ARZINHO DE “DÉJA VU”!

Padre Hervé Belmont
2007

O Vaticano publicou recentemente três documentos que têm estreita relação com a noite profunda que recobre a Igreja Católica, a Santa Igreja de Jesus Cristo, Sua Esposa imaculada fora da qual ninguém pode ser salvo.

Em 7 de julho último [2007], Bento XVI publicou um motu proprio enumerando em doze artigos os casos e condições em que o rito tradicional da Santa Missa pode ser utilizado; esse motu proprio é acompanhado de uma carta aos bispos. Pouco tempo antes, em 27 de junho, o mesmo Bento XVI aprovou e confirmou um documento emanado da “Congregação para a Doutrina da Fé” visando mostrar que o Vaticano II não modificou a doutrina católica.

Se queremos reagir conforme a santa vontade de Deus, se portanto queremos lançar sobre este acontecimento um olhar de prudência sobrenatural, é-nos preciso, antes de tudo, examinar esses textos sob o olhar da fé católica, pois a prudência cristã se alicerça na virtude teologal da fé, que lhe demarca seu fim e constitui seu critério decisivo.

Lamentavelmente, esse olhar de fé esteve ausente com demasiada frequência nas reações que se manifestaram aqui e ali. Temerários Te Deum manifestaram claro demais que se cedeu ao hábito funesto de considerar a Igreja como uma sociedade humana de mesma natureza que as outras, regida pelas mesmas leis e princípios. Uma espécie de sociologia da Igreja obscurece a fé teologal.

Se estivéssemos numa família, numa empresa ou numa sociedade política exposta à anarquia ou à debandada, não se poderia senão aplaudir a destreza, se poderia regozijar-se que os atos de Bento XVI vão “na boa direção” e que são o máximo dentro do possível, que auguram uma sequência ainda mais favorável, que vão mudar as relações de força, que vão despertar o amor à tradição no bom povo cristão… Talvez (?).

Quando se trata da Igreja de Jesus Cristo, isso é impossível: embora ela também seja uma sociedade humana, a Igreja é antes de tudo o Corpo Místico de Cristo, a sociedade da verdade integral, a oferente do Sacrifício perfeito, a fiel ministra da lei divina. Em seu seio, o erro não pode encontrar refúgio, o simulacro não tem direito de cidadania, tudo aquilo que é inspirado pelo espírito da heresia ou do cisma deve ser rejeitado sem recurso. Agir de outro modo é incompatível com a sua missão, com a sua constituição, com a sua autoridade suprema que é Jesus Cristo.

Ademais, nenhum dos documentos mencionados acima é novo: um pouco de memória nos ajudará para o discernimento e a fidelidade.

No ano 2000 (em 6 de agosto), a declaração Dominus Jesus já tentava ajustar à força  o Vaticano II ao formato da doutrina tradicional sobre a Igreja. Isso fez cessar o ecumenismo e o indiferentismo por toda parte encorajados? Isso fechou a porta de certa mesquita?

Em 1984 (a 3 de outubro), a carta Quattuor abhinc annos liberalizava o uso do Missa tradicional sob condições análogas às do recente motu proprio (exceto que não se falava ali das missas em privado). Isso porventura provocou um maremoto, um retorno à tradição? E todavia, à época, o entusiasmo foi grande, a crise ia cessar. Dom Gérard declarava ao jornal Présent (25/26 de fevereiro de 1985): “É uma grande alegria para nós constatar que a Missa tradicional recupera, enfim, seu direito de cidadania na Igreja.” E o Padre Joseph de Sainte-Marie (Présent de 7 de março de 1985): “A primeira coisa que fiz foi me alegrar bastante, pois é um primeiro passo. É de grande importância saber que tem o vigor da vontade formal do Santo Padre, uma vontade que ele levou vários anos para realizar.”

Vinte e três anos mais tarde, nada mudou, tudo se agravou. E eis que a história recomeça; a mesma permissão (mais ampla, é verdade) é sortida das mesmas condições: o reconhecimento da legitimidade do novo ordo de Paulo VI e a aceitação do Vaticano II.

Essa impressão de déjà vu deixa um profundo mal-estar e entorna o ceticismo. Consideremos isso sob o olhar da fé.

motu proprio “Summorum Pontificum” é uma ampla autorização do rito tradicional (salvo para a Quinta-feira, a Sexta-feira e o Sábado santos, deixados em suspense no artigo 2), mas uma autorização que é, antes de tudo, uma afirmação (e uma afirmação a ser compartilhada) da prioridade, da plena legitimidade e da plena fidelidade da reforma litúrgica derivada do Vaticano II.

— Legitimidade, pois (se nos diz) Paulo VI não fez nada de diferente de São Gregório, São Pio V ou São Pio X (preâmbulo).

— Fidelidade, pois a lex credendi – a fé e a doutrina aplicadas – do novo ordo é a mesma que é exprimida no e pelo rito tradicional (artigo 1).

— Prioridade, pois o ordo de Paulo VI é o rito ordinário – aquele que está em ordem – enquanto que o rito anterior nada mais é que forma extraordinária – que é concedida à margem da ordem (artigo 1).

E assim, todo o combate posto em movimento durante quarenta anos, com coragem e muitas vezes perseguição, pelos defensores da missa tradicional é devolvido ao nada: eles recusavam a revolução litúrgica em nome da fé católica… é preciso agora crer que não há e que não houve nem revolução nem desvio na fé.

Compreendamos! A dessacralização maciça da liturgia não abala a fé; a desnaturação do Ofertório nada tem que ver com a fé; a modificação das palavras da consagração com vistas a fazer dela um “relato da instituição”, a supressão do inciso mysterium fidei, a aceitação de todas as traduções que transformaram o pro multis em “por todos”, isso é sem incidência sobre a fé; a definição herética da Missa que presidiu à promulgação do novo ordo, isso não é contrário à fé. Porque sim, já que ele falou… Mas por que então, pois, João Paulo II declarou equivalentemente que a reforma litúrgica foi tornada necessária por uma mudança de doutrina? Pois é bem isso que ele significa no fundo na Carta apostólica Sacrosanctum de 4 de dezembro de 1988: “Vinculada à renovação bíblica, ao movimento ecumênico, ao impulso missionário, à investigação eclesiológica, a reforma litúrgica devia contribuir para a renovação global da Igreja”. À nova doutrina sobre a Igreja, à nova concepção da natureza humana, nova liturgia. Lógico.

E ajunta-se, de passagem (artigo 1 § 2), que o rito anterior nunca foi abrogado. Quos vult perdere Jupiter dementat. Se nunca foi abrogado, então conceder permissão a ele não faz o menor sentido, sobretudo em se tratando de uma permissão restrita, de uma permissão condicionada à aceitação de princípio daquilo que o destrói: o ordo adaptado ao mundo que evolui!

Se nunca foi abrogado, como se deve entender a palavra de Paulo VI: “É em nome da Tradição que demandamos a todos os nossos filhos, a todas as comunidades católicas, celebrar com dignidade e fervor a liturgia renovada. A adoção do novo Ordo Missæ não é de modo nenhum deixada ao livre alvedrio dos sacerdotes ou dos fiéis. A instrução de 14 de junho de 1971 previu a celebração da missa conforme o rito antigo, com a autorização do Ordinário, unicamente para sacerdotes idosos ou enfermos, que ofereçam o sacrifício divino sine populo. O novo Ordo foi promulgado para substituir o antigo, após amadurecida reflexão, e no seguimento das instâncias do Concílio Vaticano II. Não foi de modo diferente que nosso santo predecessor Pio V tornou obrigatório o missal reformado sob sua autoridade, na sequela do Concílio de Trento. Com a mesma autoridade suprema que nos vem do Cristo Jesus, nós exigimos a mesma disponibilidade a todas as outras reformas litúrgicas, disciplinares, pastorais, amadurecidas nestes últimos anos em aplicação dos decretos conciliares. Nenhuma iniciativa que vise opor-se a elas pode arrogar-se a prerrogativa de prestar serviço à Igreja: na realidade, causa-lhe grave dano.”

Como quer que seja, de resto, quanto ao imbroglio jurídico, a intenção de Paulo VI não dá margem a dúvida alguma: nega-se a esta sem a menor vergonha.

Os pontos acima ressaltados – legitimidade, fidelidade, prioridade – não são frutos de uma escolha arbitrária, efetuada aqui para as necessidades da causa: são eles que são retomados e apresentados na carta aos bispos que acompanha o motu proprio. Essa carta, com toda a evidência, é destinada a apaziguar seus destinatários, dizendo que o objetivo do motu proprio é a reconciliação: uma unidade na base do Vaticano II e do reconhecimento da legitimidade do novo rito. Após disso, pode-se aceder às preferências pelos ritos antigos.

Há, sem embargo, um ponto fundamental, com consequências práticas gravíssimas e onipresentes, do qual nem o motu proprio nem a carta tratam, e que é preciso, porém, levar bem em consideração: a validade das sagrações e das ordenações realizadas conforme o rito reformado por Paulo VI em junho de 1968. A contaminação protestante que se deplora na reforma do ordo missæ já aí se encontra, fazendo pesar dúvidas (e mais que dúvidas) sobre a validade das ordens – e, portanto, sobre a dos atos sacramentais que delas dependem, como a Missa. Estará verdadeiramente “restabelecida” esta Missa, se for celebrada por não-sacerdotes?

Dado que o reconhecimento do valor eclesial e magisterial do Vaticano II é uma condição necessária – e lógica – da outorga dos favores concedidos pelo motu proprio, há que persuadir os candidatos a eles da homogeneidade entre o Vaticano II e o ensinamento do Magistério anterior. Mostrar essa compatibilidade, essa continuidade, é todo o objeto do terceiro documento publicado pelo Vaticano.

Em cinco questões, o documento examina qual pode ser o sentido e alcance da expressão “subsistit in” que substituiu o “est” da tradição católica desde São Paulo. Lá onde a fé divina nos diz: a Igreja de Jesus Cristo é a Igreja Católica, o Vaticano II resvala: “a Igreja de Jesus Cristo subsiste na Igreja Católica como sociedade constituída e organizada…” (Lumen gentium I, 8). Como se vê, essa novidade de expressão não exclui que a Igreja de Cristo possa subsistir alhures de forma menos organizada, ou mesmo sem organização específica. Logo, passou-se da afirmação de uma identidade à afirmação de uma inclusão, o que é uma regressão notável na significação, o que tem valor real de negação na fé.

Pois bem, o documento de 29 de junho explica tranquilamente que a nova formulação é mais profunda e mais adequada, e que ela tem por objetivo afirmar que as comunidades cismáticas são alguma coisa da Igreja, que elas estão não fora da Igreja e separadas dela, mas somente em comunhão imperfeita com a Igreja.

Mais profunda que São Paulo? Mais adequada que Pio XII? Nada os detém, em Roma! O vício dessa nova concepção consiste em transferir para comunidades separadas (invenções do diabo) aquilo que o Espírito Santo opera no segredo das almas, obra esta para a qual a comunidade cismática, enquanto tal, é um execrável obstáculo.

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Remeto ao artigo intitulado Alguns pontos de referência, escrito em previsão do que acontece hoje.

Trad. por Felipe Coelho.

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