NEWTONISMO: A NOVA FACE DO MATERIALISMO EPICURISTA

Benjamin Wiker
2002

À medida que passamos da Renascença para o Ilu minismo, o atomismo de Epicuro e Lucrécio deixou de ser um estranho que entrou às escondidas na cultura cristianizada dos séculos XV e XVI para ser a única visão teórica convincente da filosofia natural durante os séculos XVII e XVIII. [1] O período de tempo pode ser convenientemente marcado pelas vidas contíguas de Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727).
[1. Naturalmente, o atomismo de Demócrito, pai intelectual de Epicuro, estava disponível também por intermédio de Diógenes Laércio, mas como foi o fundamento adotado por Epicuro (e, portanto, por Lucrécio), não há necessidade de trazer à baila a influência de Demócrito como força independente durante esse período. Basta dizer que o atomismo de Demócrito subentendia as reivindicações cosmológicas e morais maiores feitas por Epicuro e que Epicuro e Lucrécio apresentaram as descrições mais completas.]

Se eu estivesse escrevendo um livro duas vezes mais extenso, haveria espaço neste capítulo para incluir todas as diversas figuras que contribuíam para a vitória do atomismo materialista na ciência durante esse período, destacando-se entre eles Giordano Bruno (1548-1600), Pierre Gassendi (1592-1655) e Robert Boyle (1627-1691). Esses três são muito interessantes porque combinaram atomismo com cristianismo fervoroso. O elo que permitiu essa nova combinação foi o ódio comum do aristotelismo, de modo que eles sentiam que a utilização de Epicuro e Lucrécio era a cura para o que consideravam ser o escolasticismo atormentando o cristianismo. Bruno foi o mártir da causa morto na fogueira como herege em 17 de fevereiro de 1600. Abaixo voltaremos a tratar dele. Quanto a Gassendi, ninguém fez mais que esse sacerdote católico para reapresentar Epicuro ao mundo cristão nos termos mais amigáveis e completos. Seus De Vita et Moribus Epicuri (1647) e Animadversiones in Decimum Librum Diogenis Laertii (1649) eram apresentações muito detalhadas da doutrina epicurista, onde ele procurou remover as fontes de animosidade histórica para com o cristianismo, dando a Epicuro a interpretação mais compreensiva possível. Gassendi travou conversas constantes com os filósofos e cientistas mais famosos da época – Kepler, Galileu, Mersenne e Thomas Hobbes – e seus livros tinham um público leitor extenso e entusiasta. Por fim, Boyle foi o grande defensor de se levar o atomismo do domínio teórico dos físicos para o domínio muito prático dos químicos, de modo que o trabalho real fosse feito no campo mais próximo aos átomos, até então hipotéticos. Isso, infelizmente, é tudo o que podemos dizer a respeito deles, porque é preciso deixar espaço para os dois gigantes da revolução científica com base materialista, Galileu e Newton, pois há muito o que dizer a respeito desses dois. [2]
[2. 2 Os leitores interessados em uma análise mais detalhada que inclua não só Galileu e Newton, mas também as outras figuras que mencionei (e até outras que não mencionei), devem consultar as obras a seguir. Para começar, os leitores devem estudar as obras brilhantes de Koyré, Alexandre. Galileo Studies. Atlantic Highlands, N.J.: Humanities Press, 1978, e Newtonian Studies. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1965; veja também Van Melse, Andrew G. From Atomos to Atom. Nova York, Harper, 1960; Burtt, E. A. The Metaphysical Foundations of Modern Science. Nova York: Doubleday, 1932, e o mais recente Pullman, Bernard. The Atom in the History of Human Thought. Oxford: Oxford University Press, 1998.]

Para dar a declaração mais breve que caracteriza a revolução galileia-newtoniana, podemos chamá-la a justificação do atomismo pela vitória da matemática. Foi também uma rápida vitória, Com efeito, no início do século XVII, Galileu foi interrogado pela Inquisição e posto em prisão domiciliar, e no começo do século XVIII Newton foi considerado um semideus que desvendara todos os segredos da natureza, um mortal com pensamentos idênticos aos de Deus. Com a completa vitória teórica do materialismo epicurista, todos os elementos essenciais do sistema de Epicuro – os átomos eternos e indestrutíveis, o universo infinito com o número ilimitado de mundos, o banimento do Deus criador, a rejeição de milagres, o deslocamento do desígnio na natureza por acaso e pela necessidade material e a eliminação da alma imaterial – resolveram-se durante os séculos XVIII e XIX.

Ao catalogar a ascendência do atomismo durante esse período, precisamos evitar confusão a respeito do que realmente está em debate. Não está em jogo se existem ou não componentes materiais menores do que o olho nu pode ver. Todos, materialistas e não materialistas igualmente, sempre afirmaram que tais componentes subdivisíveis existem. A questão era e é: São esses elementos de natureza tal que formam um sistema material fechado da natureza que exclui a ação divina e a existência da alma imaterial? Em outras palavras, os componentes fundamentais do universo são realmente como Epicuro e Lucrécio os descreveram?

A esse respeito, precisamos perceber que, ironicamente, a completa vitória teórica do atomismo antigo no século XVII não foi o resultado de se ter visto um átomo, nem de proporcionar um experimento que provasse decisivamente que os átomos, conforme descritos por Demócrito, Epicuro e Lucrécio, existiam. Os campos de vitória estavam realmente nos céus visíveis (pela astronomia) e, em menor escala, nas ciências terrenas da mecânica e da balística, mas essas vitórias foram aplicadas ao domínio invisível, microscópico no sentido em que se aplica capital produzido em uma área a débitos contraídos em outra.

Para esclarecer, embora o mundo microscópico (onde podiam existir átomos como os que Epicuro descreveu) fosse invisível, havia analogias ao atomismo no céu e na terra visível. Podia-se acreditar que planetas, estrelas e cometas, de nossa perspectiva distante, agiam como pontos de matéria que se moviam pelo vazio do céu. Olhar para os céus, então, tinha o mesmo efeito que ser, de repente, recolhido ao mundo microscópico para testemunhar o rodopio dos átomos pelo vácuo. O mesmo pode ser dito do estudo terrestre de projéteis inertes em balística: uma bala de canhão podia ser tratada como um átomo muito aumentado. Se esses objetos podiam ser descritos com sucesso empregando-se os princípios de Epicuro, então parecia que se podia inferir que existiam átomos microscópicos reais.

Como veremos, parecia que, com esses empréstimos intelectuais, os sucessos de Galileu e Newton justificavam os princípios fundamentais de Epicuro. Além disso, era a vitória (aparentemente) completa do atomismo newtoniano que permitia – mais ainda, exigia – que o epicurismo como sistema perfeito, teórico e também moral fosse firmemente plantado no solo moderno. Para os que viveram nos dois séculos entre os Principia de Newton e o alvorecer do século XX, o mundo era como Newton o descrevera, e esse mundo era exatamente como Epicuro o planejara. Entender que o epicurismo moral seguiu-se necessariamente à adoção do epicurismo teórico e que o darwinismo moral é a culminância do epicurismo moral e entender o mundo moderno. Não obstante as intenções originais dos envolvidos na chamada revolução científica em nível teórico, o único universo moral possivel era o que convinha ao universo natural que fora aceito. Evocando metade de nossa lei mais fundamental: “Toda concepção distinta do universo, toda teoria a respeito da natureza, acarreta necessariamente uma concepção de moralidade”.

Enfatizo “não obstante as intenções originais” pois parece que tanto Galileu como Newton ou foram cegos para com a ligação entre seu atomismo teórico e as doutrinas completas de Epicuro (embora isso seja difícil de imaginar, devido à animosidade havia muito existente entre o cristianismo e todo o sistema de Epicuro e a disponibilidade muito difundida dos escritos de Epicuro e Lucrécio no século XVII), ou pensaram que, sem perigo, podiam extrair do epicurismo a doutrina materialista. Em qualquer caso, historicamente, a grande lei da uniformidade prevaleceu, porque o universo epicurista é um universo unificado. Se uma parte é aceita, as outras se seguem necessariamente. Essa necessidade explica precisamente por que uma revolução moral completa e a secularização da sociedade ocidental seguiram-se diretamente à revolução científica do século XVII. Epicuro vira claramente o tipo de universo necessário para alcançar seus objetivos morais – entendendo “morais” no sentido mais amplo – e planejou sua descrição da natureza em conformidade com ele. Apoderar-se primeiro da descrição da natureza, embora ela viesse ao epicurismo do outro lado, resultou na aceitação dos objetivos morais epicuristas que, em primeiro lugar, eram a fonte do desígnio teórico da descrição materialista. Aqui há uma lição histórica a ser aprendida pelos cientistas contemporâneos. Não se pode ter dois universos, um que a ciência descreve e um no qual está inerente uma moralidade totalmente estranha. Definir a realidade segundo os princípios do materialismo científico significa que a moralidade logo será impelida a seguir o exemplo.

Tendo dito tudo isso, voltamo-nos agora para a revolução nos céus no início desse período, pois aqui o desafio ao cristianismo e ao aristotelismo foi mais grave e mais prejudicial (embora, como se evidencia, era possível enfrentar o desafio). Quanto ao cristanismo, se lermos o Gênesis, encontraremos Deus colocando um firmamento, uma espécie de abóbada nos céus, acima da terra, para separar as águas acima das águas abaixo. Se lermos Aristóteles, encontraremos uma cronologia semelhante, na medida em que ele afirma que vivemos em um universo finito com um céu distinto, incorruptível, cercando a terra corruptível no centro. Esse universo geocêntrico, isto é um universo com a terra no centro e um céu finito formando sua fronteira, foi confirmado mais adiante, no século II d.C. pela engenhosidade e força descritiva do relato astronômico sistemático de Cláudio Ptolomeu. Assim, por uma combinação da autoridade da Escritura, Ptolomeu e Aristóteles, o universo geocêntrico foi profundamente delineado na mente científica ocidental antes de Copérnico. Aqui, uma imagem pode ajudar. Se vimos um dos muitos diagramas do universo pré-copérnico, vimos o sistema de esferas concêntricas, a terra bem no centro, então (movendo-se para fora), a lua, Mercúrio, Vênus, o sol, Marte, Júpiter, Saturno, o firmamento, a esfera cristalina, o primeiro móvel e, finalmente, cercando tudo, o Empireum Habitaculum Dei, a morada do próprio Deus.

Devemos mencionar (agora que temos essa imagem na mente) que, ao contrário da afirmação corriqueira de que os medievais punham a terra no centro do universo devido a algum tipo de arrogância antropocêntrica, a terra ficava no centro porque era considerada o lugar mais baixo, menos divino do cosmos. Com efeito, quando alguém se elevava da terra em direção aos céus, essa pessoa deixava o mundo vulgar de poeira e decadência e entrava no mundo de beleza eterna e bem-aventurança divina. Colocar a terra no centro do universo, então, era um ato de profunda humildade.

Quanto à renovação do materialismo epicurista, os argumentos de Nicolau Copérnico (1473-1543), em De Revolutionibus Orbium Coelestum (1543), que colocavam o sol, e não a terra, no centro do universo, foram bem menos importantes que a publicação de Siderius Nuncius (O mensageiro das estrelas) em 1610. Galileu foi explorador de lentes, matemático brilhante, retórico convincente, inimigo implacável do aristotelismo e defensor cauteloso do atomismo materialista. A mensagem das estrelas que ele transmitiu “composta com a ajuda de uma nova luneta (nome original do telescópio]”, [3] abalou a crença de que os céus eram mais perfeitos que a terra e também que os próprios céus eram finitos, abrindo, assim, o caminho para a aceitação das doutrinas epicuristas da homogeneidade dos componentes do universo e as afirmações epicuristas a respeito do universo infinito com mundos ilimitados.
[3. Galileu Galilei. The Starry Messenger. In: Discoveries and Opinions of Galileo. Trad. de Stillman Drake. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1957, p. 27 (O mensageiro das estrelas. Rio de Janeiro, Ediouro, 2009).]

Galileu dedicou a primeira parte de O mensageiro das estrelas a uma descrição detalhada das reais imperfeições da lua, imperfeições antes ocultas a olho nu. A lua, em vez de ser perfeitamente lisa e redonda como uma delicada joia nos céus, era “cheia de cavidades e proeminências”, “penhascos escarpados” e “picos pontudos”. Pelo extraordinário artifício da luneta, Galileu anunciou as quatro ventos: “pode-se aprender com toda a certeza da prova dos sentidos que a Lua não está paramentada com uma superfície lisa e polida, mas e, de fato, áspera e acidentada, coberta em toda parte, exatamente como a superfície da Terra, de enormes proeminências, vales profundos e abismos”. [4. ibidem] Descobrir que um dos corpos celestes era composto de poeira, exatamente como a terra, era uma grande preparação para a aceitação do epicurismo, pois signiticava a erradicação da idea de que os céus eram feitos de alguma substância sobrenatural e, consequentemente, abriu caminho para a aceitação da afirmação epicurista de que o universo era homogêneo, formado em toda parte por uma substância muito modesta – o átomo inerte, inglório.

Nós, que estamos tão acostumados ao conhecimento de que a lua é feita de elementos muito terrenos, não avaliamos plenamente o choque causado pela redução dos céus à humildade da terra – e fazendo isso não por argumento (a única arma de Epicuro), mas pelos sentidos, com a ajuda de um novo aparelho feito pelo homem. Se a lua era mera poeira, então parecia que também o eram os outros corpos celestes – até lá em cima na morada divina. Parecia que o próprio trono de Deus estava sendo sacudido. E desnecessário dizer, aos que já estavam enamorados dos argumentos de Epicuro, que a repentina humilhação dos céus era uma justificação magnífica e inesperada pelos sentidos das especulações meramente teóricas de Epicuro. Consequentemente, os já conquistados pelos argumentos de Epicuro foram conquistados muito mais ainda.

Mas Galileu transmitiu uma segunda mensagem das estrelas. A luneta revelou que, em contraste com o que o olho nu relatava, o número de estrelas era “tão numeroso a ponto de ser quase inacreditável”. [5. ibidem, p. 47] Quando se olhava para os céus, o cosmos parecia muito maior e muito mais povoado por corpos nunca vistos até então. Além disso, as estrelas eram realmente menores do que pareciam a olho nu. A luneta, tendo removido “seus raios casuais e acidentais”, revelou que as estrelas estavam muito mais distantes do que se pensava. [6. ibidem, p. 46] Parecia que a luneta abria um universo infinito, cheio de incontáveis estrelas a distâncias insondáveis, contudo um universo formado pelos mesmos componentes materiais humildes que a humilde terra.

Galileu era muito cuidadoso para afirmar diretamente a infinitude do universo – cautela compreensível de sua parte devido ao destino de Giordano Bruno, ao qual agora voltamos resumidamente. Bruno, que era abertamente grato a Lucrécio, pregava a infinitude do universo com zelo evangélico e escreveu o famoso diálogo italiano De l’infinito universo e mondi, que combinava a afirmação agostiniana radical da onipotência divina com os argumentos epicuristas sobre o universo infinito e a pluralidade de mundos. Subsequentemente, ele morreu na fogueira em 17 de fevereiro de 1600. Mas, deixando de lado o destino de Bruno e a cautela de Galileu, não havia dúvida de que a luneta revelou um universo muito mais imenso do que antes se suspeitava, e o passo para a infinitude era (paradoxalmente) pequeno. [7] Esse instrumento impressionante garantia resolver com “certeza ocular […] todas as disputas que exasperam os filósofos há tantos séculos” [8. Galileu, Starry Messenger, p. 49] e parecia estar decidindo as coisas do lado do materialismo epicurista.
[7. A respeito desses avanços, veja, principalmente, Koiré, Alexandre. From a Closed World to the Infinite Universe. Baltimore, Md.: Johns Hopkins Press, 1957, p. 28-57.]

Parecia também que as descobertas de Galileu apoiavam outras posições epicuristas. Se o universo era ilimitado e estava cheio de incontáveis estrelas, e em toda parte o universo era formado dos mesmos elementos básicos, não poderia também haver um número ilimitado de mundos, exatamente como Epicuro conjecturara? Como vimos, a ideia já estava bem-estabelecida (ironicamente) entre os cristãos que foram nominalistas por mais de três séculos antes da publicação de O mensageiro das estrelas de Galileu. Como o título do diálogo de Bruno deixa claro, ele certamente achava que um universo infinito acarretava um número infinito de mundos e entendeu que ambos eram motivo para celebrar o poder criativo de Deus. Nas palavras de Bruno: “Assim é a excelência de Deus louvada e a grandeza de seu Reino manifesta; ele é glorificado não em um, mas em inúmeros sóis; não em uma única terra, mas em mil, digo, em uma infinidade de mundos”. [9. Citado em Koiré, From a Closed World, p. 42]

Embora evitasse esses pronunciamentos diretos, Galileu transmitiu outra mensagem dos céus que parecia apoiar a infinitude de mundos. Para ele, “o assunto que, em minha opinião, merece ser considerado o mais importante de todos […] [é] o descobrimento de quatro PLANETAS nunca vistos desde a criação do mundo até o nosso tempo”. [10. Galileu, Starry Messenger, p. 50-51] Embora esses fossem na verdade luas de Júpiter, as implicações eram óbvias: se encontramos quatro planetas, não podemos encontrar uma multidão de outros com lunetas ainda mais potentes? E se o universo é sem limite, que limite pode ser imposto ao número de outros mundos?

Então, não nos surpreende que a crença na “infinitude de mundos” florescesse com a divulgação do atomismo materialista. Não só o nominalismo abrira caminho para a aceitação da infinitude de mundos, mas cada melhoria da luneta alimentava as tendências à aceitação da existência de vida extraterrestre. O astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) deu a entender que a existência de vida extraterrestre era inevitável. O filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) insinuou que o universo ilimitado estimulava a pessoa a entreter a possibilidade de vida inteligente alhures. À medida que o atomismo apoderava-se cada vez com mais firmeza da mente do século XVII, a possibilidade de outros mundos habitados logo tornou-se uma probabilidade e finalmente uma necessidade, culminando na publicação por Bernard le Bouier de Fontenelle, em 1686, de Entretiens sur la pluralité des mondes (Conversas sobre a pluralidade de mundos), forma popularizada (e por isso muito popular) do argumento da pluralidade de mundos baseado na nova cosmologia. Embora Fontenelle tomasse todo o cuidado para não pisar diretamente nos calos do cristianismo – ele afirmou que outras criaturas inteligentes não eram descendentes de Adão e por isso sua presença no universo não contradizia a importância da encarnação para a humanidade – o resultado da popularização do argumento era, em última análise, epicurista.

Lembramos que a razão original de Epicuro ter declarado um número ilimitado de mundos era que um número ilimitado de átomos girando no espaço infinito por mera probabilidade “criaria” puramente por acaso um número ilimitado de mundos, de modo que a presença de vida humana inteligente na terra não seria motivo de espanto. Quando os esboços básicos do argumento da pluralidade de mundos eram seguidos, mesmo quando partiam dos próprios cristãos, a credibilidade do cristianismo, no qual Deus sacrificara o próprio Filho em benefício de um único tipo de criatura em um único planeta, diminuiu na mesma proporção. O efeito foi epicurista, independente da intenção original dos que o reintroduziram.

Tudo o que está acima tendia a apoiar a reintrodução do atomismo epicurista como hipótese científica viável, mas – é impossível exagerar a importância dessa ironia –, nessa época, não havia nenhuma “luneta” que pudesse realizar a mesma mágica de observar o mundo microscópico, o próprio mundo que continha os princípios fundamentais do materialismo epicurista. Portanto, embora Galileu achasse que podia resolver com “certeza ocular” disputas filosóficas que tinham exasperado os filósofos desde que eles perscrutaram os céus, ele não podia fazer isso em relação ao mundo subvisível bem debaixo de seus pés. O mais próximo desse mundo que ele conseguiu chegar (como ele comprovou em Discorsi e dimostrazioni mathematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla mecanica [Duas ciências]) foi nas ciências de balística e mecânica. Mas embora balas de canhão arremessadas pelo ar possam parecer átomos ampliados, essa era apenas uma prova indireta da existência de partículas atômicas.

Como a prova empírica direta não podia confirmar a descrição epicurista da natureza no século XVII, [11] o que firmou esse atomismo como a concepção predominante da ciência durante essa revolução científica? Ironicamente, foi a analogia baseada na eficiência da geometria aplicada a objetos celestes entendidos como pontos na astronomia e objetos terrestres brutos (projéteis) tratados como pontos na balística. Veja esta famosa declaração de Galileu:

[11. Ao contrário da crença popular, popular pelo menos entre os historiadores das ciências, a famosa lei de Robert Boyle que o volume de gás é inversamente proporcional à pressão não confirmou o caso para o atomismo, já que Edme Mariotte (1620-1684) alcançou de modo independente os mesmos resultados por meio do método dedutivo de Descartes. A respeito desse ponto importante, veja Toulmin, Stephen & Goodfield, June. The Architecture of Matter. Nova York: Harper & Row, 1962, p. 178. Ainda mais importante e mais óbvio, a prova de Boyle era apenas prova indireta e com certeza não definiu que os átomos eram eternos, nem que “a lei de Boyle” era o resultado de átomos indestrutíveis e sólidos divergindo apenas em tamanho, forma e posição.]

A filosofia natural foi escrita em um grande livro que se mantém sempre aberto diante de nossos olhos – quero dizer, o próprio universo. Mas ninguém o entende, a menos que, para começar, se disponha a dominar a linguagem e reconheça os caracteres nos quais ela está escrita. Está escrita em linguagem matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas. [12. Citado em ibidem, p. 174.]

Como historiador das ciências, Stephen Toulmin observa corretamente, em contraste com a forma original do atomismo em Demócrito, Epicuro e Lucrécio, que Galileu “tratava os átomos como equivalentes físicos das unidades infinitesimais de geometria”. [13. Ibidem, p. 175.] Esse avanço no atomismo antigo por meio da identificação de pontos atômicos com pontos geométricos de fato fez o epicurismo teoricamente mais forte na modernidade do que fora na antiguidade, porque o atomismo agora podia tomar emprestado da matemática legitimidade, rigor e eternidade, com o resultado que a bem-sucedida aplicação da matemática à natureza no nível macroscópico parecia “provar” a existência de átomos no nível microscópico, embora Galileu não tivesse uma luneta mágica que proporcionasse “certeza ocular”.

Lembramo-nos novamente do que está em jogo. Assim como a questão não é se havia componentes materiais menores do que o olho nu consegue ver (já que, como dissemos, materialistas e não materialistas concordam que esses componentes subvisíveis existem), também a questão a respeito do uso da matemática na física não é se a matemática pode ser aplicada à natureza, pois materialistas e igualmente os não materialistas pensaram que ela podia. Em debate está como a matemática se aplica e o que pode ser deduzido dela. Por causa da própria eficiência dessa geometrização do universo para estabelecer firmemente o materialismo epicurista (e, consequentemente, no deslocamento da teoria do desígnio inteligente em geral e do cristianismo em particular), precisamos refletir com cuidado e com alguma minúcia no que essa transformação realmente acarretava.

Antes de tudo, a bem-sucedida aplicação da matemática a natureza não é essencial e exclusivamente epicurista. Isto é, não existe nenhum elo essencial entre uma abordagem matemática à natureza e uma abordagem materialista à natureza. O filósofo e matemático antigo Pitágoras (c. 582-500 a.C.), um dos maiores matemáticos de todos os tempos, não era nenhum materialista, e seus discípulos achavam que número e medida eram os princípios da ordem natural. Na verdade, temos a famosa história, transmitida desde a antiguidade, que Pitágoras reagiu à sua descoberta de que o quadrado da hipotenusa de um triângulo reto é igual à soma dos quadrados dos outros dois lados oferecendo um sacrifício de bois. [14. Diógenes Laércio, Pitágoras 8,12] O ponto crucial da história é este: a existência de uma ordem fundamental para as coisas, que a elegância da matemática capta, é uma ocasião de deslumbramento e fascínio, e apoia a crença de que o universo foi planejado com inteligência. Naturalmente, essa resposta essencialmente religiosa de Pitágoras, essa reação natural de deslumbramento e fascínio, era anátema para Epicuro, porque se transforma com muita facilidade em um reconhecimento de que essa ordem complexa, inteligível, deve ser o resultado do desígnio inteligente, e isso ligaria o divino à natureza como uma causa. [15. Veja em Wigner, Eugene P. The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences. Communications on Pure and Applied Mathematics XIII, 1960, 2. Veja também o ensaio de Bradley, Walter. The “Just So” Universe: The Fine-Tuning of Constants & Conditions in the Cosmos. Touchstone: A Journal of Mere Christianity. July/Aug, 1999, p. 70-75.]

De fato, quando na Renascença redescobriram Elementos, de Euclides, o maior livro de matemática do mundo antigo, a reação inicial foi pitagórica, ou mais exatamente, platônica. [16] Com isso, quero dizer que a resposta à profundidade de Euclides foi uma espécie de admiração meio religiosa, e a bem-sucedida aplicação de sua geometria a questões práticas foi igualmente um incentivo à admiração a respeito da ordem fundamental das coisas criadas. Como afirmamos acima, essa reação, seguindo o espírito pitagórico, foi puramente natural e, na verdade, parece ter sido a inspiração por trás do uso que Galileu fez da matemática; isto é, em espírito, Galileu pode bem ser considerado pitagórico.
[16. A primeira edição impressa, uma tradução latina, apareceu em 1482, e muitas outras edições se seguiram. A primeira edição do original grego foi publicada em 1533 e, novamente, muitas outras se seguiram. As traduções para o italiano começaram em 1543, para o alemão, em 1558, para o francês, em 1564, para o holandês, em 1606, para o inglês, em 1570, e para o espanhol, em 1576.]

Mas, mesmo que esse seja o caso, ao identificar completamente o ponto euclidiano com o átomo epicurista, Galileu preparou o caminho para a revolução epicurista na ciência e, consequentemente, para a extinção definitiva da abordagem pitagórica à matemática. [17. Entretanto, houve notáveis exceções, como Kepler.] A razão é simples: a identidade completa do ponto geométrico e do átomo acarretou a aceitação do reducionismo inerente a esse atomismo, privando a natureza de todas as propriedades matemáticas do ponto (agora considerado por Galileu um objeto atômico real), exceto as mais simples. Para compreender como e por quê, precisamos entender mais claramente esse reducionismo.

Para Epicuro e Lucrécio, como os átomos materiais eram a realidade fundamental, todos os outros aspectos de nossa experiência cotidiana eram, em última análise, redutíveis à forma, posição e às relações dessas unidades de composição materiais invisíveis. A aparência complexa das coisas – suas formas, cores, estruturas, seus odores, sons etc. – deve ser decomposta em seus componentes atômicos, e esses componentes, os átomos, não têm nenhuma das qualidades que experimentamos. Para dar um exemplo, um cão parece ter uma forma definitiva pela qual é diferenciado de outros animais como uma espécie; tem cor definida, odor definido, estrutura definida etc. Mas no nível atômico, o nível da realidade (e não mera aparência), descobrimos que a forma definida que julgávamos ser tão real é apenas um acidente das relações de formas atômicas que se encaixaram de certa maneira. Se essas formas tivessem se juntado, por acaso, em outro padrão, poderíamos ter tido um avestruz, uma árvore ou uma rocha. Da mesma forma com a cor. Os átomos em si são incolores; suas formas, posições e relações causam a aparência de cor para nós. Se os átomos tivessem sido configurados de modo diferente, no nível da aparência, os átomos incolores mostrariam uma cor diferente. Nem esses átomos têm qualquer odor ou sabor, mas ambos são o efeito que suas formas têm em nossos sentidos. O mundo atômico, o mundo real, é, portanto, completamente diferente do mundo cotidiano dos sentidos.

Se os pontos são reais (isto é, se os átomos funcionam simplesmente como pontos reais, geométricos, no espaço), então se segue que o mundo real, o mundo atômico, e puramente geométrico. Isso significa, já se vê, que o objetivo da ciência vem a ser a redução do rico mundo da experiência cotidiana – o mundo de cores, odores, sabores etc. – ao mundo invisível da realidade geométrica, atômica. Em última análise, então, a forma visível (ou a espécie, como “cão”), a cor, o sabor, o odor é até o som reduzem-se todos a relações matemáticas. Seu tratado polêmico Il Saggiatore (O experimentador, 1623) deixa claro que Galileu aceitou realmente o reducionismo do atomismo e incorporou-o a seu objetivo de natureza geometrizante.

Consequentemente, penso que sabores, odores, cores etc. não são mais que mais nomes no que diz respeito ao objeto no qual os colocamos e que eles estão presentes apenas na percepção (do observador). Consequentemente, se a criatura viva (que percebe essas qualidades) fosse removida, todas essas qualidades seriam afastadas e aniquiladas. Mas como impusemos a elas nomes especiais, diferentes dos das outras qualidades reais mencionadas anteriormente (de forma, posição e relação), queremos crer que elas realmente existem como verdadeiramente diferentes daquelas. [18. Galileu Galilei. The Assayer. In: Discoveries and Opinions of Galileo. Trad. de Still-man Drake. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1957, p. 274.]

Exatamente como a identificação de pontos euclidianos com pontos atômicos reforçaram a noção epicurista de que tudo na natureza reduz-se a pontos materiais, assim também (quer Galileu tivesse, quer não tivesse a intenção) sua identificação de pontos geométricos e atômicos reforçou a afirmação epicurista de que a natureza era independente de coisas externas e governada pela necessidade interna na qual o divino não interferia. Para exemplificar, não há necessidade de invocar nenhum princípio ou causa externa quando somamos 5 + 7. Sozinhos, sem nenhuma ajuda divina, os números somam 12, e essa operação funciona universal e eternamente. Além disso, parece que nem mesmo o poder divino poderia torná-la falsa. Parece que as relações matemáticas são independentes do poder divino e imperturbáveis por ele. O mesmo é, já se vê, verdade para as figuras e relações geométricas. Simplesmente por causa da necessidade intrínseca de dois pontos para formar uma linha e da união de três linhas retas umas às outras para formar um triângulo, os três ângulos internos do triângulo assim formado devem, por si só, sem ajuda divina e em aparente desafio ao poder divino, igualar dois ângulos retos.

Se o componente fundamental da natureza, o átomo, é realmente idêntico ao ponto euclidiano, então a necessidade interior da geometria pode ser aplicada diretamente à natureza e, portanto, a natureza existirá completamente independente, governada por suas relações geométricas-físicas internas que não precisam de nenhuma fonte nem diretriz divina e que não admitem nenhuma influência divina. Por causa disso, pontos atômicos que se movem em linhas retas expressarão relações geométricas necessárias. Como resultado, as leis de geometria terão seu equivalente exato nas leis da natureza. Na verdade, as leis de geometria serão as leis da natureza. Os pontos euclidianos já não existirão só na imaginação.

Assim, a própria noção das leis da natureza no sentido moderno tinha sua fonte precisamente nessa hipótese da identidade do ponto geométrico com o ponto atômico. Mas essa identidade tinha um óbvio efeito epicurista muito além da intenção de Galileu: permitia que a natureza fosse considerada um sistema fechado que impedia a interferência divina na natureza. Parece que assim como Deus não pode fazer com que 5 + 7 não seja igual a 12, nem fazer com que os ângulos interiores de um triângulo não sejam iguais a dois ângulos retos, ele também não pode impedir a necessidade natural expressa na relação de pontos atômicos. Deus torna-se exatamente igual aos deuses de Epicuro, totalmente impotente para interferir na natureza, pois as leis internas da matemática e da geometria são eternas e indestrutíveis.

Com sir Isaac Newton (1642-1727), o que Galileu começara foi completado, de modo que todos os princípios básicos do materialismo epicurista se resolveram, trazidos a uma grande síntese pelo poder e a autoridade da matemática. Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios matemáticos da filosofia natural, 1687) e Óptica (1704), de Newton, tornaram-se as bíblias da época. Naturalmente, Newton não se referiu diretamente a Epicuro, nem o espírito que animava sua aplicação da matemática à natureza tinha objetivo epicurista. O objetivo de Newton era, mais exatamente, oferecer uma descrição puramente matemática da natureza semelhante ao antigo atomismo (com algumas importantes reformulações). Mas, como a história mostraria, apesar das intenções de Newton, toda a cosmologia epicurista é um pacote indivisível, de modo que a reintrodução do atomismo antigo significava a reintrodução da descrição epicurista completa.

Os Principia eram dirigidos a uma explicação de “fenômenos celestes” e marés terrestres, mas Newton pretendia a aplicação de seus princípios a toda a natureza, e considerando que esses princípios pressupunham a identidade de pontos euclidianos com pontos atômicos, isso só podia significar a natureza, conforme entendida por Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Assim, embora os Principia salientassem os “movimentos dos planetas, dos cometas, da lua e do mar”, Newton expressou claramente seu “desejo” de que

possamos deduzir o restante dos fenômenos da natureza pelo mesmo tipo de raciocínio dos princípios mecânicos, pois sou induzido por muitas razões a suspeitar que todos dependem de certas forças pelas quais as partículas de corpos, por algumas causas até agora desconhecidas, são mutuamente impelidas umas para as outras e mantêm-se unidas em figuras regulares, ou são repelidas e afastam-se umas das outras. [19. Newton, Isaac. Mathematical Principles of Natural Philosophy. Trad. de Andrew Motte, revisão de Florian Cajoi. Berkeley: University of California Press, 1934, 1, p. XVIII.]

Precisamente porque o verdadeiro objetivo de Newton era universal, suas famosas Definições e Axiomas (ou leis do movimento) não se limitavam a tipos específicos de objetos naturais ou tipos específicos de movimento. Destinavam-se a ser aplicadas universalmente. Também não devemos esquecer que todos os Principia foram estabelecidos tendo como modelo direto os Elementos, de Euclides, passando da definição para o axioma (a lei) e então para a demonstração. O efeito desse modo de demonstração era duplo: primeiro, tratava as pressuposições como se já estivessem demonstradas, isto é, presumiam que a natureza já fora reduzida a entidades geométricas, e, segundo, tratava a ciência como se ela fosse um processo dedutivo daqueles primeiros princípios já demonstrados. O que mais precisava ser demonstrado. lexidade da naturecos epicuristas exibiam e que toda a complexidade da natureza podia ser reduzida a esses pontos – era, desse modo, aceito sem discutir.

O reducionismo inerente ao materialismo é evidente na maneira como Newton aplicou suas Definições e Leis a todos os corpos. Na III Definição, Newton afirmou que “a vis insita ou força inata da matéria é uma força de resistência pela qual todo corpo, tanto quanto o que existe nele, continua em seu estado presente, quer seja de descanso, quer movendo-se uniformemente para a frente em uma linha reta”. Na definição seguinte, Newton proclamou que a fonte de movimento de qualquer corpo é sempre externa: “Uma força aplicada é uma ação exercida sobre um corpo, a fim de mudar seu estado quer de descanso, quer de movimento uniforme em linha reta”. Essas afirmações levam em conta a famosa l Lei: “Todo corpo continua em seu estado de descanso ou de movimento uniforme em linha reta, a não ser que seja compelido a mudar esse estado por forças aplicadas sobre ele”; II Lei: “A mudança de movimento é proporcional à força motivadora aplicada e é feita na direção da linha reta na qual essa força é aplicada”; e a III Lei: “A cada ação sempre se opõe uma reação igual: ou, as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas a partes contrárias.

Embora só fossem aplicadas a fenômenos específicos dos Principia ou exemplificadas por eles, essas Definições e Leis foram declaradas como se se aplicassem a todo corpo, quer não vivo (uma bala de canhão, uma bola de bilhar, um cometa ou um planeta), quer vivo (uma planta, um gato, um cão, ou um ser humano). Essa aplicação universal só seria possível se todos os corpos e seus movimentos pudessem ser reduzidos a um só tipo de corpo, um corpo homogêneo que era ele mesmo inerte, isto é, um corpo sem poder de movimento, que só se movimenta se outro corpo age sobre ele. Esse corpo inerte, homogêneo, é o ponto atômico. Somente por essa dupla redução – de corpo e também movimento – a universalidade da matemática poderia ser aplicada à natureza da maneira que Newton pretendia.

Em consequência, todo movimento aparentemente complexo de corpos aparentemente complexos deve ser reduzido pelo simples movimento do mais simples de todos os corpos, o átomo, pois se as leis devem verdadeiramente ser obrigatórias e universais, então nenhuma complexidade aparente pode estar além de sua força obrigatória explicativa. Quer seja o crescimento de um cristal, quer o crescimento de um gato, quer seja o repentino desejo de um gato de perseguir um ratinho, quer o repentino desejo do ratinho de correr e se esconder, quer seja a raiva de Aquiles, quer o desejo de Homero de escrever a respeito de Aquiles, todos precisam ser igualmente redutíveis ao tipo de movimento simples e ao tipo de corpos que as Leis I, II e IlI abrangem. Quer fosse quer não fosse intenção de Newton apresentar esse reducionismo universal – nada em suas leis de movimento o proíbe e ele realmente expressou o desejo de “deduzir o restante dos fenômenos da natureza pelo mesmo tipo de raciocínio dos princípios mecânicos”, os seguidores de Newton nos dois séculos que se seguiram à publicação dos Principia foram com certeza animados pelo desejo de reduzir toda complexidade aparente à uniformidade homogênea, até e principalmente a complexidade de seres orgânicos, de plantas a animais.

Devido a esse impulso, também é importante ver que as Definições de Newton, apesar de serem engenhosas como o resto de sua obra, são arbitrárias: ele não demonstrou empiricamente que todo corpo compõe-se de matéria inerte; antes, a asserção era a pressuposição que levava em conta a universalidade desejada e a aplicação da geometria a todos os movimentos. As próprias leis, para serem leis, precisam aplicar-se universalmente, e a fim de aplicar-se com a universalidade da geometria, “todo corpo” deve ser, em última análise, redutível ao ponto, e todo movimento, à “linha reta”. Mais uma vez, exatamente como com Galileu, o empréstimo da necessidade interior da matemática desempenhou uma função epicurista muito além da intenção de Newton. Nas décadas que se seguiram a sua morte, as leis a princípio restringiram, depois, finalmente, negaram a intervenção divina. Mas isso era inerente à formulação original de Newton, pois se todo corpo pode, em última análise, ser reduzido a pontos euclidianos no espaço, então a natureza é um sistema fechado onde as leis do movimento não só descrevem completamente todo movimento possível, mas também afastam qualquer possibilidade de intervenção.

Contudo, está muito claro que Newton não pretendia deixar o divino fora de sua descrição sistemática da natureza; na verdade, ele acreditava que sua descrição glorificava Deus. Mas. apesar de suas intenções, a maneira como Newton reinseriu a divindade em sua descrição da natureza realmente criou o famoso dilema do “deus das lacunas”, onde todo avanço nos princípios mecânicos fazia com que a necessidade de invocar Deus fosse cada vez menos atraente, até não haver mais nenhuma necessidade e Deus desaparecer. Por causa da importância histórica do dilema do deus das lacunas, precisamos examiná-lo com muita atenção.

Ao contrário do que afirmam os materialistas contemporâneos, um dilema do deus das lacunas somente surge onde há uma “lacuna” em um sistema já fechado da natureza; isto. é, deve haver uma lacuna, ou espaço intelectual, que ainda não está cheio entre os princípios fundamentais aceitos e os fenômenos já considerados plenamente explicados por esses princípios. É por isso que os clássicos exemplos desse dilema encontram-se em Newton. Como vimos, Newton aceitou um sistema fechado da natureza, um sistema originalmente planejado por Epicuro para excluir qualquer necessidade ou interferência do divino. Contra a natureza do sistema, Newton introduziu Deus em três pontos: primeiro, para criar átomos; segundo, para ordenar ou posicionar átomos em relações complexas; e terceiro, para reajustar os arranjos, já que, com o tempo, eles se tornaram perturbados. Mas como Newton definira a realidade por princípios puramente materiais, seguia-se que as lacunas eram igualmente definidas por causalidades puramente materiais. Portanto, “Deus” teria necessariamente de significar a mesma coisa que “ainda não sei qual é a causa material”. Consequentemente, todas essas três razões eram propícias a serem descartadas.

Comecemos pelo terceiro lugar onde Newton introduziu Deus em seu sistema, pois a natureza dessa lacuna e seu fechamento demonstram com mais clareza o que é o dilema. Newton afirmou que o universo era máquina delicadamente equilibrada. Como todos os corpos têm massa e consequentemente exercem atração gravitacional, os movimentos regulares que planetas, estrelas e luas descrevem são causados por sua posição exata em relação uns aos outros. Forças gravitacionais perturbado-ras, tais como cometas erráticos, introduziriam, desse modo, ligeiras perturbações, que eliminavam o delicado equilíbrio de massa e movimento nos céus, acabando por levar ao caos e ao colapso. Com o tempo, Newton afirmou, as “irregularidades insignificantes […] que surgiram das ações mútuas de cometas e planetas uns sobre os outros […] estarão aptas a aumentar, até esse sistema precisar de reforma”. [20. Newton, Isaac. Optics. Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952, 32,542.] O que o sistema precisa, assim parecia a Newton, era um mecânico divino. Por estranho que pareça, então, a partir de uma aparente imperfeição do sistema, Newton estabeleceu uma prova para a necessidade de influência divina direta na natureza. Ou assim parecia.

Mas como se confirmou, do que o sistema realmente precisava era um matemático melhor, ou pelo menos mais avançado, que fizesse observações mais precisas. Em vez de uma divindade, o mundo newtoniano precisava de um Laplace, Pierre Simon de Laplace (1749-1827). Enquanto Newton acreditava que Deus tinha de intervir e reajustar o sistema do mundo por causa das inconsistências registradas entre os corpos celestes visíveis e os caminhos exatos que eles deviam trilhar, bem como por causa dos efeitos que os cometas deveriam ter tido, mas por qualquer razão não tiveram, Laplace conseguiu eliminar as dificuldades e percebeu anomalias aplicando o newtonismo mais meticulosamente. Afinal de contas, as lacunas no sistema de Newton não exigiam uma divindade para reajuste, mas observações e cálculos cada vez mais exatos que mostrassem ser o sistema de fato inteiramente estável e completamente autossuficiente. Esse ágil fechamento de uma lacuna percebida na descrição newtoniana, para o qual o próprio Newton acreditava que ele precisava invocar Deus, definiu depois disso qualquer tentativa de afirmar que Deus ou um planejador inteligente cometeu a chamada falácia do deus das lacunas.

Em resultado, a simples menção da frase “deus das lacunas” pelos materialistas de hoje funciona com uma clava misteriosamente poderosa contra a legítima discordância da ortodoxia materialista. A pessoa X diz que é impossível explicar tal e tal coisa em termos materialistas e parece exigir um planejador inteligente; a pessoa Y simplesmente entoa “deus das lacunas” a pessoa X, constrangida ao silêncio, enrubesce e se afasta. Toda invocação do deus das lacunas pelos materialistas contra os teóricos do desígnio inteligente desde então é simplesmente uma variação da famosa resposta de Laplace a Napoleão. Quando Napoleão lhe perguntou onde Deus estava em seu Traité de la méchanique céleste, Laplace triunfantemente proclamou: “Majestade, não tenho nenhuma necessidade dessa hipótese”.

Mesmo quando os próprios princípios do Sistema do mundo, de Laplace, foram destruídos pelo avanço de instrumentos mais poderosos e mentes mais poderosas, a confiança conquistada pela vitória temporária de Laplace subsistiu; isto é, mesmo quando o fundamento epicurista de pontos atômicos eternos foi abolido no fim do século XIX, a atitude subsistiu (e subsiste). Como consequência, os materialistas ainda acreditam que a observação de Laplace é suficiente para evitar qualquer tentativa de reintroduzir o desígnio inteligente, embora seu poder original e único esteja em situação bem singular: a aceitação da eternidade da matéria, cujo movimento era inerte e que seguia os limites da geometria semelhantes a uma lei, unidos à tentativa de introduzir Deus, como elemento estranho, nesse sistema fechado.

É de interesse nada pequeno para esta obra ter a defesa mais extraordinária do espírito laplaciano surgido em meados do século XIX, pouco antes de Darwin. Em 1781, William Herschel descobriu por observação outro planeta, Urano. Mas, durante os sessenta anos seguintes, por mais que os astrônomos e matemáticos mexessem nos cálculos, a órbita real do planeta não coincidia com os cálculos. Porém, dois matemáticos inteligentíssimos, o inglês John Adams e o francês Urbain J. J. Leverreir, previram de modo independente, somente pela matemática, que, devido às perturbações da órbita de Urano, tinha de existir outro planeta em um lugar específico. Aplicando as previsões de Leverreir, Johann Galle, no Observatório Urania de Berlim, apontou seu telescópio exatamente para aquela seção do céu noturno em 23 de setembro de 1846. Ali ele encontrou, como matematicamente exigido e previsto, outro planeta, agora chamado Netuno.

Nenhum impulso maior poderia vir à mente materialista já supremamente confiante do século XIX. O poder isolado da mente humana mostrou sua onisciência recém-descoberta predizendo o que deveria existir. Apenas pelo pensamento puro e segundo os princípios materialistas, a mente humana alcançava qualquer canto do cosmos, exatamente como Lucrécio dissera que ela podia alcançar. A descoberta de Netuno parecia provar que a necessidade interior da matemática dizia respeito direta e universalmente a natureza, desse modo demonstrando, de maneira conclusiva, que a natureza era um sistema fechado, governado por leis. Isso só podia significar que o sonho epicurista de um sistema da natureza completamente fechado ao divino e completamente compreensível ao intelecto humano fora aperfeiçoado. Não só era a matemática perfeitamente descritiva, mas era também perfeitamente previsível, esclarecendo todo canto escuro do universo onde antes se pensava que o divino se ocultava. O capital obtido por essa vitória parecia inesgotável, pois agora toda dificuldade que a ciência materialista encontrava era considerada decifrável com o tempo, com instrumentos mais potentes e matemática mais forte.

Voltemo-nos agora para outro lugar onde Newton introduziu Deus em seu sistema. Newton também ajudou involuntariamente a causa epicurista ao introduzir Deus como o criador dos átomos. Lembramos que Epicuro insistira que os átomos eram eternos, pois, se eram eternos, a natureza não tinha necessidade de nenhum poder criador externo. Newton tentou encaixar Deus no sistema epicurista ao afirmar que os pontos atômicos eram só quase eternos. Ironicamente, foi o “quase” que tornou o newtonismo um meio tão eficiente para a reintrodução do materialismo epicurista desenvolvido, pois Newton afirmou:

Consideradas todas essas coisas, parece-me provável que no princípio Deus formou a matéria em partículas móveis, sólidas, compactas, duras, impenetráveis, de tamanhos e números tais e com outras propriedades e em tal proporção ao espaço que melhor contribuíssem para o fim para o qual ele as formou; e que, sendo sólidas, essas partículas primitivas são incomparavelmente mais duras que quaisquer corpos porosos delas compostos, tão duras a ponto de nunca se desgastarem nem se partirem em pedaços; nenhum poder comum é capaz de dividir o que o próprio Deus fez único na primeira criação. [21. ibidem, 32,541.]

A afirmação de que Deus criou os átomos “para nunca se desgastarem nem se partirem em pedaços” – faltando só serem eternos – facilitou para os cristãos, contra a animosidade secular para com o epicurismo, adotar esse mesmo materialismo planejado por Epicuro para retirar toda ação divina da natureza e, consequentemente, dos assuntos humanos. Tal conciliação – um Deus cristão que criou átomos epicuristas – acabou, já se vê, na eliminação inevitável do divino pelo materialismo, comprovando, desse modo, o gênio de Epicuro ao criar uma concepção da natureza à prova da divindade. Depois que os átomos foram aceitos como quase eternos, logo se tornou hábito pensar neles como eternos, e não ficou claro por que eles precisavam de uma causa para existirem. Mais uma vez, parecia que uma lacuna aberta por Newton fora fechada e que a ciência também já não “tinha necessidade daquela hipótese”.

Essa atitude era tão firme que perdurou até mesmo depois que cientistas descobriram, no fim do século XIX, que os átomos não eram “partículas móveis, sólidas, compactas, duras. impenetráveis”, que eram “incomparavelmente mais duras que quaisquer corpos porosos delas compostos, tão duras a ponto de nunca se desgastarem nem se partirem em pedaços”, Isto é, mesmo depois de ter sido descoberto que os átomos não eram eternos e portanto que a natureza não pode ser sua própria causa, perdurou a atitude materialista. Como consequência, os materialistas continuaram a pensar que a natureza deve ser causada por ela mesma, até quando a destruição da eternidade do átomo exigia a conclusão oposta. Com efeito, se os átomos não são eternos, então é impossível terem sempre existido. Mas a realidade física existe verdadeiramente. Portanto, deve ter vindo a existir em algum tempo. Mas, como até Epicuro foi forçado a admitir, nada não pode causar alguma coisa. Portanto, deve ter havido uma outra causa eterna diferente da natureza que deu existência à natureza. Nas palavras de Tomás de Aquino – pois essa é simplesmente uma de suas provas da existência de Deus –, essa causa é o que chamamos Deus. A lógica é inevitável, se os seres humanos não fossem capazes de ser escapistas em relação à lógica.

Finalmente, podemos examinar a inserção que Newton fez de um planejador divino em um sistema originalmente destinado por Epicuro a excluir deuses como planejadores. Newton atribuiu a Deus essa outra função em acréscimo à de mecânico e criador, mas isso também ia diretamente contra a natureza do sistema fundamentalmente epicurista. Como resultado, a função de planejador foi igualmente eliminada dentro de muito pouco tempo. Mas, para Newton, Deus era realmente o grande planejador, e essa posição era explicitamente oposta ao argumento lucreciano de que o mundo era resultado do acaso.

Ora […] parece que todas as coisas materiais foram compostas das partículas duras e sólidas mencionadas acima, variadamente associadas na primeira criação pelo conselho de um agente inteligente. Pois conveio a Ele que as criou colocá-las em ordem. E se Ele fez isso, é imprudente buscar qualquer outra origem do mundo, ou fingir que ele poderia surgir de um caos pelas simples leis da natureza, embora, depois de formado, possa continuar por muitos séculos a seguir essas leis. [22. ibidem, 32, 542.]

Podemos até inferir dessa passagem que Newton estava bem consciente do perigo de sua posição e esforçou-se para deixar claro que (ao contrário da bem conhecida posição de Epicuro e Lucrécio) o átomo sozinho, movendo-se por leis indispensáveis, não podia criar ordem sem ajuda divina. Quer da “maravilhosa uniformidade no sistema planetário”, quer da “uniformidade nos corpos dos animais” ou do “dispositivo” das partes complexas de animais ou “do instinto de brutos e insetos” – todos, declarou Newton, devem “ser o efeito de nada mais que a sabedoria e habilidade de um poderoso agente eterno. [23. ibidem.]

Devido à sua posição, parece que Newton era um teórico do desígnio inteligente de primeira ordem, e, na verdade, ele com certeza assim se considerava. Mas se examinarmos mais de perto, descobrimos em Newton uma mistura de elementos incongruentes de cosmologias rivais. De fato, a reunião delas por Newton facilitou grandemente a renovação da cosmologia epicurista desenvolvida, pois (mais uma vez) afastou os escrúpulos dos cristãos para aceitar o materialismo que haviam aprendido a temer. Ao contrário da insistência de Newton, se as leis surgem da própria natureza do átomo que age como ponto geométrico, físico, então é difícil entender por que é “imprudente” afirmar que a “origem do mundo […] poderia surgir de um caos pelas simples leis da natureza”, especialmente porque Lucrécio já fornecera um argumento, baseado em princípios epicuristas, que o movimento aleatório de átomos sem propósito criava, com o tempo, na natureza, a ordem que experimentamos.

Como antes, aqui havia novamente uma lacuna só esperando ser fechada. O próprio Newton já fornecera as leis do movimento pelas quais toda a natureza foi descrita, e essas leis também podiam ser aplicadas, por meio das forças de atração e repulsão, à construção de corpos cada vez maiores, a partir das “partículas duras e sólidas”. Como Lucrécio já era bem conhecido no século XVII, e o universo parecia infinito e cheio de interminável suprimento dessas partículas, tudo o que era necessário para restabelecer o argumento evolucionário de Lucrécio era uma idade muito maior do universo, o que foi proporcionado por Charles Lyell em Princípios de Geologia (1830).

Devido a essa preparação histórica, não é nenhuma surpresa que o elemento do desígnio divino do newtonismo, embora inadequado à cosmologia epicurista maior, fosse historicamente substituído por uma descrição evolucionária que proclamava ser o desígnio apenas aparente, não real. A chegada, em 1859, de A origem das espécies, de Darwin, foi simplesmente o resultado da completa coerência do sistema epicurista, causando a expulsão do elemento divergente do desígnio divino inserido por Newton. Parecia que as simples leis do movimento eram mais que suficientes, devido a um universo infinito e uma quantidade ilimitada de tempo, para criar a ordem natural.

Aliás, isso é responsável pela rápida aceitação dos argumentos de Darwin, apesar do fato de Darwin não ter provado que a evolução por mutação casual realmente ocorria. Aos que já acreditavam na existência de átomos eternos movendo-se pelo espaço infinito durante um tempo ilimitado de acordo com leis do movimento puramente naturais, parecia, por pura probabilidade, que a evolução devia explicar a aparente complexidade da natureza. A probabilidade logo se tornou certeza. No tempo de Darwin, devido ao extraordinário poder explicativo e previsível do sistema newtoniano, a mente materialista tinha total fé em que os princípios fundamentais já tinham sido plenamente demonstrados e que o sonho newtoniano de derivar “o restante dos fenômenos da natureza pelo mesmo tipo de raciocínio dos princípios mecânicos” fora realizado. A guerra já estava ganha, por assim dizer, e o aparecimento da Origem de Darwin era simplesmente a última peça da máquina que se encaixava com um “estalo” satisfatório.

E assim, como veremos ainda mais claramente no capítulo oito, as teorias de Darwin não eram nem de origem revolucionária, nem de argumentos conclusivos. A descrição evolucionária materialista existira como parte do materialismo epicurista por quase dois milênios, e o objetivo de seu desígnio era eliminar o divino. A moderna aceitação de todos os princípios básicos do materialismo epicurista levou necessariamente à aceitação de todo o constructo teórico, do qual a evolução era parte indispensável. Desse modo, embora estivessem longe de ser conclusivos, os argumentos de Darwin atuavam para reforçar a noção que o Deus que Newton considerava indispensável para explicar o desígnio tinha sido acertadamente expulso da lacuna fechada pela ciência.

Concluímos, então, que o famoso dilema do deus das lacunas, em vez de ser dificuldade universal, surgiu em um conjunto específico de circunstâncias, quando uma estrutura designada para rejeitar o divino teve o divino anexado a ela, em contradição com seus princípios. Infelizmente, teólogos bem-intencionados foram em grande parte culpados da perpetuação da falácia (e O próprio Newton era um bem-intencionado teólogo amador). De fato, devido ao sucesso do newtonismo, muitos teólogos dos séculos XVIII e XIX, movidos pelo desespero ou por boas intenções, não paravam de inserir Deus neste ou naquele recesso ou fresta da cosmologia newtoniana. Mas nesse sistema fechado não havia lugar para uma divindade, como atestam as tentativas de Newton de introduzir uma. Ao observar cada uma dessas tentativas, os materialistas dificilmente poderiam de certo modo ser acusados de entenderentenassorialicias dovaralaro, a culpa era deles, pois, em geral, esses materialistas davam apoio apenas aos teólogos que aceitassem os princípios da ciência conforme definidos pelo materialismo. Não admira que só encontrassem tentativas malfeitas de reintegrar uma divindade.

Em nossa análise do dilema do deus das lacunas criado por Newton, dois outros importantes efeitos da aceitação do atomismo materialista sem dúvida ocorreram ao leitor. Se a natureza é governada pelas leis férreas da física geometricamente definida, então fica difícil, senão impossível, para a atividade divina e a atividade humana ajustarem-se. Parece que as leis da natureza se opõem à capacidade de Deus para interferir em acontecimentos naturais (e por isso os milagres são impossíveis) e também à capacidade humana para pensar e agir livremente.

Vimos que, embora Newton levasse em conta a intervenção divina na natureza, a fonte da intervenção era um defeito na máquina cosmológica, defeito que para Newton exigia a intervenção divina para ser retificado. Como consequência, pelos esforços de Laplace e outros, a necessidade de intervenção divina desapareceu. Quando a necessidade da intervenção de Deus foi eliminada, a possibilidade de intervenção divina desapareceu com ela. As próprias leis do movimento, que pareciam ser dadas gratuitamente por Deus, tornaram-se as algemas que prendiam seu poder criador e também seus poderes de intervenção. Isso ocorreu precisamente porque os elementos da natureza usados por Newton tinham origem epicurista e a aplicação que Newton fez da matemática só serviu para fortalecer o desígnio original de Epicuro. As leis do movimento – que eram simplesmente as leis da geometria aplicadas aos átomos epicuristas – eram definidas por uma necessidade interior que excluía a interferência externa. Em muito pouco tempo, essa necessidade voltou furtivamente e algemou o autor divino das leis. E assim passou-se a acreditar que não só era necessário que Deus usasse essas leis para criar, mas ele também não podia interferir nelas depois que criou os átomos e os pôs em movimento de acordo com as leis.

Essa, já se vê, era uma crença impossivelmente contraditória. Com efeito, se Deus era poderoso o bastante para criar um universo e as próprias leis pelas quais ele funciona, então como poderia não ter poder suficiente para manipulá-lo à vontade? A fonte mais geral da contradição era, naturalmente, a tentativa de vincular uma divindade a um sistema designado para excluir o divino. A fonte mais específica dessa contradição eram as próprias Definições e Leis de Newton. Isso é um pouco difícil de entender, mas, daí em diante, sua importância foi prodigiosa para a história inteira da relação da ciência com a teologia.

A fim de submeter a natureza à análise matemática, Newton teve de rejeitar toda fonte de complexidade não matemática e toda contingência (isto é, toda indeterminação ou espontaneidade) e reduzir toda essa complexidade e contingência na natureza à homogeneidade dos pontos atômicos euclidianos inertes, sem vida. Observe como seria difícil, em geometria, se os pontos tivessem mentes próprias e não parassem de saltar desordenadamente pelos diagramas, ou de construir linhas ou sólidos que fossem, por um passe de mágica, mais que a soma de suas partes. Por essa mesma razão, o epicurismo científico moderno teve de rejeitar o próprio dispositivo de Epicuro, o “desvio” que permitia o movimento errático e dai a contingência e o livre-arbítrio.

Na moderna eliminação de toda fonte de contingência e, portanto, toda fonte de movimento imprevisível, os átomos podiam, então, agir como pontos inertes que só se moviam quando golpeados por uma força exterior. Esses corpos inertes só transmitiam tanto movimento quanto haviam recebido de outros corpos inertes. Como uma bola de bilhar, um átomo permanecia em posição até ser atingido por outro. A força que fazia a bola se mover era simplesmente outro objeto inerte em movimento cuja velocidade e magnitude (“quantidade de matéria”) fazia o corpo em estado de repouso mover-se. Segundo a IV Definição de Newton, a “força aplicada” não era uma força latente na causa que produzia o resultado, mas “consiste somente na ação e já não permanece no corpo quando a ação termina”. [24. Veja também a III Lei: “A cada ação sempre se opõe uma reação igual”, e o corolário: “A quantidade de movimento […] não sofre nenhuma mudança devido à ação de corpos entre eles”. Essas duas afirmações também ajudaram o universo newtoniano a permanecer independente porque não houve nenhuma perda entrópica de movimento.] Voltando a usar o exemplo das bolas de bilhar, quando a bola branca atinge a bola oito, ela para e toda a força da bola branca fica agora na bola oito enquanto ela se desvia pela mesa. A bola branca não tem capacidade para saltar de repente, por iniciativa própria, e atingir outra bola de bilhar, nem a bola oito teria se movido se não fosse atingida pela bola branca. Seguia-se, então, que se “toda corpo” é formado apenas por essas bolas de bilhar atômicas, então, todo movimento é redutível a esse movimento inerte das bolas de bilhar.

Portanto, a definição de causa sofreu severa redução. No sistema de Newton, a causa foi reduzida a “força aplicada” e não havia nada na causa além da força que podia ser deduzida do efeito. As ramificações para a ação divina e humana eram imensas. O poder de agir como uma causa foi reduzido ao poder de transmitir um movimento retilíneo. Por essa razão, sabemos de uma causa, qualquer causa, que ela transmitia sua força total nesse sentido, pois seu poder ou força era apenas o poder movente combinado de sua velocidade e quantidade de matéria. Com essa reduzida noção de causa, Deus só podia ser uma espécie de jogador divino de bilhar que, para começar, marcava os átomos, fazia a jogada inicial, mas então tinha de deixar as bolas de bilhar atômicas agir e reagir conforme as leis do movimento. Deus só tinha poder suficiente para fazer a jogada inicial.

Com a vitória do sistema de Newton, a atitude criada pelas suposições acima tornou-se a fonte da crítica supostamente devastadora de todas as provas possíveis da existência de Deus feitas pelo filósofo David Hume (1711-1776). Falando na pessoa de Epicuro, Hume proferiu esta famosa máxima: “Quando deduzimos qualquer causa específica de um efeito, precisamos harmonizar uma com o outro e nunca podemos atribuir à causa quaisquer qualidades, exceto as que são exatamente suficientes para produzir o efeito”. Por isso, conforme a definição de causa dada por Newton, “você não tem nenhuma base para atribuir-lhe [isto é, a Deus] nenhuma qualidade, exceto as que você vê que ele realmente exerceu e revelou em suas produções”. [25. Hume, David. An Enquiry Concerning Human Understanding. Indianápolis: Hackett, 1977, seção xi, p. 93-95.]

O duplo efeito dessa máxima foi o seguinte: Primeiro, não se podia deduzir nenhum outro poder em Deus além do que produzia as leis da natureza; portanto, Deus não tem o poder de anular a natureza. Do poder de Deus para criar o universo não podemos deduzir, então, nenhum poder restante para manipulá-lo posteriormente. Segundo, o poder de Deus tornou-se redundante para a natureza, pois as leis do movimento funcionavam pela própria natureza dos átomos – e por que invocar uma explicação redundante? O que Deus poderia acrescentar a um sistema independente, que se autoperpetua?

Um resultado óbvio, que novamente estava em oposição às intenções originais de Newton, era a negação absoluta do poder de Deus para realizar milagres. Se Deus podia realizar milagres, então as leis de Newton seriam apenas expressões particulares de seu poder criativo. Não só ele poderia ter criado o universo com leis diferentes, mas poderia anular as regularidades particulares desse universo sempre que quisesse. Mas agora tinha sido identificada aquela geometria e realidade física que seria igual a afirmação que as regras de geometria eram apenas expressões particulares do poder criador de Deus que ele poderia ter feito de outro modo e poderia anular à vontade.

Mas a redução da natureza por Newton e a consequente redução de causa não só restringiam o que Deus podia fazer, mas também, e de maneira bastante óbvia, o que os seres humanos podiam fazer. Como parte da mesma natureza que restringia Deus, os seres humanos também se restringiam. É um corolário da mais obrigatória de todas as leis universais: “Toda concepção distinta do universo, toda teoria sobre a natureza acarreta necessariamente uma concepção de moralidade; toda concepção distinta de moralidade, toda teoria sobre a natureza humana acarreta necessariamente uma cosmologia para apoiá-la”. O corolário deriva da universalidade de afirmações sobre a natureza: “Qualquer coisa que afirmemos sobre nós mesmos, afirmamos sobre a natureza; qualquer coisa que afirmemos sobre a natureza, afirmamos sobre nós mesmos”. Se formulamos a natureza de modo que a ação divina se torna impossível, segue-se que a ação humana torna-se impossível. Qualquer sistema da natureza que restringe ou torna impossível e ininteligível a ação divina a respeito da natureza, restringe ou torna impossível e ininteligível a ação humana. Podemos até declará-lo de outra forma, como a Lei de gravitação, pois diz respeito à mais grave das questões: “A força com a qual lançamos uma pedra aos céus é a força com a qual ela cai de volta sobre nossas cabeças”.

Ironicamente, a vitória do newtonismo significou a derrota da humanidade, pois agora a ação humana (a ação de pensar e também a de fazer) tinha de ser reduzida ao movimento de forças inertes descrito completamente pelas leis do movimento. Essa redução ocorreu nos níveis teórico e moral. Consideraremos primeiro o teórico, já que ele é o mais surpreendente e também com mais frequência negligenciado.

Teoricamente, a glória do newtonismo era que, ao reduzir o universo a pontos euclidianos em movimento e eliminar toda contingência, ele proporcionava aos seres humanos uma recém-descoberta onisciência. Como conhecemos perfeitamente a geometria, e o universo é perfeitamente geométrico, segue-se que conhecemos perfeitamente o universo. Em consequência, muito cedo Newton passou a ser considerado uma semidivindade, digna do tipo de louvor que normalmente só associamos a Deus.

Realmente, o grande astrônomo Edmund Halley (1656-1742) escreveu uma ode a Newton que captou bem a adulação da época, a adulação a um homem que parecia ter descoberto os segredos mais íntimos do universo. [26. O poema inteiro está em Newton, Isaac. Mathematical Principles of Natural Philosophy. Trad. para o inglês de Leon J. Richardson. Berkeley: University of California Press, 1934, p. xiii-xv.] Não é possível lê-la sem se lembrar dos louvores com que Epicuro foi cumulado por seu discípulo Lucrécio, pois ambos, Epicuro e Newton, foram exaltados pela mesma coisa: onisciência divina.

Consequentemente, Halley exaltou Newton por suas “opiniões divinas” pelas quais os “lugares mais íntimos dos céus, agora alcançados, / Surgem à vista, e não está mais escondida / A força que faz girar o orbe mais distante”. Em consequência – e aqui, mais uma vez, não destoamos de Epicuro e Lucrécio –, os portentos dos céus, antes considerados sinais de comunicação ou ira divina, foram atrelados às Leis: “Agora conhecemos / os caminhos dos cometas que bruscamente mudam de direção, outrora / Fonte de terror, já não fraquejamos / Debaixo das aparências de estrelas assustadoras”. Além disso, a simples controvérsia filosófica foi agora eliminada pela onisciência científica e a inútil especulação metafísica foi substituída pela física rigorosa e inflexível.

Assuntos que exasperavam as mentes dos videntes
antigos,
E para nossos sábios doutores muitas vezes levavam A estrondosa e vá discussão, agora são considerados
À luz da razão, as nuvens da ignorância
Finalmente dispersas pela ciência.

Por intermédio do gênio de Newton, também nós, com o conhecimento das leis do movimento, temos essa mesma onisciência. Ao reduzir toda a complexidade do universo a algumas leis simples, por meio da ciência, Newton transformou a onisciência em propriedade pública ao alcance de todos.

Mas agora, vede,
Admitidos ao banquete dos deuses,
Contemplamos as formas de governo do céu, E compreendendo os segredos da terra,
Discernimos a imutável ordem do mundo
E todos os éons de sua história.

Embora o último verso possa parecer uma coisa tremendamente irrefletida para se dizer, Halley percebeu que, como sempre se aplicavam as leis do movimento, elas podiam ser aplicadas retroativa e progressivamente; isto é, todo tempo fora revelado, tudo o que poderia ter acontecido, tudo o que realmente acontece e tudo o que acontecerá. Tudo é igualmente determinado por essas leis.

Halley concluiu com estes versos imortalizadores, que celebravam o gênio de Newton, nos termos mais elevados possíveis, como o único mortal que verdadeiramente merecia ser divinizado:

Então vós que agora comeis néctar celeste, Vinde celebrar comigo em cântico o nome De Newton, querido das musas, pois ele
Desvendou os tesouros ocultos da verdade:
Tão fartamente por sua mente Febo lançara
O esplendor de sua divindade.
Mais perto dos deuses nenhum mortal pode chegar.

Entretanto, ao contrário de Lucrécio, Halley submete-se a Deus como autor das leis que Newton descobriu: “Aqui considerai também as leis que Deus, / concebendo o universo, não colocou de lado / Mas fez os fundamentos fixos de sua obra”. Porém, em comparação, o louvor ao gênio de Newton recebeu muito mais atenção que o aparente autor das leis. A proporção era adequada, pois refletia a nova posição dada a Deus (pelo menos por algum tempo) na nova cosmologia. Não havia muito a se dizer a respeito dele, exceto que, para começar, ele estabelecera as leis. Sua onisciência já não era fonte de deslumbramento; sua sabedoria já não excedia a simples inteligência humana. Com efeito, por meio de esforços sem ajuda, a inteligência humana agora alcançara aquela mesma onisciência. Não admira que a época estivesse atordoada pelo louvor a Newton.

Mas na vitória, as sementes da derrota estavam ocultas. Com certeza não demorou para as leis do movimento serem aplicadas também à mente humana. À medida que o materialismo tinha um domínio cada vez maior, logo surgiu a crença de que o pensamento humano devia ser o resultado de forças materiais agindo sobre matéria inerte; isto é, nossas mentes, como entidades físicas, deviam originalmente ser vazias (isto é, massas inertes à espera de serem influenciadas) e serem postas em movimento e confirmadas pela soma total de forças materiais que nos afetam. Nossos pensamentos precisam ser redutíveis à simplicidade das leis do movimento; portanto, não importa o quanto elevados ou complexos nossos pensamentos pareçam ser, em última análise eles são apenas a soma total das forças externas agindo em nossos intelectos materiais de acordo com as leis. Em consequência, o pensamento humano não seria nem verdadeiro nem falso, mas antes o resultado de estímulos externos que por acaso provocaram em nós reações específicas.

Em última análise, essa extensão do newtonismo à mente humana serviu muito bem a um objetivo epicurista, suplantando a alma imaterial intelectual com o cérebro material posto em movimento por estímulos externos como a causa do pensamento. Vamos nos concentrar na eliminação materialista da alma em capítulos posteriores, mas neste momento vamos mencionar a ironia de que esse reducionismo tenha este efeito interessante: elimina a própria possibilidade da ciência, efeito não só em desacordo com as intenções de Newton, mas também com as intenções da maioria dos materialistas modernos mais tardios. A redução da natureza física a pontos atômicos governados por leis e da mente humana a átomos criou uma versão moderna do paradoxo cretense. [27. A esse respeito veja Johnson, Philip. Reason in the Balance. Downers Grove, Ill: InterVarsity Press, 1995, p. 59-66.] Se um homem de Creta diz: “Todos os cretenses são mentirosos”, então ou ele está mentindo (e a declaração é falsa) ou está dizendo a verdade (e a declaração é falsa). Em vez de designar a forma moderna em homenagem a Newton (que com certeza teria ficado horrorizado com a honra), eu gostaria de designá-la em homenagem a um físico de nosso tempo, Stephen Hawking, cujas aspirações para elaborar leis universais são tão fortes quanto eram as de Newton e que é professor lucasiano de matemática na Universidade de Cambridge, cargo antes ocupado pelo próprio Newton. Chamo essa forma estranhamente moderna do paradoxo cretense “Dilema de Hawking”, pois é ele que da maneira mais elegante e conscienciosa expressa a dificuldade:

Ora, se você acredita que o universo não é arbitrário, mas sim governado por leis definidas, você tem, em última análise, de combinar as teorias parciais [em físical em uma teoria unificada completa [de física] que descreva tudo no universo. Mas existe um paradoxo fundamental na busca por essa teoria unificada completa. As ideias a respeito de teorias científicas resumidas acima presumem que somos seres racionais, livres para observar o universo como queremos e para tirar deduções lógicas do que vemos. Nesse plano, é razoável supor que podemos avançar sempre mais na direção das leis que governam nosso universo. Contudo, se existe realmente uma teoria unificada completa, é de se presumir que ela também determine nossas ações. E assim a própria teoria determinaria o efeito de nossa busca por ela! E por que ela determinaria que cheguemos às conclusões certas a partir dos indícios? Não poderia ela igualmente bem determinar que tiremos a conclusão errada? Ou nenhuma conclusão? [28. Hawking, Stephen. A Brief History of Time. Toronto: Bantam, 1988, p. 12 [Breve história do tempo. Gradiva, 2009 (coleção Ciência Aberta)].]

Mas Hawking não vê o verdadeiro paradoxo: a concepção materialista da ciência, ao contrário de sua própria reivindicação, toma a atividade da ciência ininteligível e também impossível. A total simplicidade da resposta de Hawking a seu próprio dilema serve para ressaltar a picada mortal e os esforços ridículos que o materialismo não poupara para evitar abalar as próprias pressuposições.

A única resposta que posso dar a esses problemas baseia-se no princípio darwinista de seleção natural. A ideia é que em toda população de organismos que reproduzem a si mesmos haverá variações no material genético e na formação que indivíduos diferentes têm. Essas diferenças significam que alguns indivíduos são mais capazes que outros de tirar as conclusões certas a respeito do mundo que os rodeia e de agir conforme isso. Esses indivíduos têm maior probabilidade de sobreviver e reproduzir e por isso seu padrão de comportamento e mentalidade acabará dominando. Foi com certeza verdade no passado que o que chamamos de inteligência e descoberta científica transmite uma vantagem de sobrevivência […] Desde que o universo evolua de maneira normal, podemos esperar que as capacidades de raciocínio que a seleção natural nos deu sejam válidas também em nossa busca por uma teoria unificada completa, e assim não nos conduzam às conclusões erradas. [28. ibidem, p. 12-13.]

A resposta de Hawking é, já se vê, rematada tolice. Essas leis universais obrigatórias não só criariam todos os intelectos, mas determinariam o que eles pensam, não importa que os imaginemos muito inteligentes. Além disso, a reprodução sexual bem-sucedida seria servida melhor pela poligamia e o animismo mais primitivo que a apoiassem do que pelas tentativas mais abstratas de teorização científica (como as taxas de reprodução de caciques tribais em comparação com físicos como Hawking deixam prontamente claro).

Como o dilema de Hawking esclarece amplamente, a pretensão humana à onisciência, quer na forma das leis universais de Newton, quer na da teoria universal de Hawking, tem o efeito de destruir o conhecimento humano. Por quê? Porque a eliminação da alma imaterial significa que o intelecto deve ser completamente material, e isso significa que ele seria totalmente determinado pelas leis da natureza. Ao destruir a alma imaterial, a concepção material da ciência destrói em última análise a própria possibilidade da ciência.

Exatamente da mesma forma e pelas mesmas razões, apesar das intenções de Newton, a concepção materialista da natureza, que ele tanto fez para formar, destruiu a possibilidade de ação moral humana. Se nós, que certamente somos corpóreos, estamos classificados sob a primeira lei de Newton (“Todo corpo continua em seu estado de descanso ou de movimento uniforme em linha reta, a não ser que seja compelido a mudar esse estado por forças aplicadas sobre ele”), então a ação humana deve ser – não importa o quanto ela pareça ser complexa, não importa o quanto sentimos como se agíssemos livremente ao fazer escolhas entre o bem e o mal – redutível a nossas reações às forças externas que se servem de nós. Na verdade, a respeito das ciências humanas, quase toda teorização (no sentido mais amplo de moral e política) é descrita com sucesso como muitas tentativas de alcançar nas ciências humanas o mesmo sucesso que o newtonismo gozou na física. A ciência política moderna, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a economia – todas vieram a ser em grande parte definidas pela busca na ação humana de variações das leis do movimento conforme encontradas em Newton. Todas se desgastam na iniciativa de buscar a lei do comportamento humano, a causa real dos “movimentos” humanos aparentemente complexos e diversos, e o fazem reduzindo toda complexidade e diversidade a alguma causa material simples e original. Nos próximos capítulos, examinaremos mais de perto essa transformação.

Agora que já obtivemos neste capítulo uma visão geral da mudança que colocou em um relicário os princípios materialistas epicuristas da ciência moderna, precisamos cuidar dos aspectos morais complementares da cosmologia de Epicuro, pois houve uma revolução moral epicurista que aconteceu ao mesmo tempo. Em contraste com os aspectos científicos da revolução, que reforçaram, mas não alteraram fundamentalmente os aspectos teóricos dos argumentos de Epicuro, a forma moderna do epicurismo moral mudou do ascetismo original do próprio Epicuro para um novo tipo de hedonismo epicurista. Outro contraste também surgirá. Como vimos, a moderna reintrodução científica do atomismo era basicamente inocente de motivos epicuristas – inocente no pior sentido, talvez. Galileu e Newton (bem como Bruno, Gassendi e Boyle) pensavam realmente que podiam colocar a ciência sobre uma fundação mais sólida com uma forma renovada do atomismo antigo e exatamente da mesma forma pareciam acreditar que podiam evitar as intenções originais do materialismo de Epicuro. Mas a respeito da moderna renovação dos aspectos morais do epicurismo parece haver, como veremos em breve, muito mais razão para suspeitar dos motivos desses modernos defensores de Epicuro.

Excerto de: BENJAMIN WIKER; Darwinismo Moral: como nos tornamos hedonistas, Paulus, 2011, capítulo Cinco, pp. 149-192.

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