Novus Ordo Watch
2024
“Fere o pastor, e as ovelhas serão dispersas…” (Zc 13, 7)
O seguinte artigo apareceu no periódico trimestral sedevacantista The Reign of Mary, vol. XLV, n.º 155, no verão de 2014. Ele aborda um fenômeno com o qual muitas pessoas que buscam ser genuínos católicos tradicionais se deparam: a aparente “desunião” entre os sedevacantistas. Se o sedevacantismo é a posição correta a adotar diante da apostasia da Igreja do Vaticano II, por que, então, existem diferentes grupos de sedevacantistas em desacordo entre si sobre diversas questões?
A solução, argumenta o autor, encontra-se em uma compreensão correta do Papado como o princípio essencial da unidade católica. Precisamente porque um verdadeiro Vigário de Cristo está atualmente ausente, a desunião entre os católicos há de ocorrer; contudo, qualquer falta de unidade desse tipo é apenas acidental e não infringe a unidade essencial de que gozam todos os verdadeiros católicos. Ademais, qualquer desunião acidental poderia, em princípio, ser resolvida assim que um verdadeiro Papa voltasse a reinar – algo que não se pode dizer da posição “Reconhecer e resistir”, que também possui diversos grupos disputando ou discordando uns dos outros, mas na qual um juízo papal não decide, por si só, coisa alguma, porque, segundo a posição “Reconhecer e resistir”, é, em última instância, cada fiel individual quem decide se aceita ou não uma decisão papal.
Este artigo é um excelente texto complementar à obra do autor, “The Papacy and the Passion of the Church”, e também à de Jeffrey Knight, “Culpable Ignorance and the Great Apostasy”.
Quando o Pastor é Ferido: O Papado e a “Desunião” Sedevacantista
Mario Derksen
Com muita frequência, ouvimos de pessoas que buscam ser católicas tradicionais que o que as impede de se tornarem sedevacantistas é o problema da “desunião” entre eles. Desde disputas sobre quais ritos da Semana Santa seguir, até problemas bioéticos contemporâneos, passando pela questão de se se pode ou não assistir a missas não sedevacantistas, as divergências entre aqueles que não reconhecem os reclamantes papais após o Papa Pio XII como legítimos parecem ser numerosas demais ou demasiado desanimadoras para o conforto de muitas pessoas.
No que se segue, proponho mostrar que, embora lamentáveis, as divisões entre os sedevacantistas não precisam ser um obstáculo para nós, porque não passam de consequência natural daquilo que está verdadeiramente na raiz de todo o problema: a ausência de um Papa.
É do Papa que deriva a unidade da Igreja, e é do Papa de quem ela depende. Segue-se, portanto, que, se não houver um Papa reinando por longo tempo ou se ele for incapaz de exercer livremente o seu ofício, a coesão dos fiéis sofrerá grave dano em pouco tempo.
Embora esta situação seja inegavelmente uma grande provação, devemos dela nos aproveitar, por assim dizer, e usá-la para nossa santificação pessoal, transformando assim a nossa angústia em um viveiro do qual florescerá a futura restauração da Igreja.
O Papado, Fonte Infalível da Unidade Católica
Em 18 de maio de 1890, o Papa Leão XIII aprovou uma série de orações de exorcismo contra Satanás e os anjos apóstatas, que inclui a versão longa da Oração a São Miguel Arcanjo, composta pelo próprio Leão. Parte dessa oração reza:
No próprio Lugar Santo, onde foi estabelecida a Sé do beatíssimo Pedro e a Cátedra da Verdade para a luz do mundo, eles ergueram o trono de sua abominável impiedade, com o iníquo desígnio de que, quando o Pastor fosse ferido, as ovelhas fossem dispersas. (Confira Acta Sanctae Sedis XXIII [1890-91], p. 744; cf. também Ambrose St. John, The Raccolta or Collection of Indulgenced Prayers and Good Works [1910], n. 292)
Essa ideia de que as ovelhas são dispersas após – e especialmente por causa de – o Pastor ter sido ferido origina-se nas palavras do profeta Zacarias, citadas por Nosso Senhor: “Fere o pastor, e as ovelhas serão dispersas” (Zacarias 13,7; cf. Marcos 14,27).
A razão por que as ovelhas são dispersas quando o pastor é ferido é que o pastor – o Papa – é o princípio e a fonte de unidade do rebanho, a Igreja Católica, como ensinou o Papa Bento XIV:
A vigilância e a solicitude pastoral do Romano Pontífice… segundo os deveres de seu ofício, manifestam-se principalmente e acima de tudo em manter e conservar a unidade e integridade da fé católica, sem a qual é impossível agradar a Deus. Esforçam-se também para que os fiéis de Cristo, não sendo como crianças irresolutas, nem levados por todo vento de doutrina pela malícia dos homens [Ef 4,14], possam todos chegar à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, para formar o homem perfeito, de modo que… unidos no vínculo da caridade, como membros de um só corpo, tendo a Cristo por cabeça, e sob a autoridade de seu Vigário na terra, o Romano Pontífice, sucessor do Bem-Aventurado Pedro, de quem deriva a unidade de toda a Igreja, possam aumentar em número para a edificação do corpo e, com a assistência da graça divina, possam gozar de tal tranquilidade nesta vida a fim de alcançar a futura bem-aventurança. (Bento XIV, Constituição Apostólica Pastoralis Romani Pontificis [1741]; em Papal Teachings: The Church, editado pelos Monges Beneditinos de Solesmes, trad. por Mother E. O’Gorman [Boston: Daughters of St. Paul, 1962], n. 1; destaque nosso)
Ninguém pode ser católico, membro da Igreja, sem estar em união com a cabeça da Igreja, a quem todos devem se submeter sob pena de cisma e heresia e como condição para alcançar uma eternidade bem-aventurada. O ensinamento papal sobre esta matéria é bastante explícito:
Ademais, declaramos, afirmamos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de todas as criaturas humanas que se submetam ao Romano Pontífice. (Bonifácio VIII, Bula Unam Sanctam [1302]; confira Denzinger-Hűnermann 875 ou Denzinger-Rahner 469)
A união com a Sé Romana de Pedro é, para [Santo Jerônimo], sempre o critério público de um católico… E, por razão semelhante, Santo Agostinho testemunha publicamente: “Não deveis ser considerados como possuindo a verdadeira fé católica se não ensinardes que deve ser mantida a fé de Roma” (Sermo CXX, n. 13). (Leão XIII, Encíclica Satis Cognitum, n. 13 [1896])
Na verdade, somente devem ser contados como membros da Igreja aqueles que foram batizados e professam a verdadeira fé, e que não tiveram a infelicidade de se separar da unidade do Corpo, nem foram dele excluídos pela legítima autoridade por graves faltas cometidas. (Pio XII, Encíclica Mystici Corporis Christi, n. 22 [1943])
O Papa Leão XIII elaborou de forma magnífica exatamente como o Papa realiza essa unidade entre os fiéis, a saber, por meio da jurisdição que é intrínseca ao primado papal e que provém diretamente do próprio Deus. Comentando Mateus 16, 18 (“E eu te digo: Tu és Pedro; e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”), a passagem escriturística na qual Cristo anuncia o futuro estabelecimento do papado, ensinou o Santo Padre:
Deste texto é evidente que, pela vontade e mandato de Deus, a Igreja repousa sobre São Pedro, assim como um edifício repousa sobre sua fundação. Ora, a natureza própria de uma fundação é ser um princípio de coesão para as diversas partes do edifício. Deve ser a condição necessária de estabilidade e força. Remova-se a fundação e todo o edifício desaba. Por conseguinte, é ofício de São Pedro sustentar a Igreja e guardá-la em toda a sua força e indestrutível unidade. Como poderia ele cumprir esse ofício sem o poder de ordenar, proibir e julgar, que propriamente se chama jurisdição? É somente por esse poder de jurisdição que nações e estados se mantêm unidos. Um primado de honra e o direito aparente de dar conselhos e admoestações, que se chama direção, jamais poderiam assegurar a qualquer sociedade de homens unidade ou força. (Leão XIII, Satis Cognitum, n. 12)
Neste claro ensinamento papal, já podemos ver quão equivocados estão aqueles “católicos tradicionais” de hoje que reconheceriam Francisco como verdadeiro Papa, enquanto na realidade apenas lhe concedem um primado de honra, não acreditando de modo algum em seus ensinamentos nem aceitando per se qualquer exercício de sua jurisdição putativa sobre toda a Igreja – nem seus documentos magisteriais, nem sua liturgia, nem suas leis, nem seus santos.
O Papa Leão prossegue, explicando o que Nosso Senhor quis dizer quando afirmou que “as portas do inferno não prevalecerão” contra a Igreja:
O sentido desta palavra divina é que, não obstante as astúcias e intrigas que eles empreguem contra a Igreja, jamais poderá ocorrer que a Igreja confiada à solicitude de Pedro sucumba ou de algum modo falhe… Portanto, Deus confiou Sua Igreja a Pedro, para que ele a guardasse com segurança por seu poder invencível. Investiu-o, pois, da autoridade necessária, porquanto o direito de governar é absolutamente requerido por aquele que deve guardar a sociedade humana de modo real e eficaz. Isto, ademais, Cristo concedeu: “A ti darei as chaves do reino dos céus…” Nesse mesmo sentido, Ele diz: “Tudo o que ligares na terra será ligado também nos Céus, e tudo o que desatares na terra será desatado também nos Céus” [Mt 16, 19]. Esta expressão metafórica de ligar e desatar indica o poder de fazer leis, de julgar e de punir; e diz-se que o poder é de tal amplitude e força que Deus ratificará tudo o que por ele for decretado. Assim, é supremo e absolutamente independente, de modo que, não tendo outro poder na terra como seu superior, abrange toda a Igreja e todas as coisas a ela confiadas. (Leão XIII, Satis Cognitum, n. 12; destaque nosso)
Este ensinamento, de que a Igreja, não importando o que lhe aconteça, jamais pode falhar, encontra-se reiteradamente no Magistério católico, e fundamenta-se nas promessas de Cristo a São Pedro, cuja fé não pode falhar. É por esta razão que a Sé Apostólica será para sempre a medida última da ortodoxia de qualquer doutrina, e a adesão a ela será sempre o critério supremo de qualquer católico:
Assim, os bispos de todo o mundo, ora individualmente, ora reunidos em sínodos, seguindo um antigo costume das Igrejas e a fórmula da regra antiga, remetiam a esta Sé Apostólica aqueles perigos, em particular, que surgiam nos assuntos da fé, a fim de que ali fossem reparados os danos à fé, precisamente onde a fé não pode sofrer falha… Com efeito, todos os veneráveis Padres abraçaram a sua doutrina apostólica, e os santos doutores ortodoxos a veneraram e seguiram, sabendo muito bem que a Sé de São Pedro permanece sempre isenta de qualquer erro, segundo a promessa divina de Nosso Senhor e Salvador, feita ao chefe de seus discípulos: “Eu roguei por ti, para que tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos” [Lc 22, 32]. (Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática Pastor Aeternus, n. 4; cf. Denzinger-Rahner 1836 ou Denzinger-Hünermann 3070; destaque nosso)
Por meio do Pontificado Romano, portanto, Deus garante que toda a Igreja, unida ao Papa, será sempre o meio exclusivo e indefectível de salvação:
…[P]or mandato de Deus, a salvação não se encontra em nenhum outro lugar senão na Igreja; o instrumento forte e eficaz da salvação não é outro senão o Pontificado Romano. (Leão XIII, Alocução por ocasião do 25.º Aniversário de sua Eleição [20 de fevereiro de 1903]; em Benedictine Monks, Papal Teachings: The Church, n. 653)
Assim como, no primeiro instante da Encarnação, o Filho do Pai Eterno adornou com a plenitude do Espírito Santo a natureza humana que Lhe estava substancialmente unida, a fim de que fosse um instrumento conveniente da Divindade na obra sangrenta da Redenção, assim também, na hora de Sua preciosa morte, quis que Sua Igreja fosse enriquecida com os dons abundantes do Paráclito, para que, ao dispensar os frutos divinos da Redenção, fosse, para o Verbo Encarnado, um instrumento poderoso que jamais falharia. Pois tanto a missão jurídica da Igreja quanto o poder de ensinar, governar e administrar os sacramentos derivam sua eficácia e força sobrenaturais para a edificação do Corpo de Cristo do fato de que Jesus Cristo, suspenso na Cruz, abriu para Sua Igreja a fonte daqueles dons divinos que a impedem de jamais ensinar doutrina falsa, e a tornam capaz de governar os fiéis para a salvação de suas almas por meio de pastores divinamente iluminados, e de conceder-lhes uma abundância de graças celestes. (Pio XII, Encíclica Mystici Corporis Christi, n. 31; destaque nosso)
Eis, pois, a beleza e o poder do papado! É um dom sumamente maravilhoso e glorioso para a Igreja, estabelecido pelo próprio Deus.
O Papado Impedido
Contudo, há também um lado negativo em tudo isso: se o Papa é a rocha das verdades doutrinárias e morais, garantida como tal pelo próprio Deus, segue-se que males inexprimíveis sobreviriam à Igreja se, em algum momento, de algum modo, o Papa fosse impedido de exercer livremente seu ofício, se lhe fosse impedido assumir o cargo, ou se, após a morte de um Papa, houvesse um período prolongado antes da eleição de um novo Papa.
Certamente não surpreende, dada a natureza elevada e a autoridade do papado, que, ao longo da história da Igreja, não tenham faltado inimigos de Cristo que desejam precisamente prejudicar o papado de todas as maneiras possíveis. Escrevendo aos bispos da França, Sua Santidade, o Papa Pio IX, advertiu contra tais forças e exortou todos os católicos a um amor e obediência ainda maiores à Sé Apostólica:
Ora, bem sabeis que os inimigos mais mortais da religião católica sempre travaram uma guerra feroz, mas sem sucesso, contra esta Cátedra; de modo algum ignoram o fato de que a própria religião jamais poderá vacilar ou cair enquanto esta Cátedra permanecer intacta, a Cátedra que repousa sobre a rocha que os soberbos portões do inferno não podem derrubar e na qual reside toda a solidez perfeita da religião cristã. Portanto, em razão de vossa especial fé na Igreja e de vossa particular piedade para com a mesma Cátedra de Pedro, Nós vos exortamos a dirigir vossos esforços constantes, para que o povo fiel da França possa evitar os enganos astutos e os erros desses conspiradores, e desenvolver um afeto e obediência mais filiais para com esta Sé Apostólica. Sede vigilantes em atos e palavras, para que os fiéis cresçam em amor por esta Santa Sé, a venerem e a aceitem com completa obediência; e devem executar tudo quanto a própria Sé ensina, determina e decreta. (Pio IX, Encíclica Inter Multiplices, n. 7 [1853]; destaque nosso)
Aqui vemos demonstrada a grandeza e o poder do papado em gerar, fomentar e impor a genuína unidade entre todos os membros da Igreja. O papado possui esse poder em si mesmo, pois é um dos elementos constitutivos da Igreja estabelecida por Nosso Senhor. No entanto, a unidade é assegurada dessa maneira apenas enquanto “esta Cátedra permanecer intacta”, como ensina Pio IX, na qual reside “toda a solidez perfeita da religião cristã”.
O que, então, poderia ocorrer se, em algum momento, esta Cátedra deixasse de estar “intacta”? Já vimos que a Sé de São Pedro, sendo a infalível Cátedra da Verdade, jamais pode falhar; não pode de repente se tornar a Cátedra do Erro, pois então a Igreja deixaria de ser o veículo da salvação para se tornar veículo da condenação, e isso com o respaldo de Cristo.
Porém, devemos ainda considerar outras possibilidades, cenários que não contradigam as promessas divinas, sob os quais podemos, de fato, dizer que a Cátedra de São Pedro não está mais “intacta”, embora não tenha falhado. Tal seria o caso, por exemplo, em um prolongado período de vacância da Sé Apostólica; no caso de grave interferência secular no exercício do Supremo Pontificado (por exemplo, aprisionando o Papa); ou se um antipapa usurpasse a Sé Apostólica e impedisse tanto a eleição quanto o livre governo do Papa legítimo.
O estado de vacância da cátedra papal é conhecido como sede vacante, e aquele de seu impedimento como sede impedita. Nenhuma dessas condições é estranha à Igreja, como sua história demonstra.
Sempre que um Papa morre, a Santa Sé torna-se vacante, e esse estado de coisas dura até a eleição válida de um novo Papa. Até a morte de Pio XII, em 1958, a vacância mais longa na história da Igreja ocorrera entre os pontificados dos Papas Clemente IV e Gregório X: uma vacância de mais de dois anos e meio, de 1269 a 1271.
No século XII, o Papa Inocêncio II foi impedido de exercer livremente seu papado devido ao cisma do Antipapa Anacleto II, que a maioria das pessoas erroneamente acreditava ser o verdadeiro Papa e que ocupava [a cátedra papal] em Roma. Foram necessários oito anos para que Inocêncio II fosse finalmente reconhecido como o legítimo Romano Pontífice por toda a Igreja.
O caso do Grande Cisma do Ocidente, nos séculos XIV e XV, foi também uma grande provação para a Igreja. Durante aproximadamente 40 anos, houve grande confusão quanto à identidade do verdadeiro Papa, com dois, e até três, reclamantes simultâneos em diversos momentos. O teólogo jesuíta Pe. Edmund J. O’Reilly oferece alguns comentários perspicazes sobre este trágico período da história da Igreja, os quais ajudam a lançar alguma luz sobre a nossa situação atual:
O grande cisma do Ocidente sugere-me uma reflexão que eu tomo a liberdade de expressar aqui. Não tivesse esse cisma ocorrido, a hipótese de uma coisa dessas acontecer pareceria a muitos quimérica. Diriam eles que não poderia ser, que Deus não permitiria que a Igreja chegasse a uma situação tão lastimável. Heresias podem brotar, disseminar-se e durar dolorosamente muito, pela culpa e para a perdição de seus autores e fomentadores, e também para grande aflição dos fiéis, aumentada pela perseguição de fato nos muitos locais dominados pelos hereges. Que os Católicos ficassem divididos acerca da questão de quem é o Pontífice, porém, que a verdadeira Igreja permanecesse entre trinta e quarenta anos sem uma Cabeça plenamente consolidada, e representativa de Cristo na terra, isso não poderia ser. E, no entanto, foi; e não temos garantia de que não acontecerá novamente, embora possamos esperar fervorosamente que não aconteça. O que eu inferiria é que não devemos nos apressar em nos pronunciarmos sobre o que é que Deus pode permitir. Sabemos com absoluta certeza que Ele cumprirá Suas promessas; não permitirá que nada aconteça que destoe delas; que Ele sustentará Sua Igreja e a capacitará a triunfar de todos os inimigos e dificuldades; que Ele dará a cada um dos fiéis aquelas graças necessárias para que cada um sirva a Ele e obtenha a salvação, assim como Ele fez durante o grande cisma que estamos considerando, e em todos os sofrimentos e provações que a Igreja atravessou desde o começo. Também podemos confiar que Ele fará muito mais do que Ele Se comprometeu a fazer por Suas promessas. Podemos nutrir a expectativa, com probabilidade que alegra, de sermos isentos no futuro de algumas das tribulações e infortúnios que se nos abateram no passado. Mas nós, ou nossos sucessores nas futuras gerações de cristãos, talvez veremos males mais estranhos do que os já experimentados, mesmo antes da aproximação imediata daquela grande recapitulação de todas as coisas na terra que precederá o dia do juízo. Não estou me fazendo passar por profeta, nem pretendendo ver prodígios de mau agouro, dos quais não tenho qualquer conhecimento. Tudo o que quero transmitir é que contingências relativas à Igreja, não excluídas pelas promessas divinas, não podem ser consideradas como praticamente impossíveis apenas porque elas seriam terríveis e aflitivas num grau altíssimo. (Pe. Edmund J. O’Reilly, The Relations of the Church to Society, trad. por Matthew Russell [Londres: John Hodges, 1892], pp. 287-288; destaque nosso, itálicos do original removidos)
Como vimos, tais contingências possíveis incluem a sede impedita, assim como um prolongado período de sede vacante. Manifestamente, não incluem aquilo que poderíamos chamar de sede lapsa, a ideia de que heresia e erro possam provir da Cátedra da Verdade. (Essa ideia de uma “Santa Sé corrompida” é sustentada por muitos “católicos tradicionais” hoje, que escolheram reconhecer os papas do Vaticano II como verdadeiros Papas, mas resistem a qualquer exercício do ofício desses reclamantes que seja julgado contrário ao ensinamento ou à prática pré-Vaticano II.)
O Pe. Herman B. Kramer, em sua interpretação do Apocalipse, adverte que uma prolongada vacância da Sé Apostólica, inteiramente dentro do âmbito da possibilidade segundo o ensinamento católico, significaria um terrível sofrimento para a Igreja:
…[O]s grandes poderes [seculares] podem adotar uma atitude ameaçadora para impedir a eleição do candidato [papal] lógico e esperado, mediante ameaças de apostasia geral, assassinato ou aprisionamento desse candidato, caso seja eleito. Isto… causaria intensa angústia à Igreja, pois um interregno prolongado no papado é sempre desastroso, e mais ainda em tempo de perseguição universal. Se Satanás resolvesse obstar a eleição papal, a Igreja sofreria grande tribulação. (Pe. Herman Bernard Kramer, The Book of Destiny [Rockford: TAN Books, 1975], p. 278. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1955 pela Buechler Publishing Company, mas a referência de página corresponde à edição reimpressa de 1975 pela TAN, amplamente disponível)
Claramente, a situação em que nos encontramos hoje, e que todos aqueles que reconhecem Pio XII como o último verdadeiro Papa corretamente identificaram como sendo ou a de um prolongado período de sede vacante, ou a de sede impedita, não é de modo algum estranha à mente da Igreja, nem contrária ao seu ensinamento. Que tais circunstâncias resultem em provas terríveis é algo que se impõe à razão. (Menciono aqui também a sede impedita, pois não podemos descartar a possibilidade, por mais improvável que pareça, de que haja atualmente um verdadeiro Papa em ocultação, de algum modo impedido de se dar a conhecer ao mundo.)
Todas essas considerações nos auxiliarão a avaliar o verdadeiro significado de qualquer “desunião” e das divergências existentes entre os sedevacantistas.
O Papado e a “Desunião” Sedevacantista
Tendo revisado extensivamente a doutrina católica sobre o poder do papado, especificamente no que diz respeito a ser a fonte e a salvaguarda da unidade de toda a Igreja, bem como a possibilidade de que o ofício papal possa, em algum momento, estar quer vacante, quer impedido, podemos agora voltar-nos às dificuldades existentes entre os sedevacantistas e compreender como essas dissensões, longe de refutarem nossa posição teológica de qualquer modo, são, na verdade, apenas o resultado natural da ausência de um legítimo Romano Pontífice.
Ao examinarmos as questões sobre as quais os sedevacantistas se encontram divididos, percebemos rapidamente que não se tratam realmente de divergências concernentes à doutrina per se, pois todos aqueles que reconhecem os Papas até Pio XII como legítimos devem igualmente submeter-se ao seu Magistério, ao menos sob pena de pecado mortal, por vezes sob pena de heresia. Antes, as divergências geralmente concernem à aplicação correta do ensinamento da Igreja a um caso específico em questão, a um ponto doutrinário mais sutil ainda não resolvido pela Igreja, à interpretação correta de uma lei, ou à adequada resposta pastoral a uma situação particular.
Assim, por exemplo, encontramos católicos sustentando opiniões divergentes sobre como resolver este ou aquele problema paroquial, sobre o que constitui o currículo escolar católico mais adequado, se determinado seminário é digno de apoio, ou se um indivíduo específico é apto para receber as ordens sagradas. Encontramos pessoas discordando sobre se um determinado tipo de vestimenta atende aos padrões exigidos de modéstia, se o Papa Pio XII ainda desejaria que se usassem suas reformas litúrgicas do meado da década de 1950, ou se um sacerdote tem o direito – ou o dever – de negar a Sagrada Comunhão a este ou aquele indivíduo. Outros pontos de divergência incluem se um sacerdote pode vincular as consciências dos fiéis a respeito de uma conclusão teológica com a qual outros sacerdotes discordam, se uma ordenação particular deve ser considerada duvidosa ou não, e se devemos, ou não, e em que medida, nos envolver no processo político secular.
A lista de divergências pode parecer, por vezes, esmagadora, mas devemos dar um passo atrás e considerar tudo isso em seu devido contexto: falta-nos um verdadeiro Papa que pudesse, em virtude de seu ofício, resolver essas disputas e impor a unidade do rebanho por meio de uma decisão autoritativa. A situação em que nos encontramos é claramente uma espécie de exílio, uma grande agonia que devemos aceitar, como qualquer outro sofrimento, com grande amor, paciência e perseverança, sabendo que foi permitida por um Deus todo-sábio e todo-bom, e que o que verdadeiramente merecemos é infinitamente pior.
Devemos também avaliar quão realistas são nossas próprias ideias e expectativas. É razoável esperar que, se não houve Papa por décadas, tudo na Igreja simplesmente continue normalmente? Podemos realmente, por um lado, afirmar sede vacante, mas, por outro lado, queixar-nos de que há tantas divergências entre nós? Não acompanha esta última, antes, a primeira como uma consequência praticamente inevitável?
Mas suponhamos por um momento que essas divergências sedevacantistas que tanto lamentamos não existissem. Suponhamos que todos nós, que reconhecemos Pio XII como o último verdadeiro Papa, concordássemos em todos os detalhes quanto às dificuldades acima enumeradas, de modo que gozaríamos de completa e perfeita unidade nessas questões.
Sustento que isso não faria diferença alguma.
Quero dizer, não faria diferença alguma em princípio. A razão disso é que qualquer acordo sobre uma questão que não tenha sido resolvida por um verdadeiro Papa será sempre apenas acidental, isto é, produto das circunstâncias, por assim dizer, porque o Papa é o único que poderia gerar e impor consenso em virtude do poder unificador de seu ofício, que goza de autoridade de Deus para dirigir as mentes e as vontades de todos os fiéis. Assim, somente o próprio Papa pode, intrinsecamente, “causar” acordo e, portanto, unidade, enquanto qualquer outro acordo ocorreria meramente como nada mais do que o produto de mero acaso, possuído por pessoas que, por acaso, pensam do mesmo modo, mas cujo acordo não é efeito essencial de uma causa unificadora e, por isso, poderia terminar a qualquer momento. Seria apenas uma unidade acidental, não uma unidade essencial, a qual só pode provir do Papa.
Esta consideração, creio, mostra que, quer devamos sofrer divisões lamentáveis como atualmente sofremos, quer todos estivéssemos em completo acordo sobre todas as coisas, não podemos escapar do fato de que a ausência de um Papa significa que o princípio de unidade está temporariamente impedido de realizar a unidade do rebanho naquelas questões sobre as quais legitimamente discutimos e divergimos neste momento.
Percebendo, então, que nossa unidade essencial não seria maior se, por acaso, concordássemos em todas aquelas questões sobre as quais agora divergimos – pois ainda assim não seria resultado de um verdadeiro Papa governando nossas vontades e nossos intelectos nesses pontos –, devemos sentir-nos consolados pelo fato de que, pela mesma razão, essa unidade também não pode ser diminuída ou removida pelas disputas e divisões que atualmente enfrentamos.
Gostaria de concluir chamando a vossa atenção para uma observação pertinente feita pelo Pe. Leo Trese, escrevendo no início dos anos 1950:
Pode vir, em nosso tempo, como veio no século V, uma invasão bárbara para inundar o mundo cristão. Se isso ocorrer, a luz da Fé poderá vacilar novamente, como vacilou há mil e quinhentos anos, uma chama débil marcando as brasas ardentes que jazem sob o novo combustível que Deus está acumulando sobre Sua Igreja. (Pe. Leo Trese, “Prefácio”, em Dorothy Dohen, Vocation to Love [Nova Iorque: Sheed & Ward, 1951], p. vii)
Embora a invasão bárbara que este sacerdote tinha em mente não tenha ocorrido, uma muito mais sinistra veio em seu lugar: uma invasão de modernistas usurpando a Sé Apostólica sob aparência externa de Catolicismo, como o cavalo de Troia na antiga Grécia, causando danos muito mais graves e extensos do que quaisquer bárbaros jamais poderiam causar.
Mas tenhamos ânimo, pois, como sugere o Pe. Trese, as tribulações com que agora somos afligidos não passam de um prelúdio necessário à gloriosa restauração futura da Igreja Católica (cf. Romanos 8, 18: “Pois considero que os sofrimentos do tempo presente não são dignos de serem comparados com a glória que há de ser revelada em nós”), a qual ocorrerá precisamente no tempo e da maneira que Deus Todo-Poderoso preordenou desde toda a eternidade.
Trad. por Dominicus. De: Novus Ordo Watch, “When the Shepherd Is Struck: The Papacy and Sedevacantist ‘Disunity’”.

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