NOTAS DE LEITURA E COMENTÁRIOS À SPES SALVI

Padre Patrick de la Rocque, F.S.S.P.X.
2008

Salvos em esperança: Bento XVI quis tomar a magnífica expressão de São Paulo (Rom. 8, 24) como título de sua segunda encíclica. Seguindo a recomendação de São Pedro, o papa [sic!] vem então dar a razão da esperança que há nele (1 Pe 3, 15).

Num mundo cada dia mais secularizado, que lamentavelmente muitas vezes não aspira senão às coisas terrenas, Bento XVI busca assim reacender a chama da esperança. Tal como ele o indica (n° 1), seu objetivo é, portanto, mostrar que somente uma esperança fiável na vida eterna permite enfrentar o presente.

Recuperar a dimensão espiritual do ser humano

Por um procedimento apologético sabiamente conduzido, o papa tenta acompanhar seu leitor o mais longe possível num percurso pessoal de reflexão. Ele quereria fazê-lo descobrir a dimensão imortal do seu ser, e como é vão pôr sua esperança só nas coisas deste mundo. O método utilizado pelo papa não deixa de ser revelador do triste estado da cristandade. Embora ele dirija esta encíclica ao povo católico (ele poderia tê-la destinado «a todos os homens de boa vontade»), Bento XVI não estimou poder apoiar-se na fé de seus leitores para ensinar-lhes o conteúdo e o motivo da esperança cristã: confissão realista da pobreza da fé em muitos católicos, de sua falta de instrução e mesmo por vezes de sua recusa de se deixar instruir. Bento XVI busca também simplesmente despertar seus leitores para sua dimensão espiritual, utilizando para isso uma análise de tipo filosófico, donde a leitura por vezes difícil de certos parágrafos.

A denúncia das falsas esperanças

Não deixa por isso de ser abençoado o caminho de descoberta que propõe Bento XVI. Nos antípodas da Gaudium et Spes, o papa não hesita, com efeito, em estigmatizar as falsas esperanças que o mundo moderno tentou apresentar. Assumindo certas críticas emitidas pelos filósofos da pós-modernidade, o papa denuncia então claramente uma porção de ilusões, desde a ideologia do progresso (Bacon) até Marx, passando por certos limites da revolução francesa. Essas denúncias valem-nos por vezes belas páginas repletas de bom senso, como aquela que estigmatiza a ideologia do progresso materialista:

«Não há dúvida que o progresso oferece novas potencialidades para o bem, mas abre também possibilidades abissais de mal – possibilidades que antes não existiam. Todos fomos testemunhas de como o progresso em mãos erradas possa tornar-se, e tornou-se realmente, um progresso terrível no mal. Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética [moral] do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2 Cor 4,16), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo.» (n.° 22).

Notemos igualmente a denúncia de Marx, aquela mesma que o concílio Vaticano II recusou-se a pronunciar: «Ele [Marx] esqueceu o homem e a sua liberdade. […] Ele acreditava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis.» (n.° 21).

De um ponto de vista filosófico, apenas a crítica do racionalismo apresentada pela encíclica deixa a desejar (n.° 23): à pretensão de autonomia absoluta da razão, não é contraposta senão a necessidade de uma consciência moral normativa do agir. Doravante, a razão não é vista senão em sua ação diretiva da vontade (bem/mal), e não em sua ação primeira de conhecimento do ser (verdadeiro/falso). A lei moral, transcendental e intrínseca, tomou a precedência sobre a lei do ser, cognoscível pela razão. A possibilidade de acesso ao ser não sendo mais sublinhada, somente a experiência de Deus torna-se o fundamento do reto agir, donde uma certa confusão entre as ordens natural e sobrenatural:

«Deus entra verdadeiramente nas realidades humanas somente se ele não é somente pensado por nós, mas requer-se que Ele mesmo venha ao nosso encontro e nos fale. Por isso, a razão necessita da fé para chegar a ser totalmente ela própria: razão e fé precisam uma da outra para realizar a sua verdadeira natureza e missão.» (n.° 23).

Os limites da encíclica

Uma vez denunciadas as falsas esperanças propostas ao homem que se sente confrontado com o mistério de sua finitude, resta saber sobre o que Bento XVI funda sua esperança, noutras palavras, que concepção ele propõe da cura do homem, de sua redenção: «Em que consiste esta esperança que, enquanto esperança, é “redenção”?» (n.° 3). A resposta dada pela encíclica é das mais decepcionantes, pois ela não leva em consideração a natureza da esperança cristã.

O que é a esperança cristã, ou a Redenção

Comecemos recordando o que é a Redenção, sobre a qual se funda a virtude sobrenatural da esperança. Voltada para a eternidade, a esperança católica encontra seu ponto de apoio no fato de o homem saber que pode fazer sua a Redenção obtida por Cristo seu Salvador. Até então pecador e incapaz de ir a Deus fosse qual fosse o seu desejo, o homem deixado a si mesmo não tinha verdadeira esperança. Ele não podia realmente aceder à eternidade bem-aventurada, pois, por sua própria conta, ele era incapaz de remover o obstáculo que o separava de Deus, a saber: a ofensa e a malícia do pecado. Segundo a expressão de São Paulo, o homem era «escravo do pecado». Recuperar a esperança da salvação não se podia fazer sem a libertação do pecado, e portanto sem Redentor. Nosso Senhor, assumindo cada uma de nossas faltas, as expia no madeiro da Cruz. Ele nos merece assim o perdão, abrindo no mesmo ato, ao pecador arrependido, o Céu até então fechado:

«Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso», foi dito ao bom ladrão. Desde então, a esperança cristã reside totalmente em Cristo, único Salvador: «Jesus Cristo, nossa esperança», dizia São Paulo (1 Tm 1, 1). Unindo-se a Cristo para apropriar-se de sua Redenção, o cristão recupera a esperança da eternidade. Ele sabe também que não há outra esperança que não seja a cristã, pois a esperança reside toda na cruz redentora de Nosso Senhor: O Crux ave spes unica, canta o hino da Paixão, Salve ó Cruz, nossa única esperança.

Quando a Paixão não passa de compaixão

Esse ensinamento, tão fundamental ao cristianismo, está, é pena, totalmente ausente da encíclica Spe SalviNo dizer de Bento XVI, a Paixão de Nosso Senhor é algo completamente diferente: ela não é mais que compaixão. O Cristo não teria mais assumido nossos pecados para expiá-los sobre o madeiro da Cruz e nos dar assim acesso ao Céu. Ele simplesmente veio, em razão da solidariedade engendrada pelo amor, compartilhar de nosso sofrimento para habitá-lo com sua presença. Entendamos bem: há uma diferença fundamental entre essas duas perspectivas. Quando, por compaixão para como um doente, vou visitá-lo, faço certamente uma bela obra, espero que trazendo um pequeno raio de sol lá onde domina o sofrimento e a solidão. Posso por essa razão me proclamar redentor e salvador desse doente? De jeito nenhum. Seria preciso, para tanto, que eu destruísse a doença, que eu desse vida onde só havia morte inelutável.

Assim também, a compaixão pelo prisioneiro não é ainda sua libertação: esta exigiria que eu pagasse sua fiança, contanto que seu aprisionador aceitasse esse princípio. É precisamente o que fez Nosso Senhor para conosco tomando sobre si a dívida do pecado, abrindo as portas da graça àquele que estava morto pelo pecado. Sua Redenção é portanto infinitamente mais que uma mera compaixão, ela mudou aos olhos de Deus a condição da humanidade. Aí está precisamente o que a encíclica não sublinha jamais. A única síntese que ela propõe da Paixão é singularmente redutora, ele a confina ao âmbito da simples compaixão:

«O homem tem para Deus um valor tão grande que Ele mesmo Se fez homem para poder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a paciência; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a con-solatio [o fato de não estar mais sozinho em seu sofrimento]» (n.° 39).

Uma consequência imediata em nossa vida cotidiana

Uma tal mudança de perspectiva tem consequências imediatas sobre nossa vida cotidiana de cristãos. Vós aprendestes a fazer, de quando em quando, sacrifícios. Vós vos esforçais em unir vossas penas, sofrimentos e contrariedades à Cruz de Jesus. Em cada Missa, renovais essa oferta de vós mesmo em união ao Cristo vítima presente sobre o altar « para a remissão dos pecados ». Agindo deste modo, tendes consciência de que esses sacrifícios apagam, ainda que parcialmente, vossas faltas passadas e a pena que delas decorre. Tendes razão. O concílio de Trento ensinou-vos: «A Missa é oferecida diariamente em razão dos pecados cometidos diariamente.» Unindo-vos assim à Hóstia, sabeis portanto que mereceis o Céu.

Porém, a encíclica não hesita em declarar essa prática «exagerada» e «malsã»: «A ideia de poder “oferecer” as pequenas dores da vida quotidiana […] era uma forma de devoção, talvez menos praticada hoje, mas não vai ainda há muito tempo que era bastante difundida. Nesta devoção, houve sem dúvida coisas exageradas e talvez mesmo malsãs». Afastando tudo que ela estima «malsão» – a saber, aquilo que acabamos de descrever –, a encíclica retém somente uma coisa dessa prática: a compaixão, e não mais a expiação: «É preciso interrogar-se se não havia de algum modo contido [nessa forma de devoção] algo de essencial que poderia servir de ajuda. O que significa “oferecer”? Essas pessoas estavam convencidas de poderem inserir na grande compaixão de Cristo as suas pequenas dores, que entravam assim, de algum modo, a fazer parte do tesouro de compaixão de que o gênero humano necessita.» (n.° 40). Fica portanto excluído que o gênero humano tem necessidade de satisfação por seus pecados, o que, porém, constitui o essencial da Redenção realizada por Cristo.

A noção de mérito é, portanto, excluída, em algumas linhas lamentavelmente caricaturais da teologia “clássica” (entenda-se: “tradicional”):

«O reino de Deus é um dom, e por isso mesmo é grande e belo, constituindo a resposta à esperança. Não podemos – para usar uma terminologia clássica – “merecer” o céu com as “nossas obras”. Este é sempre mais do que aquilo que merecemos, tal como o ser amados nunca é algo “merecido”, mas é sempre um dom.» (n° 35).

Se por um lado é verdade que o homem não pode conquistar por si mesmo o Céu e é evidente que ele não pode pretender ao amor de Deus como a um direito, é também evidente que Cristo, por sua morte, mereceu-nos o Céu em sentido estrito – seu sangue derramado por nossa salvação é o preço de nossa salvação –, e é igualmente evidente que Deus retribuinossas obras tanto boas como más, as primeiras nos merecendo o Céu, ao passo que as últimas, não arrependidas, nos merecem o inferno. Aí está o próprio Evangelho, aí também se encontra nossa esperança: sobre-elevadas pelo amor sobrenatural de Deus, nossas boas obras, por serem assumidas por Cristo, nos merecem o Céu.

O novo conceito da Redenção

Se a Redenção não se situa mais na satisfação do pecado, em que consiste ela então? Escutemos a resposta proposta pela encíclica:

«O homem é redimido pelo amor. Isto vale já no âmbito deste mundo. Quando alguém experimenta na sua vida um grande amor, conhece um momento de “redenção” que dá um sentido novo à sua vida. […] O ser humano necessita do amor incondicionado. […] Se existe este amor absoluto com a sua certeza absoluta, então – e somente então – o homem está “redimido”, independentemente do que lhe possa acontecer naquela circunstância. É isto o que se entende, quando afirmamos: Jesus Cristo “redimiu-nos”. Através d’Ele tornamo-nos seguros de Deus» (n.° 26).

Numa palavra, a “Redenção” tal como é concebida pela encíclica não é outra coisa que a revelação do amor incondicional de Deus pelo homem. Nessa concepção, Cristo não destruiu o pecado em sua morte redentora, pois o pecado não é mais um obstáculo ao amor de Deus: ele simplesmente nos revelou que esse pecado, precisamente, não era realmente um obstáculo. A esperança não é outra coisa além do conhecimento dessa “verdade”. E o papa ilustra o que disse, descrevendo o suposto estado de alma de uma santa canonizada por João Paulo II, Josefina Bakhita:

«[…] Agora ela tinha a grande esperança: eu sou definitivamente amada e aconteça o que acontecer, eu sou esperada por este Amor. Assim a minha vida é boa. Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus.» (n.° 3).

Como fica, então, o inferno?

Se é isso a Redenção, se o pecado não é mais um obstáculo ao amor de Deus, como fica então o inferno? Num momento em que pululam teorias segundo as quais o inferno estaria vazio, Bento XVI recorda que não é assim. Ainda bem. Mas, não descrevendo o inferno senão como um estado psicológico, o papa limita-o a pouquíssimas pessoas, unicamente aquelas que «destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas.» (n.° 45). Declarando-as tão raras quanto os grandes santos que sobem direto para o Céu no instante de sua morte, o papa imagina o retrato padrão desses condenados por meio de «certas figuras da história». Sem dúvida que ele pensa nos Hitler ou Stalin. Mas isso não passa de uma exceção:

«Na maioria dos homens – como podemos supor – perdura no mais profundo do seu ser uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus. Nas opções concretas da vida, porém, aquela é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede e que, apesar de tudo, ressurge sempre de toda a abjeção e continua presente na alma.» (n.° 46).

Daí o purgatório, do qual notemos de passagem que Bento XVI põe em questão o fogo (cf. n.° 47), talvez por cuidado ecumênico com os ortodoxos.

Seja qual for o número suposto dos eleitos – pequeno ou grande, ninguém sabe –, o importante é o critério que distingue o eleito do condenado: tudo se decide, segundo a encíclica, com «o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor». Por tê-lo perdido totalmente, alguns raros indivíduos são irremediavelmente excluídos do Reino de Deus; por ter conservado dele ainda que somente um grão, os outros serão salvos. Um critério desses surpreende até mesmo a criança aluna de catecismo, bastando para isso que tenha recebido um catecismo digno desse nome. Essa criança sabe que um único pecado mortal do qual não houve arrependimento nem absolvição destrói a vida da graça, fecha as portas do Céu e merece, portanto, o inferno; sejam quais forem o altruísmo ou a sede de conhecimento da pessoa em questão. Daí a célebre frase que Blanche de Castille dirigiu a seu jovem filho, o futuro São Luís: «Prefiriria ver-te morto a meus pés que saber que estás em estado de pecado mortal.» Uma tal afirmação é incompreensível aos olhos da encíclica, que afirma finalmente que Deus não determina mais a sorte eterna dos indivíduos em função de seus atos, mas somente em razão de suas intençõesIsso não é sem um certo sabor da doutrina luterana: «peca fortemente, mas crê com mais força ainda»…

Conclusão

Sintomática é esta encíclica por mais de uma razão. Suas páginas filosóficas, embora no geral boas, mostram, sem embargo, em filigrana o triste estado de uma catolicidade que parece incapaz de escutar um ensinamento de fé, mas apenas acessível à argumentação; de uma catolicidade que não aceita, portanto, o argumento de autoridade, ciosa como é de passar tudo sob o crivo de sua prória razão – o que é exatamente o contrário do modo de agir da fé.

O mais grave reside evidentemente nas falhas doutrinais relativas ao dogma da Redenção. Elas são características do modernismo que faz muitos decênios que invadiu a Igreja. Imbuído de uma falsa dignidade do homem, o cristão modernista não pode realmente admitir que o homem pecador, deixado a si próprio, seja incapaz de se dirigir eficazmente a Deus. Opõe-se isto ao seu axioma fundamental: que todo homem possui no mais profundo do seu ser um élanque inelutavelmente o conduz à plenitude divina.

Pelo próprio fato de querer salvaguardar esse novo “dogma”, o modernista vê-se obrigado a desnaturar a Cruz de Cristo. Ela não é mais o ato salvador que livrou a humanidade da dívida do pecado para torná-la agradável a Deus. No sentido estrito do termo, ela não é mais Redentora. Uma tal concepção assusta. A presente encíclica nos mostra, lamentavelmente, que ela está longe de ser estranha a Bento XVI.

Trad. por Felipe Coelho

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