TEMPO DA QUARESMA

Dom Gaspar Lefebvre, O.S.B.
1950

Esposa de Cristo e Mãe dos fiéis, a Santa Igreja parece querer fazer da Quaresma um tempo de santidade, um período em que o ideal de vida cristã e esforço de santificação vão sempre cada ano um pouco mais além.

A Quaresma, a santa Quaresma, são dias de eleição, ditosos dias, em que a Igreja transbordante de vida se lança ao trabalho com toda a energia da sua impetuosa e inesgotável fecundidade. Ela exorciza, reconcilia, perdoa, prega, impõe as mãos, numa palavra, revivifica as almas, reconduzindo-as às fontes abundantes da vida. Renascimento espiritual, renovação de vida, heroica ascensão ao Calvário e ao sepulcro glorioso, a Quaresma, com as observâncias penosas que importa, é um manancial abundantíssimo de graças, que devemos amar com a doce espectativa duma reconstituição integral da nossa vida cristã.

1. Exposição dogmática

O Tempo da Septuagésima já nos demonstrou a necessidade que todos temos de nos unir pelo espírito de penitência à obra redentora de Cristo. A Quaresma vai-nos proporcionar o meio de satisfazermos esta necessidade.

A Igreja vai representar diante da nossa alma revoltada contra Deus e cativa das consequências do seu crime a vida do Salvador em luta com o mal c as potências dele, e vai-nos dizer como o Senhor, arrancando-nos do cativeiro com a sua doutrina e trabalhos, nos restitui à vida divina que perdemos. A liturgia desta quadra, repleta de ensinamentos e do espírito de penitência do Redentor, foi criada de molde a formar os catecúmenos e penetrar do espírito de compunção os penitentes que aspiravam a ressuscitar no Sábado Santo, com o Salvador, do túmulo dos passados erros. No Ofício divino continuam a ler-se as lições do Antigo Testamento. No primeiro Domingo lê-se a história de Isaac e na segunda semana a de Jacob, que foi figura de Cristo e da Igreja, herdeira das bênçãos de Deus concedidas ao Santo Patriarca. Na terceira, vem a de José, figura também do Salvador pela sua caridade e pureza. A quarta finalmente fala toda de Moisés, que salvou o povo do cativeiro e o introduziu na terra da promessa, figurando nisto o Senhor e a Igreja que nos abrem também a terra prometida da graça com a divina chave dos mistérios pascais. Foi com a luz do Novo Testamento que Deus nos descobriu o sentido dos milagres operados nos primeiros tempos, simbolizando no mar vermelho as águas do Baptismo e na libertação de Israel a família cristã. E se a Igreja nos quer iniciar na compreensão dos mistérios que celebramos pela leitura dos dois Testamentos, é para nos dar a inteligência plena do livro imenso de misericórdia que Jesus Cristo escreveu com o seu sangue. A Quaresma é uma espécie de retiro universal da família cristã, visando a preparação das festas que se aproximam. A Igreja, aproveitando-se do retiro que o Senhor fez no deserto e dos ensinamentos que nos deixou prègados com a palavra e com o exemplo, de que é necessário morrer para nós mesmos, prega-nos durante esta santa Quaresma a morte do homem ao pecado, que se ha-de verificar pelo combate decidido ao orgulho e pela assídua meditação da palavra de Deus; pela mortificação do corpo; por meio do jejum e pela renúncia mais completa dos bens falazes deste mundo. O jejum quaresmal deve ser a expressão dos sentimentos interiores que povoam a nossa alma, que tanto mais livremente os abraça quanto mais se desprende dos prazeres dos sentidos. Este é pois o tempo favorável para os corações generosos e manancial inexaurível de alegria. A Igreja, que bem conhece estas fontes, oferece todos os dias a Deus na Santa Missa o seu jejum. Ela sabe que a verdadeira purificação vem de Deus e que, se Ele exige esforço da nossa parte, devemos oferecer-lho para que o aceite e santifique. E certamente nenhum meio mais apto para o fazer que uni-lo ao sacrifício do Salvador. Por este modo a Igreja convida-nos a uma participação mais frequente e pessoal do Santo Sacrifício, orientando o nosso esforço de purificação e conferindo-lhe um valor que em si mesmo não possui. Assim já os fracos entram com coragem na liça, apoiados na graça do Senhor, e os fortes não se orgulham porque sabem que só a Paixão de Jesus salva e que é só mediante os sacramentos e o seu paciente esforço que lhe poderão recolher os frutos.

A observância da Quaresma, diz Bento XIV, é o vínculo da nossa milícia. É por ela que nos distinguimos dos inimigos da Cruz, que removemos o flagelo da cólera divina e que nos armamos contra o inimigo das trevas. Se vier, a cair em desleixo esta observância, será em detrimento da glória de Deus, em desprestígio da religião e em prejuízo das almas cristãs – e não duvidemos que esta negligência há de ser fonte ubérrima de desgraças e de infortúnios.

2. Exposição histórica

A liturgia da Quaresma faz-nos acompanhar os passos de Jesus durante a sua carreira apostólica.

Primeiro ano. — Retirou-se durante quarenta dias ao deserto. Depois do triunfo da tentação, que dizia já o que ia ser a sua vida futura, escolheu os primeiros discípulos e partiu para a Galileia. Passou de novo a caminho de Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa e foi desta vez que expulsou os vendilhões do Templo. Evangelizou a Judéia, veio a Siquém, onde encontrou a Samaritana, e regressou a Nazaré, em cuja Sinagoga prègou. Foi a Cafarnaum e percorreu toda a Galileia. o

Segundo ano. — Voltou a Jerusalém pela 2ª Páscoa e curou o paralítico de Betsaida. Regressou à Galileia, pregou o Sermão da Montanha (Monte Kouroun-Hattin), foi a Cafarnaum, curou o servo do Centurião, ressuscitou o filho da viúva de Naim. Voltou a evangelizar a Galileia e partiu para Betsaida Júlia, nas terras de Filipe. Foi nos arredores desta cidade que se deu o milagre da multiplicação dos pães e de caminhar sobre as águas.

Terceiro ano. — Percorreu as regiões de Tiro e Sidónia, seguido sempre dos seus inimigos, atendeu a súplica da Cananéia nas circunvizinhanças de Serepta e voltou por Cesareia de Filipe à Galiléia, onde teve lugar a transfiguração do Tabor. Passou depois por Cafarnaum, subiu ao Templo para a festa dos Tabernáculos, curou o cego de nascença, perdoou à mulher adúltera, pregou e confundiu os Judeus que O acusavam de violar o Sábado.

Tornou então à Galiléia, atravessou a Peréia onde deu a fala a um mudo e falou da sua ressurreição figurada em Jonas, partiu de novo para Jerusalém, para a festa da dedicação, e voltou a passar pela Peréia, onde pregou a parábola do filho pródigo e do mau rico. Foi chamado a Betânia, onde ressuscitou Lázaro, depois subiu a Efrém a caminho do Templo, donde expulsou mais uma vez os vendilhões, pregou a parábola dos vinhateiros rebeldes e desmascarou a hipocrisia dos fariseus. Subiu a colina das oliveiras, donde contemplou Jerusalém e onde três dias mais tarde havia de agonizar, e falou do juizo que há-de separar para sempre os bons dos maus.

3. Exposição litúrgica

O Tempo da Quaresma está dividido em duas partes. A primeira começa na Quarta-feira de Cinzas e acaba no Sábado antes do 1° Domingo da Paixão; e a segunda compreende pròpriamente o tempo da Paixão, que vai deste Domingo até o Sábado Santo: Se tirarmos os quatro Domingos da Quaresma e os dois da Paixão, ficam-nos 40 dias de jejum, número que a lei e os profetas estabeleceram e Jesus consagrou.

As Missas da Quaresma celebram-se nas estações. O Papa com efeito celebrava durante o ano sucessivamente nas grandes basílicas, nas 25 igrejas paroquiais e nos restantes santuários da cidade, reunindo à sua volta todo o clero e povo romano. Era a esta assembleia que se chamava estação. [*] Este nome que nos ficou no Missal, lembra-nos que é Roma o centro do culto cristão e abona a existência duma liturgia soleníssima e doze vezes secular.

[*. Este termo foi tirado da milícia romana; porque os cristãos, alistados na milícia de Cristo, se reuniam às horas em que os soldados se revezavam. Da os nomes de Tércia, Sexta e Noa dados aos ofícios que se diziam à 3ª, 6ª e 9ª hora. Era depois de Noa, recitada às 3 horas, que se dizia a Missa da Quaresma. Em seguida cantavam-se as Vésperas, depois do que se quebrava o jejum. Daí o uso actual, nas igrejas onde se canta o Ofício, de recitar Vésperas antes do jantar, na Quaresma.]

A Quaresma, que tem Missa própria para cada dia, é um dos tempos litúrgicos mais antigos e importantes do ano. O ciclo temporal, consagrado à meditação dos mistérios de Cristo, assume aqui nitidissimamente grandes vantagens sobre o santoral; oração, penitência, prègação, tudo gira à volta de Cristo, organizado de modo a conduzir-nos à Páscoa e fazer participar frutuosamente dos mistérios pascais. Foi unicamente por causa da sua grande importância, que a Igreja admitiu no ciclo quadragesimal as festas da Anunciação e de S. Matias. E se no decorrer dos tempos se lhe juntaram outras Missas de Santos, é sempre mais conforme com o espírito litúrgico desta época a preferência da Missa ferial, devendo a missa conventual das comunidades ser invariavelmente da féria «salvo nos duples de 1ª e 2ª classe, nos quais se não deve ainda relegar para segundo plano a Missa da féria nos Mosteiros, colegiadas e catedrais». Isto permite-nos avaliar com justeza a importância que a Igreja dá a maravilhosa preparação da Páscoa e a diligência com que procura evitar a sua interrupção. Para mostrar que o espírito de penitência iniciado na Septuagésima se acentua mais nestes dias, a igreja não somente suprime o canto do Glória e do Aleluia e reveste de paramentos roxos os ministros, mas faz calar os órgãos e despoja o Diácono e Subdiácono da Dalmática e da Tunicela, símbolos da alegria. Na idade média, numa época em que a classe dos penitentes públicos deixara de existir mas em que os fiéis conservavam ainda a consciência do valor e da necessidade da penitência quaresmal, estendia-se na quarta feira de Cinzas entre a nave e a capela-mór um grande véu roxo, a toda a largura do templo. O grande véu penitencial desapareceu das nossas igrejas, mas a disciplina quaresmal ainda se conserva, e todos compreendemos certamente a necessidade imperiosa que temos dela. Filhos de Adão, pecamos ainda, como pecavam os nossos progenitores da idade média, e devemos como eles compenetrarmo-nos generosamente dos sentimentos de penitência que toda a liturgia deste período nos procura inculcar. A sociedade cristã suspendia outrora durante estes dias o funcionamento dos tribunais e o curso das guerras, e a Igreja proibia a celebração das núpcias e exortava os esposos à observância da continência. Hoje suspende apenas a concessão da bênção nupcial. Eis pois o tempo favorável, eis que chegaram os dias da salvação. Trabalhemos como servos do Senhor, trabalhemos com paciência e caridade na obra da nossa santificação e procuremos com toda a nossa vontade e todo o nosso amor a estrada que nos há-de levar à terra prometida.

Excerto de: Dom Gaspar Lefebvre, O.S.B.; Missal Quotidiano e Vesperal, Les Press St-Augustin, 1956, Nihil Obstat, 28 de junho de 1950, Imprimatur, 29 de dezembro de 1955, pp. 220-223.

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