Padre Hervé Belmont
2011
O presente dossiê tendo adquirido um toque pessoal – demasiadamente para o meu gosto, mas como fazer de outro modo sem o exercício atual da autoridade pontifícia a iluminar as inteligências e regular as vontades? –, passo a expor brevemente quais são a natureza e o conteúdo da Tese de Cassicíaco, assim como a consistência da minha adesão.
I. Breve exposição
Face à explosão de equívocos, de reformas aparentadas ao protestantismo e de erros graves que invadiu e seguiu o Vaticano II, a situação dos católicos decididos a conservar a fé e dela dar testemunho tornou-se paradoxal: com efeito, para opor-se à nova religião que colonizou as estruturas da Igreja Católica, parece necessário subtrair-se à potestade pontifícia e reduzir a uma palavra vã a autoridade que ela recebeu de Jesus Cristo – o que é também outra nova religião tão desviante quanto aquela que se quer combater.
Para sair desse dilema (pois ele é verdadeiramente tal), ou, mais exatamente, para responder à exigência da fé sem renegar nada da doutrina católica, o Rev. Pe. Michel-Louis Guérard des Lauriers – sacerdote dominicano reconhecido por sua fidelidade, ciência e arduidade – elaborou uma prova/explicação que ele difundiu entre seus amigos, em seguida publicou-a numa revista teológica criada para esse fim: Les Cahiers de Cassiciacum [Os Cadernos de Cassicíaco].
Então, essa prova/explicação recebeu (de quem?) o nome de Tese de Cassicíaco, pelo qual é conhecida desde então.
Ela consiste nisto (que não passa de um rápido esquema):
— O ponto de partida é uma indução: o conjunto dos atos de Paulo VI (pois era então ele quem se assentava em Roma) concorrem para a destruição da religião católica e para a sua substituição pela religião do homem em forma de protestantismo larvado. Donde se segue a certeza de que Paulo VI não tinha a intenção habitual de procurar o bem/finalidade da Igreja, que é Jesus Cristo plenum gratiæ et veritatis.
— A intenção habitual de procurar o bem da Igreja é condição necessária (é a disposição última) para que um sujeito eleito papa receba comunicação da autoridade pontifícia que o faz ser com Jesus Cristo, e desempenhar o papel de seu Vigário na terra.
— Por conseguinte, Paulo VI é desprovido de toda autoridade pontifícia; ele não é Papa formaliter; ele não é Vigário de Jesus Cristo. Numa palavra, ele não é Papa.
— Seus atos são, pois, desprovidos de toda autoridade tanto magisterial quanto canônica; destarte, vê-se como não é impossível que os atos de Paulo VI sejam contrários à fé católica e incompatíveis com a autoridade pontifícia, e que afirmá-lo não é, de modo algum, negar as prerrogativas de um Papa, particularmente sua infalibilidade e sua jurisdição universal e imediata.
— Sem embargo, essa prova não diz nada sobre a pessoa de Paulo VI, pois a intenção que lhe é negada não é a sua intenção pessoal (finis operantis, que permanece fora de questão), mas a intenção objetiva que é habitualmente imanente aos seus atos (finis operis). Ela não permite, pois, afirmar que Paulo VI está pessoalmente fora da Igreja Católica por pecado de heresia ou de cisma.
— O que faz necessário afirmar que, embora Paulo VI não seja Papa formaliter, ele continua sendo-o, porém, materialiter, como simples sujeito eleito, sentado na Sé Pontifícia, nem Papa nem antipapa.
*
* *
Se se quiser, então, brevemente caracterizar a Tese de Cassicíaco, dois pontos são dignos de nota.
O primeiro é que essa tese consiste numa indução, isto é, num raciocínio que se funda na experiência (no caso, a observação da convergência habitual dos atos de Paulo VI), enuncia uma proposição derivada dessa base, e se remata numa verificação.
Essa natureza indutiva, com o tipo próprio de certeza à qual ela conduz o espírito [1], explica a introdução da distinção: papa materialiter/Papa formaliter: esse o segundo ponto notável.
[1. Breve nota técnica. Um raciocínio é uma operação do espírito (da inteligência humana) que faz o conhecimento progredir levando-o do conhecido para o desconhecido, produzindo uma nova apreensão do ser, um novo juízo. A indução e a dedução são dois gêneros de raciocínio bem diferentes, mas que conduzem ambos (se foram bem conduzidos) à certeza: nos dois casos, o espírito adere a uma nova proposição sem experimentar o temor de se enganar.
Contudo, essas certezas são de qualidades diferentes, porque a adesão do espírito é diversa. A certeza derivada da dedução é uma certeza que se impõe, a certeza derivada da indução é uma certeza que se constrói.
Na dedução, a apreensão da unidade do termo médio é instantânea (ainda que seja preciso um tempo de reflexão para bem apreender o problema, mas essa reflexão é somente preliminar); essa apreensão da unidade é uma apreensão do ser (ens et unum convertuntur) e torna legítimo um novo juízo, que assim é situado sob a luz dos princípios de que ele se origina.
Na indução, o espírito constrói pouco a pouco uma proposição (uma hipótese) a partir dos fatos observados, em seguida concebe (“inventa”) a verificação dessa proposição, tudo isso ao mesmo tempo que apreende a unidade de sua operação, isto é, a unidade da proposição enquanto derivada da observação e da proposição enquanto requisitando essa verificação. Essa verificação efetuada valida a proposição e faz com que ela seja um juízo firme. Essa certeza é mais laboriosa, mas ela é mais humana, e torna-se mais estrutural na vida do espírito que dela se beneficia.
A proposição derivada da indução é (tudo o mais igual) melhor apreendida em termos de compreensão do que aquela que é derivada da dedução, pois o processo que a engendrou permanece mais imanente. Sua certeza é, pois, de qualidade diferente (menos imediata, menos independente do raciocínio, mas mais profunda e mais íntima ao espírito).
A verificação na qual se remata a indução é necessária, pois a inteligência humana não vê a natureza universal das coisas numa coleção de casos singulares. É, pois, necessário estabelecer a adequação da hipótese à realidade objetiva. Mas essa verificação não seria suficiente se ela fosse isolada: ela só é operante como verificação, ela somente chega a termo, porque ela é enxertada na observação que embasa a hipótese. Se fosse de outro modo, se a verificação isolada fosse verdadeira demonstração, já não seria mais verdadeiramente uma indução (como no caso dos raciocínios por recorrência em matemática).]
Teremos ocasião de voltar à verificação que remata a indução. Enquanto isso, importa deter-se um pouco na distinção materialiter/formaliter, pois sua compreensão foi muitas vezes entravada por uma espécie de “coisificação”.
Não se trata, de jeito nenhum, de afirmar que existiria uma matéria de Papa ou uma forma de Papa, e que os Papas do Vaticano II seriam uma espécie de massa de modelar pontifícia informe, ou uma chave que não foi limada para se adaptar à fechadura. É um simplismo afetado pelos que ficam repetindo que “não há matéria sem forma” e que essa distinção é, portanto, sem sentido.
Trata-se de exprimir uma correlação, ou a ausência de uma relação exigida pela natureza das coisas. A analogia com o pecado traz bem isso à luz.
Nota à intenção dos simplistas que acabam de ser evocados: como estamos em presença de uma analogia, deve-se ter presente ao espírito que há mais diferenças do que semelhanças; e que a colocação em evidência da semelhança não visa provar (aliás, provar o quê?), mas ela se destina a fazer apreender pela inteligência a relação materialiter/formaliter. É o que nos interessa aqui.
Se eu conto uma má ação de meu vizinho, se essa ação é prejudicial, se eu falo com reta intenção, se me dirijo unicamente àqueles aos quais é útil ou indispensável estarem informados, se há proporção de gravidade entre o meu relato e a má ação: eu faço uma ação reta que não é pecado.
Se se constata que de fato o vizinho nunca realizou a ação em questão e que eu me enganei sem ter havido, de minha parte, leviandade nem temeridade, meu relato continua sem ser para mim um pecado. A qualificação moral da minha ação não se altera.
Mas há, mesmo assim, uma desordem objetiva, uma falta à verdade, um prejuízo à reputação do vizinho: e isso não é um nada, isso acarreta uma obrigação moral de retratação pronta, proporcionada e eficaz.
Há pecado material, não há pecado formal. Esse pecado simplesmente material (materialiter tantum) não é nada do ponto de vista da culpabilidade: minha consciência não é onerada, eu não cometi pecado. Essa ação não é, contudo, um ato bom. Do ponto de vista do pecado, ela é, portanto, um nada, mas… e esse mas pode tornar-se pecado se eu não satisfaço à obrigação que dele resulta.
Assim também, um papa materialiter tantum não é Papa; ele é desprovido de todo o poder tanto magisterial quanto jurisdicional. Do ponto de vista da autoridade, ele é nada.
Contudo, do ponto de vista do Papado, ele é um nada, mas… se bem que desarmado de tudo o que faz com que um papa seja Papa, ele assegura uma certa continuidade na Sé Apostólica, na qual ele possui algum título, jurídico ou potencial, a estar presente (nós examinaremos isso); isso impede que se o qualifique de antipapa com razão.
II. Minha adesão
A. Adesão à intenção teologal
O que não está explicitamente enunciado está por toda a parte subjacente à exposição da Tese de Cassicíaco; é a intenção que a anima, e que presidiu à sua elaboração: uma intenção teologal. Trata-se não somente de querer conservar a fé católica, trata-se não somente de alicerçar-se nos enunciados da fé católica, trata-se de pô-la em obra, essa virtude da fé, trata-se de permanecer dentro de sua luz. Essa intenção teologal é convicção de que o justo discernimento da situação da Igreja, da situação de sua autoridade, e do dever correlativo dos fiéis, não pode provir senão da fé exercida. Esse discernimento não pode existir com retidão e segurança a não ser no interior do ato de fé, e em conexão necessária com ele.
Por essa intenção teologal, minha gratidão é imensa para com o Rev. Pe. Guérard des Lauriers; minha adesão vai sem reserva ao que há de mais primitivo na Tese de Cassicíaco.
B. Adesão à doutrina da autoridade
Um dos momentos maiores da Tese de Cassicíaco é a exposição da doutrina da autoridade, e particularmente da diferença essencial (que não impede a unidade analógica) entre as diversas autoridades naturais, e a autoridade sobrenatural do Papa.
O que é constitutivo de uma autoridade natural, aquilo que é sua essência mesma, é a ordenação ao bem comum, é o encargo do bem comum existente numa pessoa designada por um fato da natureza (a paternidade, por exemplo) ou de outra maneira (hereditariedade, eleição, conquista…).
O que é constitutivo da autoridade pontifícia é o ser com Jesus Cristo (pois a autoridade pontifícia é uma autoridade vicária), é a comunicação sobrenatural da autoridade de Jesus Cristo numa pessoa posta na cabeça da Igreja militante.
A ordenação ao bem comum evidentemente permanece (senão nem haveria analogia), mas não mais a título constitutivo: é a título de condição necessária, assim como de necessária credibilidade.
A Tese de Cassicíaco comporta sobre essas questões preciosos desenvolvimentos que arrastam à adesão.
C. Adesão ao “corpo da tese”
O corpo da tese foi enunciado mais acima, e subscrevo a ele inteiramente. Repito, então.
Paulo VI (e seus sucessores que sucedem a ele nisto primeiro que tudo) não tinha a intenção habitual (intenção efetiva, eficaz, imanente aos atos) de procurar o bem/finalidade da Igreja Católica.
Ele era, pois, incapaz de receber comunicação da autoridade de Jesus Cristo, pois essa intenção é a disposição última do sujeito para receber comunicação da autoridade pontifícia. Como toda disposição última à recepção de uma forma, ela se encontra do lado da matéria (o sujeito), mas ela é efeito da forma (o ser com Jesus Cristo).
Do ponto de vista do fiel, essa ausência habitual de intenção – perfeitamente constatável àquele que exerce a fé, pois a reta intenção deveria ser imanente aos atos que normatizam a fé – impede a adesão a uma autoridade inexistente. Com efeito, ela se acusa numa ausência de credibilidade (melhor, um absurdo de credibilidade) que tem o mesmo efeito que se duas proposições contraditórias fossem simultaneamente apresentadas como reveladas por Deus: a razão não pode aderir. Assim como a razão pode (e eventualmente deve) aderir ao que a ultrapassa, ao que a desnorteia, assim também ela não pode aderir àquilo que extingue a luz que Deus pôs nela (pois a extinção dessa luz aniquilaria a fé mesma, que seria privada de sujeito de inesão).
D. Adesão à conclusão essencial
Por conseguinte, é sem reserva que adiro à conclusão principal da Tese de Cassicíaco: Paulo VI não é Papa formaliter, ele não é de modo algum detentor da autoridade pontifícia, ele não é o Vigário de Jesus Cristo, todos os seus atos são nulos e sem valor.
Essa conclusão parece-me, com efeito, de solidez particular, pelas razões seguintes.
1. A conclusão não vai além da prova. Essa prova é fundada na observação dos atos de Paulo VI, e não na qualificação de sua pessoa; a conclusão atém-se ao mesmo registro.
2. O raciocínio não se apóia em teses teológicas (sobre o caso do Papa herético ou cismático) que, por verdadeiras e veneráveis que sejam, não são mais que ensinamentos permitidos. Como essas teses não são assumidas pela Igreja, elas não estão intituladas a regrar necessariamente a inteligência católica, e pô-las em obra não manteria uma certeza que diz respeito à fé católica.
3. O raciocínio não leva em conta o estado de consciência de Paulo VI nem de qualquer de seus sucessores, ele faz abstração dos pecados de heresia ou de cisma que eles teriam cometido e que os poriam pessoalmente fora da Igreja. Fora da intervenção da autoridade legítima que tem poder de imperar o ato de fé, não se pode categoricamente afirmar a formalidade das heresias eventualmente proferidas.
4. A indução remata-se na verificação, operação na qual ela haure sua unidade, a firmeza de sua apreensão do unum conversível com o ser. Isso pode ser uma experiência crucial, um testemunho autorizado e proporcionado, a analogia da fé, a rejeição de uma contradição.
A indução que constitui o esqueleto da Tese de Cassicíaco é duplamente rematada, quanto à realidade da intenção habitual de Paulo VI e quanto à ausência de autoridade pontifícia nele.
a) Para começar, a imensa catástrofe que acompanhou e seguiu o Vaticano II é realmente obra de Paulo VI. Não somente porque quando os frutos deletérios apareceram, ele manteve suas causas – manifestando assim que elas entravam na sua intenção – mas também porque ele assumiu essas causas, ele as reivindicou, ele tomou a defesa delas, ele quis comunicar a elas toda a autoridade necessária. É o que ele fez, com veemência, na alocução ao Consistório de 24 de maio de 1976 (AAS 1976, pp. 372-377).
b) Dentre os numerosos atos de Paulo VI que contribuíram para a mudança de religião, alguns deles, mesmo considerados à parte, são estritamente incompatíveis com a autoridade pontifícia: pensa-se seguramente na afirmação de que a liberdade religiosa está enraizada na Revelação divina, e na reforma litúrgica. Esses atos servem de experiência crucial, e portanto de remate, pela indução, e comunicam assim a ela uma certeza que diz respeito à luz da fé. A autonomia que o argumento fundado nesses atos parece possuir não altera a natureza indutiva da Tese de Cassicíaco, pois em retorno é-se assegurado de não fazer nem má leitura nem interpretação errônea desses atos cruciais, pelo fato de que eles se situam dentro de uma série de atos que convergem todos para a mesma modificação da fé, da liturgia e da disciplina católicas. É em razão desse retorno que o raciocínio permanece de natureza indutiva.
5. A conclusão permanece no interior da luz da fé, porque o raciocínio não faz nenhum excurso fora dessa luz; assim, o raciocínio não faz mais que exprimir e explicitar uma necessidade que deriva do exercício da fé católica.
E. Reflexão sobre o materialiter
Paulo VI permanece papa materialiter: essa foi, essa é a parte mais original da tese do Padre Guérard des Lauriers. Com frequência, ela é mal compreendida: aí se vê uma espécie de divisão da potestade pontifícia – algo que não se pode, evidentemente, conceber – ou um subterfúgio para não ter de decidir, ou uma camuflagem.
A afirmação dessa permanência do materialiter nos ocupantes de fato da Sé Apostólica responde a uma tripla preocupação:
— a necessária adequação à prova. Dado que esta nada diz da situação pessoal de Paulo VI e de seus sucessores quanto a possuírem (ou não) a fé teologal, faz-se mister que a conclusão não vá além;
— a consideração do fato de uma ocupação pacífica da Sé Apostólica. Entendamo-nos: essa ocupação é extremamente violenta e ilegítima do ponto de vista da fé e do bem da Igreja, ela clama aos Céus e pede vingança a Deus. Mas, de fato, ela não foi e não é contestada de maneira significativa: isso permanece um fato maciço, visível por todos, que pode não ser sem consequências;
— a apostolicidade da Igreja, que necessita de uma continuidade tal que o próximo verdadeiro Papa apareça como o sucessor do último e, portanto, como o sucessor de São Pedro – e assim o seja realmente.
Agora, se nos interrogamos sobre o sentido exato de materialiter, sobre seu conteúdo, há que levar em conta a passagem do tempo e as mudanças reais que ele traz.
Havia em Paulo VI um fato jurídico: ele era o sujeito eleito pelos cardeais e reconhecido por eles; essa realidade jurídica se desfiou nos conclaves seguintes, porque o número dos verdadeiros cardeais não cessou de decrescer. Para a eleição de Bento XVI, não havia mais nenhum. E, portanto, a consistência do materialiter não continuou idêntica. O materialiter que se pode atribuir a Bento XVI é assaz tênue: como não resta nada da ordem jurídica, não resta mais que um fato público (o estar-ali) que é tão somente uma disposição próxima a ser reconhecido pela Igreja universal em caso de ruptura com a nova religião do Vaticano II. Há ainda continuidade (que não é sem incidência na apostolicidade da Igreja), mas essa continuidade é uma continuidade em potência.
F. Perplexidade diante de dois desenvolvimentos da tese
Dois desenvolvimentos posteriores da Tese de Cassicíaco parecem-me em dissonância com o seu caráter teologal e com o rigor que ela emprega na sua exposição.
O primeiro é do próprio Padre Guérard des Lauriers. A redação de seu trabalho foi concluída em 1978: é o coração da tese, que se encontra no primeiro número dos Cahiers de Cassiciacum nas páginas 33-99. Para a publicação nos Cahiers, ele lhe acrescentou uma Advertência que contém uma extensão pouco digna de crédito (p. 11): o autor aí afirma que, a infalibilidade estando ligada à pessoa física do papa, Paulo VI teria podido (embora ele não tenha feito isso) exercer o carisma da infalibilidade pondo um ato do Magistério extraordinário.
Eu não posso aderir a essa afirmação arrojada, por quatro razões:
— ela repousa numa recordação errônea do ensinamento do Concílio do Vaticano. Este, no decreto Pastor Æternus (18 de julho de 1870, Denzinger1839), afirma que o Papa “desfruta, em virtude da assistência divina que lhe foi prometida n[a pessoa d]o bem-aventurado Pedro, daquela infalibilidade de que o divino Redentor quis que estivesse munida a sua Igreja quando ela define a doutrina sobre a fé ou a moral; por conseguinte, essas definições do Pontífice Romano são irreformáveis por si mesmas e não em virtude do consentimento da Igreja”. Pessoal não pode se referir senão à sucessão de São Pedro na assistência divina, e ao fato de que nenhum consentimento suplementar é exigido. O Concílio não afirma, pois, de jeito nenhum, que se trataria de um privilégio ligado à pessoa física; mas apresenta-o antes como privilégio ligado à autoridade pontifícia;
— ela parece supor que o poder pontifício é divisível, fracionável – o que é errôneo e impossível;
— ela identifica demasiadamente infalível e extraordinário. A definição do Vaticano I não limita a infalibilidade pontifícia à locução ex Cathedra; ademais, a palavra extraordinário é desconhecida das definições concernentes ao magistério, e não tem, de resto, a mesma extensão que o ex Cathedra da Pastor Æternus;
— ela contradiz o que o Padre Guérard des Lauriers afirma (com razão) no corpo de sua própria tese (nas páginas 97 e 99), a saber, que é preciso ignorar Paulo VI e não fazer caso dele.
O segundo desenvolvimento ao qual resisto é mais tardio, e aliás não sei a quem se deve atribuí-lo. É a afirmação de que não somente estamos em presença de um papa materialiter tantum, mas que estaríamos na presença, em Roma e em todas as dioceses da Cristandade, de toda uma hierarquia materialiter, de bispos e cardeais quase até aos sacristães.
Isso também me parece errôneo pelas duas razões imperativas que seguem:
— para a apostolicidade da Igreja Católica considerada sob o aspecto da continuidade, só importa a sucessão da Sé Apostólica. A perenidade de cada uma das outras sés não é indispensável: não há nenhuma necessidade de fé (e, portanto, nenhuma adequação à realidade) de afirmar um materialiter a seu respeito;
— as nomeações dos cardeais e dos bispos são atos da jurisdição pontifícia, que está precisamente ausente e que nada pode substituir; ao passo que a nomeação do Soberano Pontífice não é, de modo algum, ato de jurisdição, o que faz a questão da Sé Romana ser radicalmente diferente da das Sés particulares ou do Sacro Colégio.
G. A Tese de Cassicíaco também é um bem útil
A Tese de Cassicíaco é verdadeira por si mesma, pois ela é uma confissão plena e inteira da fé católica conforme a toda a doutrina católica e aos fatos constatados, e interior à fé exercida.
Graças a isso, ela é também um belo instrumento de discernimento que nos será precioso para distinguir o momento em que – por uma graça de Deus verdadeiramente milagrosa – a autoridade será restaurada.
Mais ainda, ela apareceu como um baluarte erguido contra toda espécie de loucura que começa a despontar aqui e ali, uma barreira ponderada, contra os extravios que são de temer numa situação de anarquia: conclavismo, milenarismo, sagrações episcopais, apocalipsomania, espírito sectário, sobreviventismo, erros doutrinários diminuidores da autoridade pontifícia, justificação da desobediência, livre-exame, espírito cismático devido à recusa de conceder a numerosos católicos a qualidade de membros do Corpo Místico de Jesus Cristo, predominância da “segurança” acima da verdade etc.
Enfim… ela logicamente teria devido ser esse baluarte. Mas a confusão dos espíritos adquiriu tamanhas proporções, que invocar a lógica tornou-se ingenuidade.
Trad. por Felipe Coelho.
Deixe um comentário