Padre Hervé Belmont
2006
Com ocasião de uma controvérsia acerca de Jacques Maritain, fui levado a tratar da situação da filosofia cristã, assim como das relações entre a filosofia e a teologia: estão aí questões importantes, pois a distinção entre filosofia e teologia é análoga à distinção entre razão e fé, à distinção entre natureza e graça, entre Igreja e Estado. Apreender bem uma delas é esclarecer as outras, é verdadeiramente penetrar no coração da obra divina aqui na terra. Tropeçar em uma é turvar as demais, é fechar-se à compreensão da ordem estabelecida por Deus. Por isso acredito que a leitura de Maritain e a Filosofia será proveitosa para todos os que desejam conhecer a natureza das coisas e aprofundar essas questões, para delas ter uma ideia clara e justa. O pior, aqui, é permanecer no vago e no aproximativo: toda a inteligência da fé fica assim ferida e enfraquecida.
Maritain e a filosofia
De tempos em tempos, ao sabor de modas passageiras, Jacques Maritain é tomado como alvo por alguns adversários dos erros contemporâneos, que o acusam de ter uma concepção naturalista das relações entre filosofia e fé. Decerto, há numerosas razões para desconfiar de Maritain: é um dos “grandes ancestrais” do funesto Vaticano II; seu naturalismo social e político fez devastações nas inteligências e mentalidades católicas. Isso foi magistralmente mostrado e demonstrado pelo Padre Julio Meinvielle em duas obras: De Lamennais a Maritain [1] e Crítica da concepção de Maritain sobre a pessoa humana [2]. Quem quiser ter uma visão argumentada e pacientemente refutada do Maritain “humanista integral!” poderá referir-se a elas.
Mas não é disso que se trata em certos assaltos: ataca-se outra parte de sua obra, um ensinamento anterior e clássico, e se o faz partindo de citações fragmentárias e de incompreensões. Graças a isso, acusa-se em seguida diferentes seminários por estudarem separadamente a filosofia e a teologia. Não se podem deixar passar tais alegações sem nada opor a elas, pois para além da pessoa de Maritain, é a especificidade da filosofia que é destarte combatida e rejeitada. As consequências disso seriam graves: uma tal negação desorganiza as inteligências, destrói o caráter científico da teologia e desconcerta a luta contra o modernismo tal como a concebe e ordena São Pio X.
Ao mesmo tempo, se oferece por vezes como antídoto à posição maritaineana (que, no caso, é a de Santo Tomás de Aquino e do Papa Leão XIII) os trabalhos do Padre João Batista Aubry [3], valoroso missionário, morto por sua fé e devotamento na China, em 1882. Apresenta-se e louva-se uma proposição feita por esse sacerdote – a fusão entre teologia e filosofia – sem se aperceber de que essa proposição opõe-se ao direito da Igreja [4], e mais, que é aparentada a uma tendência reencontrada em filomodernistas como Maurice Blondel [5].
Aí está, pois, o que quero examinar, publicando a resposta (retocada e aumentada aqui e ali) que tive ocasião de apresentar a um desses fustigadores de Maritain. Pouco importa o destinatário: os princípios é que são importantes. Em anexo, se encontrará o texto que serviu de ocasião ao presente trabalho, texto que atribuo ao famoso Sr. Xisipsilonzê. Estas questões são graves; cumpre tratá-las com seriedade, ou seja, com informação diligente dentro de uma preocupação com a justiça e a verdade. A cólera do homem não realiza a obra de Deus, ensina o Espírito Santo por intermédio de São Thiago (Jac. I, 20), indicando que devemos tratar de todas as coisas sem paixão desregrada nem preconceito obcecante, que vêm corromper o amor pela verdade.
[1. Ed. de La Cité Catholique, Paris 1956. Reed. Dominique-Martin-Morin, Grez-en-Bouëre, 2001.]
[2. Edição francesa sem nome de editor, s.l.n.d. Sobre o Padre Julio Meinvielle, vd. o número especial de Lecture et Tradition consagrado a ele, n.º 292 de junho de 2001. Lecture et Tradition, b.p. 1, F – 86190 Chiré-en-Montreuil {N. do T. – O original em castelhano desses dois livros do Pe. Meinvielle encontra-se para baixar gratuitamente no sítio dedicado ao autor e sua obra escrita: “juliomeinvielle.org”.}.]
[3. Mélanges de philosophie catholique (Miscelânea de Filosofia Católica). Edições Saint-Rémi, Cadillac, 2001; Le Père Aubry et la réforme des études ecclésiastiques (O Padre Aubry e a reforma dos estudos eclesiásticos), por Mons. Justin Fèvre. Edições Saint-Rémi, 2000. b.p. 79, F–33410 Cadillac.]
[4. Código de Direito Canônico n. 1365: “Os alunos devem consagrar dois anos ao estudo da filosofia racional e disciplinas aparentadas.”]
[5. Cf. A. Michel, Leçons élémentaires de métaphysique chrétienne (Lições Elementares de Metafísica Cristã), Berche et Pagis,Paris 1938, pág. 10.]
Resposta amigável a monsieur Xisipsilonzê
1. O caso Jacques Maritain
Jacques Maritain (1882-1973) é um singular personagem. Nascido longe da Igreja Católica, ele se converte e recebe o sacramento do Batismo em 1906; estuda então a doutrina de Santo Tomás de Aquino e dele se torna um arauto apreciado. Depois, ele se afunda numa espécie de esquerdismo teológico, que coabita nele com um certo tomismo e uma forma de antimodernismo, mas que o levará às portas da heresia e mesmo além [6]. Personagem singular, portanto, – e, por isso mesmo, controverso, – ao ponto de alguns se perguntarem às vezes se houve um “bom Maritain”, isto é, se existe um período da vida dele em que se possa fiar-se na suas obras e na sua doutrina. É a meus olhos incontestável que houve um “bom Maritain”; numerosos livros de grande qualidade, que prestaram verdadeiros serviços ao pensamento católico, dão testemunho disso: Antimoderno, Três reformadores, Doutor Angélico, A filosofia bergsoniana (somente a primeira edição, no dizer de Louis Jugnet – mas só tenho esta), Reflexões sobre a inteligência e sua vida própria, Sete lições sobre o ser, A filosofia da natureza, numerosas e belas páginas de Graus do Saber. Vários prefácios (por exemplo ao São João da Cruz do Padre Bruno de Jesus-Maria, ou ainda ao Mistério da Igreja do Padre Clérissac) são do mesmo quilate. Bom não quer dizer perfeito. Há certamente o que corrigir aqui e ali, na abundante produção dos “anos católicos” de Maritain. Mas é a sina de toda obra humana. Assim, de minha parte, resisto a uma página de Três Reformadores de sabor personalista. Resisto também ao capítulo de seus Elementos de Filosofia que “passa ao largo” da indução, não dizendo palavra sobre seu movimento que se remata na verificação e em que a proposição universal induzida faz o papel de termo médio inteligível. Igualmente, fico com frequência fortemente contrariado com a profusão de neologismos e de aberturas ao orientalismo não-cristão a esmaltar Os Graus do Saber. Essas defectibilidades não subtraem, contudo, todo o valor e interesse de obras que manifestam um belo conhecimento de Santo Tomás de Aquino e a grande penetração de um espírito metafísico.
Isso posto, quando se vê a gravidade e a longevidade dos erros que Maritain professou na sequência, é inteiramente legítimo de se interrogar sobre a causa de uma tal mudança de direção, e de se perguntar se a falha de seu pensamento já não estava presente ab initio.
O Sr. Xisipsilonzê afirma que este é o caso, e que a falha em questão consiste na concepção racionalista que Maritain teria das relações entre a filosofia e a fé. Mostrarei, na segunda parte desta resposta, que não é nada disso. Os desvios posteriores e a influência perversa de um autor não devem impedir de lhe fazer justiça. É-nos preciso, pelo contrário, tirar proveito de sua triste experiência (como se pode fazer a propósito de um Tertuliano), para recordar-nos da necessidade de humildade e de uma perpétua desconfiança de nós mesmos.
A condenação da Action Française teve bastante influência na evolução de Maritain, mas foi somente ocasião [7] da aceleração de uma evolução cujos germes eram anteriores. A causa íntima dessa evolução escapa a toda investigação, mas não pertence à ordem da vida de oração ou da moralidade: a vida de Maritain era deveras piedosa e exemplar. O que é certeza é que havia em Maritain uma grande fragilidade. Como em cada um de nós, havia a fragilidade da natureza humana (nós carregamos um tesouro em vasos frágeis – 2 Cor. IV, 7); depois, havia a fragilidade do convertido (pois, embora a conversão espiritual seja instantânea, a conversão intelectual não o é: O espírito está pronto e a carne é fraca – Mat. XXVI, 41); havia ainda a fragilidade proveniente do ambiente de origem (um protestantismo sentimental-socializante) e, finalmente, a fragilidade devida à influência de seu padrinho, o estranho Léon Bloy.
Teria sido preciso um longo e paciente trabalho de conversão, de estabilização, de aprofundamento intelectual, para que essa fragilidade se esbatesse e para que Maritain pudesse, sem perigo, exercer sua vivíssima inteligência. É o trabalho que ele empreendera, redigindo para seus alunos e para si mesmo um manual de filosofia. Lamentavelmente, ele foi desviado disso por um dominicano, o bizarro Padre Dehau, que lhe disse (ou deu a entender) que trabalhos tais eram inúteis e indignos dele, e que ele devia voltar-se para tarefas mais altas e ambientes mais interessantes, “artistas” [8]. Quando se sabe a que ambientes de pervertidos isso se referia (de Cocteau a Matisse), pensa-se consigo mesmo que Maritain – sem, todavia, que seus costumes pessoais fossem por isso afetados – corria para a catástrofe. No momento em que Maritain tomou distância da Action Française, condenada pelo Papa, ele viu-se como que despido [9], sem defesa, sensível à menor brisa… e foi rapidamente arrastado na direção aonde suas novas amizades empurravam-no. Para guardar-se do naturalismo da Action Française (que não o afetava), ele caiu num naturalismo bem pior, que o orientou rumo a uma espécie de sociabilismo. Esse novo naturalismo o fez elaborar seu mito de uma cristandade não-sacral, o mesmo que dizer cristandade não-cristã, verdadeira apostasia social, mito que terá grande influência: esse mito é precursor da declaração sobre a liberdade religiosa do Vaticano II, e da secularização que é desta a inelutável consequência. No entanto, apesar da sequência infinitamente deplorável de sua vida, o Maritain dos bons anos não há de ser totalmente rejeitado só por algumas linhas de sua Introdução à Filosofia, mesmo que se atribuísse a elas grande importância. Tais linhas são, aliás, tão condenáveis assim?
[6. Maritain morreu às vésperas de corrigir as provas de sua última obra, Approches sans entraves (Fayard, Paris 1973 ou 1974)de que um capítulo, que ele ruminava desde 1939 e que ele intitula Fin de Satan, retoma o velho erro da apocatástase. Essa heresia, que o Papa Virgílio condenou com anátema no ano 543, por ocasião do Sínodo de Constantinopla (Denzinger211), pretende que haveria em definitivo uma restauração (ἀπο-κατἀστασις) de todas as coisas e uma reintegração dos condenados, dos demônios e Lúcifer ao Céu dos eleitos ou, no mínimo, ao Limbo das criancinhas mortas sem batismo. Cf. Roger-Thomas Calmel,O.P., Extravagances maritainiennes. Em: Itinéraires nº 181 (março de 1974) pp. 190-193.]
[7. Essa condenação permanece, efetivamente, um acontecimento exterior ao pensamento de Maritain, que não aderia à A.F.; interessara-se por ela sob influência do Padre Clérissac e, por submeter-se à direção deste, assinara o jornal em 1911. Vd. Itinéraires nº 49 p. 227. “Aqueles que creem numa formação maurrassiana [de Jacques Maritain], que enxergam nele um discípulo ingrato que renega seu mestre, estes se equivocam. Todo o seu desenvolvimento intelectual, filosófico, realizou-se como se Maurras não houvera existido. Isso muda e esclarece muitas coisas para mim.” Henri Massis, ibid., p. 228.]
[8. “Ele [o Padre Dehau] me diz, e repete-o para Vera [a irmã de Raïssa Maritain], com grande autoridade, que eu devo sem escrúpulo algum, depois d’A Lógica Menor, pôr de lado o manual e escrever para os intelectuais e artistas, e me manter a par de todo esse movimento. Esta parece a ele a necessidade essencial e urgente para o tomismo. Fiat! Mas é um pouco assustador” (1922). In: Jean-Luc Barré, Jacques et Raïssa Maritain, les Mendiants du Ciel, Stock, Paris 1997, p. 228.]
[9. Essa nudez é sensível numa obra como Primauté du Spirituel (1927). Depois de ter recordado, resoluta e claramente, a doutrina católica tal como indica o seu título, Maritain deixa entrever sua fragilidade. Todo o terceiro capítulo deixa uma impressão de mal-estar difuso: percebe-se estar na presença de uma concepção desencarnada demais de civilização cristã. Essa incompreensão das condições e do resultado concretos da obra da Igreja Católica para forjar a Cristandade se tornará a pedra de tropeço de Maritain: sua concepção desencarnada vai reencarnar-se (não pode ser diferente), e reencarnar-se no liberalismo absoluto envenenado pela fascinação de um orientalismo que não merece estima. Essa obra de Maritain se move, sim, no interior da ortodoxia católica; mas compreende-se também que ele a tenha considerado o livro de sua nova orientação. Cf. Jean-Luc Barré, Jacques et Raïssa Maritain, les Mendiants du Ciel, Stock, Paris, 1997, pp. 356-358.]
2. A Filosofia
O texto do Sr. Xisipsilonzê, com as citações que contém, aborda numerosos pontos: responder a todos exigiria longos desenvolvimentos. Assim, vou me ater ao essencial. O conteúdo do texto do Sr. Xisipsilonzê consiste em duas acusações distintas, feitas a Maritain: uma acusação de ordem histórica e uma acusação de ordem doutrinal. A articulação do texto do Sr. Xisipsilonzê consiste em afirmar: desvio doutrinal de Maritain é correlativo ao seu erro histórico; o desvio posterior de Maritain está contido em germe nesse desvio doutrinal, ou, no mínimo dos mínimos, foi causado por ele. O ponto central do texto do Sr. Xisipsilonzê consiste em recusar como racionalista a concepção de Maritain relativa às relações entre a filosofia e a Revelação.
a) A história da filosofia
A acusação de ordem histórica é relativa aos dois textos seguintes (colocamos [entre colchetes] passagens omitidas pelo Sr. Xisipsilonzê):
“Não é de admirar que todos os povos, no período primitivo de sua história, tenham ignorado a especulação filosófica. [O que é notável é o fato de certas civilizações terem-na ignorado igualmente: referimo-nos aos povos semíticos e aos egípcios, que estão, sob este ponto de vista, no mesmo caso que os semitas. Apesar da alta cultura científica de que era capaz sua elite intelectual, parece que os egípcios e caldeus só tiveram, em matéria de noções filosóficas, certos conhecimentos muito gerais contidos na religião, a respeito da Divindade, da alma humana e sua condição após a morte, dos preceitos morais. Estes conhecimentos, que aliás se encontram entre eles (como entre todos os povos) tanto mais puros quanto mais nos remontamos pela história aos tempos antigos, nunca esses povos os submeteram ao trabalho e às especulações da razão; recebiam-nos, como os próprios dogmas científicos, mediante tradição sagrada. A Religião, portanto, toma o lugar da Filosofia: por meio dela esses povos possuem verdades filosóficas; eles não têm Filosofia.]
Os judeus estão, sob este ponto de vista, no mesmo caso que os outros povos semitas. Desdenhosos da sabedoria humana e das obras da pura razão, aliás mal dotados para elas, não possuíram filósofos, pelo menos até Filo, que viveu no tempo de Cristo; mas tiveram os profetas e a Lei de Deus.” [10]
“A Grécia é a única parte do mundo antigo onde a sabedoria do homem encontrou seu caminho, e onde por efeito de um feliz equilíbrio das forças da alma e de um longo trabalho para adquirir a medida e a disciplina do espírito, a razão humana atingiu a idade de sua força e maturidade. [Por esta razão, pois, o pequeno povo grego aparece, entre os grandes Impérios do Oriente, como um homem no meio de gigantes crianças; podemos afirmar que ele é para a razão e o verbo do homem, o que o povo judeu é para a Revelação e para a Palavra de Deus.]
Somente na Grécia a Filosofia adquire existência autônoma, distinguindo-se explicitamente da religião.[Desse modo, pelo menos na época mais pura e mais gloriosa do espírito helênico, ela reconhecia seus limites e restringia-se a um campo estritamente limitado, – investigação científica das verdades puramente racionais, – enquanto a religião grega, já muito decaída no tempo de Homero, tornava-se cada vez mais incapaz de satisfazer às necessidades da inteligência e corrompia-se dia a dia.
Quando os gregos, abusando com orgulho da Filosofia e da Razão, pretenderem englobar as coisas divinas nos limites de sua sabedoria e ‘esvaírem-se em seus pensamentos’, merecerão a condenação lançada por S. Paulo contra a sabedoria deste mundo, quæ est stultitia apud Deum. Mas a Filosofia, nascida de seu espírito, tendo por único objeto a verdade, é isenta das máculas deles.]” [11]
Foi suficiente restabelecer as duas citações precedentes em sua continuidade, para que se dissipassem totalmente as objeções elevadas contra o que Maritain ensina. O recorte do texto, efetuado pelo Sr. Xisipsilonzê, mascara aquilo que é realmente expressado, e o que deviam admitir sem esforço os autores alegados contra Maritain (o Cardeal Pie, Mons. Gaume, o Pe. Aubry). Com efeito, pode-se entender a palavra filosofia (e, portanto, a palavra filósofo) de várias formas:
– em sentido amplo, como um ensinamento e uma reflexão sobre Deus, sobre a origem e o fim do homem, sobre as condições da vida e sobre o valor moral das ações humanas;
– em sentido estrito e preciso, como uma elaboração sistemática e ordenada das noções primeiras do ser, da causalidade, da finalidade e da moralidade, como um edifício científico que se alça até ao conhecimento natural de Deus;
– no sentido do século dezoito, como a pretensão de ser a primeira e última palavra do conhecimento e destino humanos.
Claro está que Maritain, nas passagens citadas acima, emprega a palavra filosofia em sentido estrito, no sentido de ciência filosófica. Importa sobremaneira notar desde já que, por natureza, essa ciência filosófica move-se inteiramente à luz da razão, que é seu objeto formal quo: tudo o que a filosofia considera e estuda é conhecido e demonstrado pelo exercício da só razão humana. Caso se introduza outra luz (a da revelação divina) ou outros objetos (verdades reveladas consideradas como certas, sem evidência nem demonstração racionais), faz-se outra coisa que não filosofia; não se está mais no âmbito da ciência filosófica, mas no da teologia (em sentido largo). Retornaremos a isso longamente.
É não menos claro que esse texto de Maritain não exclui, mas, sim, admite positivamente que verdades filosóficas (e, portanto, a filosofia em sentido amplo) sejam conhecidas e professadas pelos povos antigos, e notavelmente pelo povo hebreu:
“A religião aqui, portanto, toma o lugar da filosofia: por meio dela esses povos possuem verdades filosóficas; eles não têm filosofia.”
“Os judeus estão, sob este ponto de vista, no mesmo caso…”.
A primeira frase dessa passagem muito significativa é omitida pelo Sr. Xisipsilonzê. Ela é, no entanto, a chave do pensamento de Maritain, que não difere do pensamento dos outros autores católicos. Pela Revelação divina, o povo judeu conheceu com uma certeza, uma profundidade e uma exatidão incomparáveis – de origem sobrenatural – as verdades naturais fundamentais. Desse conhecimento os povos vizinhos, e mesmo afastados como a Grécia, certamente se beneficiaram: [12] não vemos, porventura, a Rainha de Sabá vir instruir-se com Salomão? Pode-se, pois, afirmar que Moisés, Salomão ou os Profetas foram filósofos infinitamente mais sábios que Aristóteles ou Sócrates. Aliás, não é necessário ir procurar exemplos que estejam tão alto: quem não se lembra do famoso sermão de Santo Tomás de Aquino, o chamado sermão da vetula, no qual ele recorda que uma velha senhora que tenha a fé sabe mais do que todos os filósofos juntos? [13]
Mas nem Salomão nem Moisés quiseram erigir uma filosofia; mas não é sua vetula que Santo Tomás de Aquino chama de “o Filósofo”: é Aristóteles; mas é obra do povo grego, nos seus representantes mais prestigiosos, ter elaborado a filosofia: é mister simplesmente perceber que se emprega então a palavra filosofia em sentido preciso e restrito, no segundo sentido supramencionado, no sentido de ciência filosófica. É simples assim, e os textos citados pelo Sr. Xisipsilonzê adquirem um sentido bem mais claro e mais rigoroso, o sentido desejado por seus autores, senos empenhamos em discernir em que sentido são empregadas as palavras filósofo e filosofia. Esse discernimento permite, pois, folgar de não ver oposição alguma entre Maritain e os outros autores católicos; é o profundo acordo entre eles que aparece. Depois disso, cada qual pode preferir a maneira de expor que lhe agrade, ou que lhe pareça a mais clara, ou ainda, que julgue mais adequada à realidade e ao sentido católico.
Não se pode querer construir toda uma argumentação contra um autor sem fazer o esforço de discernir com precisão a significação dos termos utilizados. Um tom vindicativo, como aquele adotado pelo Sr. Xisipsilonzê, poderia enganar alguém; mas não dispensa nem da probidade, nem do estudo sério. Acaso se tem o direito de julgar severamente a alguém – como tendo escrito “no limite da blasfêmia” – sem tomar o maior cuidado de compreender o que ele diz?
[10. Jacques Maritain, Éléments de Philosophie, Paris, Téqui, 1930, tomo I, pp. 9-10.]
{N. do T. – Na primeira edição brasileira: Elementos de Filosofia. I – Introdução Geral à Filosofia (tradução de Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado, revista por Frei José de Azevedo Mendonça, O.P., Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1948), pp.24-25.
Dentre as quase vinte edições que teve já essa bem cuidada tradução brasileira da Introdução Geral à Filosofia de Jacques Maritain, parece-me ainda preferível a 1ª (de 1948), não só pela evidente superioridade tipográfica, mas principalmente porque – sem negar que tenha havido, em edições posteriores, eventuais melhorias de redação pontuais, que ocasionalmente procurei aliás implementar aqui (e.g. a precisão, no último parágrafo do § 6, de que as manchas/máculas de que a Filosofia está isenta/pura são as dos gregos, como consta do original: leurs souillures) –, infiltrou-se, porém, no mínimo um erro de monta, lá pela 7ª edição (1966…), que se perpetuou até às mais recentes (cerca de 10 edições e 50 anos depois!) e consiste na omissão do trecho que vaiem negrito a seguir: “Por conseguinte, um sistema filosófico, para ser verdadeiro, não exige que o material científico que emprega seja necessariamente verdadeiro. O teólogo, pelo contrário, a cada passo emprega proposições filosóficas para estabelecer suas próprias conclusões. Portanto, não seria possível que um sistema teológico fosse verdadeiro sendo errônea a Metafísica que emprega.” § 28, item 3-a.
(Concluo com um agradecimento tardio: tendo tido a graça de, no fim da adolescência, herdar do meu pai um exemplar desta 1ª edição que pertencera a meu avô, só pude atentar para esse truncamento nas edições menos antigas muito depois, graças a um e-mail de 6 de março de 2006 de um velho amigo, E.R.T.) AMDGVM, F. Coelho.}
[11. J. Maritain, op. cit., p. 1. {N. do T. – Trad. cit., p. 34.}]
[12. O modo não-filosófico de aquisição do conhecimento da verdade filosófica (Revelação divina ou tradição humana), com frequência insubstituível em razão do estado de queda da humanidade, permanece acidental, extrínseco à ciência filosófica enquanto tal. Essas verdades só se tornam objeto da filosofia (da ciência do filósofo) ao serem conhecidas pelo objeto formal (quo) da filosofia: a luz da razão, a evidência racional (direta ou demonstrativa). É o que Maritain afirma com vigor, e ninguém pode repreendê-lo por isso.]
[13. “Contra os adoradores de Aristóteles, de Averróis e da filosofia, Santo Tomás vinha declarar, gesticulando em apoio e atingindo com um murro, não mais a mesa, mas a borda do púlpito: uma velha senhora de hoje em dia sabe mais que todos os filósofos juntos.” L.H. Petitot, O.P., Saint Thomas d’Aquin. La Revue des Jeunes, Paris, 1923, p. 145.]
b) As relações entre a filosofia e a fé
A acusação de ordem doutrinal diz respeito a este excerto de Maritain:
“Eis por que a Filosofia não é dirigida positivamente pela Teologia, e não necessita da Teologia para a defesa de seus princípios. Embora seja submetida ao controle exterior e à regulação negativa da Teologia, desenvolve-se de maneira autônoma no seu domínio.” [14]
Afirmo que essa passagem de Maritain é de uma perfeita ortodoxia católica (e tomista). Claro está que negativo não deveria ser entendido no sentido de funesto, nefasto ou prejudicial o que esse qualificativo significa é que a regulação pela teologia não fornece nem os princípios, nem o objeto, nem a luz da filosofia, mas, sim, impede que esta caia em erro ao vetar-lhe todo princípio ou toda conclusão que não seja compatível com o que ela [a teologia] afirma numa luz e com uma certeza infinitamente superiores. Para verter com exatidão o pensamento de Maritain, para fazer luzir a verdade do que ele afirma, para dissipar as objeções que lhe são feitas, é suficiente, também aqui, ampliar a citação: a passagem citada pelo Sr. Xisipsilonzê é, francamente, breve demais para que possa pretender exprimir o pensamento de Maritain, sobretudo em matéria tão importante. Vou, então, transcrevê-lo com alguma abundância e, depois, citar textos paralelos de Maritain, a fim de conhecer verdadeiramente o seu pensamento. O Padre Garrigou-Lagrange virá em seguida, e bem a propósito, me ajudar e dar um peso bem maior ao que afirmo.
“A Filosofia é a mais alta das ciências humanas, isto é, das ciências que conhecem as coisas pela luz natural da razão. Há, entretanto, uma ciência acima dela. Se existe de fato uma ciência que seja no homem uma participação da ciência própria de Deus, esta ciência, evidentemente, será mais alta do que a mais alta ciência humana. Ora, é o caso da Teologia.
A palavra Teologia significa ciência de Deus; a ciência de Deus que podemos naturalmente adquirir só pelas forças da razão, e que nos faz conhecer a Deus por meio das criaturas, como autor da ordem natural, é uma ciência filosófica, – a parte culminante da Metafísica, – chamada Teodiceia ou Teologia natural. A ciência de Deus que não podemos adquirir naturalmente só pelas forças da razão, mas que supõe que o próprio Deus ‘se contou’ aos homens pela revelação, de modo que a nossa razão esclarecida pela fé chegue a tirar desta revelação as conclusões que implica, é a ‘Teologia sobrenatural’ ou simplesmente a Teologia. É desta ciência que agora tratamos.
Seu objeto é algo de absolutamente inacessível ao alcance natural de qualquer criatura. É Deus conhecido em si mesmo, em sua própria vida divina, ou, como se costuma dizer, ‘sob a razão de Deidade’ e não mais Deus como causa das criaturas e autor da ordem natural; e tudo quanto conhece, conhece em função de Deus assim considerado, enquanto todas as coisas que a Metafísica conhece, inclusive o próprio Deus, ela as conhece em função do ser geral.
Seus princípios são as verdades formalmente reveladas por Deus (dogmas ou artigos de fé) e o critério principal de verdade é, aqui, a autoridade de Deus revelador.
Sua luz não é a mera luz natural da razão, mas a luz da razão iluminada pela fé, a revelação virtual, dizem os teólogos: revelação enquanto contém virtualmente as conclusões que a razão pode tirar.
Pela eminência de seu objeto, bem como pela certeza de seus princípios e excelência de sua luz, a Teologia paira acima de todas as ciências puramente humanas. Embora não desfrute da evidência de seus princípios, que são cridos pelos teólogos, enquanto os princípios da Filosofia são vistos pelo filósofo, é uma ciência mais elevada do que a Filosofia: o argumento tirado da autoridade, como diz Santo Tomás, é o mais fraco de todos, tratando-se da autoridade dos homens; mas o argumento tirado da autoridade de Deus revelador é mais forte e mais eficaz do que todos os outros.
Finalmente, a Teologia, pelo fato de considerar em si mesmo aquele que reside acima de todas as causas, merece, a título muito maior do que a Metafísica, o nome de Sabedoria. É a sabedoria por excelência.
Agora, quais são as relações entre a Filosofia e a Teologia?
A título de ciência superior, a Teologia julga a Filosofia do mesmo modo que a Filosofia julga as ciências. Como consequência, exerce para com ela um papel de direção, mas negativa, que consiste em declarar falsa toda proposição filosófica incompatível com uma verdade teológica. A teologia, assim, controla e mantém sob sua dependência as conclusões emitidas pelos filósofos.
Todavia, os princípios da Filosofia são independentes da teologia, pois os princípios da Filosofia são as verdades primeiras cuja evidência se impõe por si mesma à inteligência, enquanto os princípios da Teologia são as verdades reveladas por Deus. Os princípios da Filosofia bastam-se a si mesmos e não derivam dos princípios da Teologia. Igualmente a luz pela qual a Filosofia conhece seu objeto é independente da Teologia, sendo esta luz a luz da razão, que vale por si mesma. Eis por que a Filosofia não é dirigida positivamente pela Teologia, e não necessita da Teologia para a defesa de seus princípios (ao passo que defende os princípios das outras ciências). Embora seja submetida ao controle exterior e à regulação negativa da Teologia, desenvolve-se de maneira autônoma no seu domínio.
Verifica-se, portanto, que a Filosofia e a Teologia são perfeitamente distintas e seria ridículo ao filósofo invocar a autoridade da revelação para provar uma tese de filosofia, como seria ridículo o caso de um geômetra querer demonstrar um teorema com o auxílio de um meio físico, pesando, por exemplo, as figuras que compara. Entretanto, embora a Filosofia e a Teologia sejam perfeitamente distintas, não estão separadas; a Filosofia, apesar de ser, entre todas as ciências humanas, a ciência livre por excelência, no sentido de se desenvolver conforme princípios e leis que não dependem de nenhuma ciência superior, é limitada na sua liberdade, – na liberdade de se enganar, – estando neste ponto submetida à Teologia, que a controla por fora.
No século XVII, a reforma filosófica de Descartes obteve como resultado separar a Filosofia da Teologia. Recusando à Teologia o direito de controle e a função de norma negativa para com a Filosofia: isto equivalia a dizer que a Teologia não é uma ciência, mas simples disciplina prática, e que a Filosofia ou sabedoria do homem é a Ciência absolutamente suprema, que não admite outra que lhe seja superior. – Destarte, o cartesianismo, a despeito das convicções religiosas de Descartes, introduzia o princípio da filosofia ;racionalista, que pretende vedar a Deus o direito de nos dar a conhecer pela revelação verdades que ultrapassam o alcance natural da nossa razão; mas se Deus nos revela tais verdades, necessariamente a razão humana esclarecida pela fé trabalhará sobre elas como princípios de conhecimento, constituindo uma ciência, que será a Teologia. E se a Teologia é uma ciência, é preciso então reconhecer-lhe a função de norma negativa em relação à Filosofia, desde que a mesma coisa não pode ser verdadeira em Filosofia e falsa em Teologia.
Por outro lado, a Filosofia presta enormes serviços à Teologia, enquanto é empregada pela Teologia. De fato, a Teologia usa verdades estabelecidas pela Filosofia para suas próprias demonstrações. Neste caso a Filosofia torna-se instrumento da Teologia. A este título, e quando auxilia o raciocínio teológico, é que se denomina ancilla theologiae. Em si mesma e quando procura estabelecer suas próprias conclusões, não é serva, mas livre, e está submetida unicamente ao controle exterior e à regulação negativa da Teologia.
Conforme vimos acima, a Filosofia tem a necessidade natural de utilizar, como instrumento, a evidência sensível e mesmo, em certo sentido, as conclusões das ciências particulares. A Teologia considerada em si mesma, como ciência subordinada à ciência de Deus e dos bem-aventurados, não é obrigada a servir-se da Filosofia; é absolutamente independente. Entretanto, em virtude do sujeito em que se encontra, isto é, por causa da fraqueza do espírito humano que raciocina sobre as coisas de Deus apenas por analogia com as criaturas, a Teologia só pode desenvolver-se servindo-se da Filosofia. Não se trata, porém, da Filosofia em relação ao teólogo como das Ciências em relação ao filósofo. Vimos acima que o filósofo lança mão das proposições ou conclusões que recebe das Ciências, não para assentar suas próprias conclusões (pelo menos em se tratando de conclusões metafisicamente certas), mas exclusivamente para ilustrar seus princípios. Por conseguinte, um sistema filosófico, para ser verdadeiro, não exige que o material científico que emprega seja necessariamente verdadeiro. O teólogo, pelo contrário, a cada passo emprega proposições filosóficas para estabelecer suas próprias conclusões. Portanto, não seria possível que um sistema teológico fosse verdadeiro sendo errônea a Metafísica que emprega. Eis por que o teólogo tem necessidade absoluta de possuir uma filosofia verdadeira, em conformidade com o senso comum da humanidade.
Considerada em si mesma, a Filosofia precede normalmente a Teologia. Certas grandes verdades de ordem natural constituem como que o preâmbulo da Fé. Estas verdades, que são conhecidas naturalmente por todos os homens, pelo senso comum, são conhecidas e estabelecidas cientificamente pela Filosofia. A Teologia, Ciência da Fé, supõe, portanto, antes de si o conhecimento filosófico dessas mesmas verdades.
A Filosofia, considerada como instrumento da Teologia, serve à Teologia de três maneiras principais. Em primeiro lugar a Teologia se serve da Filosofia para estabelecer as verdades que têm por objeto os fundamentos da Fé, na parte da Teologia que se chama Apologética, e que demonstra, por exemplo, que os milagres provam perfeitamente a missão divina da Igreja; depois, para dar certa inteligência dos mistérios da fé por meio de analogias tomadas das criaturas – deste modo a doutrina filosófica do verbo mental é empregada em Teologia para ilustrar o dogma da Trindade; finalmente, para refutar os adversários da Fé – assim a Teologia explicará por exemplo pela teoria filosófica da quantidade como o mistério da Eucaristia em nada repugna à razão.
Notemos que, se a Filosofia serve à Teologia, recebe por sua vez da Teologia apreciáveis subsídios.
Em primeiro lugar, enquanto considerada em si mesma, é submetida ao controle exterior e à regulação negativa da Teologia, é protegida pela Teologia contra grande número de erros: restringindo-se a liberdade de se enganar, fortifica mais sua liberdade de chegar à verdade.
Em segundo lugar, serve à Teologia enquanto, tomada como seu instrumento, é levada a precisar e apurar certos conceitos e certas teorias importantes que se arriscaria a omitir, abandonada aos próprios recursos. Assim, por exemplo, a filosofia tomista deve à Teologia o fato de ter sido levada a esclarecer a teoria da Natureza e da Pessoa, ou a conduzir à perfeição a teoria dos hábitos, etc.
Conclusão – A Teologia, ou ciência de Deus enquanto se deu a conhecer a nós pela revelação, está acima da Filosofia. A Filosofia lhe é submetida não em seus princípios nem em seu desenvolvimento, mas em suas conclusões, sobre as quais a Teologia exerce controle, constituindo assim regra negativa para a Filosofia.”
Eis aqui outro texto de Maritain, que trata do mesmo assunto.
“Nós devemos chamar de filosofia cristã uma filosofia propriamente dita, uma sabedoria que se defina como a obra perfeita da razão, perfectum opus rationis (Santo Tomás, Sum. Theol., IIa-IIæ, q.45, a.2.), e que se encontre, de parte do objeto, em consonância com as verdades reveladas, – de parte do sujeito, em conexão vital com as energias sobrenaturais das quais o habitus filosófico é distinto, mas não separado na alma cristã. Para que ela esteja em consonância com as verdades reveladas, é suficiente que essa filosofia seja verdadeira na ordem dela; ela formará então para si – ao mesmo tempo que manifestando ‘integralmente o rigor de suas exigências racionais’, ao mesmo tempo que seguindo um método não teológico, mas puramente e estritamente filosófico – ‘uma concepção da natureza e da razão aberta ao sobrenatural’ e confirmada pelos dados de si naturais, não repugnante aos dados de si sobrenaturais, contidos no depósito revelado. Mas, porque de fato o sujeito humano não pode alcançar a integridade das supremas verdades naturalmente cognoscíveis se não receber ajuda do alto, essa filosofia requer desenvolver-se, no sujeito, em conexão vital com a fé, que, sem entrar na sua textura nem lhe servir de critério positivo, desempenha a seu respeito o papel de princípio regulador extrínseco, veluti stella rectrix; [em conexão vital] com a teologia, que, servindo-se dela como instrumento, a corrobora; e [em conexão vital] com a sabedoria do Espírito Santo, que sobrenaturalmente a conforta também, na alma do cristão.” [15]
Maritain escreve, além disso:
“A filosofia de Santo Tomás é independente em si mesma dos dados da fé, e não depende, nos seus princípios e na sua estrutura, senão da experiência e da razão.
Essa filosofia, no entanto, ao mesmo tempo que delas permanece perfeitamente distinta, está em comunicação vital com a sabedoria superior da teologia e com a da contemplação. E é por seu contato com essas sabedorias superiores, assim como com a vida intelectual da Igreja, que ela recebe a força de conservar entre os homens a pureza e a universalidade que lhe são próprias.
As verdades que acabamos de recordar são, reconheçamo-lo, das mais elementares. Por mais que apelemos a caracteres itálicos, na falta de caracteres de cartaz publicitário ou de letreiros luminosos, não estimamos que elas reterão, todavia, a atenção de certos espíritos decididos a não entender.” [16]
“Sobre este ponto, certas verdades elementares impõem-se logicamente a todo homem que admita uma revelação de Deus proposta pela Igreja de Cristo, verdades elementares acerca das quais a Igreja, além disso, cuidou de proferir definições dogmáticas. Recordamo-las aqui, para maior claridade.
1º A verdade não pode lutar contra a verdade, seria fazer em pedaços o primeiríssimo princípio da razão; e a teoria da dupla verdade, inventada na Idade Média pelos averroístas e retomada em nossos dias por alguns modernistas, teoria segundo a qual a mesma coisa pode ser verdadeira segundo a fé e falsa segundo a razão, ou inversamente, é puro absurdo. Se bem que a fé está acima da razão, diz o Concílio do Vaticano, contudo não pode haver entre fé e razão verdadeiro dissentimento: pois é o mesmo Deus que, de um lado, revela os mistérios e infunde a fé nas almas, e que por outro lado agraciou o espírito humano com a luz da razão, e Deus não tem como negar a si mesmo, nem jamais o verdadeiro contradizer o verdadeiro. Donde às vezes vem a vã aparência de uma tal contradição é, antes de tudo, do fato de os dogmas da fé não serem entendidos e expostos conforme o sentido da Igreja, ou do fato de opiniões errôneas serem consideradas afirmações da razão. Segue-se daí:
2º por um lado, que a filosofia, como toda ciência, é independente da revelação e da fé na sua obra própria e nos seus princípios, e se desenvolve de maneira autônoma a partir destes, tendo como luz própria a luz natural da razão, e como único critério a evidência;
3º por outro lado, que a filosofia está, sem embargo, sujeita ao magistério da fé, sendo evidentemente um erro toda enunciação de um filósofo destrutiva de uma verdade revelada, e somente a razão esclarecida pela fé tendo autoridade para julgar se determinada enunciação de um filósofo (ou seja, de um homem que se serve mais ou menos bem da só razão natural) é, sim ou não, contrária à fé.
Assim, a revelação desempenha a função de norma ou regra negativa com respeito à filosofia, o que é dizer que, sem invadir os seus princípios nem intervir nos seus procedimentos e na sua obra própria, ela tem o direito de controle sobre suas conclusões.
4º É evidente, a partir do momento em que se admite o fato da revelação, que a filosofia não tem como sofrer prejuízo algum dessa subordinação indireta à fé. Tal como a arte e como toda disciplina humana, ela é livre e senhora em seu domínio, mas esse domínio é limitado e subordinado; portanto, ela não desfruta de liberdade absoluta, mas quem, senão o próprio Deus, é absolutamente livre? Ser limitada na sua liberdade de se enganar, ter contra o erro um controle exterior e como que um anteparo, é na realidade para ela um grande benefício. Pois se é verdade que, segundo a palavra de Cícero, não há tolice no mundo que não encontre um filósofo para a defender, o que equivale a dizer com a Escritura que os insensatos são multidão infinita (mesmo entre os filósofos), então cumpre admitir que a filosofia, para levar a bom termo a obra da razão, deve necessitar – não digo em si mesma, digo no homem – do auxílio que lhe traz o controle da revelação, protegendo-a contra certo número de lastimáveis acidentes de percurso.
Para melhor apreciar a importância e mesmo, em certo sentido, a necessidade desse benefício, recordemo-nos de que, conforme o ensinamento comum dos teólogos, confirmado pelo Concílio do Vaticano, a fraqueza natural do homem é tão grande que, sem especial auxílio de Deus, a razão humana é incapaz de chegar a possuir todas simultaneamente (collective) e sem mescla de erro as grandes verdades de ordem natural, cada uma das quais, considerada à parte, está, porém, ao seu alcance. Compreenderemos então que, além da função essencial de norma negativa ou de controle exterior, de que acabo de falar, a fé tem ainda, com relação à razão filosófica, um ofício positivo, o de indicar o alvo e de orientar o espírito, veluti stella rectrix, como uma estrela guia.
5º Finalmente, podemos considerar a filosofia não mais em si mesma e no seu domínio próprio, mas enquanto ela entra na contextura de uma ciência mais elevada: a teologia, ciência das verdades reveladas, que é em nós, diz Santo Tomás, como uma participação da ciência própria de Deus e dos bem-aventurados. A teologia não pode se desenvolver no espírito humano sem servir-se das verdades filosóficas, estabelecidas pela razão, que ela põe em contato com os dados da fé, para fazer jorrarem desses dados as consequências que estão virtualmente ali contidas. Ela sobreleva assim a filosofia e faz uso dela, então, como de um instrumento. Vê-se de imediato que esses contatos vivos confirmam a um novo título a subordinação da filosofia ao magistério da revelação e da fé: a teologia, independente em si mesma de todo sistema filosófico, devendo julgar os enunciados dos filósofos à luz dela, e assumir, dentre os diversos sistemas filosóficos, aquele que será, nas mãos dela, o melhor instrumento da verdade. Tais são as noções elementares que se impõem logicamente ao espírito, a partir do momento em que esteja assente o fato da Revelação Católica.
Que se segue? Segue-se que aqueles que receberam a graça da fé não poderão filosofar desinteressando-se dessa fé, stella rectrix, e da teologia, praticando o sistema do compartimento estanque; a filosofia permanece neles rigorosamente distinta da fé, e só admite o racional em sua estrutura própria, – ela não pode ser separada da fé; e é claro que o movimento natural de todo fiel é rejeitar como falsas as opiniões filosóficas que ele enxerga contrárias à verdade revelada. Cada um está obrigado a defender o seu bem e o bem de Deus contra o erro.
Mas a Igreja abandonará aqui cada qual só às suas forças individuais? Ela faltaria ao mandato que recebeu de guardar o depósito da fé, a seu dever de proteção para com as almas.
Ela intervirá, pois, e em face de um erro filosófico que ela julgue bastante grave (quer esse erro destrua diretamente uma verdade revelada, quer destrua uma verdade conexa com o depósito revelado), ela proferirá uma condenação; ela também recomendará positivamente a doutrina filosófica que ela julga capaz entre todas de dar segurança e firmeza ao espírito por referência à fé; ela exercerá seu magistério sagrado sobre o campo filosófico. […]
Dos princípios precedentemente assentes, uma derradeira conclusão se depreende. Quando a Igreja exerce sua autoridade sobre o domínio filosófico, ela o faz essencialmente por referência à fé, por referência à verdade revelada, de que ela tem a missão de guardar o depósito. Mas a fé pressupondo a razão, como a graça pressupõe a natureza, acontece que, para cumprir perfeitamente o seu ofício de guardiã da fé, a Igreja é também, e secundariamente, constituída por Deus guardiã da saúde da razão, guardiã da ordem natural (como também do direito natural). Digamos, portanto, que ela tem uma dupla missão: salvaguardar o depósito revelado e, secundariamente, salvaguardar a retidão natural da razão mesma. E é em nome dessa dupla missão que, exercendo sua autoridade sobre o domínio filosófico, ela trabalha de fato para o maior bem da razão. Ela não é para o mundo, dizia Santo Agostinho, e, no entanto, ela age como se ela estivesse ali para o bem do mundo.” [17]
“A teologia se serve da filosofia, ilumina-a ao julgá-la à sua luz. Assim, Santo Tomás transplantou os conceitos aristotélicos sob uma atmosfera nova – sobrenatural – em que a fé força-os a trazer em nosso espírito alguma inteligência dos mistérios de Deus. Há – assente tão-só nas evidências da razão – uma filosofia tomista, Santo Tomás fez grandes trabalhos filosóficos, ele tinha um gênio metafísico extraordinário. Mas ele não é apenas, nem antes de tudo, filósofo, por essência ele é teólogo. É como teólogo, do alto do saber arquitetônico por excelência, que ele assegura definitivamente a ordem da economia cristã.
Contra a velha escolástica, que não sabe reconhecer nele o verdadeiro herdeiro de Agostinho, ele defende os direitos da verdade de ordem natural, e o valor da razão; contra os averroístas, que não sabem reconhecer nele o verdadeiro intérprete de Aristóteles, ele defende os direitos da verdade revelada, e o valor da fé. Afirmando conjuntamente a naturalidade essencial da metafísica e a sobrenaturalidade essencial das virtudes infusas, e a subordinação essencial do natural ao sobrenatural, proclamando conjuntamente que a graça perfaz e não destrói a natureza, e que a vida propriamente divina que ela coloca em nós é a única que pode sanar a natureza e deve se assenhorear dela em seu fundo, sua obra própria foi conduzir todas as virtudes da inteligência ao serviço de Jesus Cristo. É todo o problema da cultura e do humanismo que nele se punha. Sua resposta é: santidade. O homem não tem sua perfeição se ela não for sobrenatural, ele não se desenvolve senão na cruz.” [18]
“O erro do mundo moderno foi pretender assegurar o reinado da razão sobre a natureza recusando o reinado da sobrenatureza sobre a razão.” [19]
Eis aqui finalmente, à guisa de confirmação explícita, o texto anunciado do Padre Garrigou-Lagrange (as notas de rodapé e aferentes são de sua pluma):
“Sem dúvida a filosofia cristã se distingue da Apologética da fé cristã, com a qual o Sr. Maurice Blondel tende a confundi-la. A filosofia cristã, com efeito, não tem necessidade de receber da Revelação noções como a de fé infusa e a de mistério sobrenatural. Ela procede segundo seus princípios próprios e seu método próprio, já formulados claramente o bastante por Aristóteles.
Mas ela deve, contudo, ter conformidade com a fé cristã, que é para ela, segundo a expressão de Leão XIII, ‘velut stella rectrix’. Não somente ela não deve dizer nada, ainda que implicitamente, contra a doutrina revelada proposta pela Igreja, mas ela deve ter com esta uma conformidade positiva, orientando-se, segundo seus próprios princípios e seu método, no sentido das verdades reveladas […]. Essa conformidade, como explica muito bem o Sr. J. Maritain num recente opúsculo, [20] tem de ser objetiva, no sentido de a filosofia cristã não poder ignorar a verdade revelada; ela deve ser também subjetiva, no sentido de que ela resulta de uma confortação do habitus adquirido de sabedoria pela virtude infusa da fé, como sucede no filósofo que se torna crente, o qual adere com nova força às provas racionais da existência de Deus (autor da natureza) que ele já conhecia.[21] A filosofia cristã não difere, assim, especificamente daquela de um Aristóteles (considerada naquilo que esta tem de verdadeiro); não há um novo objeto formal; é a mesma ciência, mas em estado superior, como a criança que se torna adulta, ou como a teologia discursiva no espírito de um teólogo que recebeu a luz da glória.” [22]
[14. Maritain, op. cit., p. 83 {N. do T. – Trad. cit., p. 85.}.]
[15. J. Maritain, Les degrés du savoir, de la sagesse augustinienne {Os Graus do Saber. [capítulo:] Sobre a Sabedoria Agostiniana}, ;Œuvres Complètes, Friburgo/Paris, Éditions Universitaires/Éditions Saint-Paul, 1983, vol. IV, pp. 815-816.]
[16. J. Maritain, Le Docteur Angélique, ddb, Paris, 1930, prefácio, pp. xv-xvi. Como em todas as citações deste artigo, os itálicos do autor são respeitados.]
[17. Ibid., pp. 132-138.]
[18. Ibid., pp. 27-28.]
[19. J. Maritain, Primauté du spirituel, Paris, Le Roseau d’Or, 1928, p. 8.]
[20. {NB: nota do Pe. Garrigou} La notion de philosophie chrétienne, Paris, ddb, 1933. Nós aceitamos plenamente as conclusõesdo Sr. J. Maritain; elas nos parecem formuladas com muita felicidade.]
[21. {NB: nota do Pe. Garrigou} Segundo Santo Tomás e os tomistas, se bem que não se possa ao mesmo tempo crer e enxergar a mesma verdade do mesmo ponto de vista, pode-se ao mesmo tempo crer na existência de Deus autor da graça, e enxergar o valor demonstrativo das provas da existência de Deus autor da natureza. Nesse caso a virtude infusa da fé confirma do alto o valor da demonstração.]
[22. R. Garrigou-Lagrange o.p., Le sens du mystère et le clair-obscur intellectuel, Natureza e sobrenatural, ddb, Paris 1934, pp.131-132. Ter-se-á observado que, em razão do objeto de sua exposição, o Padre Garrigou-Lagrange insiste, de forma justa, noprimado da fé. Mas é por sua afirmação da especificidade da filosofia e por sua aprovação da posição de Maritain que eu o citoaqui.]¥
c) Recapitulação
Antes de repassar a importância e algumas consequências da questão debatida, é necessário enxergar bem claro aqui, e com esse fito vou tentar recapitular a questão em algumas sentenças.
1. A filosofia, por sua luz natural, por seus princípios, por sua argumentação, é intrinsecamente e essencialmente distinta e independente da fé e da teologia.
2. A filosofia está, sem embargo, em dependência extrínseca da fé e da teologia, pois estas – de uma origem, de uma certeza e de uma verdade mais altas – podem (e devem) rejeitar e declarar falso todo princípio ou toda conclusão que não seja compatível com elas.
3. Da parte de seu objeto, a filosofia também está em dependência acidental da fé e da teologia, pois sucede que:
– a revelação divina afirma a existência efetiva de seres de que a filosofia pode tratar, mas cuja existência ela não pode declarar (os anjos, ou ainda a criação in principio – no tempo);
– a teologia atrai a atenção para – e manifesta a importância de – noções e distinções necessárias ao conhecimento e à compreensão da revelação (assim a distinção entre pessoa e natureza, ou a entre substância e acidentes);
– a teologia obriga a precisar uma definição, em virtude da revelação de uma derrogação divina à ordem cognoscível aqui na terra (assim quanto à substância, em virtude do mistério da Encarnação; ou quanto ao acidente, em virtude da transubstanciação).
4. O filósofo, por sua vez, foi elevado a um fim sobrenatural e resgatado por Nosso Senhor Jesus Cristo. A retidão de sua consciência e de sua vida está em dependência intrínseca e essencial dessa ordem sobrenatural. O filósofo cristão deve ser dirigido pela luz da fé, da qual ele não pode fazer abstração. Essa fé ilumina a sua filosofia pelo alto, orienta-lhe as investigações, subordina-a a um fim que ela não é capaz de conhecer nem de alcançar.
5. Essa elevação do filósofo a um fim sobrenatural – e, no cristão, ao conhecimento sobrenatural da fé – não muda a natureza da filosofia, mas muda a sua situação:
– a natureza da filosofia não muda, porque sua luz, seus princípios, seus argumentos e sua exata proporção à inteligência humana permanecem idênticos;
– já a sua situação muda radicalmente: a filosofia continua a ser sabedoria, mas não é mais a sabedoria suprema do homem; ela deixou de ser adequada ao fim do homem e ela só pode averiguar o fim natural, que concretamente não existe tal como a razão o percebe – pois foi inteiramente assumido pelo fim sobrenatural.
5. O presente estado decaído da humanidade, consecutivo ao pecado original, só pode ser sanado sobrenaturalmente. Sem embargo, embora afete a natureza humana e enfraqueça a inteligência, [23] ele não as modifica na essência delas. As relações acima exprimidas não foram, portanto, essencialmente alteradas, se bem que de facto e in pluribus a necessidade da Revelação divina, para o conhecimento de certas verdades naturais fundamentais, se faz sentir mais vivamente.
[23. Por efeito do pecado original, a inteligência humana não está debilitada em si mesma, mas por distanciamento de seu objeto: a interposição das paixões desregradas perturba-a em seu exercício.]
d) Importância da questão
Se for esquecida a advertência de Leão XIII: “Ao contrário, sobre os pontos de doutrina que a inteligência humana pode conhecer naturalmente, é evidentemente justo que a filosofia empregue seus próprios método, princípios e argumentos; não, porém, de tal maneira que ela tenha a temeridade de subtrair-se à autoridade de Deus”, [24] as consequências são graves. Aí então, ou se professa um naturalismo corruptor da fé e produtor de heresia, ou se dissolve a filosofia cristã numa espécie de sub-apologética de sabor fideísta ou tradicionalista. Nos dois casos, é a inteligência cristã que fica destruída – ou no mínimo desarmada. Com efeito, para que a filosofia cristã possa exercer o seu papel indispensável e benéfico, é preciso que ela seja uma genuína filosofia. Então, e somente então, ela assumirá o seu lugar na ordem real (natural e sobrenatural) estabelecida por Deus:
– levando a inteligência natural à perfeição dela;
– demonstrando solidamente e sem petição de princípio os preâmbulos da fé;
– servindo de instrumento à teologia; mais ainda do que isso, fazendo com que a teologia exista enquanto ciência, segundo a palavra fortíssima de Leão XIII: “É servindo-se dela [da filosofia] que a Teologia sagrada recebe e assume a natureza, a forma, o caráter de uma verdadeira ciência”; [25]
– desempenhando um papel de primeiro plano na luta contra a heresia, e especialmente contra o modernismo. Ao enumerar os remédios que devem ser aplicados ao modernismo, São Pio X fala assim: “Primeiramente, no que se refere aos estudos, Nós queremos e ordenamos que a filosofia escolástica seja colocada na base das ciências sagradas. […] Sobre esta base filosófica, seja erguido solidamente o edifício teológico”. [26]
Cumpre, pois, tomar o cuidado de não desnaturar a filosofia. Por isso que me espanto fortemente com a sugestão emitida pelo Pe. Aubry e citada pelo Sr. Xisipsilonzê (não a conheço de outro modo): a fusão, em uma única ciência, da filosofia e da teologia. Fusão? Mas isso transtorna a natureza das coisas: mesmo ao tratarem dos mesmos objetos materiais, a filosofia e a teologia o fazem sob pontos de vista e luzes infinitamente distintas e distantes, inconfundíveis.
Fusão? Isso é uma quimera, que não ;pode valer-se de Santo Tomás de Aquino. Sua Suma Teológica é inteiramente teológica, está inteiramente sob a luz da revelação virtual. Santo Tomás não faz aí obra filosófica; ele se serve de uma filosofia já constituída, que ele herdou de Aristóteles e que, aliás, ele fixou e retificou, em tantos comentários a Aristóteles, Questões disputadas ou opúsculos. É por isso que Santo Tomás, quando tem necessidade, na Suma, de uma ferramenta filosófica, invoca tão frequentemente o argumento de autoridade citando “O Filósofo” – coisa não de se fazer.
Eis o que diz Étienne Gilson de uma filosofia que mudaria de caráter ao abordar o estudo das verdades religiosas: “Quem jamais falou em inventar esse monstro? Muito pelo contrário, aqueles que falam de filosofia cristã, e a encíclica Æterni Patris primeira que todos, mantêm ao mesmo tempo como princípio inabalável que a filosofia e a teologia são duas ciências formalmente distintas tanto por seus princípios como por seu objeto… Formalmente, portanto, uma filosofia só pode ser filosofia e de nenhum modo teologia, mas não se segue daí que ela não possa ser cristã…” [27]
A bem dizer, há todavia, no plano teológico da Suma, um pequeno tratado de filosofia: a questão que trata da existência de Deus. Essa questão é verdadeiramente o ápice, o acabamento da filosofia (e é por essa razão que ela figura no início da Suma Teológica). Santo Tomás de Aquino passou a vida toda refletindo na questão que ele não cessava de colocar aos bons monges, percorrendo muito jovem os corredores de Monte Cassino: Que é Deus? [28] Ele quis refletir nisto e a isto responder (tanto quanto se o pode fazer aqui na terra) na luz da fé, a única luz que nos conduz (na obscuridade!) ao coração mesmo de Deus. Sua obra foi, portanto, principalmente teológica; é o que mostra bem Étienne Gilson: [29]
“Santo Tomás é essencialmente e antes de tudo um teólogo […]. Uma suma da verdade católica é por definição obra de teologia. Um autor cuja doutrina se exprime em três obras de teologia é essencialmente um teólogo. Mas, se me dirá, que fazeis do restante? Todo o restante, questões disputadas, opúsculos, comentários sobre Dionísio, Boécio, Proclo e mesmo Aristóteles, representa um esforço que ele precisou impor-se para poder construir suas grandes sínteses doutrinais. Todo o seu trabalho de filósofo foi encetado, prosseguido e realizado em vista do seu trabalho de teólogo. Logo, se me perguntarem o que é que nomeio ‘tomismo’, responderei: é uma teologia, pois todo o trabalho do autor foi ou teológico, ou ordenado às finalidades da teologia. E caso se insista, perguntando-me “quem disse?”, minha resposta será que o próprio Santo Tomás disse isso, ao adotar uma palavra de Santo Hilário de Poitiers: Tenho consciência de que o meu principal dever para com Deus nesta vida é que todas as minhas palavras e todos os meus pensamentos sejam sobre Ele. Não creio exagerar em nada ao dizer que um homem do qual todas as palavras e pensamentos se referiam a Deus, e que quis que assim fosse por toda a sua vida, era essencialmente um teólogo.”
Mas ele só pôde edificar uma obra propriamente teológica fazendo uso de uma genuína ciência filosófica, uma filosofia verdadeira e uma verdadeira filosofia construída no interior de sua própria luz, em cima de seus próprios princípios, com os seus próprios argumentos. Assim, e uma vez mais, é necessário não diminuir nem desnaturar a filosofia, nem dissolvê-la numa espécie de “teologismo”, que é para a teologia aquilo que o fideísmo é para a fé: só se fará semear confusão, nebulosidade, caos em inteligências que morrem por falta de estabilidade e claridade. Cumpre, pelo contrário, restaurar a filosofia natural, dar a ela todo o seu lugar na formação da inteligência católica lugar indispensável, mais não seja, porque ela conserva a inteligência na humildade.Não é, antes de tudo, de um excesso de razão na filosofia que sofreu e sofre o mundo católico: é de uma deficiência, é de uma falta de metafísica e de rigor lógico.
Os autores católicos, mesmo aqueles com melhor espírito, têm vezes demais uma inteligência trapalhona, misturando pontos de vista, contentando-se com o superficial e o aproximativo, ignorando as definições e distinções, não fazendo a menor ideia das exigências da verdade em matéria de disciplina do espírito e trabalho sério. Aí então, quando se abordam graves questões – nas quais o testemunho da fé, a fidelidade à Igreja Católica e a salvação eterna estão envolvidos –, aqueles defeitos tornam-se obstáculos temíveis e poderão mesmo acarretar erros funestos.
Notemos, por fim, que a questão aqui discutida e disputada é de uma importância que ultrapassa em muito o problema da só filosofia, porque, como observa com bastante justeza Étienne Gilson, “pode-se afirmar como lei filosófica historicamente verificável que há correlação necessária entre o modo como se concebe a relação entre Estado e Igreja, o modo como se concebe a relação entre filosofia e teologia e o como se concebe a relação entre natureza e graça” [30].
[24. Leão XIII, Æterni Patris, 4 de agosto de 1879, Actes de Léon XIII, Paris,Bonne Presse, s.d., t. I, p.52. “In iis autemdoctrinarum capitibus, quæ percipere humana intelligentia naturaliter potest, æquum plane est, sua methodo, suisque principiis etargumentis uti philosophiam: non ita tamen, ut auctoritati divinæ sese audacter subtrahere videatur.”]
[25. Ibid., p.50. “Solidissimis ita positis fundamentis, perpetuus et multiplex adhuc requiritur philosophiæ usus, ut sacra Theologia naturam, habitum, ingeniumque veræ scientiæ suscipiat atque induat.”]
[26. São Pio X, Pascendi Dominici Gregis, 8 de setembro 1907. Actes de Pie X, Bonne Presse, Paris, s.d., tomo iii, p.160. “Primoigitur ad studia quod attinet, volumus probeque mandamus ut philosophia scholastica studiorum sacrorum fundamentum ponatur. […] Hoc ita posito philosophiæ fundamento, theologicum ædificium extruatur diligentissime”. Não se pode, pois, repreender seminário algum por seguir essa distinção e essa ordem no cursus dos estudos sacerdotais: é a distinção e ordem de São Pio X no seu combate contra o modernismo.]
[27. Christianisme et philosophie, Paris 1936, p. 133. Citado por A. Michel, Leçons élémentaires de métaphysique chrétienne, Berche et Pagis, Paris 1938, pp. 10-11. Quem quiser aprofundar alguns particulares da fusão-confusão entre ciência natural e ciência sobrenatural de Deus (aquelas de que Deus é objeto), poderá referir-se ao terceiro capítulo, Conhecimento dos mistérios [pp. 194-255] da obra de T. L. Penido Le rôle de l’analogie en théologie dogmatique, Paris, Vrin, 1931 {N. do T. – Na trad. br., autorizada e revista pelo Autor, do Pe. Dinarte Duarte Passos, C. M., A Função da Analogia em Teologia Dogmática, Petrópolis:Vozes, 1946, pp. 197-260.}.]
[28. J. Maritain, Le Docteur Angélique, ddb, Paris, 1930, p. 3.]
[29. Les tribulations de Sophie, Paris, Vrin, 1967, pp. 36-37. Citado em Itinéraires n.º 235 p. 95.]
[30. Dante et la Philosophie, segunda edição, Paris, Vrin, 1953, p. 200. Citado em Itinéraires n.º 42 p. 109 e n.º 235 p. 102.]
Conclusão
A carta magna da filosofia cristã não é este ou aquele autor particular, seja qual for a estima que por ele se tenha: é a encíclica Æterni Patris de Leão XIII, assim como o exemplo de Santo Tomás de Aquino. Isso não impede, porém, que deixemos a conclusão ao Cardeal Pie, que diz tudo – e tão bem! – na sua célebre primeira instrução sinodal: [31]
“Não! Mil vezes não! Não ensinareis jamais que as virtudes naturais são falsas virtudes, que a luz natural é uma falsa luz. Não! Não empregareis argumentação rigorosa contra a razão para provar-lhe com razões peremptórias que ela nada pode sem a fé. Se tivéssemos a desventura de ensinar semelhantes proposições, cairíamos sob o golpe das censuras da Igreja, depositária de toda a verdade, e que não é menos atenta em conservar os atributos certos da natureza e da razão que em vindicar os direitos da fé e da graça.
“Argumentação rigorosa contra a razão, para lhe provar peremptoriamente que ela nada pode sem a fé, achou-se, neste século, sob a pluma de um famoso sacerdote e de alguns de seus discípulos. As encíclicas romanas vieram ensinar-lhes que, demolindo a razão, eles destruíam o sujeito ao qual a fé se dirige, e sem cuja livre adesão o ato de fé não existe; e que negando todo princípio humano de certeza, eles suprimiam os motivos de credibilidade que são as preliminares necessárias de toda revelação.
“E, no que se refere às virtudes naturais, tendo Baio ousado sustentar que as virtudes dos filósofos são vícios, e que toda distinção entre a retidão natural de um ato humano e o seu valor sobrenatural e meritório do reino celeste não passa de quimera, esse inovador foi formalmente condenado pelo Papa São Pio V.
“Ensinareis, pois, que a razão humana tem seu poder próprio e suas atribuições essenciais. Ensinareis que a virtude filosófica possui uma bondade moral e intrínseca que Deus não desdenha de remunerar, nos indivíduos e nos povos, com certas recompensas naturais e temporais. Por vezes mesmo com favores mais altos.
“Mas… ensinareis também e provareis, mediante argumentos inseparáveis da essência mesma do cristianismo, que as virtudes naturais, que as luzes naturais, não podem conduzir o homem ao seu fim último que é a glória celeste. Ensinareis que o dogma é indispensável, que a ordem sobrenatural, na qual o autor mesmo de nossa natureza nos constituiu por um ato formal de sua vontade e de seu amor, é obrigatória e inevitável. Ensinareis que Jesus Cristo não é facultativo e que, à margem da Sua lei revelada, não existe nem existirá jamais justo meio filosófico e pacífico onde quem quer que seja, alma de elite ou alma vulgar, possa encontrar o repouso de sua consciência e a regra da sua vida.
“Ensinareis que não importa somente que o homem faça o bem, mas importa que ele o faça em nome da fé, por um movimento sobrenatural. Sem o que, os seus atos não atingirão a meta final que Deus assinalou para ele, ou seja, a felicidade eterna dos céus […].
“A pretensão que o naturalismo tem de viver da vida da razão sem participar na vida sobrenatural é uma pretensão, na prática, quimérica e impossível. Pois desde o pecado do primeiro pai, o homem foi ferido em sua natureza. Ele está enfermo tanto no seu espírito como na sua vontade.
“Sem dúvida, resta-lhe bastante luz para conhecer diversas verdades naturais, bastante força para praticar várias virtudes morais: o baianismo, o jansenismo, o quesnelismo (e foram essas heresias, diga-se de passagem, que a filosofia contemporânea, para a qual incoerência alguma oferece dificuldade, cobriu de suas mais calorosas simpatias) foram condenados pela Igreja por atribuírem à natureza e ao livre arbítrio do homem caído uma impotência completa.”
Mas é também certeza que, em seu estado atual, o homem não é capaz por si só nem de conhecer toda a verdade, nem de praticar toda a lei moral, mesmo natural; ainda menos de vencer todas as tentações da carne e do demônio sem uma luz e uma graça vindas do alto.
“Eu sei que Deus nem sempre recusa os Seus auxílios àqueles que ainda não estão regenerados em Jesus Cristo. Sei que é uma proposição condenada dizer que não há graça fora da Igreja. Mas sei também que essa graça, Deus Se cansa de a oferecer àqueles que, quer antes ou depois do batismo, persistem em repelir e em desconhecer o princípio mesmo e fonte de toda a graça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo…”
Anexo: texto do Sr. Xisipsilonzê
Existe um bom Maritain?
ou
sobre as relações entre a Filosofia e a Fé
Erro sobre a gênese da filosofia.
Podemos ler em Elementos de Filosofia [1] por Jacques Maritain, “Agrégé de l’Université”: “Não há Filosofia entre os semitas em geral e os egípcios.”
“Não é de admirar que todos os povos, no período primitivo de sua história, tenham ignorado a especulação filosófica. […]
“Os judeus estão, sob este ponto de vista, no mesmo caso que os outros povos semitas. Desdenhosos da sabedoria humana e das obras da pura razão, aliás mal dotados para elas, não possuíram filósofos, pelo menos até Filo, que viveu no tempo de Cristo; mas tiveram os profetas e a Lei de Deus.” [1. Jacques Maritain, Eléments de Philosophie, Introduction Générale à la Philosophie, Paris, Téqui, 1994, t. I, pp. 9-10 {N. do T. – Na 1ª edição brasileira: Elementos de Filosofia.
I – Introdução Geral à Filosofia (tradução de Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado, revista por Frei José de Azevedo Mendonça, O.P., Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1948), p. 25.}.]
Ora, nós lemos em Mélanges de Philosophie Catholique [Miscelânea de Filosofia Católica], de Jean-Baptiste Aubry,
Doutor em Teologia:
“A Escritura falou bastante de filosofia; sobretudo os livros sapienciais contêm todos os elementos da filosofia. [2. Eccli., VII, 30. – Proverb., XXII, 20-21.]
“Seria um grande e bastante útil capítulo da filosofia aquele em que se mostrasse a influência da filosofia dos antigos hebreus sobre a gentilidade, e especialmente sobre aquela filosofia grega tão gabada, nem sempre injustamente. “Haveria que estudar os livros de Moisés e sua influência sobre a sabedoria egípcia; os livros sapienciais, a sabedoria de Salomão e sua influência sobre o mundo antigo; a influência intelectual dos judeus sobre os povos antigos; finalmente, haveria que recordar a admissão de Platão, dizendo que aquilo que ele sabe de melhor, ele o deve a um bárbaro caldeu que, por diversos indícios, reconhecemos ser um judeu.” [3.Pe. Jean-Baptiste Aubry, Mélanges de Philosophie Catholique, Œuvres Complètes de Jean-Baptiste Aubry, Victor Retaux, 1895,t. II, p. 144.]
Ou ainda:
“Quanto aos judeus, além de suas tradições, provenientes da revelação primitiva e conservadas intactas, é uma certeza que seus patriarcas e seus filósofos vieram a somar a elas bastantes conhecimentos, adquiridos por meio de suas próprias meditações e de suas observações.” [ 4.Ibid., p. 4.]
Aí está uma belíssima contradição entre esses dois autores. Um morreu santamente, o Pe. Aubry, missionário na Ásia; o outro como herege, Maritain. Para Maritain, a construção das verdades filosóficas em sistema, ao longo das gerações, só pôde ser feita sem a Revelação, que seria como que um elemento perturbador dessa construção, que ele quereria puramente racional no tempo:
“Somente na Grécia a Filosofia adquire existência autônoma, distinguindo-se explicitamente da religião.” [5. Op. cit., p. 21 {N. doT. – Trad. cit., p. 34.}.
Como se o fato de adquirir uma existência autônoma em face da religião fosse um bem para a filosofia; como se a verdadeira religião tivesse impedido o desenvolvimento da filosofia! Não é o que pensa o Doutor em Teologia Sr. Pe. Aubry, nem o Cardeal Pie, nem Mons. Gaume, como veremos mais adiante. É por isso que Maritain não poupa elogios a todos aqueles filósofos antigos gregos que tentaram construir cada qual o seu sistema, fazendo abstração de todo dado revelado (segundo ele):
“A Grécia é a única parte do mundo antigo onde a sabedoria do homem encontrou seu caminho, e onde por efeito de um feliz equilíbrio das forças da alma e de um longo trabalho para adquirir a medida e a disciplina do espírito, a razão humana atingiu a idade de sua força e maturidade.
“Os gregos, povo escolhido da razão.” [6. Ibid., p. 21 {N. do T. – Trad. cit., p. 34.}. Nós pensamos, ao contrário, que o povo escolhido pela razão foi o povo hebreu, porque povo escolhido pela Revelação. Pela Revelação, eles possuíam sem mescla de erros as verdades mais altas da metafísica: “Eu sou Aquele que sou”.]
É por essa razão, também, que Maritain recusa o título de filósofo aos grandes santos do Antigo Testamento, tais como Moisés, [7. Bossuet afirma que o maior dos filósofos foi Moisés (cf. o início do Discurso sobre a História Universal).] tais como Salomão, o Rei da Sabedoria por excelência, e todos os outros grandes profetas. Não, para ele esses personagens eram “desdenhosos da sabedoria humana e das obras da pura razão, aliás mal dotados para elas…”. Eles não podiam fazer filosofia, porque tinham a Revelação. Que juízo inacreditável da parte de alguém que se diz católico; isso parece-nos no limite da blasfêmia, desdenhar assim de tais sábios abençoados por Deus, Sabedoria Incriada.
Em consequência, para Maritain, felizmente que houve os filósofos pagãos gregos, sem os quais os homens, e principalmente o povo hebreu, nunca poderiam ter alcançado as especulações filosóficas acessíveis às luzes da razão natural.
Além disso, ele afirma que foi sem a Revelação que os gregos teriam chegado ao conhecimento da verdade de ordem natural e a constituir uma sabedoria do homem verdadeiro:
“Como também nos deve ser caro o labor dos homens que, nesta terra, pelo esforço da razão e sem auxílio da Revelação, chegaram a desvendar os princípios, a assentar os fundamentos imutáveis desta mesma verdade de ordem natural, constituindo uma sabedoria do homem verdadeira e progressiva…” [8. Op.cit., pp. 20-21 {N. do T. – Trad. cit., p. 34.}.]
Vejamos mais de perto, porém, se as afirmações de Maritain são mesmo verdadeiras; as verdades que os gregos desenvolveram em sistema, acaso são fruto da só razão deles? Deixaremos que fale o sapientíssimo Pe. Aubry: “Assim, é uma certeza que, desde antes de a filosofia ter-se constituído em ciência com os gregos, já havia nos outros povos, e na própria Grécia, uma suma notabilíssima de conhecimentos tirados das duas fontes que nós dissemos; é a esta suma de conhecimentos que os antigos deram o nome de bárbaro, conforme o hábito que tinham os gregos, e depois deles os romanos, de chamar bárbaros a todos os povos estrangeiros que falassem outra língua que não a deles.
“Mas esses conhecimentos que a Grécia recebeu do Oriente não tinham sido ordenados e religados entre si de maneira a formar um corpo de ciências harmonioso e sistemático. É a glória dos gregos ter sabido fazer esse trabalho, ter sujeitado esses conhecimentos a um exame mais profundo, tê-los colocado em ordem, deles aproximando ou com eles fundindo, em um só corpo de doutrina, um monte de verdades que eles mesmos tinham descoberto com as luzes de sua razão natural. Assim, o povo grego é o primeiro, falando propriamente, a ter constituído a ciência filosófica.
“Não subscrevemos, pois, nem à opinião dos judeus quando, com Aristóbulo, dizem que os gregos tiraram toda a sua filosofia das Santas Escrituras, nem à dos escritores gregos quando pretendem, como se vê por suas discussões com os nossos antigos apologistas e pelas respostas destes últimos, que a filosofia deles seja autóctone, isto é, que ela nasceu na Grécia e com a nação grega, e que nem Pitágoras, nem Platão, nem nenhum outro dos filósofos deles aprendeu o que quer que seja na escola dos judeus ou de quaisquer outros bárbaros.
“Dessas duas opiniões, a primeira foi defendida em nossos dias pelos tradicionalistas, a segunda pelos racionalistas, de acordo com as ideias e em virtude das exigências de seus respectivos sistemas. Os tradicionalistas, especialmente para citar apenas os dois mais recentes – o Pe. Joaquim Ventura e Bonnetty, sustentam que a razão humana não pode, com suas próprias forças, descobrir verdade alguma, ao menos não verdade alguma que se refira à religião ou à moral; e eles se esforçam em provar que tudo o que os filósofos gregos encontraram de bom e verdadeiro sobre esses pontos, eles sorveram nas fontes das tradições orientais ou nos livros mosaicos. Os racionalistas, e entre eles Hegel, Cousin e Franck, rejeitam toda revelação sobrenatural e exterior, sustentam que a razão humana se basta a si mesma para adquirir o conhecimento de toda verdade, e se apoiam principalmente no fato de os gregos, segundo eles, não terem feito uso das antigas tradições, e nem por isso deixarem de ter, só com os recursos de seu gênio, inventado a ciência filosófica.
“A verdadeira doutrina, aquela que admitiram os Padres, como mostra muito bem o Pe. François Baltus S.J., está entre esses dois extremos; ela mantém que primeiramente os filósofos gregos tomaram de empréstimo aos do Oriente, especialmente judeus, os principais dogmas de que se compõem os sistemas deles; em segundo lugar, de resto pelas próprias forças da razão humana, descobriram eles mesmos um grande número de verdades e, harmonizando-as e escorando-as com a doutrina da tradição, fizeram disso um sistema científico completo e ordenado.
“Efetivamente, quanto à primeira dessas duas proposições, é uma certeza que os gregos aprenderam um bocado com os estrangeiros. Para prová-lo, temos, para começar, o testemunho dos próprios escritores deles. Platão fala de um ensinamento que ele recebeu e que ele ora chama de quidam divinus sermo, ora de sermo antiquus, superaddita opinio. Diz ele que os gregos receberam dos bárbaros suas palavras e suas letras, e que os antigos, melhores e mais próximos dos deuses, ensinaram-lhes muitas outras coisas.
“Tampouco Aristóteles preteriu, como muitas vezes se diz, as tradições antigas; ele próprio diz, na sua Metafísica: Tradita sunt quaedam a majoribus nostris et admodum antiquis, ac in fabulae figura posterioribus relicta… Et (ut verisimile est), saepius quaque arte et philosophia, quod possibile fuit, inventa, corruptaque rursus, has illorum opiniones, quasi quasdam reliquias, nunc salvatas esse.{N. do T. – Metafísica, livro 12º [livro Λ (lambda)] 8/9, 1074b; a comparar com a tradução do grego por Giovanni Reale, vertida em português por Marcelo Perine, Loyola, 2002, vol. II, p. 575:
“Uma tradição, em forma de mito, foi transmitida aos pósteros a partir dos antigos e antiquíssimos… E dado que, como é verossímil, toda ciência e arte foi encontrada e depois novamente perdida, é preciso considerar que estas opiniões dos antigos foram conservadas até agora como relíquias.”}
“Nós temos, do mesmo fato, uma multidão de outros testemunhos de autores antigos profanos e eclesiásticos; e a investigações da erudição moderna provaram que os gregos, depois de terem saído uma primeira vez da barbárie, e recaído nela uma segunda vez, dela foram tirados por sábios estrangeiros, dos quais os mais célebres são os egípcios Cécrope e Dânao, o fenício Cadmo e o frígio Pélope, que vieram à Grécia com colônias e ali ergueram aquelas cidades que, mais tarde, se tornaram tão prósperas. E está provado que esses bárbaros, fundadores das cidades da Grécia, trazendo consigo as doutrinas que tinham aprendido em sua pátria, transmitiram-nas aos gregos como primeira base da civilização que viriam a inaugurar, e que a maior parte dessas doutrinas foi conservada, ao menos pela ordem sacerdotal, até o tempo em que os gregos começaram a filosofar. E isso tanto é verdade que o próprio V. Cousin, embora sustente, como acabamos de dizer, que a filosofia grega seja autóctone, não pode impedir-se, contradizendo a& si mesmo, de admitir que as antigas tradições do Oriente são o estofo da filosofia grega.
“Consideramos também como objeto de certeza que os gregos aprenderam bastante dos judeus, não, talvez, lendo os livros destes – pois parece-nos, como a Santo Agostinho, pouco provável que Platão ou algum outro filósofo grego tenham lido os livros dos hebreus –, mas através de conversas, como estima Santo Agostinho, se bem que não todavia no sentido e da maneira como pretendem certos autores protestantes. Com efeito, além das viagens dos gregos por países habitados pelos judeus e das emigrações de judeus por toda a Ásia e a Grécia, a impressionante harmonia dos principais dogmas da filosofia grega com as doutrinas dos judeus não deixa margem a dúvida sobre esse ponto.
“Quanto à segunda proposição, é inverossímil que os gregos tenham trazido do Oriente todos os sistemas filosóficos deles já prontos e acabados. Quem pode crer que Pitágoras tenha aprendido de sábios orientais tudo aquilo que ele ensinou sobre os números e a maneira como entram na construção das coisas? Ou que Platão tenha tirado deles tantos belos pensamentos que ele tão bem expôs sobre a verdade, o bem, o belo – ainda que J. de Maistre diga, a seu respeito, que ele só é sublime quando oriental, e que se torna sofista e aborrecido quando grego? Ou que Aristóteles tenha tirados deles suas categorias, e aquelas leis tão sutis e tão sólidas que devem presidir à investigação, ao desenvolvimento e ao ensinamento da verdade?
“Adicione-se que os filósofos gregos, e vemos isto nas obras deles, não adotaram as tradições orientais cegamente e sem exame nem discussão; mas as discutiram, interpretaram e explicaram de acordo com as ideias deles e o entendimento deles; e foi isso que fez com que eles alterassem, ao submetê-las às orgulhosas teorias deles, as belas e puras doutrinas que eles tinham aprendido dos hebreus.” [9. Op. cit., pp. 4 a 9.]
Está claro, pois, que Maritain idealiza os filósofos gregos porque, supostamente, filósofos com as só luzes da razão. “Platão diz que o que há de melhor em seus escritos, ele o deve a um bárbaro com o qual conviveu e longamente conversou no Oriente, e que o instruiu a respeito. Por diversos indícios, vê-se que esse bárbaro é muito simplesmente um judeu que, munido de seus Livros sagrados, realmente tinha a faca e o queijo na mão para ensinar a Platão e apresentar a este, para as maiores questões de filosofia, aquelas respostas sublimes que hoje tanto se esquece de admirar na Escritura, mas que se admira em Platão, no qual estão diminuídas, extasiando-se com que um pagão, armado somente de sua razão, tenha conseguido descobrir aquilo.
“Quo posito, Sic arguo: Pobre razão, à qual se creditava o que de mais sublime há em Platão, como se, sozinha, a filosofia tivesse podido descobrir aquilo; de sorte que, a partir do fato de Platão ter enunciado essas verdades, se concluísse que não ultrapassam o alcance da razão! E eis que o próprio Platão confessa que aquelas belas coisas, não foi de modo algum a filosofia que as descobriu, mas foi a revelação que lhas deu a conhecer; a filosofia não fez senão mutilá-las e obscurecê-las.
“Essa observação sobre Platão acaso não deveria ter um certo lugar, numa história da filosofia que pretendesse ser imparcial, e principalmente ser cristã?” [10. Abbé Aubry, op.cit., p. 51.]
Não é o caso da história da filosofia descrita por Maritain. Finalmente, para encerrar este capítulo histórico, escutemos uma última vez o Pe. Aubry, nas seguintes palavras cheias de sabedoria, e vejamos se, como diz Maritain, quão preciosa nos deve ser a heranças agrada do pensamento helênico [11. Op. cit., p. 21 {N. do T. – Trad. cit., p. 34.}.]:
“Cícero, tão bem chamado de o relator da filosofia antiga, não chega, sobre essas grandes verdades fundamentais da ordem natural, senão a conjecturas e verossimilhanças. Ora!, que após tantos séculos de trabalho e de disputa, a vaidosa sabedoria humana ainda estivesse nesse ponto, e viesse a alcançar um minguado resultado, enquanto que o simples crente judeu encontrava nas Escrituras exposição tão ampla, tão abundante e tão luminosa da verdade!
“Platão e Sêneca receberam, também eles, influência da Revelação. Ah, pobre filosofia antiga! Isso diminui mais ainda, tanto a tua glória, como o direito que terias de te gabar de ter conhecido, por meios racionais, algumas de nossas grandes verdades!” [12.Op.cit., pp. 55-56.]
Erro sobre o que a filosofia deve ser na ordem atual das coisas.
Como consequência, com base nessa falsa história da filosofia, Maritain afirma que a teologia, ou seja a revelação, nada mais tem que um papel negativo externo de controle sobre a filosofia [13].
[13. Op. cit., p. 83 {N. do T. – Trad. cit., p. 85.}. “Eis por que a Filosofia não é dirigida positivamente pela Teologia, e nãonecessita da Teologia para a defesa de seus princípios. Embora seja submetida ao controle exterior e à regulação negativa da Teologia, desenvolve-se de maneira autônoma no seu domínio.”]
A revelação não intervém a não ser para julgar acerca da veracidade das conclusões filosóficas elaboradas unicamente pelas luzes da razão, e até mesmo “seria ridículo ao filósofo invocar a autoridade da revelação para provar uma tese de filosofia” [14. Ibid., p. 83 {N. do T. – Trad. cit., p. 85.}.]. A filosofia, em seus princípios, é autônoma e nada tem a receber da revelação para o desenvolvimento dela. Por conseguinte, para Maritain, a fim de erigir um tratado de filosofia, não se deve tomar da revelação nem de qualquer outra ciência dado algum, mas servir-se das luzes da razão sozinha face à realidade do mundo presente. Como se a revelação, a história, não pudessem trazer verdades, mesmo de ordem natural, que sejam essenciais para a construção de um tratado de filosofia capaz de explicar a realidade do mundo presente. Também aí, veremos que o ensinamento de Maritain se afasta do Pe. Aubry, do Cardeal Pie ou de Mons. Gaume. “É preciso não se dissimular isto: salvo uma reforma expedita e fundamental no ensino da filosofia, por muito tempo ainda a luta será incerta, quiçá mesmo a balança acabe pendendo para o lado do racionalismo. Ora, desde o século dezesseis, existem grandes erros tanto sobre a noção mesma como sobre a natureza dessa importante ciência. E para começar, em certas escolas, apresenta-se a filosofia não como meio de desenvolver a verdade já conhecida, mas como meio de descobri-la; ela é apresentada como criadora da inteligência; dela se faz uma espécie de máquina de inventar a verdade. O que isso quer dizer, senão que todos os ensinamentos da autoridade social ou religiosa não passam de preconceitos; que se deve rejeitá-los com grande zelo, criar assim o vácuo na própria alma e não deixar que reentre nela senão aquilo que for claramente demonstrado: definição falsa, contraditória em seus próprios termos.
“Falsa: porque, como já dissemos noutra parte, o homem, ser contingente, não tem em si mesmo a verdade, é preciso que ele a receba; é tão-somente depois de a ter recebido, que lhe é dado desenvolvê-la e nutrir-se dela. Crer é a primeira lei de seu ser: conhecer é a segunda.
“Pois bem! O esforço da razão em passar da fé ao entendimento da verdade, eis o que constitui a filosofia: ela não inventa nada, ela desenvolve…
“Proscrevendo toda espécie de fé como um indigno entrave, aquela filosofia é essencialmente hostil ao Catolicismo, do qual a primeira palavra é: eu creio. Mas há outra maneira de considerar e de ensinar a filosofia que, menos anticristã em aparência, não é talvez, na realidade, nem menos errônea nem menos funesta [15. É a filosofia apresentada por Maritain.]. Queremos nos referir àquela filosofia que, sem rejeitar a revelação, declara-se alheia a esta. A razão, nada além da razão, tal é o único oráculo que ela interroga, a única autoridade que ela reconhece: com a sua ajuda, ela pretende provar tudo; sobre esta base única, ela pretende tudo determinar: ontologia, moral, física; a seus olhos, uma prova não é admissível, não tem valor algum, se, de perto ou de longe, ela deriva sua força da Revelação.
“Ora, como é que não se vê que apresentar assim a filosofia é confirmar, é perpetuar o falso divórcio entre a razão e a fé? Pois acaso não é dizer implicitamente, à juventude, que existe fora da religião uma verdadeira filosofia, um meio seguro de conhecer toda a verdade? E, a partir daí, que a religião é inútil, já que a razão basta? É verdadeiríssimo que, seguindo o Concílio de Trento, pela queda original a vontade não foi aniquilada, mas somente ferida e enfraquecida, fracta et debilitata; que, assim, o homem pode, sem o socorro da revelação evangélica, conhecer algumas verdades, assim como pode, sem a graça, praticar algum bem na ordem natural. Mas não é anacronismo tomar como base de uma filosofia verdadeira, – ou seja, de uma explicação geral e satisfatória de Deus, do homem e do mundo, – esses rudimentos imperfeitos, esses míseros dados de uma razão tão empobrecida pelo dualismo original, em vez dos ensinamentos da razão aclarada, divinizada pelo Cristianismo? Não é abandonar as vivas claridades do sol, pelos lampejos incertos de uma lâmpada sepulcral? Não é fazer retroceder o espírito humano?” [16. Mons. Jean-Joseph Gaume, Du Catholicisme dans l’Éducation, pp. 241-243.]
“Define-se comumente a filosofia: a ciência dos primeiros princípios, ou a ciência das causas primeiras e dos fins últimos em geral e, em particular, a ciência de Deus, do homem e de suas relações necessárias, de acordo com os ensinamentos da fé e as luzes da razão.” [17. Pe. Augustin Aubry, Le P. Aubry et la réforme des études ecclésiastiques.]
O eminente Cardeal Pie estudou também, admiravelmente, essa questão:
“Até mesmo o seu próprio nome obriga o filósofo a aceitar as luzes da Revelação, a partir do momento em que Deus Se digne reparti-las com ele. Filosofia é amor à sabedoria, é investigação da verdade. De qualquer lado, pois, que a sabedoria e a verdade cheguem até o homem, o homem não pode rejeitá-las sem rejeitar o próprio título de filósofo.” [18. Œuvres Complètes du Cardinal Pie, t. III, pp. 155-156.]
“A fé, longe de restringir o território e estreitar os limites da ordem racional, alarga as fronteiras dessa ordem; ou melhor, conservando os limites e fronteiras naturais da razão, confere à razão o privilégio de transpô-las e de exercer-se na segunda esfera em que a introduz. E a filosofia está tanto menos autorizada a considerar essa extensão maravilhosa do domínio da razão como uma derrogação à sua dignidade, quanto é bem forçada a reconhecer que a razão individual do homem não é a fonte primeira e o instrumento único de todos os seus conhecimentos, mesmo puramente naturais.” [19. Ibid., pp. 156-157.]
Para o Cardeal Pie, a revelação tem, portanto, não somente um papel negativo sobre a filosofia, mas também um papel positivo, fornecendo a base de toda reflexão, certo número de verdades de ordem natural, mas reveladas, e que o homem nunca teria conhecido só com a sua razão. Para os que ainda duvidassem disso, ouçamos novamente o grande Cardeal:
“A história é a tocha da filosofia. Com efeito, se a filosofia se separar dos fatos, se ela puser de lado a história real da humanidade, ela arrisca nada ter de positivo e estagnar eternamente na região nebulosa das hipóteses, muito próxima da das quimeras. Ora, assim sendo, como pode ser filosófico proibir a razão do filósofo de abordar aquelas grandes questões históricas referentes a todos os pontos culminantes dos negócios humanos: o homem porventura foi abandonado, foi sequer criado, em estado de natureza pura? Deus falou aos homens? Deus veio à terra?… Compreende-se a importância imensa dessas questões históricas para o filósofo.
“Ora, que há de mais íntimo e de mais pessoal, para a humanidade, que saber se o seu estado atual e real é ou não é o estado de pura razão e pura natureza?
“E essa mesma filosofia se refugiará, eternamente, naquilo que não é, naquilo que historicamente nunca foi um fato real, mas que é simplesmente uma hipótese e uma possibilidade, a saber: o estado de razão pura ou natureza pura. Em verdade, haverá como a filosofia se aniquilar e se exterminar a si própria de maneira mais radical, caso ela não pretenda que é de sua essência permanecer nas hipóteses e nada ter em comum com as coisas positivas?” [20. Ibid., p. 158.]
“Sem dúvida a filosofia e a teologia são ciências distintas; mas uma coisa é a distinção, outra coisa é separação [21], oposição, incompatibilidade. [21. Se bem que Maritain pretenda não separar a filosofia da teologia, na prática ele o faz, pois nega que a fé tenha influência positiva sobre a filosofia, e afirma que ela nada mais tem que um papel negativo de controle das conclusões.] A filosofia difere da teologia, como a razão difere da fé, como a natureza difere da graça. Assim como a fé não se impõe em todos os âmbitos à razão e há um certo exercício possível e real das faculdades naturais sem intervenção da graça, assim também há uma certa ordem de ciências humanas que podem existir e se desenvolver sem auxílio direto da doutrina revelada. Esse princípio nada tem de espantoso e deve ser aceito por todo mundo. Mas imaginar e construir um sistema geral, um curso completo de filosofia que se remate tão exclusivamente na esfera da natureza e tão rigorosamente fora de toda relação com a ordem sobrenatural…: esse proceder, independentemente de qual seja, e quaisquer outras qualificações que se lhe devam atribuir, não apenas não é cristão… mas nem sequer filosófico é, pois não é conforme à razão, mesmo natural, do homem. Santo Tomás de Aquino disse-o com maravilhosa pertinência: A fé, é verdade, não é apanágio da natureza humana; todavia, na natureza humana está que a alma do homem não repugne à ação interior da graça, nem à pregação exterior da verdade; por isso, sob esse aspecto, a infidelidade vai contra a natureza [22. Suma Teológica, II, IIae, q. 10, art. 1, ad 1.].
“Toda vez que vos apresentarem, Senhores, um livro qualquer de filosofia que se anuncie como um curso completo de filosofia somente segundo as luzes naturais, estai seguros de logo constatar duas coisas: primeiramente, imensas lacunas nesse curso completo, e em segundo lugar, vestígios manifestos de religião revelada nesse livro de pura razão.” [23. Ibid., pp. 162-163.]
Conclusão
“Uma multidão de objetos que a filosofia estuda: Deus, a alma e quase toda a metafísica, lhe são comuns com a teologia. Eu sei que elas tratam deles cada uma de seu ponto de vista, e com uma luz diversa. Mas podemos duvidar de que seja o método mais perfeito o de seccionar assim esses objetos em duas partes, em dois pontos de vista. Acaso o melhor não é reunir em um só estudo os dois pontos de vista, fazer dessas duas ciências uma só vasta ciência de princípios, tratando todos os objetos da filosofia e da teologia na sua ordem, ao mesmo tempo que cuidando de distinguir bem, em cada objeto, o que a razão diz e o que diz a fé?
“O método seguido hoje [24. Ora, é esse método que é utilizado hoje nos seminários da Tradição.] tem o inconveniente de dar azo ao racionalismo no ensino filosófico, de expor os teólogos a privar-se da filosofia, de separar duas ciências que Deus uniu e que devem unir-se em nosso espírito, de fazer perder tempo, repetindo em teologia muitas coisas que a filosofia já expôs.
“Fundi-las, dir-me-eis, tem um inconveniente, o de se expor a confundi-las. Separá-las tem um mais grave, o de fazer esquecer que a fé veio acrescentar-se à razão, fundir-se com ela, completá-la e formar com ela uma só filosofia cristã.
“Trata-se aqui apenas de conjectura. Mas porventura não encontra respaldo na experiência dos escolásticos? Eles distinguiram, mas não separaram, a filosofia e a teologia; fundiram-nas em uma única ciência. A Suma de Santo Tomás não é outra coisa. Dir-me-eis que sua Suma contra os Gentios é uma filosofia destacada da teologia. Sim; mas é feita contra os gentios; e, no tocante a um programa de estudos para a juventude cristã, Santo Tomás só fez uma Suma, a Suma Teológica.” [25. Pe. Aubry, op.cit., p. 140.]
Pasmamos, pois, vivamente com o fato de essa obra de Maritain ser utilizada como livro de base para todos os estudos de filosofia nos seminários da Tradição, e nas escolas. Toda a elite intelectual é como que passada pelo molde da concepção de Maritain [26]. Que pena que não se dê prioridade aos Cardeal Pie, Mons. Gaume e Abbé Aubry, que são mestres de longe mais ortodoxos!
[26. Assim, ouvimos como resposta de um professor de seminário da Fraternidade São Pio X, à questão seguinte: “Um arqueólogo tem o direito de utilizar a revelação do Dilúvio para orientar suas investigações?”, a resposta: “Não, pois cada qual deve permanecerem sua esfera, cada qual deve utilizar as luzes próprias de sua ciência: a razão, no caso, para a arqueologia, e não a revelação”.]
São numerosos os que afirmam que há um bom Maritain (no início da vida dele) e um mau Maritain (fim da vida), já que morto como herege. Nós pensamos, como demonstramos por meio da obra dele Introdução à Filosofia, que Maritain é mau desde o início, que o pensamento dele está impregnado de um racionalismo disfarçado. E, se Maritain acabou tão mal, de um jeito que para muitos não tem explicação, isso acaso não se deve a ter havido no pensamento dele esse pequeno erro quanto aos princípios das relações entre a filosofia e a fé? Pois efetivamente, para retomar a palavra de Santo Tomás, um pequeno erro nos princípios conduza catástrofes nas conclusões.
Trad. de Felipe Coelho de: “Maritain et la philosophie”; apresentação e ligação em: “À propos de la philosophie chrétienne”.
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