embargo, do dever de denunciar o erro e o mal: é questão de zelo pela glória de Deus e de caridade com o próximo, e até mesmo de justiça quando o silêncio aparentasse aprovação. Quem vê o perigo e se cala, podendo apontá-lo sem provocar mal mais grave, é um cão dos mais desprezíveis: um cão mudo.
Veni Domine Jesu
Auxilium christianorum,
sanctissima Virgo Maria,
ora pro nobis!
Trad. por Felipe Coelho.
- Extraído do número 3 (fevereiro de 1997) da revista Les Deux Étendards [Os Dois Estandartes], editada pela associação Grâce et Vérité [Graça e Verdade], 27 Casquit, F—33490 Saint-Maixant. ↩︎
- Eis dois exemplos, dentre muitos outros, dessas flutuações. Quatro meses antes de ser sagrado bispo, o Rev. Pe. Guérard des Lauriers rejeitava toda a ideia de sagração, a propósito do Pe. Barbara, que diziam desejoso de se fazer sagrar, e citava São Paulo: “Que cada qual caminhe conforme a própria vocação” (I Cor. VII, 17) [audível em Cassetiacum, n.° 1]. Em 11 de abril de 1987, Dom Lefebvre declarava em Nantes: “Se eu sagrar um bispo sem a indispensável autorização do Papa, serei cismático” [Monde-et-Vie, 15 de maio de 1987]. E, no entanto, a 30 de junho de 1988, Dom Lefebvre sagrava por conta própria quatro bispos, explicando que isso não era cismático. ↩︎
- Ainda disponíveis, assim como os números precedentes e a Cassetiacum mencionada na nota 2 acima, na Association Saint-Herménégilde, Prieuré La Croix-Saint-Joseph [Associação Santo Hermenegildo, Priorado Cruz de São José], 1110 chemin du Puits du Plan, F — 06370 Mouans-Sartoux. ↩︎
- O texto dessa declaração foi publicado na revista Itinéraires [N.° 261, março de 1982] e provocou reação de violência inaudita do Padre Barbara, que difundiu um panfleto “Mort d’un syndicat, naissance d’une secte ?” [“Morte de um sindicato, nascimento de uma seita?”], que ele fez distribuir manu militari: esbravejava ele aí que houvera cisma e escândalo. Pergunta (com um sorriso) [triste]: quinze anos depois, quem permanece nas mesmas convicções? quem honra ainda sua assinatura? ↩︎
- Essa nota foi publicada na revista Didasco ↩︎
- Bernard Vignot, Les Églises parallèles [As igrejas paralelas], Cerf-Fides 1991, pp. 110-111. ↩︎
- Teríamos feito melhor em escrever: “Duas linhagens episcopais se oferecem aos sufrágios dos católicos”, pois não são raros aqueles que, com justiça, recusam o princípio das sagrações. ↩︎
- Havíamos escrito, quando da publicação deste artigo em Les Deux Étendards n.°4: “exerce” em lugar de “chama”. Corrigimos esse erro na sequência (cf. infra, nota 16). [Nota de novembro de 2000]. ↩︎
- Pode ser, por vezes, permitido passar ao largo de uma lei positiva, mas com condições bem precisas: que seja efetivamente uma lei positiva (pois não se pode transgredir nunca a lei natural), que o caso em que a pessoa se encontra não tenha sido previsto pelo legislador, que o recurso à Autoridade seja impossível, que o bem a obter ou o mal a evitar sejam proporcionais à gravidade da lei, que não haja escândalo do próximo. É a virtude da epiqueia, parte subjetiva da justiça, que entra então em jogo [Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa IIæ, Q. CXX]. ↩︎
- I Cor. iv, 1. ↩︎
- Sobrinho de Abraão. Gênesis XIX, 30-37. ↩︎
- Extraído do número 4 (junho de 1997) da revista Les Deux Étendards [Os Dois Estandartes], editada pela associação Grâce et Vérité [Graça e Verdade], 27 Casquit, F – 33490 Saint-Maixant. ↩︎
- “Digitus Dei non est hic”, suplemento ao n.° 43 de Sodalitium. ↩︎
- Mystici Corporis, 29 de junho de 1943, passim. ↩︎
- Cânones 196, 948. ↩︎
- A principal está na página 17, onde havíamos escrito: “O bispo […] exerce uma jurisdição, cujas determinações e aplicação pertencem ao Papa”. Nossa maneira de nos exprimirmos foi defeituosa; deveríamos ter escrito: “o bispo pede uma jurisdição, cuja existência, aplicação e determinações pertencem ao Papa”. Agradecemos ao Sr. Pe. Ricossa por ter-nos propiciado a ocasião dessa correção. ↩︎
- «Conforme a observação de Santo Tomás, os fiéis penitentes são eles próprios a matéria do sacramento da penitência, e eles não podem ser submetidos a um julgamento – ou, noutros termos, a forma desse sacramento não pode ser aplicada à matéria – senão por meio da jurisdição competente. Sob esse aspecto, a absolvição está em dependência estreita e necessária da autoridade legítima que, unicamente ela, tem poder na Igreja de legislar e de sancionar os atos dos fiéis. Contudo, a absolvição não é simples sentença declaratória: ela é um ato sacramental que confere instrumentalmente a graça e que santifica a alma ao justificá-la de suas faltas. Vista dessa perspectiva, ela deriva unicamente do caráter sacerdotal; a jurisdição é-lhe extrínseca, é somente uma condição absolutamente requerida. “Todos os poderes espirituais são dados com uma certa consagração”, lemos em Santo Tomás. “Por essa razão, o poder das chaves é dado com o sacramento da Ordem. Mas o exercíciodesse poder requer matéria apropriada, que é o povo cristão submetido por intermédio da jurisdição. Assim também, antes da jurisdição o padre tem o poder das chaves, mas não a faculdade de exercer esse poder” (Sum. Teol., Supl., q. 17, art. 2, sol. 2). » [Héris, op. cit., p. 64; o primeiro sublinhado é nosso]. ↩︎
- Ou seja, porção (territorial) da Igreja Católica, ou diocese. ↩︎
- Pour la sainte Église Romaine, [Pela Santa Igreja Romana] Paris, 1976, pp. 225-226. Escrito em 1954. ↩︎
- Cf. La Monarchie pontificale (A Monarquia pontifícia), ou ainda Défense de l’Église Romaine (Defesa da Igreja de Roma). [acréscimo de novembro de 2000: verificação feita, Dom Guéranger não tratou de Eusébio de Samosata. O Pe. Ricossa anunciou no número seguinte de Sodalitium (n.°44, julho de 1997, p. 31) que ele iria procurar um caso histórico inegável de sagração sem mandato ulteriormente aprovada pela Igreja… nós continuamos esperando. ↩︎
- Sociedade Santo Tomás de Aquino. F – 53340 Chémeré-le-Roi. ↩︎
- Será cada vez mais difícil de julgar; a certeza – que repousa já sobre boa dose de confiança difícil de conceder – irá diminuindo. Esse simples fato mostra por si só que a “via episcopal” não é a via da salvação, nem sequer a da sobrevivência. Em certas linhagens episcopais, se está na terceira ou quarta geração de sagrações, e os intermediários, vindos por vezes não se sabe de onde, desaparecem uns após os outros… ↩︎
- Se se deseja comparar as razões que permitiriam assistir à missa de um padre ordenado por um bispo sagrado sem mandato apostólico, e aquelas que permitiriam assistir a uma missa una cum Johanne-Paulo, a resposta é bastante indecisa. Em consideração da natureza das coisas, seríamos mais severo no segundo caso; em consideração da gravidade das consequências, seríamos muito mais severo no primeiro caso. ↩︎
- A unidade da Igreja provém de sua constituição divina, e ela é objeto de fé: ela é, portanto, inalterável e fora do alcance da malícia dos homens. Mas fatores perversos podem subtrair cristãos dessa unidade; é desses fatores que queremos falar. ↩︎
- Eis, ademais, o que diz Santo Tomás de Aquino sobre a prática da Igreja: “O costume da Igreja tem a maior autoridade; seu modo de agir deve ser adotado por todos, pois o próprio ensinamento dos doutores católicos recebe sua autoridade da Igreja. Daí que devemos ater-nos antes à autoridade da Igreja que à autoridade de Santo Agostinho, ou de São Jerônimo, ou de qualquer outro doutor” Suma Teológica, IIa IIæ, q. x, a. 12, c. ↩︎
- Essa questão é, de resto, inteiramente falseada se não se distingue cuidadosamente a vocação sacerdotal e a vocação religiosa, e se se esquece que, sobre a primeira, a Igreja ensina: “Vocari autem a Deo dicuntur qui a legitimis Ecclesiæ ministris vocantur – São ditos chamados por Deus os que são chamados por legítimos ministros da Igreja” (Catecismo do Concílio de Trento, de Ordine § 1). ↩︎
- Deus tem para cada um de nós uma vontade, que é a razão de ser de nossa criação e é a vontade de fazer-nos participar de Sua glória. Em razão dessa vontade, Ele nos destinou a alcançar um dado grau de glória (ou de caridade, o que no fim dá no mesmo) e ordenou os meios necessários para tanto. Nem esse grau de glória nem esses meios são-nos conhecidos, ou mais exatamente: Deus no-los dá a conhecer somente quando julga isso bom. Certos meios são, de resto, cognoscíveis pela natureza (época, lugar e família de nascimento), mas nem sempre sabemos como vão concorrer para a obra de Deus. Observemos de passagem que, como a vontade de Deus sempre se cumpre, caso nós recusemos obstinadamente participar da glória de Deus, nós participaremos dela mesmo assim, manifestando a Sua justiça… ↩︎
- Pe. V.-A. Berto, Pour la Sainte Église Romaine [Pela Santa Igreja Romana], p. 166. Esse texto é extraído de um curso dado às crianças de Nossa Senhora da Alegria, que é pura e simplesmente uma maravilha. ↩︎
- Dom Adrien Gréa, L’Église et sa divine constitution — A Igreja e sua constituição divina, Casterman 1965, p. 259. Não é por ser Dom Gréa (fundador, no século passado, dos Cônegos Regulares da Imaculada Conceição) quem o diz que isso é verdade. Mas Dom Gréa resume numa fórmula feliz a teologia e a prática sem falha da Igreja. E, ademais, isso mostrar-vos-á que não o invento para as necessidades da causa… coisa tão frequente em nossos tempos. ↩︎

Deixe um comentário