Padre Álvaro Calderón, F.S.S.P.X.
2010
1º Um Concílio otimista
No discurso inaugural de II de outubro de 1962, João XXIII propôs que o otimismo fosse a marca de seu Concílio:
• Otimismo frente à modernidade, que contribuiu para a liberdade da Igreja: “Nos tempos atuais, elas não veem senão prevaricações e ruínas”, são “almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação” (n. 9). “Devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”. “No presente momento histórico, a Providência está-nos levando para uma nova ordem de relações humanas […] e tudo, mesmo as adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja” (n. 10), sobretudo no fato de que “estas novas condições da vida moderna têm, pelo menos, esta vantagem de ter suprimido aqueles inúmeros obstáculos, com os quais, em tempos passados, os filhos do século impediam a ação livre da Igreja” (n. 11).
• Otimismo frente à hierarquia, indefectivel na doutrina:
“A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos, que se supõe sempre bem presente e familiar ao nosso espírito. Para isto, não havia necessidade de um Concílio.” (n.14)
• Otimismo frente aos erros, que desaparecem facilmente:
“Ao iniciar-se o Concílio Ecumênico Vaticano II, tornou-se mais evidente do que nunca que a verdade do Senhor permanece eternamente. De fato, ao suceder uma época a outra, vemos que as opiniões dos homens se sucedem excluindo-se umas às outras e que muitas vezes os erros se dissipam logo ao nascer, como a névoa ao despontar o sol.” (n.15)
• Otimismo frente aos fiéis, cuja dignidade é incorruptível:
“A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações. Não quer dizer que faltem doutrinas enganadoras, opiniões e conceitos perigosos, contra os quais nos devemos premunir e que temos de dissipar; mas estes estão tão evidentemente em contraste com a reta norma da honestidade, e deram já frutos tão perniciosos, que hoje os homens parecem inclinados a condená-los, em particular os costumes que desprezam a Deus e a sua lei […] Eles se vão convencendo sempre mais de que a dignidade da pessoa humana […].” (n. 15)
• Otimismo frente aos infiéis, todos eles cheios de boa vontade:
“parece brilhar com tríplice raio de luz sobrenatural e benéfica: a unidade dos católicos entre si, que se deve manter exemplarmente firmíssima; a unidade de orações e desejos ardentes, com os quais os cristãos separados desta Sé Apostólica ambicionam unir-se conosco; por fim, a unidade na estima e no respeito para com a Igreja Católica, por parte daqueles que seguem ainda religiões não-cristãs.” (n. 17)
• Otimismo frente à política, que em breve estabelecerá a paz: “[O Concílio] como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se conforme à semelhança da celeste” (n. 18).
• Otimismo, enfim, frente ao próprio Concílio: “O Concílio, que agora começa, surge na Igreja como dia que promete a luz mais brilhante. Estamos apenas na aurora: mas já o primeiro anúncio do dia que nasce […]” (n. 19). “Pode-se dizer que o céu e a terra se unem na celebração do Concílio” (n. 20).
E no discurso de encerramento, Paulo VI pôde proclamar que os desejos de seu predecessor foram cumpridos:
“Precisamos reconhecer que este nosso Concílio deteve-se mais nos aspectos felizes do homem que nos desditosos. Nisto ele tomou uma atitude claramente otimista. Uma corrente de interesse e de admiração saiu do Concílio sobre o mundo atual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que em vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de esperança; para que o Concílio falasse ao mundo atual não com presságios funestos mas com mensagens de esperança e palavras de confiança. Não só respeitou mas também honrou os valores humanos, apoiou todas as suas iniciativas, e depois de os purificar, aprovou todos os seus esforços.” (n. 9)
2º A alegria católica
O problema do otimismo não é pequeno nem secundário, o que hoje podemos perceber facilmente, quando à humanidade inteira se afunda na depressão. O homem perdeu a alegria ao deixar o Paraíso terrestre. A vida familiar e social, que deveria ter sido seu contentamento aqui na terra enquanto esperava a beatitude celestial, tornou-se-lhe motivo de dores e tristezas: “Deus disse à mulher: ‘Darás à luz com dores e buscarás ao teu marido com ardor, e ficarás sob o seu domínio. E disse a Adão: ‘Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar’” (Gn 3, 16-19). Os que perderam a noção do drama inicial da humanidade perguntaram-se a respeito da felicidade, e os mais lúcidos deles, Platão e Aristóteles, foram pessimistas demais quanto à possibilidade de ordenar a vida entre os homens de modo que essa meta fosse alcançada. Muito poucos lembravam-se da promessa do Redentor – por duas vezes um só homem: Noé e Abraão –, e apesar de Deus ter feito deles um povo, o Povo da Promessa, muitas vezes teve que lhes reacender a esperança, tantas foram as tristezas que por que passaram. De fato, quando finalmente veio o Salvador, o farisaísmo precipitara todo o povo judeu num profundo desespero: “Jesus perguntou aos Doze: Quereis vós também retirar-vos? Respondeu-lhe Simão Pedro: ‘Senhor, a quem iríamos nós? [Só] Tu tens palavras de vida eterna’” (Jo 6, 67).
Jesus Cristo não apenas nos devolveu o otimismo a0 anunciar-nos a iminência do Reino de Deus: “Ide e pregai anunciai que o Reino dos céus está próximo” (Mt 10, 7), mas também nos deu em antecipação a alegria da sua posse: “Em verdade vos digo que o Reino de Deus já está no meio de vós” (Lc 17,21). Porque o otimismo consiste na esperança certa do bem ótimo, que não pode ser outro senão Deus, ao passo que a alegria consiste na sua posse e Jesus Cristo não só nos conduz a Deus, mas é Deus conosco: “Eu sempre estarei convosco até a consumação do século” (Mt 18, 20). Porém a alegria cristã, que quase poderia ser considerada como a quinta nota da Igreja Católica, guarda lá seu mistério, uma vez que brota da cruz, assim como as águas brotavam do Paraíso para regar a terra inteira. E essa alegria cristã é capaz de alimentar-se das maiores tristezas, porque nasce da aceitação amorosa do sofrimento em união com o sacrifício de Cristo: “Eles saíram do Sinédrio, cheios de alegria, por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (At 4, 41).
O mistério da alegria católica, portanto, concentra-se na Eucaristia, porque por ela nos unimos ao sacrifício de Cristo, nela conservamos a sua presença, com ela comungamos na sua vida. A Cristandade medieval soube ser alegre em meio a inúmeros sofrimentos porque teve uma grande devoção à Cruz, devoção muito crua que se fazia suave e como que humana graças a uma devoção tão grande ou maior à Eucaristia e à Virgem Maria. Mas a espiritualidade da Cruz exige uma fé muito viva, que parece insensata e doentia aos olhos puramente humanos: “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (I Co 1, 23). Por isso é compreensível que os que foram caindo naque la acídia que deu lugar àquilo que chamam erroneamente de Renascimento julgassem de maneira negativa o espírito que forjara a Cristandade. E assim o humanismo dos séculos XIV e XV pretendeu ser uma reação otimista diante do suposto pessimismo do catolicismo medieval. A espiritualidade sacrificial da idade média teria conduzido a um desprezo dos valores puramente humanos, e os homens do Renascimento quiseram mostrar que era possível desfrutar das belezas terrenas no tempo, deixando para a eternidade as alegrias do céu.
3º O otimismo histórico
O homem antigo, então, que guardava uma lembrança confusa de suas origens e que perdera a promessa da redenção, não tinha esperança no futuro. O estado ideal da humanidade tinha sido o do começo, quando contava com o favor dos deuses; a sua memória fôra preservada nos mitos:
“A sociedade tradicional [antiga] estava tomada pela nostalgia de um mítico retorno às origens, ao tempo primordial. O futuro era uma ameaça de desintegração e morte. […] Em um sentido propriamente histórico, o homem arcaico carecia em absoluto dessa confiança no futuro da humanidade, suscitada pela esperança nos ‘amanhãs que cantam’ […] Diante da pergunta: Como o homem suporta a história?, a resposta religiosa é sempre negativa: a história é a queda, o pecado mitológico por antonomásia e o triste reino dos efêmeros. A história nasce com a perda do paraíso e da relação primordial do homem com Deus. […]”
O homem antigo não conheceu a fé no esforço progressivo do homem e careceu de esperança na história. Para eludir a ação destruidora do tempo, refugiou-se na perene repetição dos arquétipos míticos. A história era o reino da corrupção e da morte. [R. Calderón Bouchet, Esperanza, historia y utopía, Buenos Aires, p. 32 e 183.]
Só o Povo eleito olhará a história com otimismo, fundando-se na promessa do Redentor:
“A atitude histórica do povo de Israel é a primeira a romper o círculo vicioso no qual vinha se movendo o homem antigo. Israel nasce para a história sob a pressão da promessa de Javé. Tal promessa, um tanto vaga e imprecisa em seu início, vai, ao longo do processo histórico desse povo, adquirindo maior consistência. Anuncia o tempo do Messias, o rei saído da raça de David, que há de corresponder à esperança de seus fiéis concedendo-lhes a posse de um reino imperecedouro.” [Op. cit. p. 34.]
Mas Deus, como bom Pedagogo, para que fosse conduzindo pouco a pouco o seu povo a uma maior maturidade espiritual, havia alentado a expectativa do Reino com promessas terrenas – como a uma criança se promete um doce para que reze suas orações –, as quais, sem serem falsas, não deviam no entanto ser interpretadas de maneira carnal.
Pois bem, os espíritos carentes de elevação religiosa foram criando uma ideia do Reino messiânico totalmente terrena e temporal, na qual foram inserindo sobretudo os desejos de vingança e emulação causados pelo domínio romano. E as-sim, quando o Messias finalmente chegou, os chefes do povo judeu estavam tomados pela esperança de um império judeu mundial de caráter político, que colocaria Israel à frente das nações, de modo que não lhes agradou a proposta de Jesus Cristo, de um predomínio puramente espiritual, com a instauração definitiva do Reino de Deus logo em seguida ao fim dos tempos. E por isso o crucificaram.
As palavras e o exemplo de Jesus Cristo, por sua vez, não inspiram otimismo histórico algum, mas antes o oposto: “Quando o filho do homem vier, acaso achará fé sobre a Terra?” (Lc 18, 8). “Então a tribulação será tão grande como nunca foi vista, nem do começo do mundo até o presente, nem jamais será. Se aqueles dias não fossem abreviados, não se salvaria criatura alguma; mas serão abreviados por amor aos eleitos” (Mt 24, 21). De fato a Igreja não esperará em todo o tempo histórico sorte melhor do que a de Cristo, que acabou seus dias crucificado. Porém, embora espere ser crucificada pelo Anticristo, nem o por isso o faz com pessimismo, porque então será o momento de devolver ao seu Redentor o mais puro sinal de amor, que é dar a vida pelo Amigo. Além disso, sabe ela que esse aparente fracasso da carne encobre um verdadeiro triunfo do espírito, e que enquanto conservar em si a disposição ao martírio, as portas do inferno (isto é, as potências corruptoras do maligno) jamais triunfarão: “No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). E o que dissemos da Igreja em geral aplica-se em particular a cada fiel cristão, que não espera nada de muito extraordinário nos dias de sua história pessoal, a não ser dar o testemunho do sacrifício:
“Eu prodiguei minha vida, prodiguei meu futuro por Vosso amor, ó Jesus! Aos olhos profanos dos homens, como rosa emurchecida, para sempre um dia morrerei. Mas morrerei por Vós, ó meu Menino, ó beleza sem igual! Que destino feliz! Desfolhando-me Vos quero mostrar meu amor (Santa Teresinha, seis meses antes de morrer de tuberculose).”
Esta é justamente a atitude que a reação humanista vai repudiar como pessimista em seu intento de dar à vida e à história do homem uma visão mais positiva. Para tanto, prestará mais atenção à economia e à finalidade temporal da política, aproximando assim suas novas esperanças da carnalizada esperança judaica. A única diferença – até quando, quem sabe? – está no fato de que a instauração do Reino não seria obra de um messias, senão da própria humanidade. O otimismo histórico judaizante será especialmente reiterado pelo humanismo iluminista do século XVIII, sob a ideia de um inevitável “progresso” da humanidade: “A ideia motriz por trás de tais esperanças foi a concepção dominante, cada vez com mais força desde o Renascimento, de que a história humana se move rumo a uma meta intramundana por um processo continuamente progressivo” [*]. O grande teórico dessa ideia será Hegel, com sua Fenomenologia do Espírito. As hipóteses evolucionistas serão introduzidas na biologia, com a autoridade incontestável das novas ciências positivas. E quem se transformará em motor das mudanças políticas será Karl Marx. A dialética marxista não deixará de pedir o sacrifício pessoal, só que não para ingressar pessoalmente na alegria do Reino de Deus, mas sim para preparar o advento na história do Reino do Homem, do qual poderá desfrutar uma sempre futura e utópica Humanidade.
[*. M. Schmaus, Teologia dogmática. VII. Los novísimos, 2ª ed. RIALP, Madrid 1965, p. 42. Cf. R. Calderón Bouchet, Esperanza, historia y utopia, p. 79:
A leitura do livro de John Bury que tem por título A ideia de Progresso confirma uma antiga suspeita de que, apesar de suas origens religiosas, esta ideia alcança sua plenitude apenas na época do chamado “Iluminismo”. O processo de secularização sofrido pela civilização latina a partir do triunfo cada vez mais acelerado do espírito capitalista desloca a esperança do homem da ordem sobrenatural para a natural e alimenta, como consequência, os triunfos prodigiosos da técnica, a convicção que permite manter um esforço continuamente perfectivo no domínio econômico da realidade.]
A visão do otimismo histórico não é outra coisa senão a transposição da História Sagrada para a ordem puramente humana e temporal:
“O mundo moderno formou-se no contexto espiritual de motivações cristãs laicizadas e de certo modo deformadas por uma orientação da conduta que põe as suas preferências numa valoração econômica da vida. Em tal contexto, o mundo da história é a única pátria do homem. Modificar nossa situação terrena de acordo com as exigências de nossa instalação material é o único fim capaz de despertar o ímpeto de nosso esforço criador. O conhecimento será medido em termos de poder sobre as coisas e a fé nas obras do homem, por sua favorável influência no exercício da tarefa transformadora. A esperança, sempre regulada pela fé, não pode transcender o campo delimitado por esta. Será uma esperança no progresso, com um caráter decididamente histórico e cada vez mais marcadamente coletivo.”
[R. Calderón Bouchet, Esperanza, historia y utopia, p. 184. Cf. Schmaus, op. cit. p. 50: “Estas e outras imagens do futuro são descendentes secularizados e, por assim dizer, filhos ilegítimos e impossíveis de legitimar, da esperança cristã no futuro. Aquilo que é, segundo a Revelação cristã, a figura transcendente do futuro é o que eles prometem como estado final intramundano e intra-histórico. Sem a revelação de uma meta definitiva da história, dificilmente seriam imagináveis tais visões intra-mundanas do futuro. Mas nelas a verdadeira e legítima esperança no futuro degenerou em utopia e fanatismo. A convicção de que há um progresso interminável, longe de ser confirmada pela experiência, é negada por ela. Esta indica, ao contrário, que os homens destroem a si próprios.
“Schmaus é um liberal conservador que incluímos entre os ‘humanistas moderados’ (na verdade, de centro-esquerda). Parece-nos ter tido uma importância semelhante (e simétrica) à do Cardeal Journet (de centro-direita). Enquanto este ofereceu uma teologia tomista aberta ao pensamento moderno, aquele ofereceu uma teologia moderna não fechada ao pensamento tradicional.”]
4° Em resgate do otimismo humanista
O humanismo começou católico, e embora rapidamente tenha se tornado protestante com a Reforma e racionalista com o iluminismo, nunca faltaram – como já vimos – renovações católicas buscando o “meio-termo”. Isto se constata, em particular, no otimismo histórico. Uma das tantas coisas que pretendeu renascer com o Renascimento foi uma visão mais positiva do futuro do homem, pois o tempo é um de seus valores mais humanos. Três recursos estão à disposição do teólogo para aderir a isso sem deixar de ser católico: 1° atenuar o pecado original; 2° acentuar o progresso evangélico; 3° ressuscitar o milenarismo.
1° Para além das consequências do pecado original na pessoa individual, que ficou privada de graça e ferida em sua natureza, seguem-se ainda outras duas, que constituem junto com a primeira o que o catecismo chama de “inimigos da alma”: a carne, o mundo e o demônio.
• As consequências individuais, que nem sequer o batismo apaga de todo nesta vida, [III, q. 69, a. 3] fazem com que as estatísticas sejam contrárias ao homem, de maneira que mesmo a santidade sendo possível para uma pessoa particular, não é possível para toda uma sociedade, e se bem que é possível algumas nações serem suficientemente cristãs, não é possível que toda a humanidade o seja. O motivo é simples, pois quando a natureza é sã, o bem se dá na maioria e o mal na minoria, mas quando a natureza está ferida, ocorre o contrário. [*] E se este argumento parecer demasiado severo, basta olhar os dois mil anos de história da cristandade para comprovar o quanto é justo.
[*. I, q. 23, a. 7 ad 3: “O bem proporcionado ao estado comum da natureza se verifica em muitos. A ausência desse bem, em poucos. Mas o bem que ultrapassa o estado comum de natureza existe em poucos, está ausente em muitos. Por isso, podemos comprovar que os homens dotados de inteligência suficiente para guiar sua própria vida são muitos. Os que não a têm, e que são chamados de tolos ou idiotas, são poucos. Mas com relação a ambos, pouquíssimos são aqueles que chegam a ter um conhecimento profundo das coisas. É assim que, dado que a felicidade eterna, consistindo na visão de Deus, ultrapassa o estado comum da natureza, sobretudo por esta ter sido privada da graça pela corrupção do pecado original, poucos são salvos. E nisso contempla-se a imensa misericórdia de Deus, que eleva até aquela salvação da qual muitos se veem privados por inclinação natural.”]
• Como os nossos primeiros pais pecaram por crer mais em Satanás que em Deus, mereceram ser entregues ao seu tirânico domínio, como réus ao verdugo; domínio tremendamente facilitado por contar com a cumplicidade da voluptuosa carne e dos poderes egoístas do mundo.
O teólogo humanista pedirá para não demonizar demais o combate espiritual e reduzir as consequências individuais do pecado à simples privação da justiça original, evitando assim uma visão por demais negativa da natureza humana. Como muitos certamente caem nesse excesso, são duas coisas fáceis de conceder. E dessa forma já não há mais razões para negar que possa haver boas sociedades mesmo entre os pagãos.
2° A esta atenuação do pecado original pode-se acrescentar que não apenas há profecias pessimistas na Revelação, que Nosso Senhor anunciou também que o Evangelho seria pregado em todo o mundo, que nada seria negado aos que pedissem com fé e que as portas do inferno jamais prevalecerão. Afinal, ao lado da lei do progresso do mal, fundada no triunfo de Satanás na árvore do Paraíso, prenunciando a progressiva debilitação da fé e o esfriamento da caridade, está também a lei do progresso da Igreja, fundada no triunfo de Cristo na árvore da Cruz. A única coisa que o teólogo otimista precisa é esquecer que o triunfo da Igreja passa pela participação no sacrifício de Jesus Cristo, passando assim a olhar a história como uma progressiva aproximação da transformação gloriosa de uma Igreja onde se inclui generosamente a humanidade inteira.
3° Esta revalorização do tempo histórico leva quase necessariamente a ressuscitar alguma forma de milenarismo, uma ilusão judaizante que sempre tem tentado especialmente os inconformados com o estado atual das coisas. [Esta justificação psicológica parece-nos muito acertada. O milenarismo deu alento ao nacionalismo judeu diante da humilhante dominação romana. E se o milenarismo também foi vivo entre os cristãos dos primeiros séculos, foi em grande parte para se manterem diante das perseguições, por mais que contasse com a justificativa das verdadeiras promessas de Cristo sobre o triunfo do Evangelho. Se o sonho milenarista reaparece nos séculos XIII e XIV, retomando as ideias do iluminado abade Joaquim de Fiore, isso se dá por inconformidade com o estado da Igreja e em particular o da hierarquia eclesiástica:
[Para o Talmude (Arac. Sanh. 97), ] argumentando que o mundo fôra criado em seis dias, aos quais se seguiu o descanso no sétimo, o mundo duraria sete dias divinos, cada um de mil anos, ou seja, sete mil anos, distribuídos da seguinte maneira: Dois mil antes da Lei dada por Deus a Moisés, dois mil durante esta Lei, e outros dois mil sob o Messias, como descanso haveria mil anos no reino temporal dos justos com o Messias” (Enciclopedia de la Religión Católica, Barcelona 1953, verbete “Milenarismo”).
De acordo com Joaquim de Fiore, os quatro mil anos do Antigo Testamento são a idade do Pai, tempo dos casados; logo vem a idade do Filho, tempo dos clérigos, que ele pensava estar chegando ao fim em sua época, mas que nos poderíamos contar pelos dois mil anos do Talmude; e finalmente, segundo dão a entender as profecias de João Paulo II, aproxima-se o milênio do Espírito Santo, que Joaquim acreditava ser o tempo dos monges espirituais, mas que deveríamos considerar a “new age” dos leigos inaugurada pelo Vaticano II, já fartos do clericalismo dos dois mil anos anteriores. A “nova teologia” não deixou de prestar muita atenção ao velho monge. Henri de Lubac dedicou um ensaio em dois volumes à “posteridade intelectual de Joaquim de Fiore”.]
Com esses recursos, os teólogos católicos podiam acompanhar e defender em maior ou menor grau as sempre precárias ideologias do progresso. Quem conseguiu converter e batizar o inimigo mais cruel da teologia católica tradicional, o prestigiosíssimo evolucionismo científico, foi Teilhard de Chardin, causando um enorme alívio a todos aqueles que viam o catolicismo afastar-se cada vez mais do movimento da história. No entanto, sua teocienciologia não passou sem censura sob o olhar do Santo Ofício, que deferiu um Monitum contra a sua doutrina em 1962. Outros aderiram ao progressismo com mais cautela, entre os quais sobressaiu, tanto pela sua ciência, como por sua prudên-cia, Jacques Maritain. Seu primeiro modus operandi, no que lhe foi muito útil ser um mero leigo e não um religioso jesuíta como Teilhard, foi manter a distância entre as ciências humanas e a doutrina eclesiástica. Sendo católico e tomista, manteve sempre sua condição de “filósofo”, de modo que Roma ficasse tranquila, e ao mesmo tempo, com a sua versão particular da “filosofia cristã”, pôde laicizar metodicamente as verdades reveladas para dar suporte à estratégia do “humanismo integral”. [*] Embora situados nos extremos do espectro progressista, Teilhard e Maritain foram ambos – sendo difícil dizer quem deles foi mais – veneráveis Pais do otimismo conciliar.
[*. Por mais que este juízo a respeito de Maritain nos pareça importante e saibamos que isto não pode ser compreendido sem maiores explicações, não queremos estender-nos demais em um livro que pretende ser uma síntese. Ilustremos, por isso, a afirmação com um exemplo. Em seu livro On The philosophy of history, Maritain estabelece o “duplo progresso” como primeira “lei funcional” da história. Com a parábola do trigo e do joio, que deverão crescer juntos até o dia da ceifa, sublinha a lei teológica do duplo progresso do bem e do mal que mencionamos nos parágrafos anteriores. Mas com o seu método da chamada filosofia cristã, justifica a transposição dessa lei revelada para uma ordem supostamente filosófico-mundana: “O que gostaria de enfatizar agora aos poucos é que a parábola do trigo e do joio tem um significado universal válido tanto para o mundo como para o reino da graça. E devemos dizer, do ponto de vista filosófico, que o movimento progressivo das sociedades ao longo do tempo depende dessa lei do movimento duplo – que se poderia ser chamar, neste caso, de lei da degradação, por um lado, e da revitalização, por outro, da energia da história, ou do emaranhado da atividade humana do qual depende o movimento da história. Enquanto o desgaste do tempo e a passividade da matéria naturalmente dissipam e degradam as coisas deste mundo, a energia da história, as forças criadoras que são próprias do espírito e da liberdade e que são sua prova, e que normalmente têm seu ponto de aplicação no esforço de alguns poucos, revitalizam constante a qualidade desta energia. Desse modo, a vida das sociedades humanas avança e progride às custas de muitas perdas. Avança e progride graças à revitalização e superelevação da energia da história brotando do espírito e da liberdade humanas. Mas ao mesmo tempo essa mesma energia da história é degradada e dissipada em razão da passividade da matéria. Além do que, o elemento espiritual está, nesse mesmo sentido, acima do tempo e isento de envelhecimento. E, naturalmente, em certos períodos da história o que prevalece e predomina é o movimento da degradação, enquanto em outros períodos é o movimento do progresso. Minha opinião é que ambos existem ao mesmo tempo, em maior ou menor grau” (Filosofia de la historia, Troquel. Buenos Aires 1971, p. 53-54. Grifos nossos).
O “duplo progresso teológico” é uma lei bem fundada, pois tem por princípios, como dissemos, por um lado as consequências do pecado original, e por outro, a graça reparadora de Cristo. Porém Maritain restringe sua validade ao platônico “reino da graça” que só o teólogo é capaz de apreciar. Para o “mundo” o filósofo propõe uma lei simétrica, cujos princípios seriam “a passividade da matéria” e “a energia da história brotando do espírito e a liberdade humana”, i.e., a oposição (será que dialética?) entre a matéria (ou necessidade) e o espírito (ou liberdade). E aqui nos perguntamos: “A energia da história que brota do espírito” é a graça de Cristo, ou há “alguns poucos” espíritos que não contraíram o pecado original? Mas parece que pecamos ao misturar a teologia com a filosofia. Com sua aderência ao âmbito da filosofia, Maritain evita qualquer Monitum do Santo Ofício, e assim vai sustentando, na mão esquerda, Hegel e na direita, Santo Tomás, numa dupla verdade assaz esquizofrênica. Mas apesar de louco, não era idiota, pois guarda na manga esquerda o ás da lei do progresso do mal. de modo a poder sacá-lo quando a lei do progresso da liberdade de consciência não funcionar. E, enfim, um progressista pronto para o que der e vier.]
E contudo a única que se manteve irredutivelmente contrária ao progressismo foi a história real, respondendo sempre com péssimo humor a cada iniciativa de otimismo. Ao otimismo renascentista seguiu-se a guerra dos cem anos entre França e Inglaterra, ao otimismo reformado seguiram-se as guerras de religião em meia Europa, ao otimismo iluminista seguiu-se a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas na Europa inteira, e ao otimismo socialista, as duas guerras que mereceram o qualificativo de mundiais. [É de temer que ao otimismo maçônico global, canonizado pelo Vaticano II, siga-se o holocausto nuclear.] E por mais que o verdadeiro otimista saiba que a desgraça presente é presságio da felicidade futura, ao ver tantas vezes postergado o milênio da paz, ao mesmo tempo em que lhe pedem cada vez um sacrifício maior, o homem contemporâneo foi caindo vítima da depressão, sendo tentado a entregar-se ao pior pessimismo, inaugurando uma nova época de pós-modernidade.
Pode-se dizer, portanto, que o problema mais urgente da segunda metade do século vinte consistia em achar um antidepressivo capaz de resgatar o otimismo do homem moderno. A alegria católica, como dissemos, sempre assombrou tanto os antigos como os modernos. Enquanto permaneceu na casa paterna, que é a Igreja, o humanismo pode desfrutar dessa alegria, mas quando, como o filho pródigo, partiu para países distantes com a reforma protestante, em pouco tempo a dissipou, porque é evidente que não pode haver alegria sem a maternidade da Virgem, sem a paternidade do Sacerdócio e sem o júbilo da Eucaristia. O “humanismo novo”, porém, aquele que busca reconciliar o catolicismo com a modernidade, em vez de esperar, como o pai da parábola evangélica, até que o filho volte arrependido, quer abrir-lhe a casa para que entre e saia quando bem entender, acompanhado de seus novos amigos. E tendo conseguido emplacar um Papa adepto da causa, aventurou-se, com o Vaticano II, num esforço de sofisticada alquimia para oferecer à modernidade a positiva alegria das riquezas católicas, purificada totalmente da negativa espiritualidade sacrificial. Tentativa naturalmente fadada ao fracasso, porque a fonte da alegria cristã brota precisamente ao pé da árvore da Cruz.
5° Alegria e esperança do Concílio para a humanidade
A pílula do otimismo que o Vaticano II preparou para a humanidade inteira é, tal como seu nome o sugere, a Constituição pastoral Gaudium et spes (“Alegria e esperança”). Apesar de reconhecer a existência de fortes contrastes nos tempos presentes, seu veredito – contrário ao que julgaram os Papas dos últimos séculos – é decididamente positivo: tudo não passa de uma crise de crescimento, “accretionis crisis”. [*] O princípio ativo do remédio conciliar pode ser resumido na estúpida frase da década de 1970: “Sorria, Deus te ama”. Porque se o fim da criação é a glória de Deus tal como a entende a teologia tradicional, há motivo para uma grande seriedade, já que o Criador poderia reclamar sua glória com um castigo exemplar, uma vez que – por mais difícil que seja dizê-lo – até os homens que por culpa própria se condenam glorificam a justiça de Deus. Mas se o fim da criação for a glória de Deus tal como a entende a teologia nova, ie., a glória e a dignidade da pessoa humana, então nós todos temos motivo para sorrir, pois Deus não pode falhar em sua finalidade: não haverá pessoa alguma que fique sem dignidade. Uma consequência, que podemos considerar metafísica, dessa inversão antropocêntrica dos fins da criação, é a salvação universal do homem. Somente poderia vir a ser condenado aquele que perdesse a sua condição de pessoa humana. [**]
[*. Gaudium et spes n. 4: “A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e coletivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa. Como acontece em qualquer crise de crescimento, esta transformação traz consigo não pequenas dificuldades. Assim, o homem, que tão imensamente alarga o próprio poder, nem sempre é capaz de o pôr ao seu serviço. Ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio respeito. E, descobrindo gradualmente com maior clareza as leis da vida social, hesita quanto à direção que a esta deve imprimir. Nunca o gênero humano teve ao seu dispor tão grande abundância de riquezas, possibilidades e poderio econômico; e, no entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra é atormentada pela fome e pela miséria, e inúmeros são ainda os analfabetos. Nunca os homens tiveram um tão vivo sentido da liberdade como hoje, em que surgem novas formas de servidão social e psicológica. Ao mesmo tempo que o mundo experimenta intensamente a própria unidade e a interdependência mútua dos seus membros na solidariedade necessária, ei-lo gravemente dilacerado por forças antagônicas.”]
[**. Esta parece ser a condição do condenado segundo Bento XVI, em sua encíclica Spe salvi, de 30 de novembro de 2007: “Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si mesmas o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor. Pessoas nas quais tudo se transformou em mentira; pessoas que viveram para ódio e que pisotearam nelas mesmas o amor. Esta é uma perspectiva terrível, mas podemos em alguns casos de nossa própria história distinguir com horror pessoas desse tipo. Em semelhantes indivíduos já não haveria mais nada remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é isto o que se indica com a palavra inferno.”
Parece que no inferno há espaço só para Adolf Hitler e mais um que outro.]
E quanto aos resultados do tratamento, já estamos constatando que foram desastrosos, porque é terrível que um médico confunda os sintomas de um câncer terminal com os de uma crise de crescimento. Pois, como sugere o discurso de João XXIII, a passagem passar da visão católica tradicional da história humana, que tem certamente um toque de pessimismo – porque “o mundo inteiro jaz em poder do maligno” (1 Jo 5,19) e muito mais na atualidade -, para o insensato otimismo conciliar incluía a pretensão de mudar diametralmente todas as atitudes da Igreja, em particular a relação da hierarquia com os fiéis, com os poderes políticos, com as religiões e com o mundo em geral.
Excerto de: PADRE ÁLVARO CALDERÓN, F.S.S.P.X.; Prometeu, a religião do homem, Castela Editorial, 2020, pp. 77-93.

Deixe um comentário