A SITUAÇÃO JURÍDICA DA FSSPX E SEUS MEMBROS

Padre Anthony Cekada
2006

Que tipo de organização é a Fraternidade?

Os sacerdotes que a abandonam
tornam-se pecadores públicos?

QUESTÃO: Ao Rev. Pe. Peter Scott foi feita, recentemente, a pergunta: “Que pensar de padres que saíram da Fraternidade São Pio X?” O Pe. Scott dá uma série de razões para condenar esses padres, incluindo as seguintes:
(1) Os “compromissos” que os padres assumem ao entrar para a Fraternidade não são “de modo nenhum essencialmente diferentes” dos votos que alguém faz para entrar para uma ordem religiosa.
(2) Esses compromissos vinculam os membros à FSSPX “sob pena de pecado mortal, exatamente como um religioso está vinculado por seu voto de obediência”.
(3) Os padres que saem da FSSPX após fazerem um “compromisso perpétuo” são “pecadores públicos” e devem ser igualados a “uma pessoa casada que violou seus votos e caiu em adultério”. Não se pode receber sacramentos desses padres “a não ser em perigo de morte”.
(4) Os padres que fizeram “compromisso temporário” na FSSPX são moralmente obrigados a entrar para uma diocese “ou alguma outra comunidade religiosa”.
(5) Um padre que sai da FSSPX violou também o “voto público de obediência” incluído na cerimônia de ordenação.
(6) Um tal padre também viola o Juramento de Fidelidade prévio à ordenação prescrito pela lei canônica, e torna-se “um hipócrita e um pecador público”.
(7) Um padre da FSSPX faz uma “declaração de fidelidade” às “posições da Fraternidade” (sobre o papa, a Missa Nova, o missal de João XXIII etc.), declarando seu desejo de “mostrar a obediência que me vincula a meus superiores, assim como a obediência que me vincula ao Romano Pontífice em todos os seus atos legítimos”, de modo que padre nenhum pode sair da FSSPX caso se torne sedevacantista etc.
(8) E que, por todas as razões precedentes, os padres que deixaram a FSSPX “devem ser evitados a todo o custo”.
Que lhe parece do arrazoado do Pe. Scott?

RESPOSTA: O ponto de partida do Pe. Scott para todas essas condenações é uma presunção oculta: que a Fraternidade de São Pio X desfrute da natureza canônica de “sociedade de vida comum sem votos” — uma entidade, na lei canônica, aparentada a uma ordem religiosa. (Exemplos familiares de tais sociedades incluem os Padres de Maryknoll, os Padres Paulistas e os Oratorianos.)

Entrar para uma sociedade dessas traz consigo obrigações canônicas (prossegue o argumento do Pe. Scott), e assim, apartando-se da FSSPX, um sacerdote viola essas obrigações, torna-se pecador público etc., etc.

Bem, no mínimo com relação à lei canônica, o Pe. Scott está vivendo na terra da fantasia.

1. O QUE É A FSSPX? Exatamente que tipo de entidade canônica a FSSPX é? É realmente semelhante aos Maryknolls ou aos Paulistas? Temos apenas de olhar para a sua fundação.

Em 1.º de novembro de 1970, o Bispo de Friburgo, na Suíça, emitiu um Decreto estabelecendo “A Internacional Fraternidade Sacerdotal de São Pio X” como uma “pia união” (pia unio), cuja finalidade declarada era formar sacerdotes e redistribuir clero para lugares onde fossem necessários, em conformidade com o Decreto sobre a Formação Sacerdotal do Vaticano II, Optatum Totius.

No Código de Direito Canônico, uma união pia é simplesmente uma associação aprovada de fiéis — leigos ou clérigos — empenhada em alguma obra pia ou caritativa (cânon 707).

Alguns exemplos familiares de pias uniões: a Confraria da Doutrina Cristã (ensina catecismo), a Sociedade de São Vicente de Paula (obra caritativa com os pobres) e a Sociedade do Próximo-Oriente (apoia o clero católico pobre no Oriente Próximo). As regras para essas organizações tendem a ser muito simples; é fácil de entrar nelas e fácil de se desligar delas.

Obviamente, as senhoras devotas que ensinam o Catecismo da Doutrina Cristã às criancinhas de escola pública e os afáveis vovôs vicentinos que coletam roupas para os pobres não pertencem a uma organização eclesiástica no mesmo patamar canônico dos Missionários de Maryknoll ou dos Padres Paulistas.

E leva apenas cinco minutos de pesquisa para confirmar essa impressão com outra prova, também: o Código de Direito Canônico trata das sociedades de vida comum sem votos na sua seção sobre ordens religiosas (Livro II, Parte 2, cc. 673–81). Das pias uniões, por outro lado, o Código trata na sua seção sobre o laicato (Livro II, Parte 3, cc. 707–719).

E isso não é tudo: ocorre que a pia união é a criatura mais baixa na cadeia alimentar eclesiástica. Não só é classificada sob “Laicato” — o cânon 701 coloca-a bem no último lugar em ordem de precedência. Assim, até mesmo Sodalícios de Ordem Terceira (leigos carmelitas, franciscanos etc.) e Arquiconfrarias (do Rosário, do Santíssimo Sacramento) superam em escalão a uma união pia.

Qual a probabilidade de um membro que sai de uma tal organização incorrer em todas as consequências canônicas e morais arrepiantes evocadas pelo Pe. Scott?

2. QUE REGRAS VINCULAM OS MEMBROS? Em qualquer instituto religioso reconhecido pela Igreja — seja ele uma ordem, uma congregação ou uma sociedade — as regras e constituições apresentam as obrigações que um membro contrai mediante seus votos ou promessas. Essas leis obtêm força vinculante somente depois de receberem aprovação oficial de uma autoridade eclesiástica possuidora de jurisdição ordinária — seja o Bispo Diocesano ou o Papa, agindo por intermédio das Congregações Romanas.

Que conjunto de leis supostamente criou as obrigações para os membros da Fraternidade de São Pio X, e como essas leis obtiveram sua força vinculante?

Em 1970, a Fraternidade submeteu seus propostos Estatutos ao Bispo de Friburgo. No Decreto de Fundação dele, o Bispo aprovou esses Estatutos por um período experimental de seis anos. Eles seriam então renováveis por outros seis anos. Depois disso, provia o Decreto, a FSSPX poderia se tornar definitivamente estabelecida, seja na sua diocese ou por meio da Congregação Vaticana competente.

Não havia grande coisa nos Estatutos de 1970. Consistiam em cerca de duas dúzias de páginas de exortações, datilografadas e com espaços duplos — tudo, desde “o tabernáculo será vossa televisão” até oportunidades limitadas para concelebração em estilo Novus Ordo. Um tal documento era inteiramente consistente com a natureza da organização que o Bispo de Friburgo estava estabelecendo — não uma sociedade a la Maryknoll, mas uma pia união.

Em 1975, contudo, antes de o período experimental de seis anos expirar, o Bispo de Friburgo retirou sua aprovação da FSSPX.

Na época, houve um bocado de debate acerca de se o Bispo de Friburgo havia seguido os procedimentos corretos. O Arcebispo Dom Lefebvre, subsequentemente, introduziu diversos recursos canônicos. Mas as congregações vaticanas apropriadas e o próprio Paulo VI mantiveram a supressão.

Se, como a FSSPX, você mantém que Paulo VI era de fato verdadeiro papa, ele era a última instância de recurso e tinha o direito e o poder de declarar a Fraternidade suprimida.

Com isso, as poucas obrigações expostas nos Estatutos de 1970 perderiam seu poder de vincular os membros da Fraternidade. Roma locuta est. Causa finita est.

Tempo esgotado. Fim de jogo. Acabou a história.

A despeito disso, em 1976 o Capítulo Geral da FSSPX adotou um novo conjunto de Estatutos. Não eram muito mais extensos ou detalhados que a versão de 1970. (A “televisão” ficou, a concelebração foi descartada.)

Os Estatutos de 1976, desnecessário dizer, não receberam as aprovações dos bispos diocesanos que a lei canônica requereria para torná-los válidos e vinculantes para os membros da organização. Sem tais aprovações, os Estatutos de 1976 eram canonicamente nulos.

É, portanto, absurdo o Pe. Scott alegar que os padres que saem da FSSPX cometam pecado. A organização foi suprimida, os estatutos que ela adotou subsequentemente eram inválidos, e seus superiores não têm nenhum poder canônico ou moral para vincular a quem quer que seja ao que quer que seja.

3. “COMPROMISSO” É IGUAL A “VOTO”? É ridículo o Pe. Scott equacionar “compromisso” na FSSPX com os votos públicos feitos por membros de uma ordem religiosa. O Cânon 1308 afirma que somente um voto “recebido em nome da Igreja por um superior eclesiástico legítimo” é um voto público. Sem isso, um voto é considerado privado — não importa quantas pessoas estejam presentes quando você o fizer.

Nem com o maior esforço de imaginação se poderia dizer que os “compromissos” dos membros da FSSPX sejam recebidos por um “superior eclesiástico legítimo”.

E de onde foi que o Pe. Scott tirou essa noção de equacionar “compromisso” com voto público, aliás? No Dicionário de Direito Canônico de sete volumes de Naz, não se encontra nem mesmo um verbete para esse termo. Como pode sua não-observância transformar os descompromissados no equivalente de adúlteros?

Na metade da década de 1980, havia cerca de cinquenta sacerdotes que fizeram compromissos na FSSPX e depois saíram. Quantos já não haverá agora? 600? “Adúlteros espirituais”, todos eles?

4. UM SIMPLES INGRESSO. A fórmula de compromisso mesma, empregada pela FSSPX quando eu entrei, era: “Eu, N.N., inscrevo o meu nome na Fraternidade de São Pio X.”

Essa linguagem é meramente um ingresso, e era completamente consistente com a natureza de uma pia união: “Eu dou meu nome” — me liga pra eu ajudar a dar aquela aula de catecismo preparatória para a primeira comunhão, me põe na tua lista pra coletar roupas e trabalhar no sopão vicentino.

Fácil de entrar, fácil de sair — assim como entrar para a Sacred Heart Auto League [Liga Automobilística do Sagrado Coração].

5. REGRAS, DIREITOS, OBRIGAÇÕES. Uma promessa ou voto de verdade num instituto religioso canonicamente aprovado, porém, menciona a regra e constituições pelas quais você concorda em ser vinculado — e estas usualmente têm centenas de páginas de extensão. Todas essas leis cuidadosamente redigidas evitam que os institutos religiosos se tornem ditaduras, pois circunscrevem muito cuidadosamente os poderes dos superiores, limitam seus termos e protegem os direitos de cada súdito.

Antes de entrar para a FSSPX, eu pertenci a uma ordem religiosa de verdade, os cistercienses. As obrigações que assumi com meus votos eram absolutamente claras — apresentadas em detalhe e longamente na Regra de São Bento, na Constituição Geral da Ordem, nas Constituições da Congregação de Zirc [abadia cisterciense na Hungria (N. do T.)], e outros estatutos menores. A mesma coisa quanto a meus direitos como membro (até à concessão de tabaco cotidiana) e as obrigações dos meus superiores de respeitar esses direitos.

A FSSPX não tem absolutamente nada parecido. Na ordem prática, todo o poder reside no Superior Geral — como uma espécie de Idi Amin eclesiástico, menos os crocodilos antropófagos.

Fique do lado errado perante os poderes constituídos na FSSPX — por qualquer pensamento independente, diga-se, ou por aderir a algum princípio teológico que contradiga a linha do partido du jour da Fraternidade — e é vacinação contra a malária, batina branca e passagem só de ida até Mumbai para você, Monsieur l’abbé.

6. IMPONDO JURAMENTOS E DECLARAÇÕES. Finalmente, uma organização canonicamente inexistente não tem nenhumpoder para impor obrigações canônicas ou morais aos seus membros com base no Juramento de Fidelidade canônico.

E nem sequer a ordem religiosa de 850 anos de idade em que professei votos teria presumido, como faz a FSSPX, impor-me uma “declaração de fidelidade” às suas “posições” como condição para ordenação. As únicas “posições” que os membros da Ordem eram obrigados a aceitar eram os ensinamentos da Igreja.

* * * * *

Assim, do começo ao fim, cada “obrigação” que o Pe. Scott usou para condenar os sacerdotes que abandonam a FSSPX é pura invenção — produto do mito cosmogônico da FSSPX.

Os conceitos que empreguei acima para lidar com as alegações fantásticas do Pe. Scott podem ser encontrados até mesmo nos mais simplificados manuais de Direito Canônico em vernáculo. Ninguém jamais pesquisa nada na FSSPX?

E isso levanta uma questão maior: os membros da FSSPX como o Pe. Scott continuam repetindo as mesmas velhas fábulas mirabolantes e argumentos ignorantes — sobre a fundação da Fraternidade, a promulgação “ilegal” da Missa Nova, a Missa Tridentina “canonizada”, o caráter “não-obrigatório” do Vaticano II, o papa como “pai mau”, citações “da resistência” distorcidas e fora de contexto, excomunhões “ilegais” etc. — muito tempo depois de tais noções terem sido repetidamente refutadas com citações de canonistas, teólogos, historiadores e Papas.

Talvez seja por isso que, certa vez, um cardeal descartou sarcasticamente a Fraternidade São Pio X como “Port-Royal sans intelligence” — jansenismo descerebrado.

Seria de pensar que uma organização que professa dedicação a preservar a doutrina católica viesse, ao menos ocasionalmente, a descartar posições que se demonstra serem inconciliáveis com princípios da teologia e do direito canônico.

Mas não. Nos quase quarenta anos de existência da Fraternidade, malgrado todos os sacerdotes que ela ordenou e todos os recursos à sua disposição no mundo inteiro, isso nunca parece ter acontecido. As “posições” da Fraternidade ainda são as mesmas, pântano teológico estagnado — um vasto brejo tombado onde nenhum desenvolvimento jamais é permitido e onde as mesmas criaturas decrépitas vagueiam para sempre na escuridão.

Calçai vossas botas bacanas, todos vós que aí entrais!

(Internet, 23 de agosto de 2006)

Trad. por Felipe Coelho

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