CARTA ENCÍCLICA SATIS COGNITUM

Sua Santidade Leão XIII | 1896

A UNIDADE DA IGREJA

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS E TODOS OS ORDINÁRIOS DE LUGAR EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA

1. Bem conheceis como não pequena parte dos nossos pensamentos e cuidados é dirigida a obter a volta dos dispersos ao redil do sumo pastor das almas, Jesus Cristo. Tendo presente isso, com salutar conselho e propósito, julgamos oportuno que seria de boa ajuda apresentar a imagem e os lineamentos da Igreja, e, entre eles, merece consideração especial a unidade, que o Autor divino lhe conferiu perpetuamente, como caráter de verdade e de força. A beleza nativa da Igreja deve impressionar muito os ânimos dos que a contemplam; e não é inverossímil que baste a sua contemplação para eliminar a ignorância e sarar as opiniões falsas e preconcebidas, especialmente para aqueles que, sem culpa. se encontram no erro; e mais, pode surgir nos homens um amor para a Igreja, semelhante à caridade, com a qual Jesus Cristo, remindo-a com seu sangue divino, tornou-a sua es posa: “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25). A todos os que voltarem à mãe amantíssima, até agora não bem conhecida, ou culposamente abandonada, se essa volta não lhes custar o sangue que foi o preço com que Cristo a conquistou, mas somente alguma fadiga ou contrariedade, bem mais fáceis de ser suportadas, pelo menos isso fique claro e manifesto que não é um peso imposto pela vontade do homem, mas pela vontade e ordem divina. Por conseguinte, mediante a graça celeste, facilmente conhecerão por experiência quanto seja verdadeira a sua afirmação: “O meu jugo é suave e meu peso, leve” (Mt 11,30). Por isso, tendo posto esperança grandíssima no “Pai das luzes”, do qual vem “todo dom precioso e toda dádiva perfeita” (Tg 1,17), de todo coração o suplicamos, para que ele, “o único que o faz crescer” (1Cor 3,6), queira benignamente conceder-nos a força de persuadir.

2. Ainda que Deus possa operar de per si, com seu poder, o que operam a natureza criada, contudo ele quis, com benigno conselho de sua providência, servir-se dos homens para ajudá-los; e como, na ordem natural, serve-se da obra e contribuição do homem para comunicar às coisas a perfeição conveniente, assim também procede para conceder a santidade e a saúde ao homem. Ora é sabido que não pode haver nenhuma comunicação entre os homens a não ser por meio das coisa externas e sensíveis. Por isso assumiu a natureza humana e “tendo a condição divina, esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana” (Fl 2,6-7); e assim, morando na terra, ensinou pessoalmente a sua doutrina e os preceitos da sua lei.

3. E, como era conveniente que sua missão divina fosse perene, reuniu à sua volta alguns discípulos da sua doutrina e tornou-os participantes do seu poder; e, tendo chamado do céu sobre eles o Espírito de verdade, mandou-lhes percorrer toda a terra, pregando fielmente o que lhes tinha ensinado e mandado, para que todo o gênero humano pudesse conseguir a santidade na terra e a felicidade eterna no céu.

4. Por essa finalidade e por força desse princípio, foi gerada a Igreja, a qual, se considerarmos o fim último a que é dirigida e as causas próximas da santidade, é certamente espiritual; mas se considerarmos os membros que a compõem e os meios que levam à consecução dos dons espirituais, é externa e necessariamente visível. Os apóstolos receberam a missão de ensinar através de sinais que são percebidos pela vista e o ouvido; e eles não a cumpriram de outra forma a não ser que com ditos e fatos que impressionam os sentidos. E assim a sua voz atingindo externamente os ouvidos, produziu a fé nos ânimos: “Pois a fé vem da pregação e a pregação é pelo mandato de Cristo” (Rm 10,17). E ainda que esta fé ou a adesão à verdade primeira e suprema, de per si, esteja contida na mente, contudo é preciso que se manifeste com uma profissão explícita: “Pois quem crê de coração, obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). Assim também para o homem não há nada de mais interno do que a graça celeste que produz a santidade, mas os instrumentos ordinários e principais para a participação a ela são externos: chamamo-los sacramentos, que são administrados com ritos determinados, por pessoas escolhidas exatamente para isso. Jesus Cristo mandou aos apóstolos e seus sucessores em perpétuo que instruíssem e dirigissem às gentes e a elas mandou acolher a sua doutrina e estar submetidas e obedientes ao seu poder. Todavia, esses direitos e deveres recíprocos no cristianismo não só não se poderiam manter, mas nem mesmo iniciar-se, a não ser através dos sentidos, intérpretes e indicadores das coisas.

5. É por isso que muitas vezes as Escrituras Sagradas chamam a Igreja ora “corpo”, ora “corpo de Cristo”. “Ora vós sois o corpo de Cristo” (1Cor 12,27). Como corpo ela é visível, e, enquanto é de Cristo é um corpo vivo, operante e vital porque Jesus Cristo a guarda e sustenta com seu poder imenso, como a videira alimenta e torna frutíferos os seus ramos. Como nos animais o princípio de vida é interno e completamente escondido, contudo revela-se e manifesta-se pelo movimento e a atitude dos membros, assim também na Igreja o princípio de vida sobrenatural manifesta-se com evidência pelas suas ações.

6. Disso deriva que erram grave e fatalmente os que se forjam na mente e a seu talante uma Igreja latente e não visível; assim como os que a julgam instituição humana com um determinado ordenamento de disciplina e de ritos externos, mas sem a comunicação perene dos dons e da graça divina e sem as coisas que, com manifestação clara e quotidiana, atestem que sua vida deriva de Deus. Ora, causa repulsão que ambas as coisas sejam a Igreja de Jesus Cristo, quanto o homem seja somente corpo ou somente espírito. O conjunto e a união dessas duas partes são absolutamente necessários à Igreja, assim como a íntima união da alma e do corpo para a natureza humana. A Igreja não é como um corpo morto, mas é o corpo de Cristo dotado de vida sobrenatural. E como Cristo, nossa cabeça e exemplo, não é todo ele, se considerarmos nele somente a natureza humana visível, como fazem os fotinianos e os nestorianos, ou somente a natureza divina invisível, como costumam fazer os monofisitas, mas é um só por ambas as naturezas, a visível e a invisível, nas quais subsiste. Assim seu corpo místico não é verdadeira Igreja a não ser por isso, que suas partes visíveis atingem força e vida dos dons sobrenaturais e dos outros elementos, dos quais manam a razão de ser e sua própria natureza. Como a Igreja é o que é por vontade e instituição divina, assim tem de permanecer para sempre. Se não permanecesse a mesma, com certeza não seria fundada para sempre, e o próprio fim ao qual tende seria delimitado por determinados confins de tempo e lugar; ora, ambas as coisas repugnam à verdade. Essa união de coisas visíveis e invisíveis, exatamente por ser natural e congênita na Igreja por vontade divina, deve necessariamente perdurar enquanto houver Igreja, Por isso Crisóstomo dizia: “Não te afastes da Igreja, pois não há nada mais forte que a Igreja. A tua esperança é a Igreja, a tua saúde é a Igreja, o teu refúgio é a Igreja. Ela é mais alta do que o céu, mais vasta do que a terra. Nunca envelhece, mas permanece sempre jovem. Com efeito, para demonstrar a sua firmeza e estabilidade a Escritura chama-a monte” [Hom. De capto Eutropio, n. 6]. E Agostinho: “(Os gentios) acreditam que a religião cristã deve viver neste mundo por um tempo determinado, e depois, nada mais. Até que o sol nasce e se põe, ela há de durar como o sol, isto é, até que durará o volver dos séculos, não falhará a Igreja, ou o corpo de Cristo sobre a terra”. [Enarrationes Psal. 71, sermo II, n. 8] E diz a mesma coisa noutro lugar: “Vacilará a Igreja, se vacilar o fundamento; mas em que vacilará o Cristo? …Não vacilando o Cristo, nem ela se inclinará em eterno. Onde estão aqueles que dizem que a Igreja se extinguiu no mundo quando ela nem ao menos se pode inclinar?”. [Enarrationes in Psal. 103, sermo II, n. 5]

7. Todo aquele que procura a verdade deve servir-se desses fundamentos. A Igreja foi instituída e formada pelo Cristo Senhor: por isso quando se procura qual a sua natureza, é preciso primeiro conhecer o que Cristo quis e fez. Deve-se examinar, segundo essa regra, a unidade da Igreja, de que nos pareceu bem dar, nesta carta, uma indicação para utilidade comum.

8. Que a verdadeira Igreja de Cristo seja una, é coisa tão conhecida, pelos testemunhos numerosos e claros da Escritura Sagrada, que nenhum cristão tem a ousadia de contradizê-la. Porém, ao julgar e estabelecer a natureza da unidade, variados erros desviam muitos do caminho reto. Não só a origem, mas toda a constituição da Igreja pertence aquele gênero de coisas que se efetuam livremente pelos homens; portanto todo o exame deve-se basear não sobre a maneira na qual a Igreja possa ser uma só, mas como a quis uma só aquele que a fundou.

9. Ora, se observarmos o que fez, Jesus Cristo não formou a sua Igreja de modo que abraçasse mais comunidades. do mesmo gênero, mas distintas e não coligadas, juntamente com aqueles vínculos que formam uma Igreja singular, naquela maneira que, ao recitarmos o símbolo da fé, nós dizemos: “Creio na Igreja una…”. “A Igreja teve em sorte uma só natureza, e sendo una, os hereges querem dividi-la em muitas. Afirmamos, portanto, que é única a Igreja antiga e católica, na sua essência e na sua crença comum, no seu princípio e pela sua excelência… Afinal, também a eminência da Igreja, como princípio de construção, resulta da sua unidade, superando qualquer outra coisa, e não tendo nada de semelhante ou igual a si” [Clemente Alex., Stromata, lib. VII, cap. 17]. Com efeito, Jesus Cristo ao falar desse edifício místico, não fala que de uma Igreja, que ele chama sua: “Edificarei a minha Igreja”. Qualquer outra que se pense além dessa, não sendo fundada por Jesus Cristo, não pode ser a verdadeira Igreja de Cristo. Isso fica mais evidente se considerarmos a intenção do Autor divino. Com efeito, o que procurou, o que ele quis ao fundar a Igreja? Transmitir-lhe a tarefa e a missão que ele recebeu do Pai, para que ela a continuasse. Foi isso que estabeleceu fazer e que fez: “Assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio” (Jo 20,21). “Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17,18). Ora o ofício de Cristo é de salvar o que tinha perecido, isto é, não alguns povos e cida-des, mas todo o gênero humano sem distinção de tempos e lugares: “Pois Deus enviou seu Filho ao mundo… para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). “Pois não há debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4,12). Por isso, é dever da Igreja difundir largamente entre todos os homens e propagar em todos os tempos a salvação e, ao mesmo tempo, todos os benefício que dela derivam. E necessário, portanto, que seja única, de acordo com a vontade do seu Autor, em todo o mundo e em todos os tempos. Para que fosse mais do que uma, era preciso que se estendesse fora do mundo, e que se imaginasse um gênero humano novo e nunca ouvido.

10. Que a Igreja tinha de ser uma, e em todos os tempos abraçar todos os que estão no mundo, viu e vaticinou Isaías, quando numa visão do futuro, viu-a sob a aparência de um monte de altura desmedida, que exprimia a imagem da casa do Senhor, isto é, da Igreja. “Dias virão em que o monte da casa de Javé será estabelecido no mais alto das montanhas” (Is 2,2). Ora, um é o monte sobrestante aos outros, uma a casa do Senhor, à qual confluirão todas as gentes, para ter a norma do viver. “A ela acorrerão todas as nações… dizendo: Vinde subamos ao monte de Javé, à casa do Deus de Jacó para que ele nos instrua a respeito dos seus caminhos, e assim andemos nas suas veredas” (Is 2,2-3). Referindo-se a esse texto, Optato Milevitano diz: “Está escrito no profeta Isaías: De Sião sairá a lei e a palavra de Deus de Jerusalém. Portanto, não no monte de Sião Isaías vê o vale, mas no monte santo, que é a Igreja, monte que levanta a cabeça por todo o orbe romano e debaixo de todo céu. Portanto, a Igreja é aquela Sião espiritual, na qual Cristo é constituído rei pelo Pai, que existe em todo o mundo e no qual a Igreja católica é una”. [De schism. Donatiat., lib. III, n. 2] E Agostinho diz: “O que há de mais visível do que um monte? E não obstante há vários montes nalguma parte da terra que não conhecemos… Mas não é assim com aquele monte que encheu de si toda a superfície da terra, e do qual se diz estar fundado sobre o cimo dos montes”. [In Epist. Ioan., tract. I, n. 13] Além disso, o Filho de Deus quis que a Igreja fosse o seu corpo místico à qual ele se uniu como cabeça, à semelhança do corpo humano que assumiu. E como ele tomou um único corpo mortal que ofereceu aos tormentos e à morte para pagar o preço do resgate humano, assim também ele tem um só corpo místico, no qual e pelo qual torna os homens capazes da santidade e da salvação eterna. “E (Deus) o pôs, acima de tudo, como cabeça da Igreja, que é o seu corpo” (Ef 1,22-23). Membros separados e dispersos não podem aderir à cabeça para formar juntos um corpo. Ora Paulo diz: “Como todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo; assim também acontece com Cristo” (1Cor 12,12). Por isso diz desse corpo místico que é “bem ajustado e unido”. “A cabeça é Cristo, cujo corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura com a cooperação harmoniosa de cada uma das suas partes, realiza o seu crescimento…” (Ef 4,15-16). Por isso, se algum membro se separa e vagueia separado dos outros, não pode permanecer unido a mesma e única cabeça. “Um é Deus, diz são Cipriano, Cristo é um, uma a Igreja, uma a sua fé. Um o seu povo, unido com o glúten da concórdia numa sólida unidade de corpo. Não se pode cindir a unidade, nem dissolver o conjunto de um corpo de per si uno”. [S. Cipriano, De cat. Ecclesiae unitate, n. 23]

11. Para melhor representar a Igreja una, compara-a ao corpo animado, cujos membros não podem viver de outra forma que unidos à cabeça, donde deriva a sua força vital; se forem separadas morrem necessariamente. “(A Igreja) não se podem lacerar e arrancar as vísceras e não pode ser cortada aos pedaços. Tudo o que é arrancado da matriz não pode ter de per si espírito e vida”. [S. Cipriano, De cat. Ecclesiae unitate, n. 23] Ora que semelhança pode haver entre um corpo morto e um vivo? E são Paulo diz: “Ninguém jamais quis mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida, como também faz Cristo com a Igreja, porque somos membros do seu corpo” (Ef 5,29-30). Portanto se se quiser formar uma outra Igreja, um outro corpo, que se lhe dê uma outra cabeça, um outro Cristo. Prestai bem atenção, diz Agostinho, ao que haveis de evitar e olhai para o que deveis observar, olhai para o que haveis de temer. No corpo humano, ou melhor quando do corpo humano se corta algum membro, uma mão, um dedo, um pé, será que a alma segue o membro cortado? Quando estava unido ao corpo, vivia; cortado, perde a vida. Exatamente assim o homem cristão é católico enquanto vive no corpo (da Igreja), cortado, torna-se herege; ora o espírito não segue um membro amputado”. [S. Agostinho, Sermo 267, n. 4] Portanto, a Igreja de Cristo é única e perpétua. Quem dela se separar desvia-se da vontade e do preceito de Cristo nosso Senhor, e, abandonado o caminho da salvação, corre para a ruína. Cipriano diz “quem segregado da Igreja (verdadeira) se une à adulterina, afasta: se das promessas (feitas) à Igreja e não chegará ao prêmio de Cristo quem deixar a Igreja de Cristo. Quem não guarda essa unidade, não observa a lei de Deus, não tem a fé do Pai é do Filho, não chega à vida e à salvação”. [S. Cipriano, De cath. Ecclesiae unitate, n. 6]

12. Ora, aquele que a fez única fê-la também una, isto é, tal que quantos estivessem nela se mantivessem associados entre si com vínculos estreitíssimos para formar um povo, um reino, um corpo: “Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação à qual fostes chamados” (Ef 4,4). Jesus Cristo confirmou e consagrou solenemente essa sua vontade pouco antes de morrer, rezando assim ao Pai: “Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra, crerão em mim: a fim de que todos sejam um, em nós… para que sejam perfeitos na unidade” (Jo 17,20-21.23). E até quis que a unidade entre seus sequazes fosse tão íntima e perfeita a imitar de alguma forma a sua união com o Pai: “Rogo… para que eles estejam em nós como tu, Pai, estás em mim e eu em ti” (Jo 17,21). O consentimento e a união das mentes donde brota naturalmente a harmonia das vontades e a semelhança das ações é o fundamento necessário de tanta e tão absoluta concórdia entre os homens. Por isso ele quis, no seu conselho divino, que na Igreja houvesse a unidade da fé: virtude que tem o primeiro lugar entre os vínculos que nos prendem a Deus e da qual recebemos o nome de fiéis. “Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Ef 4,5), o que vale dizer que como um só é o Senhor, um o batismo, assim também uma só deve ser a fé de todos os cristãos em todo o mundo. Por isso o apóstolo Paulo não somente reza, mas pede e suplica que todos tenham os mesmos sentimentos e evitem a discórdia das opiniões: “Eu vos exorto, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, guardai a concórdia uns com os outros, de sorte que não haja divisões entre vós; sede estreitamente unidos no mesmo espírito e no mesmo modo de pensar” (1Cor 1,10). Com certeza esses textos não precisam de interpretação, pois falam claramente. Afinal, todos os que se professam cristãos concordam comumente que a fé deve ser uma. Porém, o que é de importância máxima e até absolutamente necessário e sobre o que muitos se enganam, é saber qual seja essa espécie e forma de unidade. E isso se deve discutir não já com argumentos de probabilidade e de conjecturas mas com a ciência certa dos fatos, o que já fizemos mais acima, isto é, deve-se julgar e estabelecer qual deve ser aquela unidade de fé que Jesus Cristo nos mandou.

13. A doutrina celeste de Jesus Cristo, ainda que estabelecida em grande parte na Sagrada Escritura, contudo não podia, quando deixada ao arbítrio do homem, vincular as mentes. Com efeito, podia acontecer que se pudessem dar interpretações variadas e diferentes. E isso não somente por força da própria doutrina e pelos seus mistérios, mas também pela variedade das mentes humanas e a perturbação das paixões, aberrantes em partes contrárias. Da diferença de interpretação surgem necessariamente as divergências no sentir: e por isso, as controvérsias, os dissídios, as contendas, como as experimentou a própria época próxima da origem da Igreja. S. Ireneu escreve dos hereges: “Eles confessam, é verdade, as Escrituras, mas pervertem o sentido delas”. [lib. III, cap. 12, n. 12] E S. Agostinho: “As heresias e certos dogmas perversos, que enredam e precipitam as almas no profundo, não surgiram se não quando as Sagradas Escrituras não foram bem entendidas”. [In Evang. Ioan., tract. XVIII, cap. 5, n. 1] Por isso, para harmonizar as mentes a fim de que produzam e mantenham o acordo das sentenças, além das Sagradas Escrituras sempre foi necessário um outro “princípio”. Isso é exigido pela sabedoria divina: pois Deus não podia querer que houvesse uma só fé se não tivesse providenciado algum meio apto a conservar essa unidade. É isso que abertamente declaram as Sagradas Escrituras, como diremos dentro em breve. Está certo que o poder infinito de Deus não está vinculado nem preso a coisa alguma e usa todas as coisas como instrumentos dóceis e obedientes. Por isso deve-se examinar qual seja esse princípio externo que Cristo escolheu para conduzir os que estão em seu poder. É necessário, portanto, relembrar os inícios da religião cristã.

14. Lembramos coisas testemunhadas pelas Escrituras divinas e conhecidas por todos. Jesus Cristo com seu poder taumatúrgico dá prova de sua divindade e da sua missão divina; ensina com a palavra as multidões e manda a todos. com promessa de prêmios e ameaça de penas eternas, que acreditem nele que ensina. “Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis em mim” (Jo 10,37). “Se eu não tivesse feito entre eles as obras que nenhum outro fez, não seriam culpados de pecado” (Jo 15,24). “Se as faço, mesmo que não acrediteis em mim, crede nas obras” (Jo 10,38). Tudo o que ele manda, fá-lo com a mesma autoridade, e ao exigir o assenso do intelecto, não exclui nem distingue nada. Portanto, aqueles que ouviram a Jesus, ao querer salvar-se, estavam obrigados a receber não somente sua doutrina em geral, mas a dar seu assenso pleno a todas as coisas por ele ensinadas: pois repugna que não se acredite em Deus mesmo numa coisa só.

15. Chegado o tempo de voltar ao céu, ele envia, com aquele mesmo poder com que fora enviado pelo Pai, os seus apóstolos, mandando-lhes de propagar e difundir a sua doutrina: “Toda autoridade sobre o céu e sobre a terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, … ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei” (Mt 28,18-20). Serão salvos todos os que obedecerem aos apóstolos e condenados os que lhes negarem a obediência. “Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado” (Mc 16,16). Ora, sendo sumamente conveniente à providência de Deus não escolher alguém para uma tarefa grande e excelente sem lhe conceder ao mesmo tempo o que é preciso para bem cumpri-la, por isso Jesus Cristo prometeu enviar aos seus apóstolos o Espírito da verdade e que aquele Espírito ficaria com eles para sempre. “Se eu for enviar-vos-ei o Paráclito. … Quando vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá à verdade plena” (Jo 16,7.13). “E rogarei ao Pai e ele vos dará outro Pará-clito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da Verdade” (Jo 14,16-17). “Ele dará testemunho de mim. E vós também dareis testemunho” (Jo 15,26-27). E depois manda que a doutrina dos apóstolos seja recebida com religioso obséquio e cumprida santamente como sua própria. “Quem vos ouve a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza” (Lc 10,16). Portanto os apóstolos são embaixadores de Jesus Cristo, como ele o é do Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21). Por isso, como os apóstolos e os discípulos deviam ser obsequentes às palavras de Jesus, assim o devem ser às palavras dos apóstolos todos os que foram instruídos por eles, por mandato divino. Portanto, não é lícito repudiar nem um só dos ensinamentos dos apóstolos, assim como não se pode recusar alguma coisa da doutrina de Cristo.

16. E verdadeiramente a voz dos apóstolos, investidos pelo Espírito Santo, ressoou em todo lugar. Onde quer que eles parassem, aí sempre se apresentaram como embaixadores de Cristo: “Por quem (Jesus Cristo) recebemos a graça e a missão de pregar, para louvor de seu nome, a obediência da fé, entre todos os gentios” (Rm 1,5). E seu mandato divino era autenticado por Deus com os milagres. “Eles saíram a pregar por toda parte, agindo com eles o Senhor, e confirmando a palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (Mc 16,20). Qual ensinamento? Sem dúvida aquele que continha em si o que eles aprenderam do Mestre: com efeito protestam abertamente diante de todos que não podiam calar as coisas que viram e ouviram.

17. Mas, como dissemos noutro lugar, essa missão apostólica não era tal que pudesse acabar com a pessoa dos apóstolos ou diminuísse com o passar do tempo, por ser ela missão universal, instituída pela salvação do gênero humano. Com efeito, Jesus Cristo mandou aos apóstolos pregarem “o evangelho a toda criatura”, “levarem seu nome diante das gentes e dos reis”, e que “fossem suas testemunhas até os confins do mundo”. E prometeu-lhes sua assistência no cumprimento de missão tão grande, não só durante alguns anos ou épocas determinadas, mas durante todo o tempo até “o fim do mundo”. Acerca disso, são Jerônimo diz: “Aquele que prometeu estar com seus discípulos até o fim do mundo, dá a entender claramente que eles viverão eternamente, e que ele nunca se afastará dos crentes”. [In Matth., lib. IV, cap. 28, v. 20] E como se poderiam verificar essas coisas somente nos apóstolos, submetidos à morte, eles também, por causa de sua condição humana? Estava, portanto, nos desígnios da providência divina que o magistério, instituído por Jesus Cristo, não acabasse com a vida dos apóstolos, mas fosse perpétuo. Com efeito, vemos que se propagou e passou por tradição de mão em mão. Por isso os apóstolos consagraram bispos e, nomeadamente, designaram os que haviam de suceder-lhes dentro em breve no “ministério da palavra”.

18. E não se contentaram com isso; mas estabeleceram também aos seus sucessores escolherem pessoas idôneas que, investidas da mesma autoridade, tivessem o mesmo encargo e tarefa de ensinar. “Tu, pois, meu filho, fortifica-te na graça que está em Cristo Jesus. O que de mim ouviste, na presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para ensiná-lo a outros” (2Tm 2,1-2). Portanto, como Cristo foi enviado por Deus e os apóstolos por Cristo, assim os bispos e os que sucederam aos apóstolos, são enviados pelos apóstolos. “Os apóstolos foram constituídos pregadores do evangelho para nós por nosso Senhor Jesus Cristo, e Jesus foi enviado por Deus. Portanto, Cristo foi enviado por Deus, e os apóstolos pelo Cristo, e ambas as coisas foram cumpridas com ordem pela vontade de Deus… Em seguida, pregando, a palavra nas regiões e nas cidades, constituíram bispos e diáconos dos crentes os que foram as primícias dos convertidos, depois de terem constatado a capacidade deles… Constituíram os mesmos e depois mandaram que, quando de sua morte, outros homens capacitados tomassem o lugar deles no ministério”. [Clemente Romano, Epist. I ad Corinth., caps. 42, 44] Portanto, é indispensável que, por um lado, seja constante e imutável a tarefa de ensinar o que Cristo ensinou, e por outro, que também seja constante e imutável o dever de receber e professar toda a doutrina dos apóstolos. E isso que Cipriano ilustra esplendidamente com estas palavras: “Quando nosso Senhor Jesus Cristo afirmou, no seu evangelho, que seus inimigos eram aqueles que não estavam com ele, não apontou alguma espécie de heresia, mas apontou como seus adversários todos os que não colhendo com ele, dispersavam o seu rebanho, dizendo: quem não está comigo está contra mim; quem não colhe comigo, desperdiça”. [Epist. 69 ad Magnum, n. 1]

19. Ensinada por esses preceitos, a Igreja, lembrada de sua tarefa, com todo zelo e esforço, nunca se preocupou tanto como em ser e tutelar em toda sua parte a integridade da fé e de ter como rebeldes e expulsar de si os que não tivessem o mesmo pensamento do que ela num artigo qualquer de sua doutrina. Os arianos, os montanitas, os novacianos, os quartodecimanos, os eutiquianos não tinham com certeza abandonado completamente a doutrina católica, mas somente nalguma parte; e, contudo, quem não sabe que foram declarados hereges e expulsos do seio da Igreja? Igualmente, em seguida, foram condenados quantos, em vários tempos, foram promotores de doutrinas perversas. “Não pode haver nada de mais perigoso do que aqueles hereges os quais, enquanto percorrem toda (a doutrina) sem erros, com uma só palavra, como com uma gota de veneno, infectam a pura é simples fé divina e depois tradição apostólica”. [Auctor Tractatus de Fide Orthodoxa contra Arianos] Essa foi exatamente a maneira de se comportar da Igreja, e isso tam-bém, pelo juízo dos santos Padres, os quais sempre tiveram como excomungados todos os que se afastaram, ainda de pouco, da doutrina proposta pelo magistério legítimo. Epifânio, Agostinho, Teodoreto apresentaram-nos um longo catálogo das heresias de seus tempos. Agostinho observa que podem pulular erros de toda espécie; e se alguém aderir ainda que a um só deles, por isso mesmo, separa-se da unidade católica. “Quem crê nestas coisas (isto é as heresias indicadas), por isso mesmo não se deve julgar ou dizer-se cristão católico. Pode haver e formarem-se também outras heresias que não são lembradas nesta nossa obra; se alguém aderir a alguma delas, não seria cristão católico”. [De Haeresibus, n. 88]

20. E Paulo, na carta aos Efésios, insiste sobre a maneira de tutelar a unidade, de que falamos, como foi estabelecido por vontade divina. Primeiramente exorta-nos a conservar com grande cuidado a concórdia dos ânimos: …. “procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4,3ss); e como os ânimos não podem estar totalmente concordes pela caridade, quando os intelectos não são consencientes na fé, quer que em todos haja uma só fé: “Um só Senhor, uma só fé”; e tão perfeitamente una que afaste todo perigo de erro. “Assim, não seremos mais crianças, joguetes das ondas, agitados por todo vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e da sua astúcia que nos induz ao erro”. E isso, ele diz, não se deve observar só durante algum tempo, mas “até que alcancemos todos nós a unidade da fé…, e a medida da estatura da plenitude de Cristo”. Mas, onde Jesus Cristo pôs o princípio dessa unidade para estabelecê-la e o auxílio para conserva-la? Nisso, que “concedeu a uns ser apóstolos…, a outros pastores e mestres, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo” (Ef 4,11-12). Por isso, desde a mais remota antiguidade os doutores e Padres da Igreja costumavam seguir essa regra e defendê-la unanimemente. Origenes diz assim: “Todas as vezes que (os hereges) mostram as escrituras canônicas, que todo cristão admite e crê, parecem dizer: Eis a palavra da verdade. Mas não devemos acreditar neles, nem afastar-nos da primeira tradição eclesiástica, nem crer de outro modo a não ser como as Igrejas de Deus nos transmitiram por tradição”. [Vetus Interpratatio Commentariorum in Matth., n. 46] E Ireneu afirma: “A verdadeira doutrina é a dos apóstolos … segundo as sucessões dos bispos … tratação repleta das Escrituras, guardada com diligência e sem engano, que chegou até nós”. [Contra Haereses, lib. IV, cap. 33, n. 8] Tertuliano diz: “Temos certeza que toda doutrina, que esteja conforme àquelas abraçadas pelas primitivas Igrejas apostólicas, é verdadeira e, sem dúvida, afirma o que as Igrejas receberam dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus… Temos comunhão com as Igrejas apostólicas; em nenhuma delas ha uma doutrina diversa: este é o testemunho veraz”. [De Praescript., cap. 21] Hilário, por sua vez, afirma: “(Cristo, ensinando da barca) quer indicar que os que estão fora da Igreja, não podem entender a palavra divina. A barca, com efeito, é a figura da Igreja; os que estão fora dela e os que estão estéreis e inúteis na praia, não podem entender a palavra de vida, posta e pregada nela”. [Comment. In Matth., XIII, n. 1] Rufino louva Gregório Nazianzeno e Basílio, porque “se dedicavam unicamente ao estudo dos livros da Escritura, e os interpretavam não seguindo a sua inteligência, mas segundo a autoridade e os escritos dos autores precedentes, os quais, por sua vez, haviam recebido as regras da interpretação pela sucessão apostólica”. [Hist. Eccl. lib. II, cap. 9]

21. Portanto, pelo que foi dito, fica evidente que Jesus Cristo instituiu na Igreja “um magistério vivo, autêntico e perene” que ele próprio fortaleceu com seu poder, corroborou com o Espírito de verdade, e autenticou com os milagres. E quis e mandou que os preceitos de sua doutrina fossem recebidos como seus. – Por isso, todas as vezes que este magistério declara que este ou aquele dogma está contido no corpo da doutrina divinamente revelada, todos devem tê-lo por verdadeiro, porque se pudesse ser falso derivaria que o próprio Deus seria o autor do erro do homem, e isso é repugnante: “O Senhor, se há erro, fomos enganados por ti”. [Ricardo de S. Vitor, De Trinitate, lib. I, cap. 2] Portanto, afastado todo motivo de dúvida, para quem será lícito repudiar uma só destas verdades sem por isso cair na heresia, e, estando separado da Igreja, sem rejeitar em bloco toda a doutrina cristã? A natureza da fé é assim que nada mais lhe repugna do que admitir um dogma e repudiar um outro. Com efeito a Igreja professa que a fé “é uma virtude sobrenatural, com a qual, inspirados e ajudados pela graça de Deus, acreditamos que são verdadeiras as coisas reveladas por ele, não pela verdade intrínseca das mesmas, conhecidas pela luz natural da razão, mas pela autoridade. do mesmo Deus que as revela, e que não pode enganar nem ser enganado”. [Conc. Vat. I, sess. III, Const. Dogm. Dei Filius de fide catholica, cap. 3] Portanto, ao reconhecer que uma verdade foi revelada por Deus e contudo não se crê, segue-se que não se crê absolutamente nada por fé divina. Por isso deve-se afirmar de uma opinião em matéria de fé o que o próprio apóstolo Tiago sentencia do delito em matéria de costumes: “Aquele que guarda toda a lei, mas desobedece-lhe num só ponto, torna-se culpado da transgressão da lei inteira” (Tg 2,10). Por isso, com maior razão deve-se dizer deste erro de opinião. De fato se diz menos propriamente violada toda a lei por aquele que a transgrediu numa coisa só, por não ser possível ver nele, a não ser interpretando a sua vontade, o desprezo da majestade de Deus legislador. Porém aquele que, mesmo num só ponto, não consente nas verdades reveladas, perdeu completamente a fé, porquanto recusa vene-Tar Deus como verdade suma e “motivo próprio da fé”; por isso Agostinho diz: “Em muitas coisas concordam comigo, e, numas poucas não; mas por causa daquelas poucas coisas em que não estão de acordo comigo, para nada lhes aproveitam as muitas coisas nas quais concordam comigo”. [S. Agostinho, Enarrationes in Psal. 54, n. 19] com razão; pois os que tiram da doutrina cristã o que lhes apraz, baseiam-se não na fé mas no seu próprio juízo: “e todo poder altivo que se levanta contra o conhecimento de Deus” (2Cor 10,5), obedecem mais propriamente a si mesmos do que a Deus. “Vós – dizia Agostinho – que nos evangelho credes no que quereis e não credes no que não quereis, acreditais em vós mesmos antes do que no evangelho”. [S. Agostinho, lib. XVII: Contra Faustum Manichaeum, cap. 3]

22. Por isso os padres do concílio Vaticano não decretaram nada de novo, mas visaram somente à instituição divina, a doutrina antiga e constante da Igreja e a própria natureza da fé quando decretaram: “Pela fé divina e católica deve-se crer tudo o que está contido na palavra de Deus escrita ou transmitida e é proposto pela Igreja como verdade revelada por Deus, quer por definição solene, quer pelo magistério ordinário e universal”. [Sess. III, cap. 3] Portanto, sendo absolutamente claro que Deus quer a unidade da fé na sua Igreja, e sabendo-se qual ela é e com qual princípio deve ser tutelada por mando divino, seja-nos permitido dirigir àqueles que persistem em querer fechar os ouvidos à verdade, as palavras seguintes de Agostinho: “Ao ver tanta abundância de ajudas por parte de Deus, tanto proveito e fruto, teremos dúvida em nos fechar no seio daquela Igreja, a qual, também por confissão do gênero humano, pela Sé Apostólica por causa da sucessão dos bispos, não obstante que à sua volta, debalde ladrem os hereges, já condenados, quer pela opinião popular, quer pelo grave juízo dos concílios, quer pela grandeza dos milagres, chegou ao cume da autoridade? Negar-lhe a primazia é próprio de suma impiedade ou de arrogância precipitada. …. E como toda arte, não importa quanto seja mesquinha ou fácil, exige um professor ou um mestre para que se possa aprender: o que pode haver de mais soberbamente temerário do que os seus intérpretes não querer conhecer os livros que contêm os mistérios divinos por eles interpretados, ou, querer condená-los sem os conhecer?”. [De utilitate credendi, cap. XVII, n. 35]

23. Não há, portanto, dúvida de que é tarefa da Igreja guardar a doutrina de Cristo e propagá-la inalterada e incorrupta. E isso também não é tudo, como também não é nisso que consiste a finalidade para a qual a Igreja foi estabelecida. Com efeito, como Jesus Cristo se sacrificou pela salvação do gênero humano, e dirigiu a essa finalidade tudo o que ensinou e operou, assim também quis que a Igreja procurasse na verdade da doutrina o que fosse necessário para a santificação e salvação eterna dos homens.

24. Ora, a fé sozinha não é suficiente para atingir meta tão grande e excelsa, mas exige-se, quer a piedade e a religião que consiste especialmente no sacrifício divino e na participação aos sacramentos, quer a santidade das leis e da disciplina.

25. A Igreja deve conter em si todas essas coisas, como aquela que perpetua a tarefa do Salvador. Ela, somente, dá aos mortais aquela religião perfeita, que ele quis encarnar nela, e ela somente administra aquelas coisas que, segundo a ordem da Providência, são os instrumentos da salvação.

26. E da mesma forma que a doutrina celeste não foi deixada ao arbítrio do engenho e da vontade do homem, mas, no início ensinada por Cristo foi depois confiada, como já foi dito, ao magistério da Igreja; também não foi comunicado o poder de operar e administrar os mistérios divinos junto com o poder de reger e governar não a indivíduos particulares, mas a pessoas escolhidas. Com efeito, foi só aos apóstolos e seus legítimos sucessores que foram dirigidas aquelas palavras de Jesus Cristo: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho … batizando-os. … Fazei isso em memória de mim. … A quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados”. Da mesma forma, foi só aos apóstolos e seus sucessores que mandou pastorear o seu rebanho, isto é, governar toda a cristandade, e por conseguinte, mandou aos simples fiéis estar submetidos a eles e a obedecer-lhes. E essas tarefas apostólicas são todas compendiadas por Paulo nesta sentença: “Portanto, considerem-nos os homens como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1).

27. Por isso Jesus Cristo convidou todos os mortais, presentes e futuros, que o seguissem como Salvador e Chefe, e não somente como indivíduos particulares, mas também como associados e realmente unidos, juntos de coração, para formar de uma multidão um povo juridicamente constituído em sociedade, e uno pela unidade de fé, de fim, de meios e hierarquia. Assim dotou a Igreja de todos aqueles princípios naturais que originam a sociedade humana, na qual os indivíduos atingem a perfeição própria da sua natureza; ele, pois, conferiu à Igreja tudo o que é preciso para que todos os que queiram ser filhos adotivos de Deus. possam conseguir uma perfeição conforme à sua dignidade e obter a salvação. Portanto, a Igreja, como mencionamos noutro lugar, é guia para as coisas celestes, e Deus a ela encarregou que providenciasse e estabelecesse o que diz respeito à religião, e que governasse com poder próprio e com toda liberdade a sociedade cristã. Por isso, ou não conhecem bem a Igreja ou caluniam-na, os que a acusam de querer intrometer-se nas coisas civis, ou invadir os direitos do Estado, Mais ainda, Deus fez com que a Igreja fosse de longe superior a todas as outras sociedades; com efeito, o fim a que tende é muito mais excelso do que aquele ao qual tendem as outras sociedades, quanto a graça supera a natureza e os bens imortais superam os caducos.

28. A Igreja é uma sociedade “divina” na sua origem; “sobrenatural” no seu fim e nos meios que são imediatamente ordenados a isso; e é “humana”, porque se compõe de homens. Com efeito, vemos muitas vezes que na Sagrada Escritura é freqüentemente indicada com nomes que designam uma sociedade perfeita; de fato ela é chamada “casa de Deus, cidade posta sobre o monte”, onde é necessário que se reúnam todas as gentes. É também “redil” no qual se devem reunir todas as ovelhas de Cristo, sob um só pastor, e mais ainda, “reino” que Deus fundou, e que “há de durar eternamente”; e, finalmente, “corpo místico” de Cristo, porém vivo, perfeitamente composto e resultante de muitos membros, os quais não têm todos a mesma função, e, contudo, se mantêm unidos e juntos sob o mesmo chefe, que os rege e governa. Não se pode pensar que haja entre os homens uma sociedade verdadeira e perfeita sem um poder maior que a governe. Jesus Cristo, portanto, deve ter preposto à Igreja uma autoridade máxima, à qual toda a multidão dos cristãos esteja submetida e lhe obedeça. Por esse motivo, assim como para a unidade da Igreja, enquanto é “reunião dos fiéis”, se requer necessariamente a unidade de fé, assim também para a unidade dela, enquanto é sociedade divinamente constituída, exige-se, por direito divino, “a unidade de governo”, a qual produz e encerra em si “a unidade de comunhão”. “Ora a unidade da Igreja baseia-se nestas duas coisas: na união mútua dos membros da Igreja, isto é na comunhão e na correspondência de todos os membros da Igreja com um só chefe”. [S. Thomas, Summa theol., II-II, q. 39, a. 1]

29. Disso pode-se entender que os homens se separam da unidade da Igreja não menos com o cisma do que com a heresia. “Entre a heresia e o cisma corre, por comum aviso, esta diferença: a heresia tem um dogma perverso; o cisma, pelo contrário, separa-se da Igreja por uma cisão episcopal”. [S. Hieronymus, Comment. In Epist. Ad Titum, cap. III, vv. 10-11] E nisso concorda também Crisóstomo, dizendo: “Eu digo e professo que não é menor mal dividir a Igreja do que cair na heresia”. [Hom. XI in Epist. Ad Ephes., n. 5] Portanto, se não pode ser justa qualquer heresia, pela mesma razão, não há cisma que se possa justificar. “Não há nada mais grave do que o sacrilégio de um cisma… nunca há necessidade justa de quebrar a unidade”. [S. Augustinus, Contra Epistolam Parmeniani, lib. II, cap. II, n. 25]

30. E qual seja esse poder, ao qual todos os cristãos devem obedecer, não se pode determinar de outra forma que depois de ter examinada e conhecida a vontade Cristo. Certamente Cristo é rei eternamente, e perpetuamente; ainda que invisível, tutela e governa do céu o seu reino; mas como quis que esse fosse visível, teve que designar quem, depois da sua ascensão ao céu, tivesse a incumbência de substitui-lo na terra. “Seja quem for que afirmasse, diz santo Tomás que somente o chefe e só o pastor da Igreja é Cristo, que é o único esposo da única Igreja, não se exprimiria com precisão. É evidente, com efeito, que é ele quem opera os sacramentos da Igreja, quem batiza, quem perdoa os pecados e que, verdadeiro sacerdote, se imolou sobre o altar da cruz, e pelo poder do qual todo dia se consagra o seu corpo sobre o altar; contudo, visto que teria estado corporal e pessoalmente presente a todos os fiéis no porvir, elegeu ministros, por meio dos quais pudesse dispensar o que foi indicado, como já foi dito acima. Pelo mesmo motivo, antes de privar a Igreja da sua presença corporal, foi-lhe necessário destinar alguém que cuidasse dela em seu lugar. Portanto, disse a Pedro antes da ascensão: Apascenta as minhas ovelhas”. [S. Thomas, Contra Gentiles, lib. IV, cap. 76] Portanto, Jesus Cristo deu à Igreja, como regedor maior, Pedro, è ao mesmo tempo estabeleceu que esse principado, instituído em perpétuo para a salvação comum, se transmitisse por herança aos sucessores, nos quais o mesmo Pedro, com autoridade perene, sobrevive. E de fato, fez aquela promessa insigne a Pedro, e a nenhum outro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18).

31. “O Senhor falou a Pedro, e somente a ele, porque somente sobre um fundou a unidade”. [S. Pacianus, Ad Sempronium, epist. III, n. 11] “(Jesus) chama a ele e a seu pai pelo nome (bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas), mas depois não suporta que se chame ainda Simão, reclamando-o desde já como seu para seus fins, e com uma comparação significativa quis que se chamasse Pedro, de pedra, porque sobre ela teria fundado sua Igreja”. [S. Cyrillus Alex., In Evang. Ioan., lib. II, in cap. I, v. 42] Da mencionada profecia de Cristo é evidente que, por vontade e mandato de Deus, a Igreja seja fundada sobre Pedro, como um edifício sobre seu fundamento. Ora a natureza e a força do fundamento consiste em fazer com que as diversas partes do edifício se mantenham ligadas entre si, e que à obra seja necessário aquele vínculo de estabilidade e firmeza, sem o qual todo edifício cai em ruína. É portanto próprio de Pedro sustentar e conservar unida e firme a Igreja num conjunto indissolúvel. Mas quem poderia cumprir uma tarefa tão grave sem o poder de mandar proibir e julgar, que verdadeira e propriamente chama-se “jurisdição”? Com efeito, somente em virtude desse poder se sustentam as cidades e os Estados. Uma primazia de honra e aquela faculdade frágil de aconselhar e admoestar, que se chama “direção”, não podem ser muito úteis, nem para a unidade nem para a firmeza. O poder, de que falamos, nos é indicado e confirmado por estas palavras: “E as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.

32. “A quem se refere, pergunta Origenes, a palavra ela? À pedra sobre o qual Cristo edifica a Igreja, ou à própria Igreja? A frase é ambígua: quererá dizer que sejam uma mesma coisa a pedra e a Igreja? Exatamente isso, eu creio verdadeiro; pois nem contra a pedra, sobre a qual Cristo edifica a Igreja, nem contra esta, prevalecerão as portas do inferno”. [Origenes, Comment. In Matth., tom. XII, n. 11] Por isso a força dessa sentença é: qualquer violência ou artifício usem os inimigos visíveis e invisíveis, nunca acontecerá que a Igreja sucumba e pereça: “A Igreja, sendo edifício de Cristo, que sapientemente edificou a sua casa sobre a pedra, não pode ser presa das portas do inferno, as quais podem prevalecer contra cada homem que está fora da pedra e da Igreja, mas não contra ela”. [Origenes, Comment. In Matth., tom. XII, n. 11] Portanto, Deus confiou a sua Igreja a Pedro, para que ele como tutor invicto a conservasse perpetuamente incólume. Portanto investiu-o do poder necessário, porque para tutelar uma sociedade qualquer de homens é indispensável a quem deve tutelar o direito de mandar. Além disso Jesus acrescentou: “E a ti eu darei as chaves do reino dos céus”. Ele continua a falar da Igreja, que há pouco tinha chamado sua, e que tinha afirmado querer estabelecer sobre Pedro como sobre o fundamento. A Igreja é figurada não somente como “edifício”, mas também como “reino”, e ninguém ignora que a chaves são o símbolo do mando; por isso quando Jesus prometeu a Pedro as “chaves do reino dos céus”, prometeu-lhe que lhe teria dado a autoridade suma e o poder supremo sobre Igreja: “O Filho (do Pai) deu o encargo (a Pedro) de difundir por todo o mundo o conhecimento do Pai e de si mesmo, e a um homem mortal concedeu todo poder no céu, quando The confiou as chaves, e estendeu a Igreja por todo o mundo e a indicou mais estável dos céus”. [S. Ioannes Crysostomus, In Matth., hom. 54, n. 2] Concordam com essas, as outras palavras de Cristo: “E o que ligares na terra, ficará ligado nos céus; e o que desligares na terra, ficará desligado nos céus”. As palavras metafóricas de ligar e de desligar indicam o direito de fazer leis e, ao mesmo tempo, o poder de julgar e de punir; e esse poder afirma-se tão amplo e com tanta força, que qualquer coisa seja decretada por ele, será confirmada por Deus. Portanto é sumo e completamente livre, como aquele que não tem superior na terra, e que abrange toda a Igreja e todas as coisas que foram confiadas a ela.

33. Cristo Senhor mantém a sua promessa depois da sua ressurreição, quando, tendo perguntado Pedro, por três vezes, se o amava, diz com um tom de quem ordena: “Apascenta os meus cordeiros. Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21,16-17); Cristo quis assim confiadas a ele, como pastor, todas as ovelhas que teriam entrado no seu redil. “O Senhor não duvida, diz santo Ambrósio, porque o interroga não para saber, mas para ensinar a nós que, estando próxima sua subida ao céu, no-lo deixava como vigário do seu amor. E por isso, como é o único entre todos a dar testemunho, é anteposto a todos para que chegado à perfeição plena guiasse também todos os que atingiram a perfeição plena”. [S. Ambrosius, Exposit. In Evang. secundum Lucam, lib. X, nn. 175-176] Ofício e dever do pastor é aquele de guiar o rebanho e de procurar o seu bem-estar com a salubridade das pastagens, afastando-o dos perigos, preservando-o das insídias e defendendo-o da. violência: com poucas palavras, regendo-o e governando-o. Sendo, portanto, Pedro o pastor preposto a todo o rebanho de Cristo, ele recebeu o poder de governar todos os ho-mens, para cuja salvação Jesus Cristo havia providenciado com seu sangue: “Por que, diz João Crisóstomo, derramou ele o seu sangue? Para redimir aquelas ovelhas, que confiou a Pedro e a seus sucessores”. [S. Ioannes Chrysostomus, De sacerdotio, lib. II]

34. E, como é necessário que todos os cristãos sejam unidos entre si pela comunhão de todos numa fé imutável, por isso Cristo Senhor, com a força da sua oração, impetrou a Pedro que no exercício de seu poder maior nunca errasse na fé: “Eu rezei por ti, para que não venha a falhar a tua fé” (Lc 22,32); e lhe ordenou que, na necessidade, comunicasse luz e força a seus irmãos: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22,32). Quis então que aquele que fora destinado como fundamento da Igreja, fosse também o baluarte da fé. “Não podia, diz santo Ambrósio, fortalecer a fé daquele, ao qual pela sua autoridade dava o Reino, e que indicou, chamando-o pedra, como fundamento da Igreja?” [S. Ambrosius, De fide, lib. IV, n. 56] Jesus quis que determinados nomes, significando grandes coisas que “pelo próprio poder convêm a ele, fossem dirigidos também a Pedro, por participação consigo mesmo”, [S. Leo M., Sermo IV, cap. 2] para que da comunhão dos títulos aparecesse também aquela dos poderes. E assim aquele que é “pedra angular, sobre a qual o inteiro edifício bem ligado vai-se levantando para formar o templo santo do Senhor” (Ef 2,21), estabelece Pedro como pedra fundamental da Igreja. “Tendo escutado (és pedra] foi enobrecido. Ainda que seja pedra, porém, não é pedra como Cristo, mas como Pedro. Com efeito, Cristo é essencialmente a pedra inconcussa; e Pedro o é por causa (dessa) pedra. Com efeito, Jesus confere os seus encargos honoríficos, mas também não se exaure sacerdote, e faz os sacerdotes; é pedra, e faz a pedra”. [Hom. De Poenitentia, n. 4, in appendice op. S. Basilii] O próprio Rei da Igreja, que “tem a chave de Davi, e quando abre, ninguém fecha, e quando fecha, ninguém abre” (Ap 3,7), entregues as “chaves a Pedro”, declara-o príncipe da sociedade cristã. E assim também o sumo pastor, que chama a si mesmo bom pastor (Jo 10,11), entrega a Pedro o governo “de seus cordeiros e de suas ovelhas”: “Apascenta os cordeiros, apascenta as ovelhas”. E João Crisóstomo comenta: “Exímio era (Pedro) entre os apóstolos, boca dos discípulos, chefe do seu colégio. E (Jesus) para mostrar que convinha acreditar nele para o porvir, esquecida a negação, confia a ele o governo dos irmãos, dizendo: se me amas, preside aos irmãos”. [Hom. 88 in Ioan., n.1] Finalmente aquele que nos confirma “em toda boa obra e em toda boa palavra” (2Ts 2,16), mandou a Pedro que “confirmasse seus irmãos”. Justamente Leão Magno dizia: “De todo o mundo somente Pedro é eleito para ser preposto, quer para o chamado de todas as gentes, quer a todos os apóstolos e a todos os padres da Igreja: para que, ainda que sejam muitos no povo de Deus os sacerdotes e muitos pastores, contudo todos sejam regidos por Pedro, ainda que Cristo, através dele principalmente os governe a todos”. [Seemo IV, cap. 2] E Gregório Magno assim escrevia ao imperador Maurício Augusto: “É evidente para todos os que conhecem o evangelho, que pela palavra do Senhor foi confiado o cuidado de toda a Igreja ao apóstolo Pedro, primeiro entre todos os apóstolos ele recebeu as chaves do reino dos céus, a ele foi dado o poder de ligar e desligar, a ele ainda o cuidado e o principado de toda a Igreja”. [Epistolarum, lib. V, epist., XX]

35. Ora, sendo esse principado contido na própria constituição e ordenamento da Igreja, como parte principal, ou melhor como princípio de unidade e fundamento da sua perpétua existência, não podia perecer com Pedro, mas devia transmitir-se de um a outro dos seus sucessores. Por isso são Leão dizia: “Permanece, portanto, o que Jesus dispôs verdadeiramente, e Pedro, perseverando na força recebida da pedra, não deixa o comando da Igreja”. [S. Leo M., Sermo III, cap. 3] Por isso os bispos, que sucedem a Pedro no episcopado romano, obtém, “por direito divino”, a autoridade suprema sobre toda a Igreja . “Nós definimos, dizem os padres do Concílio de Florença, que a santa Sé apostólica e o bispo de Roma têm o primado sobre todo o orbe, e que o próprio bispo de Roma é sucessor de Pedro, primeiro dos apóstolos, verdadeiro vigário de Cristo, chefe de toda a Igreja, pai e doutor de todos os cristãos, ao qual, na pessoa de Pedro, foi dado por Cristo pleno poder de apascentar, reger e governar toda a Igreja, como é afirmado nos atos dos concílios ecumênicos e nos cânones sagrados”. [Concilium Florentinum] E o concílio Lateranense IV define: “A Igreja romana, por disposição do Senhor, tem primazia sobre todas as outras pelo seu poder ordinário, como aquela que é mãe e mestra de todos os cristãos”.

36. E esses decretos foram precedidos pelo consentimento de toda a antiguidade, a qual venerou sempre os bispos romanos como sucessores legítimos de Pedro. E quem ignora os muitos e tão esplendorosos testemunhos dos santos Padres a esse respeito? Luminosa é aquela de Ireneu, o qual, falando da Igreja romana, diz: “A esta Igreja para uma mais digna supremacia é necessário que concorde toda a Igreja”. [Contra Haereses, lib. III, cap. 3, n. 2] E Cipriano, falando, chama-a “raiz e mãe da Igreja católica”, [Epist. 48, ad Cornelium, n. 3] Cátedra de Pedro é Igreja principal da qual surgiu a unidade do sacerdócio”. [Epist. 59, ad Cornelium, n. 14] Chama-a “cátedra” de Pedro, porque aí está sentado o sucessor de Pedro; “Igreja principal”, pelo primado conferido a Pedro e a seus suces sores; “da qual surgiu a unidade”, porque a causa eficiente da unidade, no cristianismo, é a Igreja romana. E assim Jerônimo se dirige a Dâmaso: “Eu falo com o sucessor do pescador e discípulo da cruz. À sua beatitude, isto é, à cátedra de Pedro, eu, pela comunhão, me associo. Bem sei que sobre esta pedra está edificada a Igreja”. [Epist. 15, ad Damasum, n. 2] Reconhecia sempre um católico pela união que este tinha com a Sé romana de Pedro; e dizia: “Se alguém está unido à cátedra de Pedro, está do meu lado”. [Epist. 16, ad Damasum, n. 2] Do mesmo modo, Agostinho atesta que na Igreja romana sempre floresceu o principado da cátedra apostólica”, [Epist., n. 7] e nega que seja católico alguém que discorda da fé romana: “Não creias ter a verdadeira fé católica, se não ensinas a necessidade de ter a fé romana”. [Sermo 120, n. 13] A mesma coisa afirma Cipriano: “Ter comunhão com Cornélio é a mesma coisa que ter comunhão com a igreja católica”. [Epist. 55, n. 1] Também Máximo Abade ensina que é sinal característico da verdadeira fé e da verdadeira comunhão a obediência ao bispo de Roma: “Por isso, se não quer ser herético não contente este ou aquele. Apresse-se em contentar a Sé romana. Feito isto, comumente e em todo lugar, o julgarão piedoso e reto. Com efeito fala inutilmente e em vão quem age de outra forma e não satisfaz o beatíssimo papa da santíssima Igreja romana, isto é, a Sé apostólica”. E apresenta o motivo seguinte: “Ela recebeu e detém o comando, a autoridade e o poder de ligar e de desligar, recebidos do próprio Verbo de Deus encarnado, e também de todos os concílios, segundo os cânones sagrados, entre todas as Igrejas santas de Deus que estão na terra. Quando liga ou desliga alguma coisa, isso também é ratificado no céu pelo Verbo. que comanda aos principados celestes”. [Defloratio ex Epistola ad Petrum illustrem]

37. Portanto, o que já existia na fé cristã, aquilo que não somente um povo ou uma só idade, mas todas as idades, e o Oriente da mesma forma que o Ocidente habitualmente reconheciam e observavam, foi lembrado pelo presbítero Filipe, representante do papa no Concílio de Éfeso, sem que ninguém se levantasse para contradizê-lo: “Ninguém pode duvidar, e até é conhecido por todos, que o santíssimo e beatíssimo Pedro, príncipe e chefe dos apóstolos, coluna da fé e fundamento da Igreja católica, recebeu de Jesus Cristo, Salvador e Redentor do gênero humano, as chaves do reino, e lhe foi dado o poder de reter e de perdoar os pecados, a ele, que até agora e para sempre vive e exerce o poder nos seus sucessores”. [Acto III] A sentença do Concílio de Calcedônia refere-se ao mesmo argumento: “Pedro através de Leão falou”; [Actio II] e a ele faz eco a voz do Concílio Constantinopolitano III: “O sumo príncipe dos apóstolos estava de acordo conosco; com efeito tivemos conosco o seu imitador e sucessor, na sé… parecia papel e tinta, porém Pedro falava através de Agatão”. [Actio XVIII]

38. Na fórmula da profissão católica proposta por Ormisda, no princípio do século VI, e assinada pelo imperador Justiniano e pelos patriarcas Epifânio e Mena, declara-se com palavras graves e fortes: “Como não se pode descuidar da afirmação de nosso Senhor Jesus Cristo: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, o que foi dito é provado pelos fatos, pois na Sede apostólica a religião católica foi sempre conservada sem mancha”. [Post. Epistolam XXVI, ad omnes Episc. Hispan., n. 4]

39. Não queremos citar mais longamente os vários testemunhos; mas nos será suficiente aqui lembrar a fórmula de fé que Miguel Paleólogo professou no Segundo Concílio de Lião: “A Santa Igreja romana tem um sumo e pleno primado e principado sobre toda a Igreja católica, e (o Paleólogo) com toda verdade e humildade reconhece que ela o recebeu com pleno poder pelo próprio Senhor na pessoa de Pedro, príncipe e chefe dos apóstolos, do qual é sucessor o bispo de Roma. E como este sobre todos é obrigado a defender a verdade da fé, assim, ao nascerem questões sobre ela, ele terá que defini-las com sua sentença”. [Actio IV]

40. Ainda que seja sumo e pleno o poder de Pedro, não se julgue contudo que ele seja o único. Com efeito, aquele que estabeleceu Pedro como fundamento da Igreja, “elegeu também doze que chamou apóstolos” (Lc 6,13). Como é necessário que a autoridade de Pedro se perpetue no bispo de Roma, assim os bispos, como sucessores dos apóstolos, herdam deles o poder ordinário, e portanto a ordem episcopal pertence necessariamente à constituição íntima da Igreja. Ainda que eles não tenham uma autoridade suma, plena e universal, contudo não se devem julgar como simples “vigários” dos bispos de Roma, porque têm um poder próprio, e com verdade são ditos présules “ordinários” dos povos que regem.

41. Porém, como o sucessor de Pedro é somente um, e os sucessores dos apóstolos são muitos, é conveniente que se veja quais são por constituição divina as relações destes com aquele.

42. E em primeiro lugar, é certa e evidente a necessidade da união dos bispos com o sucessor de Pedro; pois dissolvendo-se este vínculo, necessariamente se dissolve e se dispersa a própria multidão dos cristãos, de modo a não poder formar de nenhuma maneira um só corpo e um só rebanho. “A saúde da Igreja depende da dignidade do sumo sacerdote, e se não se lhe dá um poder especial e superior a todos, haverá na Igreja tantos cismas, quantos são os sacerdotes”. [S. Hieronymus, Dialog. Contra Luciferianos, n. 9] É bom, portanto, advertir que nada foi conferido aos apóstolos separadamente de Pedro, mas muitas coisas a Pedro separadamente dos apóstolos. João Crisóstomo, ao comentar a afirmação de Cristo (Jo 21,15), pergunta-se: “Por que Cristo, deixados os outros, fala dessas coisas somente a Pedro?”; e responde: “Porque era o primeiro entre os apóstolos, a boca dos discípulos, o chefe de seu colégio”. [In Ioan., 88, n. 1] Com efeito, somente ele era designado por Cristo como fundamento da Igreja; a ele fora entregue a faculdade de “ligar” e de “desligar”; era o único ao qual fora dado “apascentar”; pelo contrário, quanto de autoridade e de ministério receberam os apóstolos, o receberam juntamente com Pedro: “Se a condescendência divina quis que alguma coisa fosse comum entre ele e os outros príncipes (apóstolos), não concedeu, a não ser por ele, aquilo que não negou aos outros. [S. Leo M., Sermo IV, cap. 2] Tendo recebido sozinho muitas coisas, nada passou para outros sem a sua participação”. [S. Leo M., Sermo IV, cap. 2] E evidente, portanto, que os bispos decaem do direito do poder de governar, quando voluntariamente se separarem de Pedro e de seus sucessores; então com efeito, se separam por cisma do fundamento, sobre o qual se deve basear todo o edifício; são excluídos, portanto, pelo próprio “edifício”, e pelo mesmo motivo separados do “rebanho”, do qual é guia o pastor supremo, e são banidos do “reino”, as chaves do qual foram entregues, por vontade divina, somente a Pedro.

43. E nisso nós reconhecemos ainda o desígnio celeste e a mente divina que presidiu à constituição da sociedade cristã; isto é, que o autor divino, tendo estabelecido na Igreja a unidade da fé, do governo e da comunhão, elegeu Pedro e seus sucessores, para que fosse atuado neles o princípio e o centro da unidade. Afirma Cipriano: “Diz o Senhor a Pedro: eu te digo, que tu és Pedro e somente sobre um edifica a Igreja. E se bem que a todos os apóstolos, depois da sua ressurreição, confira um poder igual, e diga: Como o Pai me enviou, contudo, para manifestar a unidade, dispôs com autoridade que a origem da própria unidade começasse por um só”. [De unitate Ecclesiae, n. 4] E Optato Milevitano diz: “Não podes negar que sabes que na cidade de Roma a Pedro por primeiro foi conferida à cátedra episcopal, sobre a qual se assentou, chefe de todos os apóstolos, Pedro; para que naquela única cátedra a unidade fosse mantida por todos e assim, nem mesmo os Outros apóstolos, defendessem as suas próprias cátedras contra aquela, tanto que seria cismático e em pecado, quem pusesse uma outra contra a única cátedra”. [De schism. Donat., lib. II] Por isso Cipriano afirma que tanto o cisma quanto a heresia nascem pelo fato de que não se presta a obediência devida ao poder supremo: “As heresias e os cismas não surgiram de outra coisa senão porque não se obedeceu ao sacerdote, e não se pensa que na Igreja existe um único sacerdote e juiz, vigário de Cristo”. [Epist. 12 ad Cornelium, n. 5] Portanto, ninguém, que não esteja unido a Pedro, pode participar da autoridade, sendo absurdo pensar que possa mandar na Igreja quem está fora dela. Por isso Optato Milevitano repreendia os donatistas, dizendo: “Contra as portas (do inferno) lemos que recebeu as chaves de salvação Pedro, nosso príncipe, ao qual disse Cristo: a ti darei as chaves do reino dos céus, e as portas do inferno não prevalecerão contra elas. Porque então quereis usurpar as chaves do reino dos céus, vós que militais contra a cátedra de Pedro?”. [lib. II, n. 4, 5]

44. Mas a ordem episcopal deve se acreditar unida a Pedro, como manda Cristo, somente quando estiver submetida a Pedro e lhe obedecer; porque, de outra forma, se tornará necessariamente uma multidão confusa e desordenada. Para bem conservar a unidade da fé e da comunhão não basta uma primazia de honra, nem uma superintendência na Igreja, mas é absolutamente necessária uma autoridade verdadeira e suma, à qual toda a comunidade obedeça. E a quem o filho do homem apontou, quando “somente” a Pedro prometeu as chaves do reino dos céus? A expressão bíblica e o consenso unânime dos Padres não deixam absolutamente duvidar que com o nome de “chaves” se signifique, naquele lugar, o poder supremo. Nem é lícito interpretar de outra maneira o que é atribuído separadamente a Pedro, e aos apóstolos unidos a Pedro. Se o poder de ligar, de desligar, de apascentar faz com que cada um dos bispos, sucessores dos apóstolos, governe com poder verdadeiro seu povo. com certeza a mesma faculdade deve produzir o mesmo efeito naquele ao qual foi entregue por Deus o ofício de apascentar os “cordeiros” e as “ovelhas”. “(Cristo) constituiu Pedro não somente pastor, mas pastor dos pastores; Pedro portanto apascenta os cordeiros, e apascenta também as ovelhas; apascenta os filhos e apascenta também as mães; governa os súditos e governa também os prelados, pois além dos cordeiros e das ovelhas não há nada na Igreja”. [S. Brunonis Episcopi Signiensis, Commentarium in Ioan., part. III, cap. 21, n. 55] Explicam-se, portanto, as expressões usadas pelos antigos a respeito de Pedro, e que significam todas abertamente um grau sumo de dignidade e de poder. Muitas vezes é indicado com títulos de príncipe da reunião dos discípulos, principe dos santos apóstolos, corifeu do seu coro, boca de todos os apóstolos, chefe daquela família, preposto a todo o mundo, primeiro entre os apóstolos, baluarte da Igreja; parece que São Bernardo queira encerrar esses títulos naquelas palavras ao papa Eugênio: “Quem és tu? O grande sacerdote, o sumo pontífice. Tu és o primeiro dos bispos, tu o herdeiro dos apóstolos. Tu és aquele ao qual foram entregues as chaves, ao qual foram confiadas as ovelhas. Há também outros porteiros do céu e pastores dos rebanhos; mas tu herdastes um nome tanto mais glorioso quanto mais diversamente deles herdastes um e outro nome. Todo pastor tem um trabalho particular entregue a ele; a ti foram confiados todos os rebanhos, e unicamente a ti, todo o rebanho não somente das ovelhas mas também dos pastores; somente tu és o pastor. Perguntas-me de que maneira eu posso provar isso? Pela palavra do Senhor. Com efeito, a qual, não digo dos bispos, mas ainda dos apóstolos, foram, de uma maneira tão absoluta é indefinida, confiadas as ovelhas? Se me amas, ó Pedro, apascenta as minhas ovelhas. Quais? Povos desta ou daquela cidade, ou região, ou reino? As minhas ovelhas, disse. Para quem não está claro que ele não lhe entregou somente algumas, mas todas? Não se excetua nada, onde não se distingue nada”. [De consideratione, lib. II, cap. 8]

45. É coisa contrária à verdade e repugna abertamente à constituição divina dizer que cada bispo está sujeito à jurisdição dos papas e todo o corpo episcopal não; pois toda a razão de ser do fundamento está em dar unidade e firmeza a todo edifício, antes do que a “suas singulares particulares”. E isso no nosso caso é tanto mais verdadeiro, enquanto Cristo Senhor quis que, exatamente pela firmeza do fundamento, as portas do inferno não prevalecessem contra a Igreja; e esta promessa divina, como é manifesto para todos, deve se entender de toda a Igreja e não das singulares. partes, as quais podem ser vencidas pelo furor do inferno, é com efeito muitas o foram. Além disso é necessário que quem está preposto a todo o rebanho não somente tenha o comando sobre as ovelhas particulares, mas também sobre elas todas juntas. Será que o redil terá que reger e guiar o pastor? Talvez os sucessores dos apóstolos, unidos num só corpo, serão o fundamento, sobre o qual o sucessor de Pedro se apóie para ter firmeza? Quem possui as chaves do reino dos céus, não somente tem poder de autoridade sobre cada região, mas sobre todas elas juntas; e como cada bispo, na sua diocese, preside com verdadeiro poder não somente aos indivíduos particulares, mas a toda a comunidade, assim também os papas, cujo poder abrange toda a cristandade, têm submetidas e obedientes à sua autoridade todas as partes dessa, mesmo reunidas todas juntas. Cristo Senhor, como já se disse repetidamente, concedeu a Pedro e aos seus sucessores que fossem seus vigários, e exercessem perpetuamente na Igreja aquele poder que ele havia exercido na sua vida mortal. Dir-se-á talvez que o colégio apostólico fora superior ao seu mestre?

46. A Igreja nunca cessou em nenhum tempo de reconhecer e de atestar esse poder, de que falamos, sobre o corpo episcopal; poder tão claramente indicado pela Sagrada Escritura. Eis como falam sobre esta matéria os concílios: “Nós lemos que o bispo de Roma julgou os prelados de todas as Igrejas, mas que ele tenha sido julgado por algum deles nós não lemos”. [Hadrianus II, in Allocutione III as Synodum Romanam an. 869. Cf. Actionem VII Concilii Constantanipolitani IV] E apresenta o seguinte o motivo: “Não há autoridade superior a Sé apostólica”. [Nicolaus I, in epist. 86 ad Michaël. Imperat., 28 sept. 865: “Patet profecto Sedis Apostolicae, cuius auctoritate maior non est, iudicium a neminem fore retractandum, neque cuiquam de eius liceat iudicare iudicio” (“É claro que o juízo da Sé apostólica, da qual não existe autoridade superior, não deve ser tratado novamente por ninguém, e que a ninguém é lícito julgar sobre o seu juízo”): Denz. 641] Gelásio, falando dos decretos dos concílios, assim escreve: “Como falando dos decretos dos concílios, assim escreve: “Como foi nulo tudo o que não foi aprovado pela primeira Sé, o que ela julgou não ter que sentenciar foi admitido por toda a Igreja”. [Epist. 26 ad Episcopos Dardaniae, n. 5] Com efeito foi sempre privilégio dos bispos de Roma confirmar ou invalidar as decisões e os decretos dos concílios. Leão Magno anulou as atas do conciliábulo de Éfeso; Damaso rejeitou aqueles do conciliábulo de Rímini, e Adriano II aqueles do conciliábulo de Constantinopla. O cânon XXVII do Concílio de Calcedônia, por não ter o consentimento nem a vontade da Sé apostólica, permaneceu, como e noto, sem nenhum valor. Portanto, com razão, Leão X no concílio Lateranense V sentenciou: “Somente o bispo de Roma, temporariamente no cargo, tem o direito pleno e o poder, tendo autoridade sobre todos os concílios, de proclamar, transferir, dissolver os concílios; e isso é evidente, não somente pelo testemunho da Sagrada Escritura, dos ditos dos Padres e dos outros bispos de Roma e decretos dos sagrados cânones, mas também pela admissão dos próprios concílios”. E, pela verdade, somente a Pedro foram entregues as chaves do reino celeste, e a ele, junto com os outros apóstolos, foi dado, pelo testemunho da Sagrada Escritura, o poder de ligar e de desligar; mas não se lê em nenhum lugar que os apóstolos recebessem esse sumo poder “sem Pedro” e “contra Pedro”. Na verdade não foi assim que e receberam de Jesus Cristo.

47. Por isso, com o decreto do concílio Vaticano sobre o motivo e a força do primado do bispo de Roma, não foi introduzido um novo dogma, mas afirmada a antiga e constante fé de todos os séculos (do cristianismo). [Sess. IV, cap. 3]

48. Nem o estar submetido a um duplo poder traz confusão no governo. Primeiramente, a sabedoria de Deus, por disposição da qual essa forma de governo foi estabelecida, nos proíbe até a simples suspeita. E depois se deve observar que a ordem e as relações somente são turvadas, se no povo existem dois magistrados do mesmo grau, e independentes um do outro. Mas o poder do bispo de Roma é supremo, universal e independente, enquanto o dos bispos é limitado dentro determinados confins e não é completamente independente. “Não é conveniente que dois sejam constituídos sobre o mesmo rebanho com poderes iguais; mas não repugna que dois, dos quais um é superior ao outro, sejam constituídos sobre o mesmo povo; assim sobre o mesmo povo está imediatamente o pároco, depois o bispo e depois o papa”. [S. Thomas, In IV Sent., dist. XVII, a. 4, ad q. 4, ad 3] Os bispos de Roma, lembrados do seu ofício, querem, melhor do que os outros, conservar na Igreja tudo o que foi divinamente instituído; e, portanto, como defendem a sua autoridade com aquele cuidado e vigilância que se convém, assim sempre se preocuparam e se preocupam para que a autoridade dos bispos seja mantida; e até julgam feito a sí toda a honra e obséquio que se presta aos mesmos. Por isso são Gregório Magno dizia: “E minha honra a honra da Igreja universal. Minha honra é o firme vigor dos meus irmãos. Eu sou verdadeiramente honrado, quando a cada um deles não se nega a honra devida”. [S. Gregorius M., Epistolarum, lib. VIII, epist. 30, ad Eugolium]

49. Com aquilo que foi dito até agora, exprimimos fielmente segundo a constituição divina, a imagem e a forma da Igreja. Raciocinamos longamente sobre a unidade, e explicamos em que ela consiste e com qual princípio o Autor divino quis conservá-la. Não temos nenhuma dúvida de que a nossa voz apostólica seja escutada por aqueles que por favor e graça de Deus, tendo nascido no seio da Igreja cató-lica, vivem nela: “As minhas ovelhas escutam a minha voz” (Jo 10,27); e também não duvidamos que eles receberão disso incitamento a instruir-se mais profundamente e a unir se com maior afeição aos próprios pastores e, através deles, ao pastor supremo, para que possam com mais segurança permanecer no único redil e colher com maior riqueza os frutos salutares. Porém, fixando o nosso olhar “no promotor e curador da fé, em Jesus” (Hb 12,2), do qual, ainda que impares para tanta dignidade e ofício, sustentamos o poder vicário, o coração inflama-se da sua caridade; e aplicamos a nós, não sem motivo, aquilo que Cristo disse de si mesmo: “Tenho outras ovelhas, que não são deste rebanho; também elas é preciso que eu reúna e escutarão a minha voz” (Jo 10,16): Não recusem, portanto, nos escutar e secundar o nosso paterno amor todos aqueles que têm por abominável a impiedade, tão largamente difundida, e reconhecem e confessam Jesus Cristo filho de Deus e Salvador do gênero humano, e contudo vão errando longe da sua esposa. Os que recebem Cristo, é necessário que o recebam todo inteiro: “Todo o Cristo é cabeça e corpo (ao mesmo tempo); é cabeça o unigênito Filho de Deus; seu corpo é a Igreja; o esposo e a esposa, dois numa só carne. Todo aquele que não concorda com a Sagrada Escritura sobre o mesmo chefe, ainda que concorde sobre todos aqueles pontos nos quais é designada a Igreja, não está na Igreja. E assim também, quem admite tudo o que na Escritura se diz do mesmo chefe, mas não está unido em comunhão com a Igreja, não está na Igreja”. [S. Augustinus, Contra Donatistas Epistolas, sive de Unitate Ecclesiae, cap. IV, n. 7] Com o mesmo afeto o nosso ânimo vai para aqueles que o sopro pestilento da impiedade não corrompeu completamente; pelo menos eles desejam grandemente isto, que o verdadeiro Deus, o criador do céu da terra, seja seu Pai. Estes considerem atentamente e entendam que não podem ser enumerados entre os filhos de Deus, se não reconhecem como seu irmão Jesus Cristo, e ao mesmo tempo como sua mãe a Igreja. A todos, portanto, amorosamente nos dirigimos com as palavras do mesmo Agostinho: “Amemos a Deus nosso Senhor, amemos a sua Igreja; aquele como pai, esta como mãe. Ninguém diga: sim, vou aos ídolos, consulto os possuídos e os adivinhos e, e contudo, não abandono a Igreja de Deus: sou católico. Tendo a mãe, ofendeste o pai! Um outro diz: não consulto nenhum adivinho, não procuro os possuídos, não procuro adivinhações sacrílegas, não vou adorar os demônios, não sirvo aos deuses de pedra; porém estou do lado de Donato. O que te aproveita não ter ofendido o pai, se este vinga a mãe ofendida? O que te aproveita confessar o Senhor, honrar a Deus, pregá-lo, reconhecer o seu Filho e confessar que está sentado à direita do Pai, se blasfemas a sua Igreja? Se tivesses um patrão, ao qual todo dia prestasses obséquio; e contudo manifestasses só uma culpa da sua consorte, terias a coragem de entrar na sua casa? Portanto, caríssimos, tende todos concordemente Deus por pai, e por mãe a Igreja”. [Enarrationes in Psal. 88, n. 14]

50. Tendo plena confiança em Deus misericordioso, que pode mover eficazmente o coração dos homens e levá-los como e onde ele quer, com todo o afeto recomendamos à sua bondade todos aqueles aos quais dirigimos a nossa exposição. E como penhor dos dons celestes e atestado da nossa benevolência, a vós, veneráveis irmãos, ao vosso clero e ao vosso povo amorosamente concedemos, no Senhor, a bênção apostólica.

Roma, junto a São Pedro, no dia 29 de junho de 1896, XIX ano do nosso pontificado.

LEÃO PP. XIII

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