Cardeal S. Roberto Belarmino | 1586
Para que tomemos o princípio a primeira questão, os hereges deste tempo sustentam que não haja concílio algum que não possa errar. Assim afirmam Lutero, [Art. 28 e 29 e in lib. de conciliis] Brenz, [In confessione Wirtembergensi, cap. de conciliis] e Calvino. [Lib. 4 instit. cap. 9 §8 e in minori institutione, cap. 8 $163 e seguintes] Todos os católicos, porém, ensinam inexoravelmente que os concílios gerais confirmados pelo pontífice não podem errar, nem na explicação da fé, nem na transmissão de preceitos de costumes comuns a toda a Igreja. [In tradendis morum praeceptis toti Ecclesiae communibus] Já quanto aos concílios particulares parece haver certa dissensão entre os católicos; pois, uma vez que a solidez desses concílios depende quase inteiramente da solidez do pontífice, aqueles que dizem que o pontífice pode errar devem, por conseguinte, dizer que também tais concílios podem errar. A fim de mais fácil e claramente explicar esse ponto, constituiremos duas proposições.
Portanto, seja esta a primeira proposição: Deve ser crido pela fé católica que os concílios gerais confirmados pelo sumo pontífice não podem errar nem na fé, nem nos costumes. Prova-se, em primeiro lugar, pelos testemunhos da divina Escritura, que os testemunhos [sobre a matéria em questão] podem ser reduzidos a quatro classes. Na primeira estarão os testemunhos próprios; na segunda, aqueles que provam que a Igreja não pode errar; na terceira, aqueles que provam que o papa não pode errar; na quarta, aqueles que provam que todos os bispos e doutores da Igreja não podem errar.
Os testemunhos próprios são três. O primeiro é Mateus 18,20: “Onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou eu no meio deles.” Calvino não dá tanto valor a este testemunho, porque pode parecer possível provar, a partir dele, que até mesmo um concílio de dois homens não pode errar. Mas não haverá de desprezar esse testemunho quem observar que o argumento não é tomado simplesmente dessas palavras, mas dessas palavras em continuação com as anteriores; e por isso se insere a argumentação, da menor à maior. Com efeito, o Senhor dissera antes disso, quanto ao homem incorrigível: “Dize-o à Igreja. Se não ouvir a Igreja, considera-o como um gentio e um publicano.” Mas, para que ninguém presumisse desprezar a Igreja ou a congregação dos prelados, adicionou em seguida: “Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra, será ligado no céu etc.”
Para que ninguém duvidasse da assistência de Deus quando os bispos congregados condenam ou absolvem alguém, ele acrescentou: “Onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou eu no meio deles. O significado dessas palavras é o seguinte: Se dois ou três congregados em meu nome obtêm sempre o que pedem de Deus (isto é, a sabedoria e a luz suficiente para conhecer aquilo que lhes é necessário), quanto mais todos os bispos congregados em meu nome sempre obterão o que pedem justamente (isto é, a sabedoria e a luz para julgar aquilo que pertence à direção de toda a Igreja)?
Assim, pois, se poucos ou muitos, se homens privados ou bispos se congregarem em nome de Cristo, todos têm a Cristo presente e coadjutor, e obtêm o que lhes convém obter. Conquanto na congregação de poucos e privados Cristo está presente para ajudá-los em coisas pequenas e privadas, já na congregação dos bispos, Cristo está presente para ajudá-los em coisas grandes e públicas. E dessa forma que o Concílio de Calcedônia expõe esse ponto, usando esse argumento. [In epist ad Leonem, que se encontra após o fim da 3a ata desse mesmo concílio] Igualmente o sexto sínodo, [Act. 17] o Terceiro Concílio de Toledo, o Papa Inocêncio, [Apud Gratian. dist. 20 can. de quibus] Celestino [In epist. ad ephesinum concilium I] e Cirilo. [In expositione symboli nicaeni, pelo início]
O segundo lugar é João 16,13: “Quando vier, porém, o espírito da verdade, ele vos guiará no caminho da verdade integral.” E para que não pensemos que isso se diz só aos apóstolos, e não também aos sucessores, o Senhor atesta no capítulo 14 que o Espírito Santo permanecerá com os apóstolos para sempre, isto é, com eles e com seus sucessores perpetuamente. Mas aos bispos existentes em separado, o Espírito Santo não lhes ensina a verdade integral; portanto, Ele ensiná-la-á somente a todos os bispos congregados. E decerto, visto que não há na Igreja uma cátedra maior, pela qual Deus nos ensina, além da cátedra do sumo pontífice, unida ao consenso de um concílio geral: se até essa cátedra pode enganar-se ao ensinar para toda a Igreja, não sei como pode ser verdadeira aquela promessa: “Ele vos guiará no caminho da verdade integral.”
O terceiro lugar é Atos 15, onde o primeiro concílio diz com confiança: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…” Ora, se o concílio do qual todos os demais concílios receberam sua forma afirma que seus decretos são decretos do Espírito Santo, então certamente podem afirmá-lo os restantes concílios legítimos, que prescrevem a toda a Igreja regras de como crer e obrar. Portanto, esteve presente a esse concílio o Espírito Santo, porque tal era necessário à conservação da Igreja. Mas noutros tempos, insurgindo-se novas heresias, isso não foi menos necessário, nem tampouco há de sê-lo no futuro.
A segunda classe de testemunhos contém todos os outros lugares pelos quais se prova que a Igreja não pode errar, nem no crer nem no ensinar. Tais lugares são: “Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;” [Mt 16,18] “Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo;” [Mt 28,20] “A Igreja do Deus vivo é coluna e firmamento da verdade;” [1Tm 3,15] e outras semelhantes.
Com efeito, a partir destes lugares se colhe manifestamente que os concílios gerais aprovados não podem errar, e isso de dois modos. Primeiro, porque toda a autoridade da Igreja não está formalmente senão nos prelados, assim como a autoridade de todo o corpo encontra-se formalmente apenas na cabeça. Portanto, é a mesma coisa dizer que a Igreja não pode errar ao. definir coisas de fé e dizer que os bispos não podem errar. E, no entanto, como dissemos, cada um em separado pode errar; congregados em unidade, portanto, não poderão errar.
Segundo: O concílio geral representa a Igreja inteira, e, portanto, tem o consenso da Igreja universal. Por essa razão, se a Igreja não pode errar, tampouco o pode um concílio ecumênico legítimo e aprovado. Ora, Calvino nega que a Igreja inteira seja representada por um concílio geral, mas esse fato pode ser facilmente demonstrado. Sobretudo porque, em I Reis 8, a assembleia de príncipes reunidos com Salomão é chamada toda a Assembleia [ou Igreja] de Israel. Por um lado, é evidente que todo o Israel, que superava o número de um milhão de homens, não poderia estar presente naquele templo simultaneamente. Por outro lado, lemos no início do capítulo que se reuniram com o rei os sacerdotes e os chefes de cada tribo.
Ademais, Atanásio, [In epist, de synodis Arimin. et Seleuciae, e in epist, ad episcopos africanos] Epifânio, [In fine Ancoratus] Eusébio[Lib. 3 de vita Constantini], Agostinho [Lib.1 contra Donatistas, lib. 2 cap. 4, e lib. 4 cap. 6], Gelásio, [In epist. ad episcopos Dardaniae. Gregório [Lib. 1 epist. 24 ad Joannem Eulogium aliosque patriarchas] e finalmente o oitavo sínodo [Act. 5] chamam ao concílio geral “assembléia de toda a terra,” ou consenso de toda a Igreja.” Além disso, Martinho V ordena que se interroguem os suspeitos de heresia, pedindo se crêem ou não que o concílio geral representa a Igreja inteira. Da mesma forma o bem-aventurado Cipriano, [Lib. 4 epist. 9] ao dizer que a Igreja está no bispo, sem dúvida entende que em todos os bispos estão todas as Igrejas. Finalmente, se, em qualquer reino ou república, aquilo que o senado ou as assembleias estabelecem diz-se pertencer a todo o reino ou república, por que não se dirá o mesmo quanto aos decretos eclesiásticos, que são produzidos com o consenso de todos os bispos?
A terceira classe de testemunhos contém todos aqueles lugares que provam que o romano pontífice não pode errar na fé, tais como Lucas 22,32: “Roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça.” E se há outros, foram explicados noutra parte. Pois a partir destes lugares se entende com toda a evidência que um concílio confirmado pelo papa não pode errar. Porque, embora haja católicos que pensam que o pontífice possa errar, contudo eles dizem que o pontífice pode errar apenas quando não emprega toda a diligência. Mas quando é convocado um concílio geral, sem dúvida ele emprega toda a diligência ao investigar a matéria em questão. Com efeito, que mais ele pode fazer? Portanto, ao menos nesse caso ele não há de errar, e isso está no consenso de todos.
A quarta classe de testemunhos contém aqueles lugares que ensinam que os bispos devem ser tidos por pastores, ouvidos como mestres e seguidos como chefes, tais como Lucas 10,16: “O que vos ouve, a mim ouve;” e Hebreus 13,17: “Obedecei aos vossos superiores e sede-lhes sujeitos. Igualmente aqueles lugares em que eles são chamados reitores ou pastores (como Atos 20 e Efésios 4), pois, ao passo que eles recebem a ordem de apascentar, nós recebemos a de segui-los às pastagens. Isso sobretudo porque o apóstolo diz que o fim pelo qual são constituídos pastores na Igreja é que não sejamos levados por todo vento de doutrina. Da mesma forma os lugares em que são chamados doutores, como Mateus 28,19: “Ensinai todas as gentes;” I Timóteo 3,2; e Tito 1,9. Com efeito, o mesmo preceito que manda que eles ensinem, manda que nós os ouçamos. Da mesma forma também os lugares em que os bispos são chamados sentinelas: “Tu, filho de homem, és aquele a quem constituí sentinela na casa de Israel.” Este lugar é explicado por Jerônimo e Gregório como se referindo aos bispos. Por esse motivo, não é sem merecimento que os bispos são chamados olhos pelo Oitavo Concílio de Toledo [cap. 4] e por Ambrósio, [Lib. de dignitate sacerdotali, cap. 6] E, se os bispos recebem a ordem de mostrar-nos o caminho, quais sentinelas e olhos, disso se segue que também nós recebemos a ordem de andar no caminho que eles nos mostrarem. Finalmente, os lugares em que os bispos são chamados pais, e os restantes, filhos, como Gálatas 4,19 e I João 2,1.
A partir de todos esses lugares, podemos assim raciocinar: Se nós recebemos de Deus a ordem de ouvir e seguir aos bispos, como prelados, pastores, doutores, sentinelas e pais, então é certo que ou eles não nos poderão enganar, ou poderemos lançar a culpa do erro sobre Deus. Mas sem dúvida os bispos podem errar individualmente, e algumas vezes erram, vez ou outra discordam entre si, de modo que ignoramos quem dentre eles deva ser seguido. Portanto, ao menos isto é verdade, que todos juntos, e sobretudo quando congregados em nome do Senhor, ensinando-nos a uma só voz, não poderão errar.
Excerto de: S. ROBERTO BELAMINO; Sobre a Igreja, Editora CDB, 2021, pp. 140-145. Original: Disputationes de Controversiis Christianae Fidei adversus hujus temporis Haereticos, De Ecclesiae, lib. II, cap. II. A parte em negrito é grifo meu para destacar o ponto mais relevante do texto.
Deixe um comentário