ATOS, GESTOS, ATITUDES E OMISSÕES PODEM CARACTERIZAR O HEREGE

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira | 1967

in: Catolicismo, n.º 204,
de dezembro de 1967.

Em sua Encíclica “Pascendi Dominici Gregis”, São Pio X dizia que os modernistas eram os mais perigosos inimigos da Igreja, porque se ocultavam no próprio seio dEla, nunca confessando claramente sua heresia (cf. p. 4).

Seria pois sumamente censurável o fiel que julgasse que só devem ser combatidos os inimigos declarados da Esposa de Cristo. Admitir que basta alguém se dizer católico para se tornar inatacável, por maiores absurdos que diga ou faça, é estabelecer a impunidade absoluta para os lobos vestidos de pele de ovelha que se introduzam no redil. E, em relação às pessoas de boa fé, é privá-las das advertências e dos esclarecimentos que as poderiam premunir contra o erro, ou mesmo afastá-las dele, se já tiverem sido iludidas por seus ardis.

O aliado que ele [o demônio] consegue implantar dentro das hostes fiéis – ensina-nos D. Antônio de Castro MAYER – é seu mais precioso instrumento de combate” (“Carta Pastoral…”, p. 17). É por isso que “Catolicismo”, desde a sua fundação, há dezessete anos, tem tido a preocupação constante de alertar os seus leitores não apenas contra os inimigos declarados da Igreja – comunistas, socialistas, divorcistas, etc. – mas também contra os seus inimigos disfarçados.

Lobos dentro do redil

É penosa a posição daqueles que se preocupam ao ver que lobos vestidos de ovelha andam à solta no rebanho. São objeto de incompreensões, passam por maníacos de perseguições policialescas, parecem espíritos mesquinhos dados a descobrir heresias em tudo.

Por isso, esta folha não tem apenas combatido os adversários internos, mas tem sempre procurado mostrar que esse combate é legítimo, conveniente e até mesmo necessário. Movê-lo é agir segundo as melhores tradições da Igreja, é obedecer às recomendações dos Sumos Pontífices, é imitar os Santos e atender à advertência de Nosso Senhor: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelhas, e por dentro são lobos rapaces” (Mat. 7, 15).

No presente artigo, não desejamos repetir tantos argumentos que, ao longo desses dezessete anos, “Catolicismo” tem dado em favor da tese de que é lícito e mesmo necessário alertar os espíritos contra os inimigos de dentro da casa. Não vamos demonstrar novamente que tal ação é recomendada pelos Papas, não é contrária à caridade, não tem cunho morbidamente negativista, etc.

Queremos apenas tratar de um ponto muito particular, mas de suma importância para a exata caracterização do inimigo doméstico na Igreja. A pergunta que nos fazemos é a seguinte: é necessário que um católico defenda por palavras, faladas ou escritas, proposições opostas à fé, para que se torne herege ou suspeito de heresia? O conjunto das atitudes de uma pessoa, o seu modo de ser, de agir e de portar-se, pode caracterizar o herege, ainda que ela nada diga ou escreva de formalmente contrário à fé? Em suma: alguém pode cair em heresia por atos que pratique?

A importância especulativa e prática dessa questão é evidente.

No terreno teórico, deve-se considerar que, pelo Direito Canônico, o herege que manifesta externamente a sua heresia está ipso facto excomungado e excluído da Igreja. Logo, a possibilidade de alguém cair em heresia apenas por praticar certos atos tem profundas repercussões no estudo do Corpo Místico de Cristo, bem como em diversas outras partes da Sagrada Teologia.

Observemos entretanto desde já que nem todo ato inconciliável com um dogma deve ser interpretado como revelador de um espírito herético. Com efeito, um pecador, embora creia no inferno, por fraqueza ou por malícia pode portar-se como se nele não cresse. Quer gozar a vida, espera converter-se antes de morrer, ou simplesmente não se esforça para vencer os seus maus hábitos. Tal procedimento o torna herege? De modo algum. Um ato ou um conjunto de atos só são reveladores de um animus herético se, considerados com todas as suas circunstâncias, indicarem inequivocamente que a pessoa, além de agir em desacordo com algum dogma, com pertinácia o nega ou põe em dúvida. (Sobre o conceito de heresia, ver o segundo artigo desta série).

No terreno prático, é patente que, se simples atos são capazes de caracterizar o herege, o número de excomungados é maior do que à primeira vista pode parecer.

Além disso, o combate aos lobos disfarçados ganha nova amplitude e nova desenvoltura uma vez provado que é possível cair em heresia pela prática de certos atos.

É corrente em meios católicos a idéia de que é só por palavras que se pode negar um princípio de fé. Levados por essa idéia errônea, muitos espíritos timoratos se sentem inseguros ao combater este ou aquele inimigo interno da Igreja. Julgam que estão atacando um irmão na fé, um membro do Corpo Místico de Cristo. Ainda que admitam que determinada atitude é taticamente errônea, ou prejudicial aos interesses da Religião, tais pessoas hesitam em denunciar um católico. Se se lhes fizer ver que em tal ou tal caso estão diante de um herege, mil relutâncias interiores e injustificadas terão caído.

O problema se torna ainda mais grave porque “os fautores de tais erros são muito freqüentemente pessoas de um procedimento pessoal […] modelar, com o que, longe de servirem à causa dos bons princípios, pelo contrário, ainda facilitam a propagação do mal, dando a tais doutrinas um caráter desinteressado e puramente especulativo” (Plinio CORRÊA DE OLIVEIRA, “Em Defesa…”, p. 100).

Devastações enormes que se têm produzido no rebanho de Cristo teriam sido evitadas se os lobos desde o início tivessem sido chamados de lobos, isto é, se se lhes arrancasse bem cedo o disfarce de ovelha, revelando assim a pele áspera, rude e repelente do herege.

Um jovem universitário, por exemplo, se professa católico. Trabalha ativamente em movimentos ditos de reivindicações camponesas, operárias e estudantis. De há muito aliado aos comunistas em tais movimentos, já se habituou a tê-los sempre a seu lado. Não se diz marxista, e proclama-se até adversário convicto de toda forma de ateísmo, mas vê com simpatia o socialismo. Mesmo o socialismo extremado. Por lutar pelas reformas de base “avançadas”, já andou tendo complicações com a polícia – com essa polícia que ele tacha de reacionária, de vendida aos capitalistas, de instrumento do colonialismo norte-americano. Comunga todos os dias, mas julga que as práticas pueris da “Igreja constantiniana” devem desaparecer da vida de piedade adulta do católico esclarecido da “Igreja do Vaticano II”; por isso sorri com desdém quando ouve falar do Coração de Jesus, da Virgindade de Maria Santíssima, da devoção aos Santos, da Transubstanciação, do inferno, etc. Nunca ataca diretamente nenhum dogma, porque compreende que se o fizesse, desserviria à própria causa; mas não fala deles, e não gosta de ouvir falar.

Perguntamo-nos, pois: pode-se afirmar que esse jovem é um herege?

Heresia interna e externa

Para responder a essa pergunta, devemos inicialmente observar que, para efeitos jurídicos, há enorme diferença entre a heresia interna e a externa, isto é, entre o pecado de heresia cometido no segredo da consciência e o que se revela externamente, constituindo a heresia no sentido canônico.

Com efeito, como a Igreja é uma sociedade visível, só pode punir juridicamente os pecados que se manifestam visivelmente. Um pecado que não sai do íntimo da consciência é verdadeiro pecado, e será punido por Deus. A Igreja o pode perdoar no tribunal da confissão. Mas, se o pecado não teve manifestação no terreno visível, não pode ser punido no terreno visível, isto é, não pode ser objeto de penas ou censuras eclesiásticas.

Um homem sucumbe a uma tentação contra a fé, e, no seu íntimo, nega por exemplo o dogma da eternidade do inferno. Não diz isso a ninguém. Sem dúvida cometeu um pecado mortal de heresia. Mas não está excomungado nem excluído da Igreja. Só o estará no momento em que exteriorizar essa heresia.

Ora, é uma tese pacífica entre os teólogos que não apenas por palavras, mas também por gestos, atitudes, sinais, omissões, é possível exteriorizar uma heresia, incorrendo assim nas penas canônicas.

Tal afirmação dos teólogos se baseia num argumento evidente e muito simples: torna-se herege, para efeitos canônicos, aquele que manifesta exteriormente a sua heresia interna; ora, não apenas por palavras se podem manifestar pensamentos, mas também por gestos, atitudes, sinais.

Com efeito, um simples sinal de cabeça, um gesto de mão ou uma expressão de fisionomia podem indicar, de maneira inequívoca, um pensamento. Num terreno mais vasto, uma tomada de posição política, o silêncio de uma autoridade, ou uma atitude pública podem expressar, conforme as circunstâncias, que quem assim procede tem tais ou tais idéias.

É pacífico que pode haver
heresia por atos

Antes de examinarmos alguns problemas colaterais – embora de importância fundamental – que essa tese levanta, desejamos mostrar que nada há de novo ou de original no que acabamos de afirmar. Pelo contrário, como já dissemos, isso é pacífico entre os teólogos. Como, entretanto, está muito alastrado o preconceito de que só é herege quem enuncia uma heresia com palavras escritas ou faladas, desejamos estender-nos um pouco nas referências de teólogos conceituados:

■ “Segundo a regra geral, é necessário e suficiente, para constituir heresia externa e para incorrer na censura, que a heresia interna se manifeste através de algum sinal externo. Esses sinais costumam ser classificados em dois gêneros: palavras e atos. Entre as palavras se incluem os sinais de cabeça, de mãos ou quaisquer outros, e por isso basta o modo de falar pelo qual alguns se entendem entre si formando alguns sinais por movimentos dos dedos. Entre os atos devem ser também incluídas as omissões de alguma ação externa, pois a omissão de um ato às vezes não manifesta menos a heresia interna do que um ato positivo, razão pela qual freqüentemente os hereges são descobertos pelo próprio fato de não praticarem as ações dos católicos” (DE LUGO, disp. XXIII, sect. II, n. 11).

■ “Externa é a heresia que se manifesta por sinais externos (por palavras, por sinais, por atos, pela omissão de atos)” (MERKELBACH, p. 570).

■ “A heresia externa é um erro contra a fé manifestado por uma palavra ou por outro sinal externo” (PRÜMMER, p. 365).

■ “Para incorrer em tal excomunhão [latae sententiae, especialmente reservada ao Sumo Pontífice], é necessário que a heresia, depois de concebida internamente, se manifeste externamente por uma palavra, um escrito ou um ato” (TANQUEREY, “Syn. Theol. Mor. et Past.”, p. 475).

■ A heresia externa “acrescenta à heresia interna uma manifestação externa suficiente, expressa por palavras, sinais ou ações que sejam concludentes” (WERNZ-VIDAL, p. 444).

■ “A manifestação externa da heresia pode-se dar de qualquer maneira, através de sinais, escritos, palavras e ações, desde que se torne suficientemente claro que se trata de uma adesão verdadeira e própria, e além disso plenamente deliberada, isto é, formal” (DE BRUYNE, col. 490).

■ “Para incorrer na excomunhão, é necessário que a heresia concebida interiormente se manifeste exteriormente por algum sinal – palavra, ato ou escrito – ainda que ninguém esteja presente ou ouça” (NOLDIN, vol. I, “Compl. de Poenis Eccl.”, p. 48).

■ “Pouco importa [para que alguém incorra na excomunhão] que manifeste a heresia sozinho ou diante de outros; que o faça por uma palavra, por um escrito ou por um ato, desde que tenha advertido na heresia implícita no ato” (GENICOT, p. 647).

■ “A heresia interna é aquela que só é concebida mentalmente, não se manifestando por nenhum sinal externo. A externa é aquela que é declarada por sinais externos: por palavras, escritos, atos, negações, etc.” (PEINADOR, p. 103).

■ “A heresia externa se manifesta por omissões, palavras ou outros sinais perceptíveis” (ZALBA, p. 28).

■ Incorrem em excomunhão “os hereges, isto é, os cristãos que com pertinácia negam ou põem em dúvida, não só internamente, nem só externamente, mas ao mesmo tempo interna e externamente, através de algum sinal – palavras, atos ou escritos – verdades de fé propostas pela Igreja […]” (IORIO, p. 258).

■ “Para que haja delito é preciso que a apostasia, a heresia ou o cisma se manifestem exteriormente por meio de atos ou de palavras” (MIGUÉLEZ-ALONSO-CABREROS, p. 845).

A mesma tese se encontra também nos seguintes autores: SUAREZ, disp. XIX, sect. IV, n. 4-5; disp. XXI, sect. II, n. 8; REIFFENSTUEL, n. 26; SCHMALZGRUEBER, n. 98; D’ANNIBALE, “In Constitutionem…”, n. 31; LEHMKUHL, p. 656; CORONATA, p. 280; CAPPELLO, p. 551; FERRERES, p. 743; WERNZ-VIDAL, pp. 445, 449, 450; MICHEL, cols. 2242-2243; NOLDIN, vol. II, p. 26; BRYS, p. 502; ARREGUI, p. 78; PEINADOR, p. 74; SIPOS, p. 608; ZALBA, p. 973.

Dificuldades que não são pequenas

Não são pequenas – como já dissemos de passagem – as dificuldades que levanta a tese de que alguém se pode tornar herege por praticar certos atos.

Examinemos algumas delas.

■ PODE UM ATO TER
SENTIDO INEQUÍVOCO?

1 – Um ato, uma atitude, um gesto ou uma omissão podem ter sempre mais de um significado. Além disso, podem resultar de coação, de abalo das faculdades mentais, etc. Não se assume o risco de cometer graves injustiças admitindo que alguém incorra no delito de heresia, e portanto seja excomungado e excluído da Igreja, pelo fato de agir de determinado modo?

A resposta salta aos olhos. É evidente que há atos ambíguos, susceptíveis de mais de uma interpretação. Quem praticar tais atos não se tornará herege; conforme as circunstâncias, poderá se tornar suspeito de heresia. Mas é igualmente evidente que há atos ou conjuntos de atos que são inequívocos, isto é, insusceptíveis de mais de uma interpretação.

Quanto à possibilidade de coação, é claro que ela existe. Mas tanto existe na prática de atos, quanto no pronunciar ou escrever palavras.

Para evitar julgamentos inexatos a respeito de ações motivadas pela coação, pelo medo, pela ignorância, pelo erro, etc., o Direito elaborou ao longo dos séculos regras de procedimento minuciosas e sábias. Tais cautelas são de rigor também no Direito Canônico. No caso que examinamos, da heresia por atos, só se caracterizará o delito canônico quando se tornar certo que há pleno conhecimento de causa por parte de quem o comete, pertinácia na atitude condenável, animus herético etc.

Não devemos, pois, fazer juízos precipitados a respeito de ações que por sua natureza indicam um espírito herético; mas não se pode negar que em muitos casos as idéias se manifestam de modo inequívoco através de atos.

Uma observação importante aqui se impõe: pelo fato de dizermos que não devemos fazer juízos precipitados sobre atos ambíguos de outrem, estamos afirmando que um católico nunca deve suspeitar do próximo? Que toda suspeita é um juízo temerário?

Absolutamente não. A teoria do juízo temerário foi amplamente analisada pelo Prof. Plinio CORRÊA DE OLIVEIRA em artigos de grande repercussão, publicados no “Legionário” em 1941. Esses artigos, depois de provarem que a perspicácia é uma virtude indispensável para os homens de todas as condições, mostram que Nosso Senhor a praticou e recomendou com insistência. Indícios que sejam insuficientes para se fazer um juízo desfavorável sobre alguém podem entretanto bastar para que se levante uma suspeita. E levantá-la é freqüentemente um dever. O diretor de uma firma tem verdadeira obrigação moral, para com os sócios, de suspeitar do funcionário em quem notou um procedimento estranho. O pai tem obrigação de desconfiar do filho que apresenta sinais de uma crise espiritual grave, pois só assim poderá cumprir os seus deveres de pai.

Mais ainda: um juízo favorável pode ser infundado, e portanto temerário. Pode mesmo acarretar lesões graves de interesses de terceiros. O diretor de empresa que infundadamente confiou no funcionário, ou o pai que por exagerada complacência formou de seu filho uma idéia melhor do que este merecia, fizeram juízos temerariamente bons, e por isso não puderam cumprir os seus deveres.

Aplicando essas considerações ao nosso tema, devemos afirmar que nada há de temerário em considerar suspeito de heresia quem deu fundamento para isso. Pelo contrário, haveria temeridade em não o considerar tal. E, sobretudo, seria temerário sustentar que, por princípio, nunca se deve levantar uma suspeição de heresia: assim se estaria favorecendo a invasão do redil pelos lobos vestidos com pele de ovelha.

■ PODE A PERTINÁCIA
MANIFESTAR-SE POR ATOS?

2 – Como provar a pertinácia em quem nada diz de oposto à fé? A pertinácia não exige uma obstinação que só se pode manifestar por palavras?

Também a esta objeção devemos responder que tanto palavras como atos são aptos a caracterizar inequivocamente um espírito pertinaz. Assim como a benevolência, a cordura, o entusiasmo, o ódio, o orgulho podem se estampar numa fisionomia e podem se exprimir num gesto ou numa sucessão de gestos, assim também o pode a pertinácia.

Ademais, é preciso notar que a palavra “pertinácia” tem, na definição de heresia, um sentido diverso do corrente. No uso comum, abonado por qualquer dicionário, “pertinaz” significa muito tenaz, obstinado, teimoso, persistente, que dura muito tempo, perseverante. Também em latim é esse o sentido da palavra.

Se a pertinácia assim entendida fosse essencial ao pecado de heresia, este só existiria em casos de malícia requintada, quiçá freqüente, mas difícil de ser comprovada; ele só poderia ser determinado depois de longo tempo de observação; e nunca seria cometido num movimento de fraqueza, por exemplo de cólera.

Ora, os moralistas e canonistas são unânimes em afirmar que o Código de Direito Canônico (cân. 1325, § 2) não emprega a palavra nesse sentido. Como ensina TANQUEREY, pertinaz é aquele que nega ou põe em dúvida uma verdade de fé “scienter et volenter”, isto é, com plena ciência de que aquela verdade é um dogma, e com plena adesão da vontade. “Para que haja pertinácia – acrescenta – não é necessário que a pessoa seja admoestada várias vezes e persevere por muito tempo na sua obstinação, mas basta que ciente e voluntariamente [sciens et volens] negue o assentimento a uma verdade proposta de modo suficiente, quer o faça por soberba, quer pelo gosto de contradizer, quer por outra causa” (TANQUEREY, “Syn. Th. Mor. et Past.”, p. 473). Basta que o negue “brevi mora”, isto é, num instante, num tempo muito breve (TANQUEREY, “Brevior Syn. Th. Mor.”, p. 95), pois a pertinácia, no caso, “não significa duração no tempo, mas perversidade da razão” (ZALBA, p. 28). E pode haver pertinácia num pecado de heresia cometido por simples fraqueza (cf. CAIETANO, in II II, 11, 2).

Sobre o sentido canônico de “pertinácia”, na definição de heresia, ver também: SÃO TOMÁS, “Summa Theol.”, II II, 11, 2, 3; “Super Ep. ad Titum Lect.”, n. 102; WERNZ-VIDAL, pp. 449-450; MERKELBACH, p. 569; PRÜMMER, p. 364; NOLDIN, vol. II, p. 25; DAVIS, p. 292; PEINADOR, p. 99; REGATILLO, p. 142; JOURNET, p. 709.

■ A ADMOESTAÇÃO É NECESSÁRIA
NA HERESIA POR ATOS?

3 – São Paulo manda que o herege seja advertido uma ou duas vezes, antes de ser evitado (cf. Tit. 3, 10). Como se ousa pretender, então, que alguém se torne herege pelo simples fato de praticar certas ações?

Quando os canonistas afirmam que se pode incorrer no pecado de heresia pela prática de atos, eles com isso não estão dizendo ou insinuando que na heresia por atos deixam de valer as demais condições que se exigem no caso de heresia por palavras. Portanto, a advertência é necessária, em princípio, tanto numa hipótese como na outra.

Dizemos “em princípio” porque a regra enunciada por São Paulo admite uma exceção importante. Os tratadistas ensinam que a advertência exigida pelo Apóstolo das Gentes visa tornar patente ao pecador que ele está negando uma verdade de fé, isto é, uma verdade que não pode ser negada sob pretexto algum. É sempre a preocupação extrema da Igreja em evitar o engano em caracterizar o animus herético.

Ora, há casos em que tal engano não se pode dar. Há casos em que o herege, com toda a evidência, sabe que a verdade que está negando, ou de que está duvidando, é de fé. Não se pode admitir, por exemplo, que um doutor em Teologia ignore que a Virgindade de Nossa Senhora é dogma.

Por outro lado, numa conversa ou numa conferência, até mesmo um doutor em Teologia pode deixar escapar inadvertidamente uma expressão imprópria, que de si constituiria uma heresia. Mesmo num livro que escreva, e sobre o qual tenha refletido demoradamente, a rigor pode-se admitir que um erro se tenha insinuado sem que ele percebesse. Mas se a tese central do livro é manifestamente herética, já não é possível admitir engano, inadvertência ou descuido. A admoestação seria supérflua.

DE LUGO, citando grandes autores de seu tempo, assim expõe essa importante questão: “[…] também no foro externo nem sempre se exige a advertência e a repreensão prévia para que alguém seja punido como herege e pertinaz, nem tal exigência é sempre admitida na praxe do Santo Ofício. Pois se de outro modo puder constar, dada a própria notoriedade da doutrina, a qualidade da pessoa e outras circunstâncias, que o réu não poderia ignorar a oposição daquela doutrina à Igreja, por esse próprio fato será considerado herege […]. A razão disso é clara, pois a admoestação externa só pode servir para que quem errou advirta na oposição existente entre o seu erro e a doutrina da Igreja. Se ele conhece todo o assunto muito melhor pelos livros e pelas definições conciliares, do que poderia conhecer pelas palavras de quem o advertisse, não há razão para que se exija uma outra advertência a fim de que ele se torne pertinaz contra a Igreja” (DE LUGO, disp. XX, sect. IV, n. 157-158). Ver também DIANA, resol. 36; VERMEERSCH, p. 245; NOLDIN, vol. I, “Compl. de Poenis Eccl.”, p. 21; REGATILLO, p. 508.

Tal doutrina – poderia alguém objetar – é encontradiça nos tratados, mas não foi aceita pelo Código de Direito Canônico, que no cânon 2233, § 2, estabelece taxativamente que o réu deve ser repreendido e advertido antes da imposição da censura.

A objeção não procede, pois esse cânon só se aplica às censuras ferendae sententiae, isto é, àquelas que são infligidas pelo Superior ou pelo juiz eclesiástico. Quando a censura é latae sententiae, ou seja, quando o réu nela incorre automaticamente, pelo próprio fato de ter praticado certo delito, a advertência não é necessária. Nesses casos, como diz uma bela fórmula jurídica, “lex interpellat pro homine” – a lei interpela em lugar do homem (cf. PALAZZINI col. 1298).

Ora, a excomunhão que pesa sobre o herege é latae sententiae (cân. 2314, § 1). Torna-se claro, portanto, que também o atual Código aceitou o princípio de que a advertência nem sempre é necessária para que se caracterize a pertinácia.

Atos que, canonicamente,
envolvem suspeição de heresia

O estudo da heresia por atos exige uma análise da figura jurídica da suspeição de heresia.

Com efeito, o Código de Direito Canônico enumera vários atos que por sua natureza fazem suspeitar que quem os praticou seja herege. Não são, portanto, atos inequívocos. Normalmente, só o herege os pratica, mas a rigor podem explicar-se por outras causas que não a heresia.

Antes de vermos como a Igreja procede em tais casos a fim de esclarecer se se trata de um herege ou não, analisemos os delitos que, segundo o Direito Canônico, criam suspeição de heresia:

■ 1 – Casar-se com pacto explícito ou implícito de que todos os filhos, ou alguns deles, sejam educados fora da Igreja Católica (cân. 2319, n. 2). – A razão é evidente. Se, num casamento misto, o cônjuge católico concorda em que os filhos sejam educados, por exemplo, na religião protestante, é porque provavelmente julga que o protestantismo é uma forma válida de louvar a Deus. E é heresia crer que a Religião Católica não seja a única verdadeira.

■ 2 – Entregar os filhos, cientemente, a ministros acatólicos, para que estes os batizem (cân. 2319, n.º 3).

■ 3 – Entregar, cientemente, os filhos ou crianças sob sua custódia para serem educados ou instruídos numa religião acatólica (cân. 2319, n.º 4).

■ 4 – Jogar fora as espécies consagradas, bem como levá-las ou conservá-las consigo para um mau fim (cân. 2320). – Pois é muito de suspeitar que quem comete tais crimes não creia na presença real ou que, pelo ódio que vota às sagradas espécies, negue outros dogmas.

■ 5 – Permanecer obstinadamente com a mancha da excomunhão durante um ano (cân. 2340, § 1). – Pois quem assim age não crê no poder jurisdicional das autoridades eclesiásticas, ou nega outros dogmas.

■ 6 – Por simonia, e cientemente, conferir ou receber ordens sagradas, ou ainda administrar ou receber outros Sacramentos. O Código frisa que a suspeição de heresia, nessa hipótese, pode recair também sobre uma pessoa elevada à condição episcopal (cân. 2371). – A comercialização dos Sacramentos revela um tal desprezo por tudo que há de mais sagrado na Santa Igreja, que faz recear que quem a pratica não creia em algum dogma.

■ 7 – Espontânea e cientemente ajudar, de qualquer modo, a propagação da heresia (cân. 2316).

■ 8 – Assistir ativamente a funções sagradas de acatólicos, ou nelas tomar parte, a não ser pela mera presença passiva em razão de cargo civil ou de necessidade social, por motivo grave e desde que não haja perigo de escândalo (cân. 2316). – O Diretório Ecumênico “Ad totam Ecclesiam”, publicado em 14 de maio de 1967 pelo Secretariado para a União dos Cristãos, veio alargar enormemente os casos de “communicatio in sacris” autorizados pela Santa Sé. Assim, muitos atos, que até recentemente criavam suspeição canônica de heresia, já não mais a criam. Continua entretanto verdadeiro que, por força do cânon 2316, tornam-se canonicamente suspeitos de heresia aqueles que participam de funções sagradas de acatólicos em circunstâncias tais que haja desrespeito às leis em vigor. A razão de ser desse cânon é clara: participar indevidamente de cerimônias religiosas acatólicas é dar a entender que elas são agradáveis a Deus.

■ 9 – Apelar a um Concílio universal das leis, decretos ou ordens do Sumo Pontífice, qualquer que seja o estado do apelante, seu grau ou condição, ainda que esta seja real, episcopal ou cardinalícia (cân. 2332). – Quem apelasse a um Concílio de uma decisão papal estaria implicitamente admitindo a superioridade do Concílio sobre o Romano Pontífice, o que é tese herética.

Sobre os casos canônicos de suspeição de heresia, pode-se ver: WERNZ-VIDAL, pp. 451-452; TANQUEREY, “Brevior Syn. Th. Mor.”, p. 386; VERMEERSCH, p. 316; CAPPELLO, pp. 552 ss.; FERRERES, p. 743; SIPOS, p. 609; REGATILLO, p. 573; IORIO, pp. 253 ss., 260 ss.

Medidas canônicas
contra o suspeito de heresia

Como procede a Igreja para verificar se o suspeito de heresia é realmente um herege?

O cânon 2315 dispõe que “o suspeito de heresia que, admoestado, não faz desaparecer a causa da suspeição, seja afastado dos atos legítimos[denominação dada pelo cân. 2256, 2.º, a certos atos jurídicos: ser padrinho de batismo e crisma, votar em eleições eclesiásticas, administrar bens eclesiásticos, etc.] e, se for clérigo, uma vez repetida inutilmente a admoestação, seja também suspenso a divinis [isto é, proibido de celebrar a Santa Missa e de exercer os demais atos de culto próprios aos clérigos]; e se o suspeito de heresia não se emendar no prazo de seis meses completos, a contar do momento em que incorreu na pena, seja considerado como herege, sujeito às penas dos hereges”.

Note-se, portanto, como a Igreja é prudente e paciente em relação a tais pessoas. Além da advertência, que deve ser reiterada caso se trate de um clérigo, dá Ela prazo de seis meses para a retratação ou para eventuais esclarecimentos, antes de aplicar as penas próprias aos hereges. Mesmo essas penas não recaem automaticamente, mas devem ser aplicadas pelo Bispo, que eventualmente pode ter razões para não as efetivar.

Todavia, além de prudente e paciente, a Igreja é justa. E a justiça exige energia. Ultrapassados certos limites, cumpre cortar do organismo o membro gangrenado, que de si já se excomungou e excluiu da Igreja, e que além disso constitui uma ameaça à fé dos demais.

Segundo o espírito da Igreja, as censuras devem ser impostas com sobriedade e muita circunspecção, mas deve haver também severidade e rigor, se necessários: ver câns. 2214, § 2, 2241, § 2; WERNZ-VIDAL, pp. 180 ss.; VERMEERSCH, pp. 236-237, 259; REGATILLO, pp. 500-501, 523.

Os casos de suspeição de heresia acima enumerados são os que o Código de Direito Canônico prevê. No entanto, como observam os teólogos, há também casos não canônicos de suspeição de heresia.

Cria-se suspeição de heresia – diz WERNZ-VIDAL (pp. 451-452) – no exercício da magia, de sortilégios, de adivinhações; nos abusos muito graves dos Sacramentos, como por exemplo no delito de solicitação na Confissão, na violação do sigilo sacramental, na realização fraudulenta dos Sacramentos por pessoa que não tenha recebido a ordenação sacerdotal; nos delitos contra a autoridade eclesiástica que fazem suspeitar fundadamente que o réu tenha idéias errôneas não sobre a pessoa que a exerce, mas sobre a própria autoridade enquanto tal, como acontece com os que dão o nome a seitas que, às claras ou às ocultas, urdem maquinações contra a Igreja ou a sociedade civil […]. Estes casos, que no antigo Direito [isto é, no Direito Canônico anterior ao atual Código, que foi promulgado em 1917] eram aduzidos pelos Doutores, continuam por sua própria natureza [ex natura rei] a dar fundamento à suspeição de heresia; mas a suspeição jurídica não existe senão nos casos expressos no Direito” (são os nove casos que enumeramos acima). No mesmo sentido, ver D’ANNIBALE, “In Constitutionem…”, n.º 31.

Chamamos a atenção do leitor, de modo especial, para essa distinção entre os casos canônicos e os não canônicos de suspeição de heresia. Quanto aos primeiros, o próprio Código prevê a hipótese, a define e a pune. Quanto aos outros, não há referência direta nas leis eclesiásticas, mas a natureza mesma do ato faz recear que quem o praticou seja, no íntimo da alma, um herege. Quem exerce a magia, por exemplo, provavelmente nega algum dogma, embora o Código silencie a respeito.

Perguntamo-nos, pois: os numerosos atos que por sua própria natureza criam suspeição de heresia, mas que não estão previstos no Direito Canônico atual, permanecem por isso impunes? A importância dessa pergunta é capital. E é tanto maior, quanto muitos autores, ao tratar do delito canônico de suspeição de heresia, frisam que essa figura jurídica só inclui os casos expressamente previstos em lei (CAPPELLO, p. 553; VERMEERSCH, p. 316; BRYS, p. 504; ZALBA, p. 30; IORIO, p. 260).

Dever-se-á sustentar, talvez, que a Igreja, como Mãe bondosa e benigna, só pune os nove casos indicados, deixando no resto campo aberto para os seus maus filhos?

Outros atos conexos com a heresia,
não previstos no CIC

Antes de respondermos a essa pergunta, completemos o panorama dentro do qual ela deve ser analisada. Pois há diversas outras categorias de atos conexos com a heresia que eram punidos pelo antigo Direito, e que não figuram no Código, pelo menos explicitamente. Esses atos são: crer no herege, favorecê-lo, recebê-lo e defendê-lo.

Sobre essas figuras delituosas, ver: SUAREZ, disp. XXIV, sect. I; DE LUGO, disp. XXV, sect. I; SCHMALZGRUEBER, n.os 91 ss.; D’ANNIBALE, “Summula…”, p. 8; WERNZ-VIDAL, pp. 450 ss.; MICHEL, col. 2244.

■ “CREDENTES”: OS QUE CRÊEM NO
HEREGE OU SE DISPÕEM A CRER

Os “credentes”, isto é, os que crêem no herege, os que lhe dão crédito, “são aqueles que de má fé aceitam, por um juízo da inteligência, pelo menos uma doutrina herética proposta pelo herege, embora não tenham aderido a nenhuma seita determinada” (WERNZ-VIDAL, p. 450). Esse delito tem pequeno interesse para o nosso estudo, pois “os credentes não diferem essencialmente dos hereges, e portanto estão compreendidos sob o delito de heresia, se não faltarem as demais circunstâncias” (WERNZ-VIDAL, p. 450). Com efeito, aquele que aceita uma doutrina herética é herege. Essa distinção entre os “credentes” e os hereges filiados a alguma seita deve servir-nos apenas para tornar bem claro que tanto uns quanto outros estão excomungados, embora os segundos incorram em penas especiais, previstas pelo cânon 2314, § 1, 3.º.

Entretanto, como observa SUAREZ, o conceito de “credentes” deve também ser estendido “àqueles que, embora ainda não dêem assentimento aos erros, vão entretanto ouvir os hereges com um ânimo tal, que estejam prontos a lhes dar crédito, se as razões ou argumentos alegados lhes agradarem” (SUAREZ, disp. XXIV, sect. I, n. 3). A mesma doutrina ensinam, entre outros, DE LUGO (disp. XXV, sect. I, n. 3) e SCHMALZGRUEBER (n.º 92).

Logo adiante, SUAREZ acrescenta que as pessoas que assistirem diversas vezes, com regularidade, a reuniões de seitas heréticas deverão ser tidas por “credentes”. Aqui estamos, pois, diante de mais um caso claro de delito conexo com a heresia que é cometido, não por palavras, mas por atos.

■ OS FAUTORES DE HERESIA

Os fautores de heresia “são aqueles que, pela prática de algum ato ou por omissão, concedem aos hereges algum favor que redunde na promoção da doutrina herética” (WERNZ-VIDAL, p. 450). Note-se que, para haver o delito de favorecimento da heresia, é necessário que seja prestado um favor ao herege enquanto herege. É evidente que se um médico, por exemplo, atende a um protestante indigente, não se torna por isso fautor de heresia. A mesma observação vale, mutatis mutandis, para os defensores e os receptores de hereges, de que logo trataremos.

Sobre o favorecimento da heresia por omissão, DE LUGO escreve: “Por omissão, favorecem ao herege aqueles que em razão de seu cargo são obrigados a prendê-lo, puni-lo, expulsá-lo, e no entanto negligenciam esses deveres. Por exemplo: os Magistrados a quem o Bispo ou os Inquisidores recorrem, ou a quem entregam o herege para ser punido; e também os próprios Inquisidores e Prelados eclesiásticos, se negligenciam aquilo a que em razão de seu cargo estão obrigados, favorecendo assim à heresia. O mesmo deve ser dito dos demais ministros e oficiais do Santo Ofício, e mesmo das pessoas privadas a quem esse encargo é imposto por quem tem o poder de o impor; e também das testemunhas que, obrigadas a dizer a verdade quando legitimamente interrogadas, ocultam-na para favorecer ao herege” (DE LUGO, disp. XXV, sect. I, n. 6). No mesmo sentido pode-se ler SUAREZ, “De Fide”, disp. XXIV, sect. I, n. 6; SCHMALZGRUEBER, n.º 94.

■ RECEPTORES: OS QUE ACOLHEM HEREGES

Os receptores “são aqueles que escondem ou acolhem hereges em local próprio ou alheio, a fim de que estes se livrem de uma perquirição judicial e das penas que mereceriam” (WERNZ-VIDAL, pp. 450-451). DE LUGO nota que, para caracterizar o delito, “basta receber o herege uma única vez, como afirmam todos os autores, e à semelhança do que se dá com o defensor e o fautor do herege […]. Sob esta censura [de receptor] estão compreendidos não só aqueles que recebem e ocultam o herege na própria casa a fim de que não seja apanhado, mas também os magistrados e os príncipes que os recebem nas próprias cidades ou províncias a fim de que, sob sua tutela, estejam livres e possam permanecer na seita a que pertencem” (DE LUGO, disp. XXV, sect. I, n. 4).

■ OS DEFENSORES DE HEREGES

Os defensores “são aqueles que não aderem internamente à doutrina herética, mas apesar disso a defendem, com palavras ou escritos, contra os que a impugnam. São também aqueles que protegem, à viva força ou por outros meios injustos, as pessoas dos hereges contra uma perseguição legítima movida em razão da heresia” (WERNZ-VIDAL, p. 451).
[Em sua tradução deste estudo para o inglês, o Sr. John S. Daly observa que a palavra “perseguição”, na citação acima, “é empregada em seu sentido etimológico de prossecução jurídica”.]

■ TEXTOS ANACRÔNICOS?

Alguns dos textos que acabamos de citar, relativos aos “credentes”, fautores, receptores e defensores de hereges, podem parecer inteiramente anacrônicos e superados pela prática hodierna da Igreja. Aduzimo-los, entretanto, por duas razões.

Em primeiro lugar, eles tornam claro que, também em nossos dias, numerosos são os católicos que incidem em tais pecados conexos com a heresia. Pois hoje, como outrora, há os que ouvem os hereges com o ânimo disposto a lhes dar crédito; os que lhes concedem favores que redundam na promoção da heresia; os que, desempenhando funções que obrigam a punir o herege, omitem-se; etc.

Em segundo lugar, um estudo teórico sobre a heresia não se pode cingir à análise da situação hodierna. A malícia de nossos tempos levou a Igreja a tolerar em sua legislação procedimentos que não correspondem à ordem ideal por que Ela e seus filhos aspiram e lutam. Os textos acima citados indicam quão longe vai, pela própria natureza das coisas, a obrigação de perseguir os hereges numa sociedade inteiramente católica. Eram esses os princípios que vigoravam na Idade Média, da qual disse LEÃO XIII, na Encíclica “Immortale Dei”: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer” (p. 15).

Impunidade canônica para
tantos pecados conexos com a heresia?

A esta altura, podemos repetir a pergunta que nos propusemos: os numerosos pecados conexos com a heresia, mas não previstos no Código, permanecem impunes no Direito Canônico atual?

A resposta deve ser: absolutamente não.

Já a-priori, com efeito, poderíamos afirmar que práticas tão danosas à fé não poderiam ficar impunes. Deixar a autoridade eclesiástica desarmada diante delas seria instalar o lobo dentro do redil de Cristo.

É bem sabido que, tanto na ordem civil quanto na ordem eclesiástica, o Direito positivo não deve, nem pode, punir todos os atos condenáveis. Querendo reprimir por lei tudo que julgam mau, os socialistas, por exemplo, acabam por instaurar um regime jurídico de todo antinatural, e sobretudo incomparavelmente mais injusto do que as injustiças que eles pretendiam – ou diziam pretender – eliminar.

Há certos crimes, entretanto, que o Direito não pode deixar de punir, por serem fundamentalmente contrários à ordem social. Impunes, tais crimes de tal modo se alastrariam, que a própria existência da sociedade estaria posta em causa. Assim, no terreno civil as leis não podem deixar de punir o homicídio, as ofensas à integridade corporal de outrem, etc.

Da mesma maneira, os delitos conexos com a heresia que acima analisamos são tais, que o Direito Canônico não poderia deixar de os punir, de uma forma ou de outra.

Como imaginar que os suspeitos de heresia envenenassem o espírito do povo fiel com atos escandalosos, sem que a autoridade eclesiástica dispusesse de um meio de os atingir? Como imaginar que os fautores de heresia tivessem pleno direito de cidadania na Santa Igreja? No Corpo Místico de Cristo eles inoculariam o vírus mortífero, sem que medida alguma coubesse contra eles?

A-priori – repetimos – poder-se-ia já asseverar que o Direito Canônico reprime os atos delituosos conexos com a heresia. E, realmente, no Código encontram-se diversos meios legais para a punição de tais atos. Sem pretender esgotar a questão, indicaremos alguns desses meios.

Muitos dos atos acima referidos caem sem dúvida sob o cânon 2316, segundo o qual “é suspeito de heresia aquele que espontânea e cientemente ajuda de qualquer modo a propagação da heresia”. Assim sendo, a pessoa que cometeu o ato delituoso será tratada como todo suspeito de heresia, conforme o cânon 2315, que já analisamos.

Há autores que julgam ser essa a situação de todos os receptores, defensores e fautores de hereges, no atual Código (cf. MICHEL, col. 2244). Quanto aos “credentes”, ou se encaixam nessa mesma categoria, ou são diretamente hereges, como vimos.

Poder-se-ia dar a questão por resolvida, não fossem dois fatos: alguns canonistas excluem do cânon 2316 os delitos por omissão (VERMEERSCH, p. 317); e outros afirmam que os receptores, defensores e fautores de hereges não caem, como regra geral, sob esse dispositivo, mas sob outros cânones.

Assim, SIPOS (p. 608) os considera incursos no cânon 2209, § 7, que pune o louvor do delito cometido, a participação em seus frutos, a ocultação do delinqüente, etc.; e reserva para o cânon 2316 apenas as hipóteses específicas de ajuda na propagação da heresia.

WERNZ-VIDAL (p. 451) coloca-os sob os diversos parágrafos do cânon 2209, e não apenas sob o sétimo. Os outros parágrafos consideram as noções de cumplicidade, de indução ao delito, de cooperação para a sua consumação, de concurso por negligência no desempenho do próprio cargo, etc.

Por outro lado, diversos autores deixam aberta a possibilidade de se incluírem todos os delitos conexos com a heresia no próprio cânon 2315, o qual pune a suspeição de heresia. Com efeito, tais canonistas julgam que é cometido o delito específico de suspeição não apenas nos nove casos previstos em lei, que enumeramos acima, mas também em outros casos quaisquer que pela sua própria natureza façam recear que quem neles incide negue algum dogma (cf. SIPOS, p. 609; REGATILLO, p. 573). Não admitem essa possibilidade: VERMEERSCH, p. 316; CAPPELLO, p. 553; BRYS, p. 504; ZALBA, p. 30; IORIO, p. 260.

Finalmente, devemos observar que mesmo na hipótese absurda de nenhuma lei punir os delitos conexos com a heresia, continuaria aberta uma via canônica para a sua punição: a própria figura jurídica da heresia.

Com efeito, o cânon 2314, § 1, declara que os hereges incorrem ipso factoem excomunhão. Ora, como já vimos, é possível incorrer em heresia tanto por palavras orais ou escritas, quanto por ações. Pela própria natureza das coisas, portanto, e não apenas por uma disposição canônica, quem pratica um delito conexo com a heresia se torna suspeito de heresia. E, também pela própria natureza das coisas, um suspeito deve ser tratado como suspeito.

O que se daria, então, se nenhuma lei punisse os citados delitos? Surgindo um caso de suspeição de heresia, o Bispo, o Superior ou mesmo um amigo zeloso poderiam chamar o suspeito – e, conforme o caso, deveriam fazê-lo – pedindo que a causa da suspeição fosse removida. Se necessário, haveria uma segunda advertência, conforme o preceito de São Paulo. Poder-se-ia ainda dar um certo tempo para a retratação, se as circunstâncias o aconselhassem. Enfim, se tudo resultasse inútil, estaria caracterizado o herege, incurso no cânon 2314, § 1.

Repetimos, pois, que o absurdo seria imaginar um Direito Canônico no qual os pecados conexos com a heresia permanecessem de todo em todo impunes, abrindo assim as portas do redil para os lobos mais vorazes, desde que se apresentassem bem disfarçados em ovelhas. Quanto a saber se tais pecados devem ser enquadrados neste ou naquele cânon, a divergência existente entre os autores parece-nos mostrar, acima de tudo, que há mais de uma via jurídica para punir qualquer delito conexo com a heresia. As leis, pois, não faltam, mas, pelo contrário, de tal modo sobejam, que chegam a criar certa perplexidade entre os canonistas.

Heresia difusa

Em recente Carta Pastoral, D. Antônio de Castro MAYER preveniu os seus diocesanos contra a heresia difusa, “que, sem concretizar-se em proposições explícitas, está subjacente e operante na maneira de ser do comum dos homens de hoje, e, através da sociedade, infiltra-se nos meios católicos…” (“Considerações…”, p. 20).

Já anteriormente D. Geraldo de Proença SIGAUD alertara os seus fiéis contra o comunismo difuso, que “é de longe um perigo maior do que o comunismo direto” (p. 123).

Em nossa era de tantas heresias declaradas, são entretanto as disfarçadas e difusas que constituem ameaças mais graves à fé de cada católico e à civilização cristã. Julgamos contribuir para combatê-las, mostrando que não só por palavras, mas também por atos, gestos, sinais, atitudes, omissões, é possível cair em heresia externa.

AUTORES CITADOS

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CAPPELLO, S. J, Felix M. – “Summa Iuris Canonici” – Universitas Gregoriana, Romae, 1955, vol. III.

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■ Os artigos anteriores desta série, intitulados “Qual a autoridade doutrinária dos documentos pontifícios e conciliares?” e “Não só a heresia pode ser condenada pela autoridade eclesiástica”, foram publicados nos números 202 e 203, de outubro e novembro últimos, desta folha.

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