SOBRE OS MINI-BISPOS E NEO-PADRES DA TRADIÇÃO
Padre Hervé Belmont
2008/2011
Nas páginas seguintes deste pequeno trabalho, insisto no fato da natureza principalmente e necessariamente hierárquica do episcopado, e na consequência inelutável: quando se recebe o episcopado, ou se é incorporado à hierarquia católica (o que unicamente o mandato apostólico é capaz de fazer), ou se é de uma pseudo-hierarquia que não é a hierarquia católica e, portanto, é cismática. Em razão da ausência de autoridade, não afirmo que se trate aí de cisma efetivo, consumado. Digamos que esta pseudo-hierarquia se situa na linha do cisma. Segue confirmação tirada do Concílio de Trento [Sobre o Sacramento da Ordem, capítulo IV, Denzinger960]:
“Por isso, então, o Santo Concílio declara que, para além dos graus eclesiásticos, os Bispos que sucederam ao posto dos Apóstolos pertencem principalmente a esta ordem hierárquica; que eles foram estabelecidos pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus, como diz o mesmo Apóstolo — Proinde sancta Synodus declarat, præter ceteros ecclesiasticos gradus episcopos, qui in Apostolorum locum successerunt, ad hunc hiearchicum ordinem præcipue pertinere, et ‘positos (sicut idem Apostolus ait) a Spiritu Sancto regere Ecclesiam Dei’ [Act. xx, 28].”
UM ESTRANHO FENÔMENO
Nas controvérsias ou discussões, desde os tempos mais remotos, observou-se um fenômeno estranho: muita gente – talvez a maioria – é bem mais sensível ao tom categórico da voz e à violência do vocabulário, do que à pertinência e força dos argumentos; um tom peremptório é mais eficaz que uma argumentação justa. Se se apresenta o próprio parecer com brandura, esforçando-se pela justa mesura da linguagem e equidade com as pessoas, isso é percebido como fraqueza de convicção, como sinal de debilidade da prova ou do raciocínio.
Esse fenômeno é estranho, mas não inexplicável. É uma consequência da desordem consecutiva ao pecado original: a parte sensível de nossa natureza toma facilmente o ascendente sobre a parte espiritual, a impressão domina a razão e, muitas vezes, a oculta. Nisto, e não é de se espantar, nos congraçamos com os animais selvagens: quando falamos a eles, nada compreendem do sentido das palavras, mas percebem perfeitamente o tom da voz – cólera, doçura, descontentamento, lisonja – e reagem de acordo.
Isso, publicistas de todo o tipo compreenderam faz muito tempo, e disso abusam sem vergonha: basta a eles afirmar com desfaçatez, repetir à saciedade, invectivar: é muito eficaz e dispensa de toda demonstração séria ou de argumentos embasados. Os espíritos fracos ficam impressionados ou mesmo conquistados, e os outros, desencorajados.
Isso faz necessário por vezes elevar o tom, intensificar a palavra, para ser eficazmente compreendido. Assim fez Nosso Senhor quando chamou os fariseus de “sepulcros caiados”; São João Batista não hesitou em falar de “raça de víboras”; ou ainda São Policarpo respondeu a Marcião que este era o “filho primogênito do demônio”.
— Mas o que quer dizer esse preâmbulo um pouco enigmático, aonde então quereis chegar?
— A isto: quando, nas controvérsias relativas à legitimidade das sagrações episcopais (pois é ainda disso que se trata), esforçamo-nos por uma certa moderação, quando não se faz delas seu cavalo de batalha cotidiano, ouve-se dizer – ou, mais exatamente, não se ouve, pois isto é dito corajosamente pelas costas – que não se tem argumento, que se é incapaz de provar a ilegitimidade de tais sagrações.
É evidentemente um pouco irritante, por duas razões: a primeira é a leviandade desse comportamento ante a gravidade do problema; a segunda… logo direi.
Assim, passo a dizer as coisas de forma um pouco mais nítida.
DIGAMO-LO, POIS, SEM RODEIOS
O episcopado recebido sem mandato prévio do Soberano Pontífice é um episcopado cismático.
Queirais bem notar que não digo que os que dão ou recebem o episcopado nessas condições sejam cismáticos. Não digo isso, por duas razões:
– não tenho qualidade para decidir a respeito ou para afirmá-lo categoricamente;
– estou bem convicto de que, em razão da anarquia reinante e da ausência total de vontade de se separar da Igreja Católica, muitos não o são.
Mas afirmo, mesmo assim, o seguinte: ainda que a sua pessoa não seja cismática, o seu episcopado é cismático.
Antes de dizer em quê, apresento sem demora uma confirmação:
“Por direito divino, os Bispos, mesmo dispersos, são um corpo constituído na Igreja. […] É de direito divino não somente que haja Bispos, mas que os Bispos sejam um corpo, e, se determinado sujeito torna-se Bispo, é de direito divino que haja, por um lado entre ele e o Papa, por outro entre ele e seus colegas, o duplo vínculo orgânico que faz dele um membro desse corpo. […] [O que agrega ao corpo episcopal] é o poder de governo, não em ato, mas enquanto normalmente associado à Sagração, enquanto a Sagração lhe dá ‘vocação’, e essa ‘vocação’ não é contrariada pelo cisma. […] Bispo é aquele que recebeu a Sagração, ainda que no seio do cisma, ainda que cismaticamente fazendo-se sagrar sem mandato Apostólico; mas aí então ele é Bispo sem ser do corpo episcopal.”
Padre V.-A. Berto, Pour la Sainte Église Romaine, Le Cèdre, Paris 1976, pp. 242 sqq.
Não somente esse texto, em razão da ciência e do espírito romano de seu autor, dá mais peso ao que afirmo, como traz-lhe a explicação. O episcopado não é católico a não ser que ele seja agregado ao corpo episcopal, que ele seja recebido com integração na hierarquia católica – este é o papel do mandato Apostólico.
Um episcopado fora da hierarquia católica é um episcopado cismático; e a só sagração é insuficiente por si mesma, é incapaz de integrar na hierarquia católica o bispo assim formado. Ter-se-á um católico-bispo, admito-o de bom grado em certos casos, mas não se terá um bispo católico.
QUESTÕES INELUTÁVEIS
Destarte, apresentam-se quatro questões que não se pode passar em silêncio, das quais não há como se esquivar facilmente.
1°/ Qual é a intenção desses bispos ao receberam a sagração? É a de ser bispos hierarcas como se tivessem um mandato apostólico (e vê-se despontar o cisma no horizonte)? É a de ser simples “bispos diminuídos”, apenas providos dos poderes de ordens que o bispo recebe na sua sagração (eles recusam assim a essência do episcopado, e vê-se despontar a invalidade no horizonte)?
Eu já tinha exprimido essa questão, da qual não se sabe por onde sair, nestes termos: Não nos encontramos porventura numa terrível alternativa, que confina com o dilema: sem mandato apostólico, uma sagração episcopal é ou cismática ou inválida? Cismática, se o bispo reivindica um poder auto-atribuído sobre o Corpo Místico; inválida, se ao receber a sagração ele recusa esse poder, que é constitutivo do episcopado…
2°/ Nemo dat quod non habet. Ninguém é capaz de dar aquilo de que está desprovido. Um bispo validamente sagrado, mas que não é membro da hierarquia católica, por falta de mandato apostólico, porventura pode, se ele ordenar sacerdotes, fazer deles membros do clero católico? Não serão eles católicos-padres sem serem padres católicos? Poder-se-á recorrer ao ministério deles? Igualmente para as confirmações: podem eles integrar alguém à milícia da Igreja, esses bispos que dela não são ministros?
3°/ Esses bispos, e os sacerdotes por eles ordenados, serão beneficiários das suplências que a Igreja prevê para os ministros dela?
4°/ Um dos aspectos da assistência dada por Jesus Cristo à Sua Igreja é a garantia de que as ordens sacras são validamente transmitidas desde os Apóstolos, que não há solução de continuidade. Essa garantia permanece fora da hierarquia? Não virá isso a dissolver a certeza que podemos e devemos ter quanto à realidade do sacerdócio deste ou daquele padre?
Faço a precisão de que se trata de verdadeiras questões, que a solicitude pela pertença à Igreja e pela validade sacramental leva a se colocar seriamente. Não é com um gesto de mão que se pode lhes dar resposta.
QUEM TEM O ÔNUS DA PROVA?
— É bem bonito, tudo isso que nos contastes, mas ainda não apresentastes nenhuma prova decisiva da vossa tese, ou seja da ilegitimidade das sagrações episcopais realizadas sem mandato apostólico!
— Já chego lá, já chego lá. Mas há, previamente, um ponto muito importante a precisar.
Efetivamente, essa ilegitimidade não é minha tese: é a doutrina e a prática que a Santa Igreja Católica crê e professa pacificamente desde os Apóstolos; é o ensinamento do Magistério e dos teólogos; é a disciplina cuja violação está associada, pela Igreja mesma, com a mais severa das excomunhões.
E, então, mesmo que eu estivesse sem o mais mínimo argumento, haveria ainda o fato de que não é a mim que incumbe a prova, mas aos que afirmam a legitimidade. E não uma prova qualquer de quinta categoria, do estilo basta haver necessidade grave, mas uma prova proporcional à gravidade do caso, em que está implicada a unidade da Igreja. Em todo processo, um elemento muito importante é determinar a quem incumbe a prova, quem tem a obrigação de demonstrar aquilo que afirma.
Nos processos penais, em razão da presunção de inocência, é à acusação que cabe provar a culpabilidade de um acusado (e, seja dito de passagem, é uma regra excogitada pela Inquisição, vós sabeis, a desumana Inquisição…). Se se quer preterir um uso apostólico, universal e juridicamente exigido pela Igreja, faz-se mister apresentar a prova de que isso seja lícito. Vir me dizer sem argumento é de todo o modo ineficaz para justificar sagrações sem mandato.
Quando muito, pode-se me demandar o que é que me permite afirmar que tal é realmente a tradição da Igreja que remonta à sua instituição mesma. Eu poderia retorquir que basta abrir os olhos, mas prefiro aduzir o testemunho de Dom Guéranger. Prestar-se-á especial atenção ao último parágrafo desta longa citação bem instrutiva.
“A Igreja que Jesus ressuscitado organiza nestes dias, e que deve se estender pelo mundo inteiro, é uma sociedade verdadeira e completa. Logo, ela deve conter em seu interior um poder que a reja, e que, pela obediência dos súditos, mantenha a ordem e a paz. Vimos que o Salvador proveu a essa necessidade estabelecendo um Pastor das ovelhas e dos cordeiros, um vigário de Sua divina autoridade; mas Pedro é somente um homem; e, por maior que seja o poder dele, ele não consegue exercê-lo diretamente sobre todos os membros do redil. Logo, a nova sociedade tem necessidade de magistrados de escalão inferior que sejam, conforme a bela expressão de Bossuet, ‘ovelhas com relação a Pedro, e Pastores com relação aos povos’. Jesus proveu a tudo; Ele escolheu doze homens que Ele chamou Seus Apóstolos, e é a eles que Ele confiará a magistratura de Sua Igreja. Ao separar Pedro, para fazer dele o Chefe e como um outro Ele Mesmo, Ele não renunciou a fazê-los servir a Seu desígnio. Longe disso: eles são destinados a ser as colunas do edifício de que Pedro é, doravante, o fundamento. Eles são em número de doze, como outrora os doze filhos de Jacó; pois o antigo povo era em tudo figura do novo. Antes de subir ao céu, Jesus lhes dá poder de ensinar por toda a terra, e Ele os estabelece Pastores dos fiéis em todos os lugares onde eles se detiverem. Nenhum deles é chefe dos demais, senão Pedro, cuja autoridade mostra-se maior ainda por elevar-se acima desses poderosos depositários do poder de Cristo.
“Uma delegação tão ampla dos direitos pastorais na generalidade dos Apóstolos tinha por objetivo assegurar a solene promulgação do Evangelho; mas ela não devia sobreviver, nessa vasta medida, a seus depositários. O Sucessor de Pedro era o único que devia conservar o poder apostólico em toda a sua extensão, e doravante, fora ele, nenhum pastor legítimo pôde exercer uma autoridade territorial sem limites. O Redentor nem por isso deixou de fundar, ao criar o Colégio dos Apóstolos, essa divina magistratura que veneramos sob o nome de Episcopado. Os Bispos, se bem que não tenham sucedido à jurisdição universal dos Apóstolos, se bem que não tenham recebido como estes a infalibilidade pessoal no ensinamento, nem por isso deixam de ocupar na Igreja o lugar dos Apóstolos. A eles Jesus Cristo confere as chaves por meio do ministério do Sucessor de Pedro; e essas chaves, símbolo de governo, eles as utilizam para abrir e para fechar em toda a extensão do território atribuído à sua jurisdição.
“Como é magnífica, como é imponente essa magistratura do Episcopado sobre o povo cristão! Contemplai no mundo inteiro esses tronos sobre os quais se assentam os pontífices, presidindo às diversas partes do rebanho, apoiados no cajado pastoral, símbolo de seu poder. Percorrei a terra habitável, ultrapassai os limites que separam as nações, atravessai os mares; por toda a parte encontrareis a Igreja, e por toda a parte encontrareis o Bispo ocupado em reger a porção do rebanho confiada à sua guarda; e, vendo que todos esses pastores são irmãos, que todos governam suas ovelhas em nome de um mesmo Cristo, e que todos se unem na obediência a um mesmo chefe, compreendereis então como ela é uma sociedade completa, esta Igreja no seio da qual a autoridade reina com tanto império.
“Abaixo dos Bispos, encontramos ainda na Igreja outros magistrados de escalão inferior; a razão de estes últimos terem sido estabelecidos se explica por si mesma. Preposto a um território mais ou menos vasto, o Bispo tem necessidade de cooperadores que representem a autoridade dele, e a exerçam em nome dele e sob as ordens dele, por toda a parte aonde esta não possa se exercer imediatamente. São os sacerdotes com cura de almas, dos quais o Salvador fixou o lugar na Sua Igreja com a escolha que fez dos setenta e dois discípulos, dentre os quais Ele tirou os Seus Apóstolos, aos quais os discípulos deviam estar sujeitos. Complemento admirável do governo na Igreja, onde tudo funciona com a mais perfeita harmonia, através desta hierarquia de cujo cimo a autoridade desce, e vai se espalhando pelos Bispos, que a delegam em seguida ao clero inferior.
“Estamos nos dias em que essa divina jurisdição, que Jesus anunciara, emana enfim de Seu divino poder. Vede com que solenidade Ele a confere: ‘Todo o poder, disse Ele, me foi dado no céu e na terra: ide, pois, ensinai a todas as nações.’ Assim, esse poder que os pastores vão exercer, é de Seu próprio patrimônio que Ele o haure; é um escoamento de Seu próprio poder no céu e na terra; e, a fim de que compreendamos mais claramente qual a fonte dele, diz Ele também nestes mesmos dias: ‘Como o meu Pai me enviou, assim também eu vos envio.’
“Assim, o Pai enviou o Filho, e o Filho envia os Pastores, e essa missão não será jamais interrompida daí até à consumação dos séculos. Sempre Pedro instituirá os bispos, sempre os bispos conferirão uma parte da autoridade deles aos sacerdotes destinados ao ministério das almas; e nenhum poder humano na terra poderá interceptar essa transmissão nem fazer com que aqueles que não tiveram parte nela tenham o direito de dedicar-se como pastores.” [O Ano Litúrgico, Terça-feira da Terceira Semana depois da Páscoa]
LEI DIVINA
Esse belo texto de Dom Guéranger conduziu-nos ao coração do problema: estamos na presença de uma lei divina, de uma lei constitutiva da Igreja, tocamos na natureza mesma das coisas – natureza da Igreja e natureza do episcopado – tais como foi instituída por Deus e inscrita na fábrica mesma de Sua obra. Estamos, pois, num domínio independente das circunstâncias, por mais graves que sejam elas, por maior que seja a necessidade.
É por isso que, como logo vamos recordar, Pio VI liga o problema ao dogma, Leão XIII e Pio XII à constituição da Igreja, coisas que são totalmente independentes das circunstâncias históricas a propósito das quais se exprimem esses Papas (Constituição civil do clero ou igreja patriótica da China).
Tudo isso converge em afirmar sem atenuar nem tergiversar: “Assim, na Igreja Católica, não há como haver consagração legítima a não ser conferida por mandato apostólico” (Pio VI, Carta Apostólica Caritas, 13 de abril de 1791).
Como eco, Dom Gréa escreve verdadeiramente: “Unicamente o Papa institui bispos. Esse direito pertence a ele soberanamente, exclusivamente e necessariamente, pela constituição mesma da Igreja e pela natureza da hierarquia.” (Dom Adrien Gréa, L’Église et Sa Divine Constitution [A Igreja e Sua Constituição Divina], Casterman 1965, p. 259).
A Igreja Católica é hierárquica por sua própria constituição; sua hierarquia é episcopal, seu episcopado é hierárquico. Aí está o que afirmam os Papas.
UNIÃO ÍNTIMA ENTRE
A CONSTITUIÇÃO DA IGREJA E O EPISCOPADO
O episcopado e sua transmissão pertencem à constituição mesma da Igreja Católica, diz Leão XIII: “A ordem episcopal necessariamente faz parte da íntima Constituição da Igreja” (Satis Cognitum, § 71). É segundo essa Constituição que o Papa, e somente ele, chama os bispos, os faz participar na regência do Corpo Místico de Jesus Cristo, incorpora-os na hierarquia da Santa Igreja.
Leão XIII recordava antes na Satis Cognitum a necessidade, para a unidade da Igreja, de não haver dissensão no episcopado:
“Por onde, consegue-se entender que os homens não se separam menos da unidade da Igreja pelo cisma do que pela heresia. Faz-se a seguinte diferença entre a heresia e o cisma: a heresia professa um dogma corrompido; o cisma, na sequela de uma dissensão no episcopado, separa-se da Igreja. Essas palavras [de São Jerônimo] concordam com as de São João Crisóstomo sobre o mesmo assunto: Afirmo categoricamente que dividir a Igreja não é mal menor do que cair em heresia. Por isso, como nenhuma heresia pode ser legítima, de igual maneira não há cisma que possa ser considerado feito com direito. Nada há de mais grave do que o sacrilégio do cisma: não existe necessidade legítima para romper a unidade.” (Leão XIII, Satis Cognitum, 29 de junho de 1896, § 49).
Pio VI, no Breve Quod Aliquantum (10 de março de 1791), vincula ao dogmaa necessidade da confirmação dos bispos pelo Soberano Pontífice (§ 24), opondo-se ao sofisma dos louvadores da Constituição civil do clero, a qual fazia disto uma questão de disciplina.
Pio XII, na Encíclica Ad Apostolorum Principis, conecta à Constituição mesma da Igreja a eleição dos Bispos:
“Perante tão graves atentados contra a disciplina e a unidade da Igreja, é Nosso dever expresso recordar a todos que a doutrina e os princípios que regem a constituição da sociedade divinamente fundada por Jesus Cristo Nosso Senhor são completamente diferentes.
“Os sagrados cânones, com efeito, decretam claramente e explicitamente que pertence unicamente à Sé Apostólica julgar acerca da idoneidade de um eclesiástico para receber a dignidade e a missão episcopais, e que pertence ao Romano Pontífice nomear livremente os bispos.” (Ad Apostolorum Principis, 29 de junho de 1958)
NATUREZA HIERÁRQUICA DO EPISCOPADO
É o Concílio de Trento que a afirma
“É por isso, então, que o Santo Concílio declara, que para além dos demais graus eclesiásticos, os Bispos, que sucederam ao posto dos Apóstolos, pertencem principalmente a esta ordem hierárquica; que eles foram estabelecidos pelo Espírito Santo, para governar a Igreja de Deus, como diz o mesmo Apóstolo — Proinde sancta Synodus declarat, præter ceteros ecclesiasticos gradus episcopos, qui in Apostolorum locum successerunt, ad hunc hiearchicum ordinem præcipue pertinere, et ‘positos (sicut idem Apostolus ait) a Spiritu Sancto regere Ecclesiam Dei’ [Act. xx, 28].” [Sobre o Sacramento da Ordem, capítulo IV, Denzinger 960]
É Santo Tomás de Aquino que a ensina
O episcopado é hierárquico por natureza. Santo Tomás de Aquino de fato ensina que aquilo que o diferencia do simples sacerdócio é a sua ordenação ao Corpo Místico:
“Habet enim ordinem episcopus per comparationem ad Corpus Christi mysticum, quod est Ecclesia… sed quantum ad Corpus Christi verum, non habet ordinem supra presbyterum; — O bispo tem uma ordem relativa ao Corpo místico de Cristo, que é a Igreja…; relativamente ao Corpo físico de Cristo, o bispo não tem uma ordem superior à do sacerdote (in Billuart, Cursus Theologiæ, De Sacramento Ordinis, c. X, d. IV, a 2, ad 4um).
“No que toca à sagração episcopal, pela qual se recebe um poder sobre o Corpo Místico, é preciso um ato por parte de quem recebe esse encargo pastoral: é por isso que é necessário para a validade da consagração que se tenha o uso da razão.” (IV Sententiæ, d. 25, q. 2, art. 1, qla. 2, ad 2. Vivès, XI, 53).
“O poder do bispo ultrapassa o do sacerdote como um poder de outro gênero; enquanto que o poder do Papa ultrapassa o poder do bispo como um poder do mesmo gênero” (IV Sent. d. 24 q. 3 a. 2 qla. 3 ad 3).
É bem essa a natureza das coisas
Por sua ordenação essencial ao Corpo Místico, o episcopado é o “tijolo fundamental” com que está erigida a hierarquia da Igreja. Nele se unificam as duas razões diversas segundo as quais se ordena a única hierarquia da Igreja: a ordem e a jurisdição. A unidade desses dois aspectos existe no episcopado, que é o único por instituição divina a ocupar lugar, simultaneamente, na hierarquia de ordem e na hierarquia de jurisdição.
Digo que o episcopado realiza a unidade da hierarquia eclesiástica porque, por um lado, ele é a plenitude do sacerdócio e, por outro lado, a jurisdição suprema e fundamental na Igreja é episcopal – não no sentido da jurisdição de um bispo particular, mas daquela do bispo dos bispos. O Concílio do Vaticano, quando quer caracterizar a jurisdição do Papa, diz que é uma jurisdição episcopal:
“Nós ensinamos, pois, e declaramos que a Igreja romana, por instituição divina, tem o primado do poder ordinário sobre todas as outras igrejas, e que esse poder de jurisdição do Romano Pontífice, [poder de jurisdição que é verdadeiramente episcopal, é imediato…l jurisdictionis potestatem, quæ vere episcopalis est, immediatam esse” Pastor Aeternus, D. 1827, 18 de julho de 1870.
Consequentemente, é a unidade hierárquica da Igreja Católica que está em causa: fazer um bispo é fazer uma hierarquia; e, se esse bispo não é feito pelo Papa – único fundamento da hierarquia católica –, é fazer uma outra hierarquia. Não tem escapatória.
Os bispos são os sucessores dos Apóstolos, e devem essa qualidade à sua união episcopal ao Soberano Pontífice.
Ter-se-á notado, de passagem, que Santo Tomás afirma que, pela simples sagração episcopal, recebe-se um poder sobre o Corpo Místico: esse poder de regência, para falar como São Paulo, é por vezes chamado ainda de “jurisdição primeira”. Essa ordenação ao Corpo Místico, esse poder – que é suspenso pelo cisma – é constitutivo do episcopado: é a fonte da extensão do poder de ordem que o bispo recebe; é um chamado (aptidão imediata, mas não imperativa, e que deve ser atuada pelo Papa) à jurisdição que faz apascentar uma porção do rebanho de Jesus Cristo.
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Aí estão alguns elementos de minha suposta ausência de argumentos. Eu os tenho repetido à saciedade faz anos: encontrar-se-ão na brochura As sagrações episcopais sem mandato questionadas, depois em numerosos números de Notre-Dame de la Sainte-Espérance (133; 135; 147; 150; 151; 216 e outros mais). Acaba-se por experimentar um certo cansaço de ter que sempre repetir as mesmas coisas, quando o ensinamento da Igreja é tão claro e sem falha.
Mas há uma coisa de que não dá para se cansar, que é ler Dom Guéranger ou seu continuador. Citei dele uma longa passagem agora há pouco, eis aqui mais três textos em que recorda a lei divina, a constituição da Igreja e sua imutável prática.
“Como é divina e sagrada, essa autoridade das Chaves, que, descendo do céu no Romano Pontífice, deriva dele, por intermédio dos Prelados das Igrejas, para toda a sociedade cristã que ela deve reger e santificar! O modo de sua transmissão pela Sé Apostólica pôde variar conforme os séculos; mas nem por isso todo o poder deixava de emanar, por minimamente que fosse, da Cátedra de Pedro. (…) Logo, é a nós, sacerdotes e fiéis, que cabe indagar qual a fonte de onde nossos pastores hauriram o poder deles, qual a mão que lhes transmitiu as Chaves. A missão deles emana da Sé Apostólica? Se assim for, eles vêm da parte de Jesus Cristo, que confiou a eles, por meio de Pedro, Sua autoridade; honremo-los, sejamos-lhes submissos. Se eles se apresentarem sem ser enviados pelo Romano Pontífice, não nos juntemos a eles; pois Cristo não os conhece. Ainda que estivessem revestidos do caráter sagrado que é conferido pela unção episcopal, eles não são nada na Ordem Pastoral; as ovelhas fiéis devem se afastar deles.” [O Ano Litúrgico, A Cátedra de São Pedro em Antioquia]
“O Espírito Santo espalhou Seus dons divinos nas almas desses novos cristãos; mas as virtudes que estão neles não se podem exercer de maneira a merecer a vida eterna a não ser no seio da Igreja verdadeira. Se, em lugar de seguirem o pastor legítimo, tiverem a desdita de entregar-se a falsos pastores, todas essas virtudes tornar-se-ão estéreis. Devem, portanto, evitar como estrangeiro àquele que não recebeu a missão dele do Mestre, que é o único que pode conduzi-los aos pastos da vida. Com frequência, no decurso dos séculos, encontraram-se pastores cismáticos; o dever dos fiéis é fugir deles, e todos os filhos da Igreja devem estar atentos à advertência que Nosso Senhor lhes dá aqui. A Igreja que Ele fundou, e que Ele conduz por Seu divino Espírito, tem como nota a de ser Apostólica. A legitimidade da missão dos pastores se manifesta pela sucessão; e, como Pedro vive nos seus sucessores, o Sucessor de Pedro é a fonte do poder pastoral. Quem está com Pedro está com Jesus Cristo.” [O Ano Litúrgico, Terça-feira de Pentecostes]
“A aproximação da consumação das núpcias do Filho de Deus coincidirá, aqui embaixo, com um redobramento dos furores do inferno para perder a Esposa. O dragão do Apocalipse, a antiga serpente sedutora de Eva, vomitando como um rio sua baba imunda, desencadeará todas as paixões para arrastar a verdadeira mãe dos viventes nessa correnteza. Contudo, ele será impotente para contaminar o pacto da eterna aliança; e, sem forças contra a Igreja, ele dirigirá sua fúria contra os últimos filhos da nova Eva, reservados para a honra perigosa das lutas supremas descritas pelo profeta de Patmos. É principalmente então que os cristãos fiéis terão de se recordar das advertências do Apóstolo, e portar-se com a circunspecção que ele recomenda, dedicando todos os seus cuidados a conservar pura a sua inteligência, não menos que a sua vontade, nesses dias maus. Pois a luz não terá então de sofrer somente os ataques dos filhos das trevas alardeando suas perversas doutrinas; ela será talvez ainda mais diminuída e falseada pelos desfalecimentos dos próprios filhos da luz no terreno dos princípios, pelas procrastinações, pelas transações, pela humana prudência dos pretensamente sábios. Muitos parecerão praticamente ignorar que a Esposa do Homem-Deus não pode sucumbir sob o choque de nenhuma força criada. Se é que se recordam de que Cristo comprometeu-Se a guardar, Ele próprio, a Sua Igreja até o fim dos séculos, eles nem por isso deixam de crer fazer maravilhas trazendo à boa causa o auxílio de uma política cujas concessões nem sempre serão suficientemente pesadas na balança do santuário: sem levar em conta que o Senhor não tem necessidade alguma, para ajudá-Lo a cumprir Sua promessa, de astúcias tortuosas; sem refletir, sobretudo, que a cooperação que Ele condescende em aceitar dos Seus, para a defesa dos direitos da Igreja, não pode de modo algum consistir na diminuição ou na dissimulação das verdades que constituem a força e a beleza da Esposa.” [O Ano Litúrgico, XX Domingo depois de Pentecostes]
CORREIO DOS LEITORES
Como as revistas ditas de “imprensa rosa”, Notre-Dame de la Sainte-Espérance abre um correio dos leitores: não de modo permanente (ufa!), mas para fazer eco às reações que suscitou o último número consagrado – uma vez mais – às sagrações episcopais. Seguem, pois, cinco reações (e minha resposta), sendo as duas primeiras de viva voz e as outras três por escrito.
1. “Por que, então, falar ainda outra vez desse problema?”
— Concebo perfeitamente que eu possa dar a impressão de ter uma espécie de ideia fixa, de não pensar em outra coisa que não sejam as sagrações sem mandato, quando tenho ocasião de abordar este tema.
Dou a conhecer, todavia, que o último número reagia a uma observação recorrente: eu não respondo às objeções que me são contrapostas. É por isso, aliás, que este boletim foi escrito ab irato, num tom um tanto incisivo; é aos que fazem circular essa observação que cumpre responsabilizar pelo retorno do assunto.
Dito isto, eu não falo das sagrações, delas escrevo: é completamente diferente. A palavra se impõe ao interlocutor, o escrito o deixa livre para ler ou não ler; a palavra frequentemente afoga o interlocutor sob a abundância de palavras ou decibéis, o escrito favorece a reflexão, o recuo, a calma. A argumentação é aí desbastada de seus parasitas. Frequentemente, a palavra faz brilhar espíritos superficiais em detrimento da precisão, da verdade, da justeza do raciocínio; o escrito se presta menos facilmente a isso. Escrevo, pois, e ninguém está obrigado a ler. O problema me parece suficientemente grave, para me criar um dever de escrever sobre ele, sem deixar ao fato o lazer de adquirir nos espíritos o status de direito.
Uma razão, outra que não a simples gravidade, torna oportuno retornar de tempos em tempos ao assunto: a permanência de um estado. Uma sagração episcopal, legítima ou não, não é unicamente um ato passageiro: está na origem de um estado e de uma descendência. Uma ordenação sacerdotal inaugura um estado que durará para a eternidade. Não se deve, portanto, espantar-se que seja preciso voltar a isto de novo e de novo.
Tomemos uma comparação. Eis um homem que comete um pecado: seria contrário à caridade e à decência recordar-lhe isso. Uma vez perdoado e expiado o pecado, devemos não o levar mais em consideração e esquecê-lo. Mas, se o mesmo homem comete um pecado que inaugura um estado permanente – um pseudo-matrimônio, por exemplo –, aí então é preciso tê-lo em conta de forma permanente, e pode ser necessário falar disso regularmente, para evitar que, com o uso, esse estado não acabe por parecer normal. Quantos falsos casais não lograram assim, pouco a pouco, impor-se à semelhança dos outros (em detrimento do Santo Matrimônio e dos verdadeiros lares) por se ter cessado, por lassidão ou por sentimentalismo, de renovar o alerta.
Há alguns dias, fui (cortesmente) interpelado por uma pessoa um pouco metida em teologia, e cujo coração pende para as sagrações sem mandato apostólico. Eis o esqueleto da controvérsia:
— O Concílio de Trento afirma que o episcopado é hierárquico…
— Sim, mas eu penso que…
— Pio VI e Pio XII fazem desta uma questão de dogma e de Constituição da Igreja…
— Sim, mas eu penso que…
— Santo Tomás de Aquino fixa em diversos lugares que o poder episcopal…
— Sim, mas eu penso que…
Carrego nas tintas, claro, mas foi esse o fundo da discussão. É para evitar esses embaraçosos Sim, mas eu penso que… e substituí-los por Sim, mas a Igreja ensina que…, que creio útil retornar à questão e expor o ensinamento católico.
— Ainda assim, não vais pretender que vós encarnais o pensamento da Igreja!
— Mas não! Embora eu me esforce em “grudar” no ensinamento do Magistério e em me impregnar de seu espírito, a minha apresentação desse ensinamento não tem senão um valor privado (o de meus argumentos), e é facultativo a cada um estimar que o deformo ou desconheço. Isso é evidente. Mas cada um tem, justamente, o dever de conhecer o melhor que puder aquilo que a Igreja ensina e faz. Uma salva de Sim, mas eu penso que… não é a melhor maneira de alcançar isso. Diante de um problema em matéria tão importante, com consequências tão graves, torna-se injustificável a própria posição e vai-se ao encontro de uma catástrofe.
2. [Reação conhecida indiretamente] Pode até ser que o Padre Belmont seja muito afincado aos princípios, mas é em detrimento da salvação das almas: pois tem-se necessidade de sacerdotes.
— A fraqueza do zelo do Padre Belmont é um fato notório, e é uma grande miséria. Mas, no caso, isso não tem nada a ver, nem o torna, portanto, inconsciente das necessidades.
É Deus que salva por Sua misericórdia, e somente Ele. Certamente que Ele não salva sem escolher para Si instrumentos humanos para esse fim, Ele não salva sem intercessor nem intermediário, mas é Ele que salva.
A primeira preocupação de que devemos, portanto, estar habitados é a de ser instrumentos dóceis, instrumentos submissos, ministros fiéis: “Que os homens nos vejam como os ministros de Jesus Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, o que se requer dos despenseiros é que sejam julgados fiéis” [I Cor. IV, 1-2].
Essa fidelidade não se pode encontrar senão no assentimento a toda a doutrina da Igreja, na conformidade à sua Constituição, na recusa de tudo aquilo que ela condena. À margem disso, é ilusão.
E ademais, é claro, resta viver da oração constante, da pureza de intenção, de zelo intenso. É dizer o quanto é preciso rezar por mim!
3. [Carta recebida]
Tenho um Dom Guéranger, mas não se deve lê-lo como fazeis.
Diante da situação atual não prevista, algumas das afirmações dele são francamente inexatas.
E se não houvesse papa durante 50-70 anos!!! mas um ocupante durante 100 anos! Nada mais de bispos! nada mais de padres!
Já as ordenações (dentre as quais, a vossa) de Mons. Lefebvre eram repreensíveis.
Suprimindo os bispos consagrados por Mons. Lefebvre com tendência cismática (aí tendes razão!), os de Mons. Thuc e todos os sacerdotes ordenados por eles, sobra o quê? Logo mais, nada!
Principalmente se consideramos que os novos sacramentos de Paulo VI são inválidos.
Com plena amizade, e respeitosamente.
A França inteira deveria comparecer a Bordeaux para a Missa?
[Resposta enviada]
Como indico em meu boletim, é para mostrar qual é a doutrina que a Igreja possui pacificamente – e, portanto, para mostrar a quem incumbe o ônus da prova – que cito Dom Guéranger: não é, de maneira alguma, porque o texto dele dirimiria o debate.
Em tudo isso, o meu objetivo não é, de modo algum, trazer toda a França a Bordeaux para a Missa (e não vos esqueçais da Navarra), mas trazer todo o mundo para os pés do Bom Deus (e da doutrina de Sua Igreja, é a mesma coisa), pois somente Ele pode nos tirar dessa. Creio que não se deve procurar “ganhar tempo” com expedientes que, a meu parecer, Ele reprova, mas que é preciso procurar conquistar o coração do Bom Deus.
4. [Carta recebida]
Ficou muito bem feito, é notável. A exposição da causalidade, e do argumento de proporcionalidade que a ela se conecta, foi particularmente bem-sucedida.
Não compreendo bem a conclusão prática que convém tirar no caso de um católico-bispo, cuja intenção ao aceitar a consagração episcopal tenha sido de fazer o que a Igreja sempre fez e de assegurar a continuidade do sacerdócio, e que não recusasse a priori a função de governo, mas que dela se encontrasse privado.
Nesse caso, não se pode empregar o termo “recusa de governo”. Essa sagração é inválida?
[Resposta enviada]
Em minha passagem que carece de clareza, nada mais faço que me interrogar em voz alta (e é uma interrogação que me persegue faz talvez uns 25 anos, desde que se inventou a noção de “bispo diminuído”). A invenção dessa noção, que me parece do mesmo jaez da de círculo quadrado, não é manifestação de que se está na presença de um verdadeiro dilema? Não se está porventura apanhado entre a invalidade (se alguém tem a intenção de não receber senão os poderes de ordem do episcopado, sua intenção não será irreal, nisto que ela não se refere senão a um aspecto necessário, mas derivativo, da sagração episcopal?) e o cisma (se quem recebe a sagração tem a intenção de receber o episcopado em sua plenitude, aí então não inicia ele uma outra hierarquia que não a hierarquia católica, à qual nenhum ato pontifício o integra?)?
É uma questão, é um dilema para o qual não vejo saída. Minha visão ou falta de visão não determinando a realidade, sou incapaz de concluir, e aí está a razão pela qual nada mais faço que colocar a questão – mas o fato de que se a coloque me parece, por si só, de extrema gravidade.
Perdão por substituir uma obscuridade por outra…
5. [Carta recebida]
Queirais encontrar em anexo dois testemunhos que permitem afirmar que as sagrações realizadas sem mandato apostólico são ilegítimas. Eu gostaria de conhecer vossa opinião sobre esses dois excertos.
[Resposta]
Vou reproduzir abaixo um excerto do primeiro excerto (por falta de espaço, não posso incluir mais do que isso), e o segundo excerto integral. Minha opinião é que esses textos tem inegavelmente valor de confirmação da mencionada ilegitimidade. Seriam suficientes por si sós? É sempre difícil dizer, mas, ademais, a Igreja não nos deixou desprovidos para assentar uma conclusão firme.
No primeiro excerto, quando o autor fala de jurisdição, vê-se facilmente que o autor entende não somente aquilo que certos autores chamam (com ou sem razão, esta é outra questão) de jurisdição segunda, jurisdição efetiva sobre uma porção da Igreja (uma diocese), mas mais ainda a jurisdição primeira, aquela que é dada pelo mandato do Soberano Pontífice, mandato que concerne à sagração mesma e à integração do consagrado na hierarquia católica.
Essa jurisdição primeira é uma dignidade principesca, um poder real sobre o Corpo Místico de Jesus Cristo, agregação ao Corpo Episcopal que, na união e subordinação ao Soberano Pontífice, governa a Igreja de Jesus Cristo.
Excerto tirado do Catecismo do Concílio de Trento. Nova tradução, lado a lado com o texto original, enriquecida de notas consideráveis. Pelo Sr. Pe. Gagey, capelão do Liceu de Dijon. Dijon: Popelain et Cie, libraires-éditeurs 1854. Tomo I, nota 7 páginas 212 e seguintes.
“Nós já dissemos que ninguém podia fazer parte do corpo docente e dirigente da Igreja, se não descendesse dos Apóstolos, e se não houvesse entre eles e ele uma filiação real. Isso posto, eis o nosso argumento: É uma lei geral que quem emana de outro por via de filiação tem de reproduzir na sua pessoa as propriedades fundamentais que constituem a ordem ou espécie de seres a que esse outro pertence; logo, todos aqueles que descenderão realmente dos Apóstolos e que serão destinados a continuá-los aqui na terra por via de filiação serão obrigados a possuir os elementos constitutivos que caracterizam o homem apostólico em cada um daqueles homens apostólicos que Jesus Cristo chamara junto de Si para continuar a obra da missão. Esse princípio é absolutamente incontestável. Ora, quais eram as propriedades essenciais, as prerrogativas fundamentais que faziam de Pedro, de João, de Simão, etc., outros tantos Apóstolos? Reduziam-se a três: a ordenação, a guarda infalível da revelação, e a jurisdição. Sim, ser tirado do meio dos demais homens, para formar uma ordem superior e à parte, não por decorrência de uma escolha vulgar e sem alcance, mas em virtude de um rito consagrador, e sob a ação da insuflação divina; depois, ser preposto, de maneira especial e por um chamado regular e formal, à guarda da doutrina; depois, enfim, ter ouvido pronunciar sobre sua própria cabeça o Euntes ergo docete que comunica a missão, aí está o homem apostólico naquilo que ele tem de essencial, de radical e de permanente. Ele não tem como existir em nenhuma outra condição. Assim, todo aquele que queira dedicar-se a ser continuador dos Apóstolos deve necessariamente apresentar os títulos desse triplo privilégio. Venha um só deles a faltar, será o bastante para nos impedir de obter, ou mesmo para nos fazer perder, o direito de nos substituirmos a eles e de assumir o papel deles.
Que não se me venha falar então em doutrina, quando a ordenação e a jurisdição estão ausentes, nem em ordenação e jurisdição, quando a doutrina está mutilada.
Num caso como noutro, não se é mais personificação suficiente dos Apóstolos e, portanto, não se é mais herdeiro deles.”
Excerto tirado de “Tradition de l’Église sur l’institution des Évêques” [A Tradição da Igreja Quanto à Instituição dos Bispos], Liège: Le Marié, Duvivier, imprimeurs-libraires 1814. Tomo I, página 156 e seguintes.
A ordem pastoral não cessou de estar sujeita aos sucessores do príncipe dos apóstolos desde o começo e nos séculos posteriores. Para ilustrar sua afirmação, o autor cita o fato seguinte:
O Papa Simplício (século V) havia confirmado a eleição de João Talaïa, sucessor de Timóteo, à Sé de Alexandria; mas o imperador Zenão, descontente com o novo patriarca, cuja fidelidade era-lhe suspeita, escreveu a Simplício, que revogou sua confirmação. O próprio Papa nos instrui sobre esses detalhes, em carta a Acácio de Constantinopla.
“Um relato que nos foi enviado não faz muito tempo, conforme o uso, por um concílio do Egito, muito numeroso e muito aderido à fé católica, assim como por quase todo o clero da Igreja de Alexandria, comunicou-nos simultaneamente a morte de nosso irmão de santa memória e co-epíscopo Timóteo, e a escolha que fora feita de João para substituí-lo, conforme o voto [vœu] unânime dos fiéis. Como se o acreditava provido de todas as qualidades que o episcopado exige, parecia que nada mais restava a ser feito senão – dando graças a Deus, e nos regozijando de que um Bispo católico sucedesse sem confusão ao bispo defunto, – que o consentimento da Sé Apostólica lhe desse a solidez desejada. Ora, eis que, enquanto eu me ocupava dessa disposição, segundo o costume, foram-me entregues as cartas do Príncipe, nas quais ele me roga impedir que João se torne Bispo, indigno como é desta alta dignidade, por causa do crime de perjúrio, do qual mesmo Vossa Fraternidade, diz ele, não ignora ser ele acusado. Voltando atrás, pois, imediatamente, revoguei a sentença de confirmação que eu tinha decretado, por medo de que se me taxasse de ter agido com leviandade contra um tão grande e imponente testemunho.”
Observemos,
1°) que é um concílio, e um concílio muito numeroso, que demanda do Papa a confirmação de um Bispo eleito canonicamente e sem oposição;
2°) que se recorre à Santa Sé conforme o uso, ex more, e que a Santa Sé mesma, ao confirmar João Talaïa, nada mais faz que se conformar ao antigo costume, secundum consuetudinem;
3°) que o imperador, ao qual a eleição desagrada, dirige-se ao Pontífice Romano para fazer com que ela seja cassada, reconhecendo que ele é juiz disso, e que pelo mero efeito de sua vontade, ele pode impedir João de ser Bispo: sacerdotio prohiberetur;
4°) que, muito embora João tenha sido consagrado logo após a eleição, sua autoridade porém, para ser plena, inteira, inabalável, tinha de ser consolidada pelo consentimento da Sé Apostólica: Apostolicæ quoque moderationis assensu votivam sumeret firmitatem. Até esse momento a solidez de seu episcopado não era senão um desejo, um voto, expressão que parece escolhida expressamente para melhor fazer sentir a força dessa sentença de confirmação, sem a qual nada se é, e que, então como hoje, fazia verdadeiramente os bispos.

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