Confissão de um “Cassicíaco”
Padre Hervé Belmont
2005
A benevolente caridade com que John Daly expôs as divergências que existem entre nós [cf. Apêndice abaixo] (enfim… algumas, pois há outras) me impele a expor bem simplesmente o percurso que me deu a convicção de que a “Tese de Cassicíaco”, no que ela tem de central e de essencial, é uma descrição verdadeira do estado da Santa Igreja Católica, conforme aos fatos conhecidos, por um lado, e à Fé Católica integral, por outro lado.
Que não se veja nas linhas que se seguem a pretensão de expor uma prova “em forma” do que afirmo, mas simples relato (no qual, por sorte, omito de dizer a cada linha que não passo de um pobre pecador – profundamente arraigado pecador –, faço-o assim de uma desagradável vez por todas).
Por graça de Deus, nasci numa família verdadeiramente católica: então, fui criado no culto e na veneração ao Papa, na convicção sem falha de que a pedra de toque do Catolicismo e da salvação eterna é a submissão filial à Sé Apostólica. Por graça de Deus, permaneci nessa convicção, sem nem mesmo a tentação de uma dúvida.
Tendo alcançado (ao menos oficialmente) a idade da razão antes do Vaticano II, vi entre meus 10 e 15 anos a liturgia se modificar, se dessacralizar, desmoronar… vendo-o um pouco de longe, pois meus pais começaram a errar de paróquia em igreja, para procurar os lugares onde a revolução não devastara tudo. Meu querido pai, como amante da liturgia, sofria de vê-la abastardar-se; minha querida mãe (espero que ela não leia estas linhas) ficava nauseada com os odores revolucionários dos sermões.
A fuga dos frutos do Vaticano II transformou-se, pouco a pouco, em combate do espírito (Itinéraires, Cité Catholique, CRC) e em luta para preservar o reinado de Jesus Cristo na família. A esse combate eu aderia cada vez mais pessoalmente – meus pais fazendo o que deviam para tanto –, mas tudo isso na convicção profunda de que, em Roma, não se aprovava aquilo: “Ah!, se o Papa soubesse!”. Meus amigos – colegas de célula doutrinal ou de editoração noturna – chamavam-me às vezes de “papista” quando eu lhes dizia a minha convicção de que se podia ser totalmente fiel à Fé e à Tradição, por um lado, e a Paulo VI, por outro.
Tive a graça de conhecer sacerdotes de convicção e de coragem (o Padre Georges Vinson por exemplo), que frequentavam nossa boa casa em Lião (Ah!, Lião!), em seguida Dom Lefebvre… Não sei como – mas Deus o sabe – eu acabei então em Écône, assim que tirei o diploma (você sabem, aquele pergaminho inútil), o mais jovem de uma leva que comportava um bom contingente de trintenários (e foi, para mim, uma grande graça tirar proveito da experiência deles).
Minha adesão a Paulo VI estava intacta, mas não sem inquietações que, desde já alguns anos, alguns padres aplacavam com distinções que surtiam efeito por um tempo, do tipo: “É preciso seguir o Papa quando ele age ou fala como Papa; do contrário, somos livres.” Era fácil: decidia-se por si mesmo quais são os momentos ou atos em que Paulo VI agia como Papa.
Se o seminário foi um lugar de estudos intensos, em condições materiais ideais para tanto, ele não foi o oásis de paz esperado. Desde o primeiro ano, as lutas doutrinais intestinas faziam estrago: aquilo foi, para mim, estímulo ao estudo.
As relações com Roma tornaram-se tensas, em seguida conflituosas. Mas isso não punha em causa, de modo algum, a minha convicção de que não se podia nem devia fazer nada fora da submissão ao Papa – e eu traduzia: a Paulo VI.
Quando Dom Lefebvre falou pela primeira vez de ordenações ilegais, exprimi minha oposição, minha recusa. Aquilo me parecia impossível, monstruoso. Mas eu estava interiormente dividido, angustiado – verdadeiramente angustiado – pelo fosso que eu via cavar-se cada vez mais entre a fidelidade à Fé (perdão pelo pleonasmo) e a fidelidade a Paulo VI: isso se tornava insustentável. A Fé é a Fé, o Papa é o Papa. E os erros do Vaticano II eram erros graves, e a reforma litúrgica não era outra coisa que protestantismo, e os frutos do Vaticano II não passavam de desastre, deserção, perda das almas. Horas difíceis. Sobretudo porque, nessa dilaceração interior, se inseriam todos os combates intra muros do seminário (alguns dos quais me parecem hoje bem lamentáveis: mas a crise de autoridade e a ausência de clareza doutrinal se faziam sentir fortemente).
Bem no meio desses tormentos, uma palavra de luz fez-se ouvir um dia, num curso do Padre Guérard des Lauriers (professor fora de série de uma dificuldade fora de série, mas cuja potência intelectual e profundidade de vida interior fulguravam). Paulo VI é papa materialiter, ele não o é formaliter. Ó paz da alma, alívio imenso, luz intensa! A partir daí, tudo foi transfigurado. Era a primavera de 1975.
Veio o serviço militar (que me deixaria motivos para eu me humilhar até o fim dos meus dias, tamanho foi meu respeito humano), depois aquele que deveria ser o penúltimo ano em Écône. Trabalho intenso, estudo, hostilidade cada vez mais acentuada do corpo professoral… Subdiaconato seguido de expulsão do seminário. Motivo (causa impulsiva): recusa de responder a uma carta estival enviada por Dom Lefebvre a nove seminaristas impondo-lhes entregar suas inteligências “de corpo e alma” à autoridade do seminário.
Faço a precisão de que somente me apresentei à ordenação mediante a íntima convicção da ausência de autoridade na Sé Apostólica: sem isso, eu jamais o teria feito (ao menos assim creio).
O Padre Aulagnier (eu lhe serei grato por isso até ao fim de meus dias) me “salvou das águas” (ocorreu-lhe apresentar-me como o seu Moisés) e pude concluir meu seminário no priorado de Pointet, em companhia do Padre Bernard Lucien.
Retornou este, das férias de Páscoa (1978), com o texto da análise do Padre Guérard des Lauriers sobre a situação da Sé Apostólica. Pude então lê-la, mais de um ano antes de sua publicação nos Cahiers de Cassiciacum[Cadernos de Cassicíaco], e sem alguns dos desenvolvimentos que a afetaram nessa publicação. Nunca experimentei uma tal distensão do espírito (sim, na verdade, no dia que compreendi – quero dizer compreendi verdadeiramente – o problema dos universais), um tal repouso da inteligência livrada de seus tormentos perante contradições que parecem insuperáveis.
E, a partir deste momento, eu não mudei nessa matéria (é o próprio dos imbecis, ao que parece).
As tomadas de posição ou linhas de ação ulteriores do Padre Guérard des Lauriers (sagração episcopal) ou de seus discípulos (sagrações episcopais sem mandato apostólico, ou então abandono desse combate), que me parecem todas inconsequências, não afetaram minhas convicções, mas, sim, elas me pareceram dramáticas e me foram bem dolorosas.
É que eu via (e continuo a ver) na (mal nomeada) “tese de Cassicíaco”, não somente uma confissão da Fé Católica plena e inteira, mas um baluarte contra todos os desvios que são de temer numa situação de anarquia: sagrações episcopais, conclavismo, milenarismo, apocalipsomania, sobreviventismo, erros doutrinários diminuidores da autoridade pontifícia, justificação da desobediência, livre-exame etc.
Por que vos narrei tudo isso? No fundo, não sei e não ouso relê-lo. Mas rezareis por mim.
Abbé Hervé Belmont
APÊNDICE
Alguns comentários à tese
do Pe. Guérard de Lauriers, O.P.
John S. Daly
2005
1. A tese de Cassicíaco sustenta que alguém eleito papa (e aparentemente aceitando a eleição) mas que carece da vontade habitual de realizar o bem da Igreja não possui a autoridade e os poderes (infalibilidade, jurisdição etc.) de um papa e, de fato, não é papa, mas, sem embargo, detém um “título” [“hold”] especial à Santa Sé pelo qual ele poderia tornar-se seu legítimo ocupante por meio da manifestação de disposições convenientemente transformadas, e em razão do qual ninguém mais poderia ser eleito a ela neste ínterim, a não ser que os eleitores intimassem-no a mudar suas disposições e ele fracassasse em o fazer num prazo determinado. Essa é a essência da tese de Cassicíaco.
2. Embora um tal indivíduo não seja papa, e portanto [seja] incapaz de fazer qualquer ato papal, há uma exceção: ele pode nomear cardeais validamente. Esse é um adendo acidental à tese de Cassicíaco.
3. Tal foi, de fato, o caso daqueles que se passam por papas desde (pelo menos) a promulgação do errôneo decreto do Vaticano II Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, em 1965. Essa é a aplicação concreta e contemporânea da tese de Cassicíaco.
4. O indivíduo eleito mas não-disposto para a válida aceitação do papado (por exemplo, Montini, Wojtyla) é descrito como sendo materialmente (“materialiter”) papa, mas não formalmente (“formaliter”) papa. Esse é o vocabulário técnico da tese de Cassicíaco, um uso análogo, emprestado à filosofia escolástica.
Entre aqueles que não fizeram estudo sério da filosofia escolástica, [esse vocabulário] geralmente leva à confusão, pois inferem, a partir do advérbio mal compreendido, que os adeptos da tese de Cassicíaco pensam que Wojtyla seja parcialmente papa. Faz-se, por isso, necessário assinalar que a palavra “materialmente” aproxima-se, em vez disso, da familiar palavra “potencialmente” e implica que Wojtyla está num estado especial de capacidade para tornar-se papa, e não que ele seja um meio-papa, um papa pela metade. Também precisa ser assinalado, nessa mesma linha, que:
(a) a tese não (como já foi alegado) ensina ou implica a heresia de que alguém pode ser papa sem ter todos os poderes e autoridade papais, pelo contrário, [a tese] sustenta que Wojtyla não possui esses poderes e autoridade, porque ele não é papa, a não ser que confundamos potencialidade com atualidade ou, em termos coloquiais, confundamos “poderia se tornar” com “é”;
(b) a tese, portanto, não é um meio-caminho entre o sedevacantismo e a posição da FSSPX, mas, sim, uma variante do sedevacantismo, e de fato a palavra “sedevacantismo” foi inventada com referência à tese de Cassicíaco;
(c) como quer que seja, não há necessidade alguma de recorrer ao vocabulário materialiter-formaliter para enunciar o que a tese sustenta, como se pode ver por sua clara formulação acima nos números 1 e 2. É mais importante apreender aquilo que um homem acredita e quer comunicar do que ficar atolado em questões de semântica, de modo que, embora eu julgue isto uma pena, não tenho mais nada a dizer aqui sobre o vocabulário técnico guérardiano e não voltarei a usá-lo nestas notas. Acrescento, todavia, que a tese de Cassicíaco também é inocente da acusação de alegar que a matéria possa existir sem a forma. A matéria não pode existir sem forma nenhuma, mas a matéria de uma entidade particular certamente pode existir sem a forma devida dessa entidade, e nesse caso a entidade não está presente. Isso é sã filosofia e é exatamente o que a tese de Cassicíaco afirma: que em JP2 há o elemento material de um papa, mas não o elemento formal, e que portanto ele na verdade não é papa. Aqueles que fizeram essa objeção infundada parecem ter confundido a afirmação de que “a matéria de X existe sem a forma de X” com a absurda afirmação de que “a matéria de X existe sem forma nenhuma”.
5. A tese de Cassicíaco repudia o clássico sedevacantismo “bellarminiano” com base em dois motivos:
(a) ela não considera que o delito de heresia (pertinaz), suficiente para causar a perda ipso facto do (ou a ineligibilidade ao) ofício papal, possa ser dado a conhecer, de modo suficiente, à Igreja sem que haja alguma intervenção da autoridade;
(b) ela considera que o dogma da apostolicidade exige que a jurisdição necessária para eleger um papa seja preservada na Igreja, pois um papa eleito por eleitores carentes de jurisdição alguma para esse propósito recebida de um papa anterior não seria um dos “perpetuos successores” de São Pedro, mas o primeiro de uma nova linhagem… o que é impossível.
6. A principal dificuldade incorrida pela tese, a meu ver, é que é uma pura invenção. Dou-me conta de que uma crise de tipo muito pronunciado e fora do comum pode parecer pedir uma teoria ad hoc para explicá-la, mas “via trita via tuta” – o caminho batido é o mais seguro. Nenhum teólogo que eu tenha descoberto fala de papas que percam sua condição, proteção divina, autoridade, jurisdição e infalibilidade de modo quase-permanente em virtude de carecer da intenção de realizar o bem da Igreja, a não ser que estejamos falando de uma situação como aquela que levou São Vicente Ferrer a retirar-se da obediência do homem que ele acreditava ter sido o Romano Pontífice legitimamente eleito… e nesse caso seria bom que se nos avisasse disso e que se nos explicasse de que modo isso difere do simples cisma da parte do não-pontífice e da plena perda do ofício. Enquanto isso, é obviamente preferível explicar a crise com base nos dados encontrados nos livros de teologia autorizados, se possível. Muitos livros de teologia autorizados ensinam que um herege manifesto, automaticamente, perderia o papado ou seria inelegível. A objeção guérardiana é suscetível de refutação adequada: quem sustenta a tese não estudou o tópico da heresia e pertinácia o suficiente para saber que a intervenção da autoridade nem sempre é necessária para que a heresia exista, seja reconhecível e produza o efeito da automática queda do ofício… mas é isso o que as melhores autoridades sustentam.
7. Uma dificuldade secundária é que mudar o foco, da heresia para a ausência da vontade de realizar o bem da Igreja, não resolve coisa alguma. A heresia depende da pertinácia, que é invisível e pode ser conhecida somente pelos indícios externos de palavras e atos. Concedido. Mas a mesma coisa se aplica à vontade de alcançar o bem da Igreja. E se nos afirmar que é a vontade de alcançar o bem objetivo da Igreja tampouco ajuda. Que Montini e Wojtyla não queriam tornar a Igreja mais santa e mais eficaz na difusão do Evangelho é minha conclusão particular extraída dos indícios publicamente disponíveis, exatamente como o fato de que eles ensinaram o contrário do que eles sabiam que a Igreja havia ensinado.
8. O adendo acidental de preservar a capacidade do ainda-não-papa de nomear cardeais validamente também é contestável, na medida em que se justifica com base na necessidade dogmática de preservar a apostolicidade da Igreja, mas esta necessidade não está comprovada. Tenho considerável simpatia pelo argumento guérardiano 5 (b) acima, mas é um tanto arbitrário confundir a continuidade dos cardeais com a continuidade de pessoas providas de jurisdição que as capacite a eleger um papa, visto que os teólogos não consideram impossível que todos os cardeais sejam simultaneamente extintos, mas sustentam que, num caso desses, o papel de eleitores competentes do papa seguinte se transferiria para o clero romano ou um concílio geral imperfeito de bispos (querendo dizer, é claro, bispos pertencentes à hierarquia e nomeados por um papa verdadeiro, e não dispensadores de confirmação e ordenação tradicionalistas que não são oficiais sucessores dos Apóstolos). Não há prova de que não haja clérigos romanos ou bispos católicos no sentido pleno dessa palavra ainda vivos e que tenham sido validamente nomeados, portanto não há incompatibilidade com o dogma em assumir a posição simples e direta de que os não-papas não têm poder nenhum para fazer atos papais.
Trad. Felipe Coelho

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