UM VELHO ERRO TORNADO “VERDADE”, OU: CHAPEUZINHO (VERMELHO) VIOLETA

Pe. Hervé Belmont | 2011

Há um certo tempo, não mais se ouvia falar dos encontros teológicos entre o estado-maior de Bento XVI e a fraternidade São Pio X. O silêncio foi rompido ultimamente, segundo um comunicado do Vaticano:

“A Congregação para a Doutrina da Fé toma como base fundamental da plena reconciliação com a Sé Apostólica a aceitação do Preâmbulo doutrinal que foi entregue durante o encontro de 14 de setembro de 2011. Esse preâmbulo enuncia alguns dos princípios doutrinários e dos critérios de interpretação da doutrina católica necessários para garantir a fidelidade ao Magistério da Igreja e ao sentire cum Ecclesia, deixando abertos a uma legítima discussão o estudo e a explicação teológica de expressões ou de formulações particulares presentes nos textos do Concílio Vaticano II e do Magistério subsequente.”

Assim, então, a fraternidade é intimada, se ela quer entrar no seio da Santa Sé, a aceitar um documento cujo teor não foi tornado público. Isso parece lógico… e infinitamente perigoso.

A fraternidade, com o seu superior geral na cabeça, me fazem pensar irresistivelmente no conto da Chapeuzinho Vermelho, no fim do qual a inocente criança faz-se devorar pelo lobo que se substituiu à Vovó, da qual ele grosseiramente tomou o lugar e as aparências. Com efeito, encontramos os quatro mesmos ingredientes que conduziram ao fim trágico.

Primeira etapa: o lobo dita a regra do jogo. 

“Pois bem”, disse o Lobo, “eu também quero ir visitar a Vovó; eu vou por este caminho aqui, e tu vais por aquele caminho ali, e veremos quem chega primeiro”. O lobo pôs-se a correr com toda a força pelo caminho que era o mais curto, e a menininha foi pelo caminho mais comprido…

Quando a heresia aparece, se dissemina, triunfa e ameaça absorver o mundo inteiro, a verdadeira regra do jogo, quero dizer o serviço de Deus, não é entrar em negociações, em palavras que só fazem abalar a fidelidade e desencorajar a resistência. Cumpre testemunhar a fé, denunciar o erro e seus fautores, restabelecer a doutrina em sua integridade.

Segunda etapa: Chapeuzinho Vermelho confunde o lobo com a Vovó. 

Chapeuzinho Vermelho puxou o barbante, e a porta se abriu. O Lobo, vendo-a entrar, lhe disse, escondendo-se na cama debaixo das cobertas: “Põe a broa e o potinho de manteiga em cima da arca e vem deitar-te comigo”. Foi o que a criança fez.

Bento XVI não é a autoridade legítima da Santa Igreja Católica; ele não tem dela mais que o lugar e as aparências: é a fé que nos impõe pensá-lo, dizê-lo e agir em consequência. Se fosse de outro modo, aliás, seria impossível “negociar”, pôr condições, agir como “poder concorrente”. É uma questão de pertença à Igreja e de salvação eterna: “Nós declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que a submissão ao Romano Pontífice é, para toda criatura humana, absolutamente necessária à salvação.” (Unam Sanctam, 18 de novembro de 1302, Denz. 469).

Terceira etapa: entra-se em “diálogo aproximado”, que, sob aparência de “boas razões”, no fundo não é mais que uma mentira causada pela cegueira que o preside.

— Vem deitar-te comigo.
Foi o que a criança fez.
— Vovozinha, como a senhora tem braços grandes!
— É p’ra te abraçar melhor, minha criança.
— Vovozinha, como a senhora tem orelhas grandes!
— É p’ra te escutar melhor, minha criança.
— Vovozinha, como a senhora tem olhos grandes!
— É p’ra te ver melhor, minha criança.
— Vovozinha, como a senhora tem dentes grandes!
— É p’ra te devorar melhor, minha criança.

Não se deve imaginar que, apresentando-se no Vaticano, se vai confrontar-se com criancinhas. Há ali homens de ciência “com dentes afiados” que conhecem bem a doutrina católica, que não se deixam envolver… e que, sobretudo, sabem os pontos fracos da fraternidade. Esses pontos são aqueles em que a fraternidade se afasta de maneira impressionante, tanto no conjunto quanto nos detalhes, da teologia católica, tanto acerca do Magistério e de sua infalibilidade, quanto acerca da jurisdição universal e imediata do Soberano Pontífice.

Quarta etapa

E, dizendo isso, o Lobo mau se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a devorou.

Mas, ai! Quem não sabe que os Lobos melosos
De todos os Lobos, são os mais perigosos?

Chapeuzinho Vermelho, recheada de boas intenções, temperada de caridade sincera, vem desarmada lançar-se na goela do lobo. E é aí que a minha fabulazinha queria chegar.

A fraternidade, para afrontar os teólogos do Vaticano, no intento de desmascarar os erros do Vaticano II (o que, em si, é muito louvável), não vem armada da verdade. Ela arrasta consigo todo o tipo de erros que a tornam vulnerável; pior, que fazem com que o lobo não tenha necessidade de devorá-la, pois, de certa maneira (por causa dos erros dela), ela já se encontra reduzida ao mesmo nível dele.

Tomo como prova o fato seguinte.

No dia mesmo do encontro mencionado no início deste texto, Dici (que é, de certo modo, a agência de imprensa da fraternidade) publica uma “Entrevista com Mons. Bernard Fellay após seu encontro com o cardeal William Levada” na qual se salienta esta afirmação de pasmar:

“Hoje eu devo reconhecer objetivamente que não encontramos, neste preâmbulo doutrinal, uma distinção clara entre o domínio dogmático intocável e o domínio pastoral sujeito à discussão.”

Isso é afirmado como se se tratasse de uma espécie de escândalo, como se, por causa dessa ausência, esse preâmbulo doutrinal fosse duvidoso, insidioso, gravemente insuficiente.

Antes de investigar a compatibilidade dessa distinção, que é também uma afirmação, “Domínio dogmático intocável – domínio pastoral sujeito à discussão” com a fé católica, cumpre notar duas coisas:

— a distinção é falsa e inadequada. O “pastoral” é aquilo pelo qual a Igreja apascenta o rebanho de Jesus Cristo, aquilo pelo qual ela alimenta-o e condu-lo a bom porto. Ora, a missão de apascentar começa pela transmissão do dogma, da verdade revelada, que é o fundamento de tudo o mais. O “dogmático” faz parte do “pastoral”.

Assim ensina o Catecismo de São Pio X (q. 119): “os meios de santidade e de salvação eterna que se encontram na Igreja são a verdadeira fé, o sacrifício, os sacramentos e os auxílios espirituais recíprocos, tais como a oração, o conselho, o exemplo”.

No primeiro escalão do pastoral: a verdadeira fé. Sujeito à discussão?

— Dado que é falsa e inadequada, essa distinção é necessariamente vaporosa: cada qual porá o cursor onde bem entender. Alicerçar uma confrontação doutrinal sobre a areia é dirigir-se para um conto-do-vigário. Um pouco como quando da famosa declaração conjunta do Vaticano e da Federação Luterana Mundial sobre a justificação (junho de 1998).

O oitavo teólogo?

Mas, sobretudo, afirmar que o “pastoral” (o não-dogmático) está sujeito a discussão, é um velho erro que nos apresentam hoje como uma espécie de critério da verdade católica. Dos conciliabulistas de Pistoia aos modernistas sob Pio XII, todos aqueles que quiseram se opor à Igreja sem abandoná-la abertamente, todos aqueles que quiseram corrompê-la in sinu gremioque [= desde o interior; expressão utilizada na Pascendi (N. do T.)] proclamaram essa distinção (ou dela se serviram) para subtrair-se à influência da autoridade legítima.

Quem combateu esse velho erro com mais brilho foi São Roberto Bellarmino, Doutor da Igreja, o qual proclama-o verdadeiramente herético. Sim, herético!

Em 1606, sete teólogos de Veneza, para justificar a recusa de submeter-se a uma censura de interdito pronunciada pelo Papa Paulo V (o que depende, sem dúvida alguma, do “âmbito pastoral”), haviam afirmado que antes de obedecer a toda ordem recebida, mesmo vinda do Soberano Pontífice, o cristão deve examinar primeiro se o mandamento é conveniente, legítimo e obrigatório. Numa palavra, ele deve considerá-lo como sujeito à discussão.

É a duodécima proposição examinada por São Roberto na sua Responsio illustrissimi Cardinalis Bellarmini ad tractatum septem theologorum ubrbis Venetæ super interdicto sanctissimi Domini nostri Papæ Pauli V [Resposta do Ilmo. Cardeal Bellarmino ao tratado dos sete teólogos da cidade de Veneza sobre o interdito de nosso SSmo. Senhor o Papa Paulo V (N. do T.)] (Colônia, 1607, pp. 45-66).

Propositio duodecima : Christianus non debet obedire præcepto quocumque sibi imperato (quamvis fuerit Summi Pontificis) nisi prius illud quatenus materia postulat, examinaverit, num fit conveniens, legitimum et obligatorium. Qui vero sine prævio præcepti examine, cæca quadam obedentia præcepto morem gereret, peccati reus efficeretur.
[Proposição XII. O cristão não deve obedecer a preceito algum que lhe for dado (ainda que pelo Sumo Pontífice) sem antes examinar, até onde a matéria exige, se o preceito é conveniente, legítimo e obrigatório. Quem, sem prévio exame do preceito, presta obediência cega realizando o preceito, torna-se réu de pecado. (N. do T.)]

Esses singulares teólogos chegavam, pois, ao ponto de afirmar que quem não se entrega a um exame prévio torna-se culpado de pecado: do pecado de obediência cega.

A qualificação que São Roberto atribui a essa proposição ímpia é mordaz: 

“Seria de esperar encontrar uma tal afirmação na boca de homens irreligiosos. (…) Essa proposição é diretamente contrária aos Santos Padres; ela é incapaz de se apoiar na autoridade de qualquer bom autor; ela é propícia à subversão de toda disciplina bem estabelecida; ela é conforme à doutrina dos luteranos e dos outros hereges do nosso tempo”.

E São Roberto chama à barra São Basílio, São João Crisóstomo, São Jerônimo, São Gregório Magno, Santo Antão e São Macário do Egito, São Bento, São João Clímaco, São Cesário de Arles, São Bernardo, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Agostinho, os eremitas do Oriente; em seguida vêm os Papas e os Doutores; por fim ele examina nove argumentos aduzidos por esses teólogos.

A resposta de São Roberto é assim referida na edição Le Bachelet: “Essa proposição é herética (…) A discussão do preceito, quando ele não contém manifestamente um pecado, é reprovada pelos Padres, pois aquele que discute o preceito se faz juiz de seu superior” (Auctarium Bellarminum, ed. Le Bachelet, n. 872).

Esses teólogos rebeldes servem agora de exemplo àqueles que – com uma sinceridade que não dá margem a dúvida – fazem profissão de defender a fé católica. O modernismo marcou profundamente as inteligências e os corações, para que se tenha chegado a este ponto.

É urgente abandonar esses erros que estragam e esterilizam, há quarenta ou cinquenta anos, a reação contra as doutrinas heterodoxas e deletérias do Vaticano II. Pois há aí um escândalo (no sentido próprio do termo) que corrompe a fé, que a solapa e corrói com tanto mais profundidade quanto é mascarado por um verdadeiro zelo.

Nunca se é ouvido quando se recorda esse triste aspecto das coisas, essa horrenda deformação do ensinamento da Igreja. É que se está lidando, o mais das vezes, com tradicionalistas de segunda ou de terceira geração.

A geração dos que começaram a recusar as reformas conciliares e a organizar a resistência aos erros modernistas apressadamente erigiu diques para opor-se ao rebentamento de novidades que ameaçavam a fé e a vida cristã, e ela teve muito mérito de o fazer.

Como era praticamente inevitável, dentre os materiais de que foram compostos esses diques, encontravam-se certos argumentos imprecisos, parciais, mal construídos, incorretos. Não se tinha essa cautela: o importante era a eficácia imediata; cumpria não se deixar submergir nem arrastar.

Onde as coisas começaram a se deteriorar foi quando, depois da primeira linha de defesa, não se teve um pouco de recuo nem se examinou ditos argumentos, para escorá-los, para retificá-los, para retirá-los se necessário; em todo o caso, para julgá-los à luz da doutrina perene da Igreja – pois só podemos defender a Igreja por meio da doutrina dela, não podemos combater o erro por meio de outros erros.

Foi o contrário o que aconteceu; argumentos ad hominem, por vezes emprestados do inimigo e erigidos em verdades permanentes, em doutrinas obrigatórias. Uma ou duas gerações depois, nem se faz mais ideia de que possa haver, em meio a esse corpo doutrinário que foi herdado, erros graves que põem a fé em causa.

Antes de ir ao Vaticano, é preciso começar fazendo a limpeza na própria casa.

Senão, o lobo será terrível.

Trad. por Felipe Coelho.

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