A SEMANA SANTA REFORMADA POR PIO XII — A ORAÇÃO “PRO JUDAEIS”

Padre Joseph-Marie Mercier
2023

Por meio de um decreto cuja data é 16 de novembro de 1955, a Sagrada Congregação dos Ritos, com aprovação do Papa Pio XII, impôs aos que seguem a liturgia romana um novo Ordo para a celebração dos Ofícios da Semana Santa1. Entre as modificações realizadas no Ofício da Sexta-Feira Santa, a oração “pro Judæis” é tratada da mesma maneira que as outras “grandes orações”: depois de uma monição ou chamado à oração, o celebrante diz Oremus, seguido do Flectámus génua, de uma pequena oração de joelhos, e do Leváte, antes de ser cantada a oração propriamente dita.

O texto em si mesmo da monição e da oração não sofreu mudança alguma, e conserva ainda as expressões “perfídis Judǽis” e judáica perfídia2, expressões que serão retiradas no Missal de 19623.

Essa mera adição da genuflexão é comumente posta pelos detratores do Ordo de 1955 entre os motivos pelos quais ele não seria “tradicional”, afirmando que não se deve ajoelhar tratando da questão dos judeus, pois eles teriam se ajoelhado diante de Nosso Senhor Jesus Cristo para zombar dEle, durante a Paixão. No século XIII, o célebre liturgista Guilherme Durando, bispo de Mende, já justificava dessa maneira o tratamento diferente na oração “pro Judæis”4:

“A Igreja, rezando por essas diversas frações de indivíduos, dobra os seus joelhos em suas orações, para demonstrar a devoção e a humildade de espírito pela posição do corpo ou pelo exterior do corpo, insinuando também que ao nome de Jesus todo joelho deve se dobrar, porque todas as nações se prostram de joelhos no chão diante dEle, excetuando entretanto quando ela reza pelos Judeus que, zombando do Senhor, dobravam o joelho e diziam: ‘Adivinha, Cristo, quem te bateu’. É por isso, por horror às suas zombarias, que a Igreja reza por eles sem dobrar os joelhos, para evitar o falso e zombeteiro respeito deles.”

Uma breve consideração simbólica e história lançará luz sobre a fragilidade dessa crítica, e permitirá estabelecer o critério superior do poder da hierarquia eclesiástica sobre a liturgia.

O simbolismo do ajoelhar-se

Antes de tudo, deve-se lembrar que essa oração é dirigida a Deus Pai5, como é a maioria das orações litúrgicas. Em si, a intenção é ajoelhar-se diante de Deus Pai, e não diante do Filho: há um só Deus, mas as três Pessoas divinas são realmente distintas. Consequentemente, comparar esse ajoelhar-se da liturgia ao dos judeus diante de Cristo constitui de imediato uma simbólica fraca. Ademais, os judeus não zombaram de Cristo dobrando os joelhos diante dEle. Depois de um simulacro de julgamento, o tribunal dos Sumos-Sacerdotes Anás e Caifás humilha Nosso Senhor, e zomba dEle, como relatam os três Evangelhos sinópticos:

“Cuspiram-lhe então na face, bateram-lhe com os punhos e deram-lhe tapas, dizendo: ‘Adivinha, ó Cristo, quem te bateu?’” (Mt 26, 67-68)
“Alguns começaram a cuspir nele, a tapar-lhe o rosto, a dar-lhe socos e a dizer-lhe: ‘Adivinha!’. Os servos igualmente davam-lhe bofetadas.” (Mc 14, 65)
“Entretanto, os homens que guardavam Jesus escarneciam dele e davam-lhe bofetadas. Cobriam-lhe o rosto e diziam: ‘Adivinha quem te bateu!’. E injuriavam-no ainda de outros modos.” (Lc 22, 63-65)

Em momento algum é dito que os judeus se ajoelharam para fazer zombaria. Pelo contrário, os soldados romanos, que em ocasião da flagelação zombaram de Nosso Senhor proclamando sua realeza e puseram nEle um hábito de púrpura, uma vara como ceptro e espinhos como coroa, que dobravam os joelhos diante dEle, enquanto O golpeavam:

“Os soldados do governador conduziram Jesus para o pretório e rodearam-no com todo o pelotão. Arrancaram-lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate. Depois, trançaram uma coroa de espinhos, meteram-lha na cabeça e puseram-lhe na mão uma vara. Dobrando os joelhos diante dele, diziam com escárnio: ‘Salve, rei dos judeus!’. Cuspiam-lhe no rosto e, tomando da vara, davam-lhe golpes na cabeça.” (Mt 27, 27-30; cf. Mc 15, 16-19)

A referência evangélica invocada por Guilherme Durando é portanto incorretamente utilizada para justificar a não-genuflexão, pois os judeus não se ajoelharam diante de Nosso Senhor. Tal gesto seria, ademais, uma completa incongruência da parte daqueles que,  acusando-O de blasfêmia, rasgaram suas vestes quando Jesus proclamou sua divindade (Mt 26, 65; Mc 14, 63). Ademais, a simbólica é falsa, e, ao invés de na oração “pro Judæis”, deveria nos convidar a não nos ajoelharmos na oração “pro paganis”. Pelo contrário, essa lógica nos deveria convidar a dobrar os joelhos, a fim de testemunhar a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que os judeus não querem reconhecer!

A “tradição” litúrgica

Embora o costume da não-genuflexão tenha sido estabelecido na época medieval, e retomada no Missal romano publicado por ordem de São Pio V em 1570, vimos que a justificação dessa prática é mal-desenvolvida, e corresponde a uma simbólica não-fundamentada nos fatos evangélicos.

O motivo dessa anomalia se explica pelo fato que, segundo a prática mais antiga, a oração “pro Judaeis” não era tratada diferentemente das outras orações, e incluía a genuflexão, como nota Dom Edmond Martène6.

Por exemplo7, o sacramentário gelasiano, conservado no Vaticano, e datado do século VIII, depois da primeira monição pela Igreja (folio 64r), inclui a indicação: “O diácono anuncia: ‘Dobremos os joelhos’; depois ele diz: ‘Levantai-vos’.” E essa rubrica se repete para as outras orações, mesmo quando vem a oração pelos judeus (folio 65v): “O diácono faz o mesmo anúncio que mais acima”8.

Do mesmo modo, o Ordo Romanus XXIII, conservado no manuscrito 126 de Einsiedeln9, diz o seguinte:

“O Senhor Apostólico (o Papa) diz a oração (=monição) ‘Oremos pela Santa Igreja de Deus’, e o arquidiácono diz ‘Dobremos os joelhos’, e depois disso, ele diz ‘Levantai-vos’, e são ditas todas as outras [orações] em ordem.”

Não há portanto nenhuma menção de algum tratamento especial para a oração “pro Judæis”.

Por sua vez, o sacramentário de Ratold10, datado do século X, cita o Flectámus génua apenas na primeira oração (folio 121v), e não faz menção de alguma diferença na oração pelos judeus (folio 122v), mas, na margem, há a frase seguinte11:

“Aqui, nosso [clero] não deve de maneira alguma inclinar seu corpo devido à hostilidade e raiva do povo.”

Parece portanto que o primeiro motivo dessa mudança foi a pressão do povo que devia pouco apreciar os judeus. Depois, o uso foi justificado com uma razão simbólica. A mudança da prática propagou-se pouco a pouco, de igreja em igreja, a partir do século IX.

Esses elementos históricos nos mostram que a “tradição” universal até o século VIII era de dobrar os joelhos na oração para os judeus, como nas outras grandes orações. No decorrer do século IX, sob a pressão popular, a prática tradicional foi substituída por um novo costume, o de não se ajoelhar em ocasião dessa oração. Essa nova prática foi justificada simbolicamente desde muito cedo. Enfim, o Missal romano editado em 1570 por São Pio V confirmou essa rubrica até a reforma de 1955. 

Assim, o antigo costume de ajoelhar-se foi abandonado porque os detentores do poder sobre a liturgia haviam permitido a instalação de um costume contrário. A mudança foi legítima, pois a Autoridade eclesiástica legítima a validou. Consequentemente, essa mesma Autoridade poderia muito bem restabelecer a prática antiga, e impô-la como lei litúrgica.

Conclusão: diante das insuficiências do simbolismo e da “tradição” litúrgica, deve-se recorrer à Autoridade da Igreja.

Em 1570, o missal Romano ratificou a não-genuflexão na oração pelos judeus na Sexta-Feira Santa, e, ao mesmo tempo, impôs a sequência Víctimæ pascháli laudes para o dia de Páscoa e para sua oitava, mas com uma importante modificação. Com efeito, a penúltima estrofe tradicionalmente presente foi suprimida:

“Credéndum est magis soli Maríae veráci, quam Judæórum turbæ falláci.”
“É melhor crer no testemunho apenas de Maria, verdadeiro, do que no da multidão de judeus, mentirosos.”

Essa supressão de uma estrofe que fazia parte da composição original não tem, portanto, nada de “tradicional”, é uma inovação introduzida pelo Papa São Pio V, que julgava que essa estrofe pudesse encorajar um certo ressentimento contra os judeus. 

Dos elementos precedentes, devemos concluir que os argumentos simbólicos ou “da tradição” são insuficientes em si mesmos para justificar ou invalidar uma prática litúrgica. A liturgia evoluiu muito com o decorrer dos séculos, embora mantendo sua substância. Explica o Papa Pio XII: 

“A hierarquia eclesiástica tem usado sempre desse seu direito em matéria litúrgica, preparando e ordenando o culto divino e enriquecendo-o sempre de novo esplendor e decoro para glória de Deus e vantagem dos fiéis. Não duvidou, além disto – salva a substância do sacrifício eucarístico e dos sacramentos – em mudar aquilo que não julgava adaptado, em acrescentar o que parecia contribuir melhor para a glória de Jesus Cristo e da augusta Trindade, para instrução e estímulo salutar do povo cristão.”12

A mudança aprovada por Pio XII com o retorno da genuflexão na oração “pro Judæis” da Sexta-Feira Santa, segundo a prática antiga, não possui menos fundamento que a supressão por São Pio V da estrofe “Credendum est”, ou que a reformulação completa do Breviário romano feita por São Pio X13. Esse fundamento é a solidez da Sé de Pedro, divinamente assistida, e à qual devemos obedecer particularmente em matéria de liturgia: 

“Já que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome da Igreja, a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem depender senão da autoridade da Igreja.”14

Quanto à famosa oração da Sexta-Feira Santa pela conversão dos judeus, ela é tão importante quanto as outras grandes orações, e merece a mesma solenidade e o mesmo fervor, ou mais fervor ainda, conforme as palavras de Santo Agostinho15:

“Como é que Estêvão rezou pelos judeus; por aqueles que o estavam apedrejando, por aquelas almas sanguinárias, por aqueles corações cruéis? Ajoelhando-se. Uma humildade tão grande da parte de Estêvão mostra-nos a grandeza do crime cometido por essas pessoas. Quando rezava por si próprio, permanecia de pé; quando rezava por eles, ajoelhava-se. Será que os amava mais do que a si próprio? Não, não acreditemos nisso. Ele amava os seus inimigos; mas, falando do próximo, Nosso Senhor nos diz: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. (Mt 22,39) Então por que é que ele se ajoelhou? Porque sabia que estava rezando por malfeitores e que, quanto mais culpados fossem, menos facilmente seria atendido.”

Tradução por Rafael Gavioli.

  1. Acta Apostolicæ Sedis, vol. 47, Vatican, 1955, pp. 838-841. ↩︎
  2. Essas expressões são por vezes mal traduzidas como “judeus pérfidos” e “perfídia judaica”. Ora, o significado do adjetivo “perfidis” e do substantivo “perfidia” deriva, no latim cristão, do significado propriamente eclesiástico da palavra “fides”, a Fé. Deve-se traduzir essas expressões como “judeus incrédulos” e “incredulidade do judaísmo”, no sentido teológico: os judeus que não creem em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Nunca houve, portanto, alguma conotação antissemita nessas expressões, e seria bom que as traduções dessas orações em línguas vernáculas respeitassem o sentido preciso do latim cristão. Cf. Albert BLAISE, Le vocabulaire latin des principaux thèmes liturgiques, Turnhout, Brepols, 1966, p. 81; e, Albert BLAISE, Dictionnaire Latin-Francais des auteurs chrétiens, Turnhout, Brepols, 1954, p. 611. ↩︎
  3. A modificação da monição e da oração já havia sido requisitada à Santa Sé em janeiro de 1928 pela associação pia “Amigos de Israel”, presidida pelo Rev. Pe. Benedetto Gariador, superior dos beneditinos de Subiaco. O pedido foi rejeitado, e levou à supressão dessa associação por decreto do Santo Ofício, datado de 25 de março de 1928 (em Acta Apostolicæ Sedis, vol. 20, Vaticano, 1928, pp. 103-104). Não obstante essa condenação, o decreto recorda que é louvável exortar os fiéis a rezar e agir pela conversão dos judeus, que a Santa Sé sempre os protegeu das perseguições injustas e que ela condena o ódio entre os povos, e especialmente o antissemitismo. A posição da Igreja Católica aqui fica claramente definida: nem antissemitismo, nem filojudaísmo (como promovido pelo Concílio Vaticano II, na declaração Nostra ætate, de 28 de outubro de 1965, §4). ↩︎
  4. Guillaume DURAND, Rational ou manuel des divins offices, T. 4, trad. por Charles BARTHELEMY, Paris, Louis Vivès, 1854, Livre 6, ch. 77, §13, p. 117. ↩︎
  5. Alguns sacramentários convidam-nos a dizer em segredo, de joelhos, as palavras da epístola aos Efésios (Ef 3, 14-15): “Por esta causa dobro os joelhos diante do Pai, do qual toda a paternidade nos céus e na terra toma o nome.” ↩︎
  6. Dom Edmond MARTENE O. S. B., De antiquis Ecclesiæ ritibus, T. 3, Venise, 1783, p. 118 : « in quibusdam tamen vetustioribus sacramentariis ad orationem quæ pro eorum fit conversione perinde atque ad alias præmittitur Flectamus genua. » ↩︎
  7. Para uma demonstração completa e documentada, ver o artigo de Louis CANET, La prière «Pro Judaeis» de la liturgie catholique romaine, na Revue des études juives, tome 61, n°122, avril-juin 1911, pp. 213-221. ↩︎
  8. O manuscrito se encontra aqui. ↩︎
  9. Manuscrito 126 de Einsiedeln. Ver também o Ordo Romanus do manuscrito Latino 974 da Biblioteca nacional da França, folio 114, que apenas menciona as orações solenes, sem fazer qualquer precisão específica. ↩︎
  10. Biblioteca nacional da França, manuscrito latino 12052. ↩︎
  11. Ver o manuscrito de Cambrai (11° s.), Bibliothèque municipale, 0075 (0076), folio 127v; ou, de pouco antes de 1570, esse Missal editado em 1543. ↩︎
  12. Encíclica Mediator Dei, de 20 de novembro de 1947, em Les enseignement pontificaux, La Liturgie, pelos monges de Solesmes, Tournai, Desclées & Cie, 1961, p. 344, §539. ↩︎
  13. Constituição apostólica Divino afflatu, 1° de novembro de 1911. ↩︎
  14. Encíclica Mediator Dei, 20 de novembro de 1947, em Les enseignement pontificaux, La Liturgie, op. cit., p. 341, §536. ↩︎
  15. Santo Agostinho, Sermão 319, ch. 4, em Œuvres complètes, Paris, Louis Vivès, 1873, vol. 19, p. 60. ↩︎

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