Dom Gaspar Lefebvre, O.S.B.
1950
1. Exposição dogmática
A Igreja, que há seguido desde o começo do Ciclo Pascal os passos do Salvador no desempenho da sua missão de resgate, contempla dolorida-mente no decorrer do Tempo da Paixão os acontecimentos que assinalam o último ano (Semana da Paixão) e a derradeira semana (Semana Santa) da sua vida mortal. O ódio dos inimigos do Messias cresce de dia para dia e vai rebentar na Sexta Feira Santa com o drama sangrento e terrível do Gólgota, predito pelos Profetas e confirmado pela própria vítima. Por isso relaciona a Igreja o Antigo com o Novo Testamento e estabelece um paralelo deveras emocionante entre as palavras de S. Paulo e dos Evangelhos relativas à Paixão e as profecias tão claras de Jeremias, Isaías, David, Jonas e Daniel. À medida que se aproxima o desenlace fatal, os acentos de dor da Igreja vão-se tornando mais sentidos até desabafarem no grito lancinante de dor irreprimível quando vir o Esposo amado pender morto, no Gólgota, do madeiro da Redenção. O céu da Santa Igreja vai-se carregando de sombras, escreve D. Guéranger, como num dia de procela, as nuvens acumulam-se nos ares portadoras de morte e tempestade. O raio da justiça divina vai cair e atingirá o Salvador que se fez carne por nós e por amor de seu Pai. Em virtude da misteriosa solidariedade que une todos os membros da família humana, este Deus feito carne vai substituir-se no banco dos réus e no madeiro do suplício aos seus irmãos culpados. « Revestiu-se dos nossos crimes, diz o Profeta, como dum manto, fez-se pecado por nós para o poder cravar na cruz com o seu corpo e destruí-lo pela sua morte. Em Getsémani, os pecados de todos os tempos e de todos os homens veem em vagas tumultuosas e repelentes, circulam como fantasmas horríveis em volta do Salvador, penetram-Lhe na alma puríssima, fazem dela o receptáculo de toda a abjecção humana, a lixeira dos detritos morais da criação. E por isso o Pai, violentando o amor que lhe tem, tem de tratá-l’O como um ser maldito, porque mandou escrever: «Maldito seja todo aquele que pender do madeiro. A obra da nosss redenção reclamava com efeito que Jesus fosse cravado no lenho, para que readquiríssemos a vida naquilo mesmo em que a perdêramos e para que aquele que venceu pelo lenho, fôsse pelo mesmo lenho derrotado». [Por este modo se verifica o principio de oposição que o Espírito Santo sinala quando diz: «Considera as obras do Altíssimo e vê que são duas a duas mutuamente opostas: em face do bem está o mal, em face da morte a vida, e em face do justo, o pecador» (Ecles.). S. Paulo diz : «Visto que a morte entrou no mundo por um homem, é por um homem que nele reentra a vida». E a liturgia observa que tendo sido os primeiros pais enganados por satanás, era necessário que um divino estratagema gorasse o embuste da serpente . E S. Bernardo diz que não tendo o Senhor do pecado mais que a semelhança, estendeu com este véu as pelas que agrilhoaram o demónio. S. Agostinho explica finalmente, que por justo desígnio de Deus, Lúcifer perdeu o direito de morte que tinha sobre os homens culpados no dia em que demasiado o exerceu sobre o justo.]
Trava-se entre a morte e a vida um duelo singularíssimo de que Jesus Cristo triunfa deixando-se morrer. O Salvador com efeito avança no Domingo de Ramos como um conquistador aclamado e Rei coroado de palmas e de louros, sinal da vitória que não tarda. Rejubila, 6 filha de Sião, porque o teu rei vai entrar dentro dos teus muros, diz Zacarias, e a multidão estende os vestidos no chão por onde ele vai passar, como era de uso com os reis, e grita: «Bendito seja o que vem em nome do Senhor. O Senhor vai entrar na sua capital, vai subir ao trono precioso que ornou com a púrpura do seu sangue e no alto do qual Judeus e Romanos escreveram nas tres línguas vulgares «Jesus Nazareno, Rei dos Judeus».
O oráculo de David tinha-se cumprido. Deus reina pelo madeiro e o que era até então objecto de ignomínia torna-se o estandarte do rei e «a nossa única esperança no Tempo da Paixão». Prostremo-nos diante da cruz, porque é por meio dela que a alegria desceu ao mundo todo. E para bem mostrar que é sob este ponto de vista que a Igreja considera a Paixão do Salvador, os artistas cristãos substituíam outrora a coroa de espinhos por uma coroa real, E no fim da Quaresma, quando a Igreja celebra a memória da morte e do triunfo do Salvador que os concílios ordenavam que se ministrassem os sacramentos do Baptismo, da Confirmação e da Eucaristia aos catecúmenos e se admitissem à reconciliação os penitentes públicos. De modo que os catecúmenos eram sepultados com Cristo pelo Baptismo, para ressurgir com Ele; e o Tempo da Paixão e da Páscoa, marcando para todos Os fiéis o aniversário da recepção de tamanhos benefícios, recordava-lhes que a morte e a ressurreição de Cristo, que fora a causa eficiente e exemplar da morte de todos para o pecado, devia continuar a sê-lo particularmente nesta época do ano por um redobramento de fé nestes mistérios. Estas festas não são pois uma simples memória histórica relativa à pessoa do Salvador, mas devem constituir, pela união de fé e de amor que despertam nas almas e as relacionam mais intimamente com Cristo, uma realidade actual e vivificante para todo o corpo místico. Por meio delas, o duelo do Calvário estende-se Ao mundo inteiro e a Igreja alcança com Jesus Cristo todos os anos nas solenidades da Páscoa uma renovada vitória sobre satanás. Pela união íntima que o liga ao Tempo Pascal, o Tempo da Paixão tem pois por fim renovar e aumentar nas almas a fé e a virtude, ressuscitá-las ou fazê-las viver mais intensamente a vida de Cristo.
2. Exposição histórica
O Tempo da Paixão, que nos recorda os sofrimentos do Salvador, reporta-se particularmente ao último ano da sua vida, porque foi então sobretudo que o ódio dos fariseus e dos príncipes dos sacerdotes eclodiu com mais fúria para desfechar em definitivo no drama que a Igreja comemora durante a Semana Maior, ou Semana Santa.
Segundo ano. – Ressuscita o filho da viúva de Naim, perdoa a Madalena.
Terceiro ano. – Depois da Transfiguração o Salvador dirigiu-se a Cafarnaúm e subiu a Jerusalém para a festa dos Tabernáculos. Declara que é a fonte de água viva que dessedenta as almas e anuncia a sua morte próxima. Desce à Galileia e volta mais uma vez a Jerusalém para a festa da Dedicação. Os Judeus tentam apedrejá-l’O. Passa pela Pereia e é chamado a Betânia por ocasião da morte de Lázaro. O milagre da ressurreição de Lázaro criou-lhe tamanho renome que os Judeus, não podendo conter por mais tempo o ódio, resolveram exterminá-l’O. Depois disto o Senhor refugiou-se em Efrem. Seis dias antes da Páscoa voltou a Betânia e recebeu então a derradeira homenagem de Maria Madalena, que Lhe ungiu os pés com um bálsamo precioso.
Semana Santa. – Ao outro dia o Senhor entrou solenemente em Jerusalém. Deixou a cidade ao entardecer para lá voltar no dia seguinte. Foi nesta ocasião que se entrevistou com Ele no Templo um grupo de Gentios. Na Terça Feira Santa, pela tarde, dirigiu-se ao Monte das Oliveiras e predisse aos Apóstolos a tragédia próxima da Paixão. Só tornou a Jerusalém na 5ª Feira à tarde, para a última ceia e, preso na noite desse dia, morreu crucificado na sexta feira, às portas da cidade, no monte Calvário. Foi deposto nesse mesmo dia na sepultura, e ressuscitou glorioso na manhã do Domingo seguinte.
3. Exposição litúrgica
O Tempo da Septuagésima é a preparação remota da Páscoa; a Quaresma a preparação próxima; e as duas últimas semanas denominadas Tempo da Paixão, são a preparação imediata. As cerimónias da última semana, da Semana Santa, são de procedência oriental; vieram-nos da Igreja de Jerusalém, onde os fiéis, de Evangelho na mão, seguiam passo e passo o Redentor, e recolhiam in loco piedosamente a lembrança dos acontecimentos solenes que Lhe coroaram a vida mortal. Roma adoptou esta liturgia e dispôs as suas igrejas de maneira a poder celebrá-la convenientemente. Durante esta semana suprimem-se o Salmo Judica me e o Gloria Patri, que não existiam na liturgia primitiva. E a Igreja manda cobrir com véus escuros as imagens dos Santos, porque parece não seria legítimo distrairmos com os Santos a nossa devoção, do grande mistério que se opera. Se objectarem que também O Crucifixo se conserva velado, diremos que é um vestígio do antigo costume, a que já aludimos, de colocarem um véu entre a capela-mor e o corpo da igreja, Querem alguns autores que êste véu tenha por fim ocultar a cruz que era sem imagem e coberta de pedrarias. Era pois conveniente subtrair aos olhares dos fiéis este sinal de triunfo até à vitória de Sexta Feira em que era exposta à adoração dos fiéis. Despojando os altares e suprimindo o toque dos sinos na Quinta, na Sexta e no Sábado, a Igreja exprime o sentimento de dor que a fere à lembrança da morte do seu divino Esposo.
Excerto de: Dom Gaspar Lefebvre, O.S.B.; Missal Quotidiano e Vesperal, Les Press St-Augustin, 1956, Nihil Obstat, 28 de junho de 1950, Imprimatur, 29 de dezembro de 1955, pp. 371-373.
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