Monsenhor Michel-Louis Guérard des Lauriers, O.P.
1987
Sodalitium: Pode nos explicar brevemente sua posição sobre a situação atual da Igreja Católica e a pessoa que ocupa a Sé Pontifícia desde meados de outubro de 1978 (o que equivale a expor a chamada tese de “Cassiciacum”)?
Mons. Guérard:
(I) O enunciado da “Tese de Cassiciacum” (doravante designada como “tese C”)
α) Este enunciado requer um pressuposto metafísico que é indispensável explicitar. Todo ente criado é composto. Se o ente é material (e não espírito puro), a composição é de matéria e forma. A forma é definida como: “Quo aliquid habet esse” – “aquilo pelo qual algo tem o ser”; assim, a alma é a forma do composto humano. A matéria, considerada globalmente, no ente, é aquilo que é distinto da forma e que tem o ser mediante a forma. A matéria-sujeito é definida como: “Quod habet esse” – “aquilo que, no ente concreto, tem o ser”; assim, o corpo unido à alma, no composto humano. Donde resulta que, do ponto de vista metafísico (que é o do “esse”), a matéria é determinada pela forma; existe, da matéria para a forma, uma relação ontológica (on, ontos: o ser), que é de determinada para determinante.
De modo que, se, em um mesmo ente concreto, se encontram duas “partes” A e B, tais que A é – do ponto de vista ontológico – determinado por B; e se se deseja caracterizar esta relação que há no ente entre A e B, colocando-se do ponto de vista do ente, deve-se dizer isto. Examinar o ente materialiter é considerar nele a “parte” A; examinar o ente formaliter é considerar nele a “parte” B. Examinar um homem materialiter é considerar nele o corpo e tudo o que tem relação com o corpo; examiná-lo formaliter é considerar nele a alma e tudo o que tem relação com a alma.
Por que introduzir a distinção materialiter-formaliter, a qual parece ser uma abstração e uma complicação? Se se faz isso, é por desejo de realismo, para que o discurso seja mais conforme à realidade. Com efeito, o que existe é o todo, o composto, o homem no qual se unem corpo e alma. O corpo sem alma não é um corpo humano; a alma humana separada não é uma pessoa. Se se quer tomar o corpo e a alma tal como são na realidade, é necessário considerá-los no todo; deve-se considerar tal homem segundo seu corpo, o que é considerá-lo materialiter (do ponto de vista da “matéria”); e deve-se considerar tal ser humano segundo sua alma, o que é considerá-lo formaliter (do ponto de vista da “forma”). A distinção materialiter-formaliter, que é uma distinção de “pontos de vista”, parece então ser mais abstrata do que a distinção matéria-forma, a qual é uma distinção de “coisas”. No entanto, na realidade, a distinção materialiter-formaliter respeita melhor o ente concreto e a verdadeira natureza das “partes” tal como são realmente no ente, e somente no ente.
Desta conformidade máxima com a realidade, segue-se necessariamente que a distinção materialiter-formaliter tem ex se um alcance analógico que a distinção matéria-forma não pode ter; a qual concerne, não ao esse como tal, mas somente a uma categoria particular de entes criados.
β) A relação que existe entre a pessoa física do Papa e o carisma papal encontra-se claramente especificada por meio da distinção materialiter-formaliter.
Expliquemo-lo considerando um “caso concreto”: O Cardeal E. Pacelli é eleito por um Conclave válido. Ainda não é Papa; contudo, ao contrário de todos os outros Cardeais, o Cardeal Pacelli – e somente ele – está em disposição última de tornar-se Papa; assim como, durante a geração, a matéria que vai tornar-se a do gerado está em disposição última para receber a forma deste. Pode-se então dizer, por analogia, que a pessoa física eleita por um Conclave que se supõe válido, é constituída Papa materialiter ipso facto; com a condição, todavia, de que tal pessoa física não esteja afetada por um obex que permaneça oculto e suspenda o estado normal da eleição
O Cardeal E. Pacelli aceita a eleição. Recebe, no ato mesmo da aceitação, a Comunicação exercida por Cristo em favor de Pedro e seus Sucessores (Jo XXI, 15-17), e é então constituído Vigário de Jesus Cristo. E como o fato de ser Papa consiste precisamente nisso, em ser Vigário de Jesus Cristo, diz-se que a mesma pessoa física (o Cardeal Pacelli) que era Papa apenas materialiter em virtude da eleição, se torna Papa formaliter no ato mesmo em que aceita a eleição. Há, porém, para a segunda etapa (formaliter), uma condição sine qua non, tal como para a primeira etapa (materialiter). Esta condição é evidente, e é a seguinte: é necessário que, no mesmo momento em que o Cardeal Pacelli afirma externamente aceitar a eleição, não apresente interior e ocultamente um obex que lhe impeça de receber a Comunicação prometida e exercida por Cristo. Se se verificasse ulteriormente que existia tal obex no ato de aceitação, o Cardeal Pacelli não seria em momento algum Papa formaliter.
A distinção formaliter-materialiter, entendida como acaba de ser exposta, foi utilizada por São Roberto Belarmino. Esta distinção, e as duas condições sine qua non que acabam de ser determinadas, impõem-se também pela metafísica do “senso comum”, e em virtude do direito natural fundado sobre esta metafísica e exigido por ela; por conseguinte, subjacente até mesmo ao direito divino, a fortiori ao direito canônico e ao direito puramente eclesiástico.
χ) O enunciado da “tese C”, conforme a distinção formaliter-materialiter.
A “tese C” concerne à relação tratada no parágrafo precedente (β): a relação entre a pessoa física que “ocupa” – ao menos aparentemente – a Sé episcopal de Roma, e o carisma próprio do Papa. O modo de possuir esse carisma, isso é o que constitui o modo de ser Papa.
A “tese C” compreende duas partes, conforme os dois membros da distinção chave (formaliter-materialiter):
A) O ocupante da Sé Apostólica (o Cardeal Montini, ao menos desde 7 de dezembro de 1965, Mons. Luciani, Mons. Wojtyla) não é Papa formaliter. Não se deve designá-lo com o termo “Papa”.
Quer dizer, o mencionado “ocupante” não é, em nenhum de seus atos, o Vigário de Jesus Cristo. Estes atos, na medida em que precisamente pretendem ser atos do Papa como tal, são nulos. Não se deve desobedecer às “ordens” supostamente ditadas por Mons. Wojtyla enquanto Papa, pois ele não é, de fato, o Vigário de Jesus Cristo. Todas as ordens ditadas sob esse pseudo-título são vãs, nulas, sem qualquer alcance na realidade. Deve-se ignorá-las, não desobedecê-las.
B) O “ocupante” da Sé Apostólica é, não obstante, “papa” materialiter. Pode-se, por conveniência, designá-lo com o nome de “papa”: as aspas indicam que não é Papa.
Quer dizer, o “ocupante” ocupa a Sé de maneira ilegítima e sacrílega (pois não é Papa e se faz passar por tal), mas a ocupa. Designar um Papa verdadeiro exige, canonicamente, como condição prévia, ter constatado e declarado a vacância real da Sé materialmente ocupada.
C) Em suma: no mais tardar, a partir de 7 de dezembro de 1965, há vacância formal da Sé Apostólica, embora a Sé tenha estado e ainda esteja “ocupada” materialiter por três pessoas, todas em estado de Cisma capital.
(II) A prova da “tese C”, em cada uma de suas partes
α) A prova da parte (A), a saber: o “ocupante” da Sé Apostólica não é Papa formaliter. Pois, tal como expliquei antes (I B), o eleito por um Conclave que se supõe válido não é constituído Papa formaliter no ato mesmo de sua própria aceitação, senão que, no mesmo instante em que realiza este ato publicamente, não apresente interiormente outro ato, ainda que interiormente e em estado oculto, que lhe impeça de receber a comunicação prometida e exercida por Cristo. Já que, com efeito, é recebendo essa comunicação que se é, em ato, Vigário de Cristo; isto é, Papa formaliter. Opor-se voluntariamente a essa recepção é tornar voluntariamente impossível ser Papa formaliter.
Deve-se evidentemente, a priori, presumir a fidelidade da pessoa que aceita a eleição de um Conclave válido. Leão XIII, entretanto, declarou expressamente (“Apostolicæ Curæ”, 13/09/1896; DS 3318): “A Igreja deve julgar a intenção na medida em que esta se manifesta exteriormente”. O “ocupante” (da Sé Apostólica), ao aceitar a eleição do Conclave, teve realmente a intenção de receber a Comunicação exercida por Cristo? Para responder a esta pergunta, é necessário, segundo Leão XIII, considerar os fatos. Se o “ocupante” tivesse realmente a intenção de receber tal Comunicação, então deveria depois, habitualmente, conformar-se a todas as exigências desta. Se, ao contrário, se verificasse que, contínua e sistematicamente, o “ocupante” vai contra as exigências mais fundamentais inerentes à Comunicação exercida por Cristo, deve-se concluir (segundo Leão XIII) que o “ocupante” não teve realmente a intenção de recebê-la, e que, por conseguinte, nunca foi (ou deixou de ser) Papa formaliter.
Ora, nesse caso, as exigências da Comunicação exercida por Cristo em favor de Pedro e seus Sucessores são de duas classes. Algumas são, de fato, pressupostas à Comunicação, mas resultam da ontologia; de modo que, embora de ordem natural, são imperiosamente necessárias para a Comunicação, pois lhe são imanentes. As outras exigências são consequentes à Comunicação e de ordem sobrenatural “quoad substantiam”. Examinemos sucessivamente essas duas classes de exigências, observando como o “ocupante” da Sé Apostólica se comporta diante de cada uma delas, respectivamente.
Cristo, ao instituir Sua Igreja como Sociedade humana visível, sancionou ipso facto para ela as normas que são imanentes por natureza, e portanto necessárias, a toda Sociedade deste tipo. Ora, nos limitamos a recordá-lo aqui: em toda Sociedade, a própria existência da autoridade requer que esta esteja fundada no propósito de realizar o bem comum, que é o fim da Sociedade. Uma “pessoa” física ou moral que, no seio de uma Sociedade, buscasse habitualmente e de múltiplas maneiras a destruição do bem comum que lhe é próprio, tal “pessoa” então, não pode ser a autoridade na Sociedade. A Igreja, ao nascer segundo esta Lei, “eam non minuit, sed sacravit” (do mesmo modo que “Jesus, ao nascer de Maria, consagrou Nela a Virgindade, e não a diminuiu”). Pois bem, observamos que, há 25 anos, por processos indiretos, mas muito eficazes e convergentes, o “ocupante” da Sé Apostólica prossegue a degradação daquilo que justamente deveria promover; a saber, o “Bem” confiado como próprio da Igreja por Seu Divino Fundador, particularmente a Oblação Pura e o Depósito Revelado. Donde se segue que o “ocupante” da Sé Apostólica não pode ser a “Autoridade” na Igreja, não é Papa formaliter.
A Comunicação exercida por Cristo em favor de Seu autêntico Vigário apresenta igualmente “prerrogativas” (e, vistas de fora, “exigências”) que lhe são consequentes; a principal é a Infalibilidade. Está revelado que a Infalibilidade comporta dois modos: o Magistério extraordinário solene (o Papa quando fala “ex Cathedra”: a Imaculada Conceição por Pio IX; a Assunção por Pio XII) e o Magistério ordinário universal (o conjunto dos Bispos, dispersos ou reunidos, em comunhão com o Papa: a Assunção antes da definição de Pio XII). É, portanto, impossível que o autêntico Vigário de Jesus Cristo, quando se pronuncia segundo um ou outro desses dois modos, afirme algo que implique oposição ou contradição com uma doutrina já revelada. Ora, em 7 de dezembro de 1965, o Cardeal Montini promulgou, comprometendo ao menos o Magistério ordinário universal, uma proposição sobre a “liberdade religiosa” que implica oposição ou contradição com a doutrina infalivelmente definida por Pio IX na Encíclica “Quanta Cura” ligada ao “Syllabus” (08/12/1864). Deve-se concluir então, segundo Leão XIII, que ao realizar este ato, o Cardeal Montini não teve a intenção de receber a Comunicação exercida por Jesus Cristo, e que, por conseguinte, não era mais Papa formaliter.
Em suma (de α): O Vigário de Jesus Cristo não pode obrar como tal senão conforme o carisma que possui pela Comunicação exercida em seu favor por Jesus Cristo. Não pode, pois, obrar senão conforme Ele, depois conforme as normas naturais fundamentais sancionadas e assumidas por Ele, e conforme a Verdade já manifestada por Ele. Qualquer contradição que haja, observável e observada em um desses pontos, prova, necessariamente, a posteriori, que o autor de um delito semelhante não pode ser o Vigário de Jesus Cristo.
β) A prova da parte (B); a saber: o “ocupante” da Sé Apostólica é “papa” materialiter.
Foi explicado acima (I B) em que sentido convém dizer que o eleito por um Conclave que se supõe válido é, ainda antes de sua aceitação, papa materialiter, mas com a condição de que: primeiro, o Conclave seja válido (quantos “ruídos” têm circulado, plausíveis, embora não fundamentados, a respeito dos três últimos Conclaves… Tisserant, Siri!..); segundo, que o aparentemente eleito não esteja afetado por um obex que permanece oculto e suspenda neste o efeito normal da eleição (se, por exemplo, fosse provado com certeza que Mons. Wojtyla pertencia a uma sociedade oculta anticristã antes de sua eleição).
Ora, a existência de um eventual obex, descoberto a posteriori, seja no “Conclave” que elegeu, seja na pessoa assim eleita, não é suficiente para negar que esta seja, ao menos provisoriamente, “papa” materialiter. Pois um dado certo, mas que não é de ordem ontológica, não pode ser imanente às mesmas Normas divinas. Um tal dado não pode, então, ter valor e força na Igreja senão em virtude de uma ordenação e promulgação feitas pela autêntica Autoridade da Igreja. E como tal Autoridade falta atualmente, ninguém está qualificado, na Igreja (entendemos como tal a verdadeira Igreja, e não a “igreja” presidida por Mons. Wojtyla), para declarar que, desde 7 de dezembro de 1965, o Cardeal Montini deixou de ser “papa” materialiter.
A mesma observação vale para os “ocupantes” da Sé Apostólica que sucederam ao Cardeal Montini, isto, porém, apenas na medida em que uma “hierarquia” somente materialiter pode perpetuar-se. Tal perpetuação não é ex se impossível. No entanto, requer expressamente consagrações episcopais que sejam certamente válidas. E, como o novo rito é duvidoso, os “ocupantes” (da Sé Apostólica) não serão em breve mais do que “figuras”! Mons. Wojtyla é, a esse respeito, ao menos um eminente precursor.
Como se salvaria, nessas condições, a Apostolicidade da Igreja? Seja o que for desse Mistério, que nos envolve atualmente o “mistério da iniquidade”, é necessário evidentemente atentar para o fato de que a sucessão apostólica será salvaguardada, ininterrupta, “até a consumação dos séculos” (Mt XXVIII, 20). A “visibilidade” não é uma nota da Igreja; ela sofreu eclipses, pois é apenas a possibilidade de direito, nem sempre realizada de fato (vide o Grande Cisma), de observar a Apostolicidade. Enquanto a Apostolicidade é uma nota permanente, como a própria Igreja. Deve-se, portanto, atentar absolutamente à norma, sem a qual a sucessão apostólica se encontraria objetivamente interrompida. Esta regra, imperiosa e evidente, é a seguinte: a pessoa física ou moral que tem na Igreja a qualificação para declarar a vacância total da Sé Apostólica é idêntica àquela que tem na Igreja a qualificação para suprir a provisão da mesma Sé. Quem declarar atualmente: “Mons. Wojtyla não é papa de modo algum (nem mesmo materialiter)”, deve: ou convocar o Conclave (!), ou mostrar as cartas credenciais que o instituem direta e imediatamente Legado de Nosso Senhor Jesus Cristo (!!).
Estas últimas observações mostram suficientemente que o alcance objetivo da questão: “o ocupante da Sé Apostólica é ou não ‘papa’ materialiter?” está de tal maneira fora de nossa estimativa, que, concreta e realmente, a resposta a esta questão não tem muita influência sobre o comportamento efetivamente possível do fiel devoto à Tradição.
Trad. por Dominicus; De: Sodalitium, n.º 13.

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