É A HORA DA ORAÇĀO!

Pe. Hervé Belmont | 2013

A recente demissão de Bento XVI é a hora que o Bom Deus escolheu para que a Santa Igreja Católica recupere seu esplendor terrestre, e desfrute novamente da presença e do exercício de sua autoridade aqui embaixo? Não sei. Seria um extraordinário milagre, não somente porque Deus reverteria a malícia dos homens tão poderosamente instalada, mas mais ainda porque essa reviravolta se efetuará de maneira perfeitamente conforme à Constituição da Santa Igreja. Nosso Senhor Jesus Cristo empenhou-se, com efeito, por promessa em fazer perdurar a Igreja na sua Apostolicidade – ou seja, numa continuidade ininterrupta e numa identidade sempre íntegra – até o seu retorno para julgar os vivos e os mortos no fim do mundo. Porque é hora de desejar um milagre, é mais do que nunca a hora da oração. É por isso que vos convido a unir-vos às trinta Missas que celebrarei pela intenção da Santa Igreja, da quarta-feira 27 de fevereiro à quinta-feira 28 de março (Quinta-Feira Santa).

A Quinta-Feira Santa mostra o coração da Igreja, cujo ofício maior é o de oferecer o sacrifício perfeito na Santa Missa instituída nesse dia, e também o coração da prevaricação conciliar que decretou a blasfêmia do protestantismo em ato pelo novo ordo missæ da Quinta-Feira Santa de 1969.

Recordações da doutrina católica

Assim, pois, Bento XVI demitiu-se de funções que ele não exercia e das quais ele estava totalmente privado. O estado real da Igreja Católica – aquele que aparece aos olhos de Deus e ao olhar da fé católica em exercício – não mudou, portanto, a Igreja militante está desprovida do exercício da autoridade pontifícia e daquilo que dela dimana. Mas a vacância em que se encontra a Igreja não é uma vacância ordinária. Ela não á a piedosa expectativa de que um colégio de cardeais regularmente nomeado elejam sucessor ao Pontífice “que sai”, e de que Jesus Cristo dote-o da autoridade suprema, a saber: da plenitude dos poderes de magistério, de ordem e de jurisdição; plenitude que desfruta da universalidade e da infalibilidade. A situação é muito mais grave e preocupante. Pois as estruturas da Santa Igreja Católica estão há cinquenta anos colonizadas por uma falsa religião, que instalou sua doutrina (conciliar), seu culto (protestante) e seus homens. E, portanto, se Deus não intervier de maneiraespecialíssima, as coisas continuarão e se ousa imaginar rumo a que abismo – o grande mistério da iniquidade – nos dirigimos todos. Essa vacância não é ordinária, tampouco, no sentido de que o colégio dos eleitores – os cardeais – é composto de homens que aceitaram todos publicamente a religião conciliar e que foram nomeados por “papas” desprovidos de toda jurisdição.

Essa situação tem, então, uma saída? Antes mesmo de saber quando e como o Bom Deus procederá – pois é certo que um dia (um dia mil vez esperado e bendito, e que será divinamente surpreendente!) Ele restaurará a ordem no seio da Igreja –, é possível responder sim a essa pergunta.

A nulidade jurídica perante a qual nos encontramos não é insuperável, e se o Bom Deus nos conceder um eleito católico – verdadeiramente católico –, essas questões se resolverão por si mesmas, no sentido de que haverá uma sanatio in radice por virtude da adesão da Igreja (mesmo que um agrupamento majoritário fizer secessão). “Pouco importa que nos séculos passados algum Pontífice tenha sido eleito de maneira ilegítima ou tenha tomado posse do pontificado por fraude; basta que ele tenha sido aceito em seguida como Papa por toda a Igreja, pois por esse fato ele se tornou o verdadeiro Pontífice. Mas se durante um certo tempo ele não tiver sido aceito verdadeiramente e universalmente pela Igreja, durante esse tempo então a Sé Pontifícia terá estado vacante, como ela fica vacante quando da morte do Papa” (Santo Afonso de Ligório, Verità della Fede, terceira parte, c. 8.) [1]

[1. Niente ancora importa che ne’ secoli passati alcun pontefice sia stato illegittimamente eletto, o fraudolentemente siasi intruso nel pontificato; basta che poi sia stato accettato da tutta la chiesa come papa, atteso ché per tale accettazione già si è renduto legittimo e vero pontefice. Ma se per qualche tempo non fosse stato veramente accettato universalmente dalla chiesa, in tal caso per quel tempo sarebbe vacata la sede pontificia, come vaca nella morte de’ pontefici. Così neppure importa che in caso di scisma siasi stato molto tempo nel dubbio chi fosse il vero pontefice; perché allora uno sarebbe stato il vero, benché non abbastanza conosciuto e se niuno degli antipapi fosse stato vero, allora il pontificato sarebbe finalmente vacato.]

É o Bom Deus quem decide acerca de tudo isso. É preciso, no entanto, nos lembrarmos de que, segundo Sua Providência ordinária, Ele concede a graça à oração, e as grandes graças às orações fervorosas, perseverantes, multiplicadas.

Esse sucessor católico que desejamos com todas as nossas forças encontrará uma situação aterradora, de tão numerosos e graves são os problemas. Há a reforma litúrgica a ab-rogar e os erros conciliares a repudiar… Há a validade dos novos sacramentos, e especialmente a do sacramento da ordem… Tudo há de ser estudado e esmiuçado, para sanar ou eliminar o que é duvidoso ou inválido… Há corrupção da fé, profundíssima num mundo onde da Igreja não se espera senão que ela seja o masdu, conforme a expressão do Pe. Georges de Nantes (movimento de animação espiritual da democracia universal)…

Há a perda do sentido de Igreja, o esquecimento das noções de autoridade e de jurisdição naqueles que, cobertos de razão, combateram o rebentamento das novidades conciliares, mas muitas vezes se instalaram em teorias redutoras da Igreja para justificar sua recusa. O trabalho imenso, humanamente impossível. Mas Deus pode tudo. Como Ele quiser, quando Ele o quiser.Mas Nossa Senhora intercede, e tantas almas santas desconhecidas.

A doutrina clássica

Nas horas graves, é catastrófico se contentar com o vago ou o aproximativo é preciso ater-se a escrutar a doutrina clássica, recebida, aprovada, da qual a Igreja está em posse vital e pacífica. É por isso que é oportuno expor alguns elementos dessa doutrina clássica haurida em fontes insuspeitas: que cada um aí encontre matéria para reflexão e seja esclarecido com vistas ao discernimento de fé de que teremos, num momento ou noutro, necessidade crucial.

Um texto de Pio XII

“Se um leigo fosse eleito Papa, ele não seria capaz de aceitar a eleição a não ser com a condição de ser apto a receber a ordenação e de estar disposto a fazer-se ordenar; o poder de ensinar e de governar, assim como o carisma da infalibilidade, ser-lhe-iam concedidos a partir do instante de sua aceitação, mesmo antes de sua ordenação.” (Pio XII, Discurso aos participantes do segundo congresso mundial para o apostolado dos leigos, 5 de outubro de 1957).

Além da recordação da relação necessária que existe entre o Soberano Pontificado e o episcopado (pois o Papa é identicamente o Bispo de Roma), eis duas coisas a reter desse excerto do discurso: uma um tanto anedótica. Se aquele que é eleito for um homem casado, ele não pode ser ordenado sem se separar de sua esposa, coisa que ele não pode fazer sem o consentimento dela. A sorte da Sé Apostólica depende, doravante, de Madame…

Uma mais séria, e que dá o que pensar. Pio XII não deixa lugar à possibilidade de um consentimento aparenteque seria rapidamente desmentido pelos fatos? Ele admite implicitamente um consentimento que não seria verdadeiro (não seria real), por causa de uma intenção contrária: caso o eleito responda sim ao mesmo tempo em que não esteja disposto a se fazer ordenar.

A eleição do Papa

Segue um excerto de L’Église du Verbe Incarné [A Igreja do Verbo Encarnado] de Charles Journet, tomo I, pp. 622-624 (2ª ed. DDB 1955). É uma obra sem fantasia, salvo quando aborda as questões das relações entre a Igreja e a sociedade: aí, a influência de Maritain é desastrosa. Seu interesse aqui é expor o ensinamento de dois grandes comentadores de Santo Tomás de Aquino, que mostra que mesmo em caso de dúvida ou de confusão, a situação não é sem saída. Linhas laterais chamam a atenção para as passagens que a isto fazem alusão: elas foram acrescentadas por vosso servidor, assim como as notas de rodapé.

Durante a vacância da Sé Apostólica, a Igreja não possui, sobre o capítulo da jurisdição suprema, mais do que o poder de proceder, por via dos cardeais ou, na falta destes, por outras vias, à eleição de um papa: “Papatus, secluso papa, non est in Ecclesia nisi in potentia ministerialiter electiva, quia scilicet potest, sede vacante, papam eligere, per cardinales, vel per seipsam incasu.” (Caetano[2], De comparatione auctoritatis papæ et concilii, cap. XIV, n.º 210). Caetano se espanta aqui com os graves erros de Gerson.

[2. Tomás de Vio, cardeal Caetano, dominicano (1468-1534), encarregado pelo Papa de combater a heresia luterana.]

I. O sentido da eleição. — Tudo o que pode então a Igreja, com relação à jurisdição suprema, é designar aquele sobre o qual, em virtude das promessas evangélicas, Deus a fará descer imediatamente. “O poder de conferir o pontificado pertence unicamente a Cristo, e não à Igreja, que nada mais faz que designar um sujeito determinado.” (João de S.Tomás[3], IIa-IIæ, q. 1 a. 7; disp. 2, a. 1, n° 9, t. VII, p. 128).

[3. Jean Poinsot, em religião João de São Tomás (1589-1664), dominicano, um dos maiores e mais fecundos comentadores de Santo Tomás de Aquino.]

II. O papa pode designar imediatamente seu sucessor?[…]

III.. Em quem reside o poder de eleger o papa? — Se o papa não tem de se ocupar de designar diretamente o seu sucessor, a ele incumbe em contrapartida determinar ou modificar as condições que tornarão válida a eleição: “O papa, diz Caetano, pode decretar quais serão os eleitores, mudar e limitar assim o modo de eleição, ao ponto de invalidar o que vier a ultrapassar tais disposições.”(De comparatione auctoritatis papæ et concilii, cap. XIII, nº 201). Foi assim que, retomando um uso introduzido por Júlio II, Pio IX promulgou que se acontecer de um papa morrer durante um concílio ecumênico, a eleição do sucessor será feita não pelo concílio, o qual fica de imediato interrompido ipso jure [4], mas unicamente pelo colégio dos cardeais (Acta et decreta sacrosancti œcumenici concilii Vaticani, Romæ, 1872, pp. 104 sqq.). Essa mesma disposição é recordada na constituição Vacante Sede Apostolica, de Pio X, 25 de dezembro de 1904, ao n.º 28.

[4. Com pleno direito, e sem que nenhuma declaração especial seja requerida.]

No caso de as condições previstas terem se tornado inaplicáveis, a solicitude de determinar-lhe novas condições ecoará à Igreja por devolução, palavra esta tomada, como nota Caetano (Apologia de comparatione auctoritatis papæ et concilii, cap. XIII, nº 745), não em sentido estrito (é à autoridade superior que há devolução, em sentido estrito, em caso de incúria da inferior), mas em sentido largo, para significar toda transmissão, mesmo feita a um inferior.

Foi durante as disputas acerca da autoridade respectiva do papa e do concílio que se colocou, nos séculos XV e XVI, a questão do poder de eleger o papa. Eis sobre este ponto o pensamento de Caetano.

Ele explica, para começar, que o poder de eleger o papa reside nos seus predecessores eminentemente, regularmente, principalmente. Eminentemente, como as “formas” dos seres inferiores estão nos anjos, que são incapazes, no entanto, de exercer por si mesmos as atividades dos corpos (Apologia, cap. XIII, nº 736). Regularmente, ou seja, por direito ordinário, diferentemente da Igreja em sua viuvez, que não poderia determinar ela própria um novo modo de eleição a não ser “in casu ”se a necessidade a forças se a isto. Principalmente, diferentemente da Igreja viúva, na qual este poder só reside secundariamente (nº 737). Durante a vacância da Sé Apostólica, nem a Igreja nem o concílio têm como violar disposições tomadas para determinar o modo válido de eleição (De comparatione auctoritatis papæ et concilii, cap. XIII, nº 202). Sem embargo, em caso de permissão, por exemplo se o papa nada previu que se lhe oponha, ou em caso de ambiguidade, por exemplo se se ignorar quais são os verdadeiros cardeais, ou quem é o verdadeiro papa, como se viu no tempo do grande cisma, o poder “de aplicar o papado a determinada pessoa” fica devolvido à Igreja universal, à Igreja de Deus (Ibid., nº 204).

Caetano afirma em seguida que o poder de eleger o papa reside formalmente – ou seja, em sentido aristotélico, como apto a proceder imediatamente ao ato de eleição – na Igreja romana [5], contidos na Igreja romana os cardeais-bispos[6] que são de algum modo os sufragâneos do Bispo de Roma. É por isso que, conforme a ordem canônica prevista, o direito de eleger o papa pertencerá de fato unicamente aos cardeais (Apologia, cap. XIII, nº 742). É por isso também que, quando as disposições do direito canônico forem irrealizáveis, será aos certamente membros da Igreja de Roma que incumbirá eleger o papa. Na falta do clero de Roma, será à Igreja universal, da qual o Papa deve ser o Bispo (Ibid., n.º 741 e 746).

[5. Designa aqui a diocese de Roma.]

6. Bispos das dioceses da província de Roma, ditas dioceses suburbicárias.]

Os modos históricos da eleição. — Se poder de eleger o papa pertence, pela natureza das coisas, e, portanto, por direito divino, à Igreja considerada com seu chefe, o modo concreto, como se fará a eleição, diz João de S. Tomás, não foi marcado em parte alguma da Escritura: é o simples direito eclesiástico, que determinará quais pessoas na Igreja poderão validamente proceder à eleição.

Ao longo dos tempos tiveram parte na eleição, por títulos diversos o clero romano (por um título que parece primeiro e direto), o povo (mas na medida em que dava seu consentimento e sua aprovação à eleição feita pelo clero), os príncipes seculares (seja de maneira lícita, simplesmente o seu consentimento e o seu apoio ao eleito; seja de maneira abusiva, proibindo, como fez Justiniano, que o eleito fosse consagrado antes da aprovação do imperador), enfim os cardeais, que são os primeiros dentre os clérigos romanos, de sorte que é ao clero romano que hoje a eleição do papa está de novo confiada. (Cf. João de S. Tomás, IIa-IIæ, q. 1 art. 7; disp. 2, a. 1, n.ºs 21 sqq., t. VII, pp. 223 sqq. Encontrar-se-á no Dictionnaire de Théologie Catholique, artigo Élection des Papes, uma exposição histórica das diversas condições em que os papas foram eleitos.)

A constituição Vacante Sede Apostolica, de Pio X [7], de 25 de dezembro de 1904, prevê três modos de eleição:

por inspiração, quando os cardeais, sob o influxo do espírito [8], proclamam unanimemente o Soberano Pontífice;

por cedência, quando os cardeais concordam em abandonar a eleição a três, ou cinco, ou sete dentre eles;

por votação, quando dois terços dos votos forem obtidos, sem que o eleito possa votar em si mesmo jamais (n.ºs 55 a 57) [9].

[7. São Pio X foi canonizado em 29 de maio de 1954. Journet parece ignorar isso, assim como ele parece ignorar a constituição de Pio XII (ver nota 9 abaixo). Nada muito sério!

8. São Pio X diz mais cristãmente: do Espírito Santo.

9. Essa constituição de São Pio X foi substituída em 8 de dezembro de 1945 pela Constituição Apostólica Vacantis Apostolicæ Sedis. Pio XII modificou-lhe a disposição aqui mencionada: é preciso, para ser eleito, obter dois terços dos votos mais um, e não se garante mais que o eleito não tenha votado em si mesmo.]

Validade e certeza da eleição. — A eleição, faz notar João de S. Tomás, pode ser inválida quando feita por pessoas não qualificadas, ou quando, feita por pessoas qualificadas, ela peque por vício de forma ou recaia sobre um sujeito inapto, por exemplo um demente ou um não batizado.

Mas a aceitação pacífica da Igreja universal unindo-se atualmente a determinado eleito como a um chefe ao qual ela se submete, é um ato em que a Igreja empenha o seu destino. Logo, é um ato de si infalível, e é imediatamente reconhecível como tal. (Consequentemente e mediatamente, manifestar-se-á que todas as condições pré-requeridas para a validade da eleição se realizaram.)

A aceitação da Igreja se opera seja negativamente, quando a eleição não é logo combatida; seja positivamente, quando a eleição é primeiro aceita pelos presentes e progressivamente pelos outros. (Cf. João de S. Tomás, IIa-IIæ, q. 1 art. 7; disp. 2, a. 2, n.ºs 1, 15, 28, 34, 40; t. VII, pp. 228 sqq.)

A Igreja possui o direito de eleger o papa e, portanto, o direito de conhecer com certeza o eleito. Enquanto persistir dúvida sobre a eleição e enquanto o consentimento tácito da Igreja universal não vier remediar os vícios possíveis da eleição, não há papa: papa dubius, papa nullus. Com efeito, faz notar João de S. Tomás, enquanto a eleição pacífica e objeto de certeza não ficar manifesta, a eleição é considerada como ainda em curso. E, como a Igreja tem pleno direito, não sobre o papa certamente eleito, mas sobre a eleição mesma, ela pode tomar todas as medidas necessárias para fazê-la chegar a bom termo. A Igreja pode, portanto, julgar acerca do papa duvidoso. Foi assim, continua João de S. Tomás, que o concílio de Constança julgou acerca dos três papas duvidosos de então, dos quais dois foram depostos e o terceiro renunciou ao pontificado. (Loc.cit., a. 3, n.ºs 10; 11; t. VII, p.254.)

Para evitar todas as incertezas que pudessem afetar eleição, a Constituição Vacante Sede Apostolica aconselha o eleito a não recusar um encargo que o Senhor o ajudará a carregar (nº 86); e estipula que, tão logo a eleição se tenha concluído canonicamente, o cardeal decano deve pedir, em nome de todo o sacro colégio, o consentimento do eleito (nº 87). “Uma vez dado esse consentimento, – se houver necessidade, num intervalo fixado pela prudência dos cardeais e por acordo da maioria – o eleito, já ali, é verdadeiro papa, possui em ato e pode exercer a jurisdição plena e absoluta sobre todo o universo” (nº 88).

Santidade da eleição. — Não se quer dizer com estas palavras que a eleição do papa se faça sempre por infalível assistência, pois existem casos em que a eleição é inválida, em que ela permanece duvidosa, em que ela fica então em suspense. Não se quer dizer, tampouco, que o melhor sujeito seja necessariamente escolhido.

Quer-se dizer que, se a eleição for feita validamente (o que, em si, é sempre uma mercê), mesmo quando ela resultasse de intrigas e de intervenções lamentáveis (mas nesse caso aquilo que é pecado continuará pecado perante Deus), tem-se a certeza de que o Espírito Santo – que, além dos papas, vela de maneira especial por sua Igreja, utilizando não somente o bem, mas também o mal que eles possam fazer – não pôde querer, ou ao menos permitir, essa eleição senão por fins espirituais, cuja bondade ou bem se manifestará por vezes sem tardar no curso da história, ou então será conservada secreta até à revelação do último dia. Mas aí estão mistérios nos quais somente a fé pode penetrar.

Assinalemos esta passagem da constituição Vacante Sede Apostolica, no nº 79: “É manifesto que o crime de simonia, odioso simultaneamente ao direito divino e humano, foi absolutamente condenado na eleição do Romano Pontífice. Nós o reprovamos e o condenamos novamente, e fulminamos os culpados com pena de excomunhão incorrida ipso facto. Contudo, Nós anulamos a medida pela qual Júlio II e seus sucessores invalidaram as eleições que fossem simoníacas (que Deus nos preserve delas!), para afastar todo pretexto de contestar a validade da eleição do Romano Pontífice.”

Reconhecimento pela Igreja

O reconhecimento de um Papa pela Igreja, a aceitação pacífica da Igreja universal é, pois, decisiva para o discernimento dessa verdade que importa muitíssimo à fé: X é verdadeiramente papa? Graças a ela, uma extrema confusão ou uma sucessão duvidosa não são situações sem saída. Esse reconhecimento não é, porém, a panaceia, e faz-se mister precisar qual é o seu efeito.

Cumpre, antes de tudo, que o fato seja comprovado, que esse reconhecimento seja real; um reconhecimento puramente exterior ou mundano não lograria ter esse efeito. Para ilustrar isso, observemos o caso de Bento XVI. Seu reconhecimento planetário não acarreta automaticamente (a título de causa – veremos em que sentido se há de entender isso –, ou a título de sinal) a realidade de sua autoridade pontifical?

Parece-me claro que são raras as pessoas que reconhecem Bento XVI: os modernistas não o reconhecem, pois não sabem o que é um Papa nem o que é a vida teologal; os “tradis” de todos os matizes, porque eles têm da autoridade uma concepção profundamente torta; os “sampedro”, porque aderem como cobertura canônica ao Bento XVI deles cuidadosamente recortado, assim como os conciliares piedosos (mas não é o mesmo recorte). Bento XVI? Cada qual tem o seu! Cada um faz abstração da parte incômoda (a seu ponto de vista): é bem prático (exceto para continuar católico). Pois, em verdade, quem reconhece em Bento XVI a regra vivada fé, a fonte de toda jurisdição, o princípio da unidade católica? Bem pouca gente tem, para com Bento XVI, a atitude teologal que os católicos devem ter, e tinham em seu tempo, para com Pio XII ou Gregório XVI. O argumento: Bento XVI não tem como não ser o verdadeiro Papa, pois a Igreja o reconhece como tal é sem alcance, não pelo princípio invocado, mas pela evanescência do fato alegado.

Um comprovado reconhecimento pacífico pela Igreja universal pode, da eleição, sanar os defeitos de ordem jurídica; ele opera a sanatio in radice [10. Cura na raiz.] de uma eleição que poderia permanecer maculada por tal vício.

Mas um tal reconhecimento nada pode para sanar os defeitos que se opõem pela natureza das coisas (e não por uma simples carência jurídica) à posse da autoridade de Jesus Cristo: morte, demissão, loucura, pertença à gente feminina; particularissimamente os defeitos da alçada da ordem teologal: heresia, cisma, ou ainda falta da intenção habitual de procurar o bem da Igreja (que se manifesta por um conjunto de atos incompatível [ao olhar da fé] com a assistência habitual do Espírito Santo, ou por atos pontuais incompatíveis com a infalibilidade). Deduz-se isso do ensinamento de Paulo IV na Bula Cum ex Apostolatusde 15 de fevereiro de 1559. As disposições canônicas dessa bula que não foram retomadas por Bento XV no Direito Canônico não têm mais força de lei; parece bem difícil, no atual estado de coisas (ausência de proclamação da fé católica pelo Magistério), fazer dela uma aplicação concreta; mas o substrato dogmático permanece: Paulo IV admite positivamente a possibilidade de um Papa ser universalmente reconhecido como tal, e não ser Papa na realidade. Assim Santo Afonso de Ligório, no texto citado no início deste estudo, contempla uma adesão universal que não é verdadeira: “Se durante um certo tempo ele não tiver sido aceito verdadeiramente e universalmente pela Igreja, durante esse tempo então a Sé Pontifícia terá estado vacante, como ela fica vacante quando da morte do Papa. ”Assim também Dom Lefebvre [11] declarava a 6 de outubro de 1978, entre João Paulo I e João Paulo II: “Um Papa digno desse nome e verdadeiro sucessor de Pedro não pode declarar que se dedicará à aplicação do Concílio e de suas Reformas. Ele se coloca, por esse fato mesmo, em ruptura com todos os seus predecessores e, especialmente, com o Concílio de Trento” (Itinéraires nº 233 p. 130).

[11. Não o cito como auctoritas, mas porque é preciso não esquecer.]

Uma perspectiva teologal

Na situação em que nos encontramos, é, portanto, o ponto de vista da fé que é primordial e decisivo. Se este for satisfeito, se nossa fé exercida puder reconhecer – com certeza e estabilidade –, naquele que se encontrará de fato sobre a Sé Apostólica o Vigário de Jesus Cristo, aí então não se deverá deter-se nos aspectos jurídicos que se lhe puderem opor: são estes secundários e sanáveis pelo reconhecimento Igreja universal. O que poderá satisfazer a virtude da fé? Que credibilidade teologal deverá trazer um eleito, para que se possa aderir sobrenaturalmente à sua autoridade? Eis alguns elementos. Em Bento XVI, duas séries de atos ofendem a fé ao ponto de tornar impossível o reconhecimento da autoridade nele: atos pessoais (visitas a mesquitas e sinagogas etc.) e atos (ou manutenção de atos) que têm valor permanente (ensinamentos do Vaticano II, reforma litúrgica, etc.). Se os primeiros pudessem ser esquecidos sem ser explicitamente repudiados, o mesmo não se dá com os segundos, dos quais a Igreja tem de ser desvencilhada – de imediato, no que se refere aos que são diretamente incompatíveis com a fé (com a autoridade pontifícia); em sério começo de execução, no que tange a toda a mixórdia que amolece, desvia, edulcora a vida cristã. Isso é bem um mínimo.

— Mas há uma presunção em favor da autoridade! Não cumpre reconhecê-la de imediato, com o risco de voltar atrás em seguida?

— Que deve haver presunção favorável à autoridade, que toda dúvida seja em prol dela, é uma coisa bem verdadeira, sem a qual o exercício de toda e qualquer autoridade seria impossível. Mas trata-se da autoridade já constituída, já de posse certa de sua legitimidade. Estamos num caso inteiramente diferente. Estamos num caso em que se deve presumir da continuidade, primeiro porque é este o natural em toda sucessão; depois, porque uma ruptura com a anterior recente – uma ruptura com a ruptura – é necessária: tanto para a posse da autoridade, quanto para que seja sanada a eleição. No aguardo da certeza dessa ruptura, estaremos no caso contemplado pelos teólogos e canonistas, expressado a seguir:

Tertio neque erit schismaticus, qui negat pontifici subjectionem, quia probabiliter dubitat de ejus electione legitima vel de ejus potestate…” Aquele que recusa estar sujeito ao Pontífice [Romano] não será cismático, se for por duvidar seriamente da legitimidade de sua eleição ou de seu poder (Lugo [12], Disputationes de virtute fidei divinæ, disp. XXV, sect. III, n.ºs 35-38).

[12. O Cardeal Juan de Lugo (1583-1660). Santo Afonso de Ligório considera-o “o maior sábio em teologia escolástica e moral que surgiu desde Santo Tomás de Aquino.”]

O reputadíssimo tratado de direito canônico Wernz-Vidal, depois de ter recordado que toda jurisdição é necessariamente uma relação entre o superior (que tenha direito à obediência) e o súdito (que tenha o dever de obedecer), e que a lei da obediência, como toda outra lei, obriga somente havendo certeza [da existência dessa lei (N. do T.)], tira daí a consequência de que não pode haver obrigação de obedecer a um papa cuja eleição seja, por qualquer causa séria, duvidosa: “Se o fato da eleição do Sucessor de São Pedro é duvidoso, a promulgação [da lei geral dizendo que é preciso obedecer a ele] é duvidosa – At si factum legitimæ electionis successoris S. Petri dubie est probatum, dubia est promulgatio. ”Ele acrescenta: “Mais ainda, seria temerário obedecer a um tal homem que não provou o título de seu direito. Não se pode invocar o princípio da posse, pois se trata de um Pontífice Romano que ainda não está na posse pacífica. Em consequência, o direito de mandar não existe nesse homem, ou seja, ele não tem a jurisdição pontifícia – Imo temerarium esset tali viro obedire, qui titulum sui juris non probavit. Neque ad principium possessionis provocari potest; agitur enim de Romano Pontifice, qui nondum est in pacifica possessione. Consequenter in illo viro non existit jus præcipiendi, i.e. caret jurisdictione papali.” (Wernz- Vidal, ed. 1928, tomo II,  nº 454).

Dulcíssima Virgem Maria, nesta hora grave da peregrinação terrestre da Santa Igreja Católica, vossos filhos se voltam confiantes para vós. Tendo implorado o Espírito Santo, eles vos pedem interceder para que seja dado à Igreja bem-amada o seu esplendor: que todos encontrem nela a verdadeira fé, a santa lei de vosso divino Filho, e os sacramentos que dão a graça de cumpri-las. Nosso Senhor prometeu a imortalidade à sua Igreja: não é por ela que o nosso coração está na angústia, mas por nós mesmos, pobres pecadores. Concedei-nos a graça de um justo discernimento, de uma perfeita fidelidade, de uma vontade plena de viver da fé, da esperança e da caridade, para que na terra possamos trabalhar pela honra de Deus, e para que no céu possamos contemplar-vos na Sua glória. Amém.

Não se subtrair à vontade de Deus

A vontade de Deus é infinitamente santa, e ela sempre se cumpre, pois, nenhum poder criado é capaz de se opor à sua realização. Essa vontade se cumprirá conosco, e será isto para nossa salvação; ou ela se cumprirá apesar de nós, e será isto para nossa perdição. Sem embargo, essa vontade divina é frequentemente condicional: Deus subordina a execução dela a condições que devemos preencher. É o que dá a razão da eficácia da oração. Por misericórdia infinitamente gratuita, desde toda a eternidade e de maneira imutável, Deus decidiu conceder Sua graça a quem a pedisse a Ele em prece humilde, confiante e perseverante. Isso é tanto mais notável, quanto o fato de rezar é ele próprio já uma graça (e não, como temos vergonhosa tendência de crer, um favor que nós generosamente concedemos a Deus!). De fato, Deus distribui com admirável largueza a graça da oração, e àquele que reza Ele concede as demais graças necessárias à salvação, assim como outros benefícios segundo o Seu bel-prazer. Ocorre também que Deus dê Sua graça a quem dela não cuidava (como na conversão de São Paulo), mas isso entra na ordem do milagre, pois Deus age nesse caso fora de Sua disposição providencial geral. Devemos, portanto, rezar e nos esforçar em eliminar todos os obstáculos que nossa malícia ou nossa negligência opõem à vontade de Deus e que, se esta for condicional, impedem sua realização. Para a restauração da ordem que desejamos mais do que tudo no mundo…

O primeiro obstáculo é a debilidade de nossa oração. Rezamos pouco, pouco demais; ficamos rapidamente satisfeitos, ou cansados, ou negligentes, malgrado o mandamento de Nosso Senhor: É preciso rezar sempre e nunca se cansa (Luc. XVIII, 1). Rezamos sem fé, sem convicção, sem verdadeiro desejo da graça de Deus (pois pressentimos que ela será copiosamente exigente para conosco), e também aí nos esquecemos da palavra infalível de Jesus Cristo: É por isso que vos digo: Tudo o que pedirdes em oração, crede que o recebereis, e tal vos sucederá (Marc. XI, 24). Em verdade, em verdade, vos digo: se pedirdes alguma coisa a meu Pai em meu nome, Ele vo-la dará. Até hoje nada pedistes em meu nome. Pedi, e recebereis, para que vossa alegria seja perfeita (Jo. XVI, 23-24). Os discípulos se aproximaram de Jesus e lhe disseram: Por que não conseguimos expulsá-lo? Jesus disse-lhes: Por causa da vossa incredulidade. Pois, em verdade vos digo, se tivésseis de fé um grão de mostarda, diríeis a esta montanha: Transporta-te daqui até lá, e ela se transportaria; e nada vos seria impossível (Mat. XVII, 18-19). O segundo obstáculo é a diminuição da verdade. É já a queixa do salmista: Salvai-me, Senhor, pois não há mais nenhum santo, pois as verdades foram diminuídas pelos filhos dos homens (Sl. XI, 2). Essa diminuição é dúplice. Primeiro, não cremos no poder da verdade. Imaginamos sempre que as astúcias de linguagem, os silêncios calculados, afirmações temerárias e exageros produzirão um efeito salutar, e evidentemente não é nada disso: é nossa covardia que nos cega é nossa preguiça de estudar a doutrina que nos afaga. Dom Guéranger nota com maravilhosa oportunidade: “Há uma graça atrelada à confissão plena e inteira da fé. Essa confissão, nos diz o Apóstolo, é a salvação daqueles que a proferem, e a experiência demonstra que ela é também a salvação daqueles que a escutam. Sejamos católicos, e nada mais que católicos” (Jesus Cristo Rei da história). A segunda diminuição consiste numa frequentíssima mescla de verdade e de erro: quer-se opor-se à revolução conciliar, e faz-se bem. Mas lança-se mão de todos os meios, sem antes fazer a triagem entre o verdadeiro e o falso, entre o duvidoso e o certo, entre o doutrinal e o ad hominem. E, sobretudo, não se quer fazer essa triagem segundo o único critério adequado: o ensinamento da Igreja no seu magistério e na sua prática. A geração dos que começaram a recusar as reformas conciliares e a organizar a resistência aos erros modernistas construiu apressadamente diques para se opor ao rebentamento de novidades que ameaçavam a fé e a vida cristã, e ela teve muito mérito em o fazer. Como era praticamente inevitável, dentre os materiais de que foram compostos esses diques, encontravam-se certos argumentos imprecisos, parciais, mal construídos, incorretos. Não se tinha essa cautela: o importante era a eficácia imediata; cumpria não se deixar submergir nem arrastar. Onde as coisas começaram a se deteriorar foi quando, depois da primeira linha de defesa, não se tomou um pouco de recuo nem se examinou ditos argumentos, para escorá-los, para retificá-los, para retirá-los se necessário; em todo o caso, para julgá-los à luz da doutrina perene da Igreja: pois não podemos defender a Igreja senão por meio da doutrina dela, não podemos combater o erro por meio de outros erros. Foi o contrário o que aconteceu; e eis que argumentos ad hominem, por vezes emprestados do inimigo, foram erigidos em verdades permanentes, em doutrinas obrigatórias. Uma ou duas gerações depois, nem se faz mais ideia de que possa haver, em meio a esse corpo doutrinário que foi herdado, erros… e mesmo erros graves que põem a fé em causa. É absolutamente necessário restabelecer-se, e fazê-lo por amor à verdade mesma: não para ser o mais duro dentre os duros (não existe causa mais poderosa de cegueira) nem para ir no sentido de sua personalidade ou para canonizar seu próprio modo de fazer, mas para conformar-se da maneira mais exata à doutrina católica; sem se arrogar alguma autoridade para crer-se o depositário magistral dela. É um trabalho de estudo, de renúncia e de perpétua retificação tanto da própria inteligência quanto da própria vontade: é um trabalho de meditação orante e adoradora, que faz entrar o espírito na moção do Espírito Santo.

O terceiro obstáculo é lamentavelmente pululante e epidêmico: trata-se das consagrações episcopais sem mandato apostólico. Não creiais que eu seja obcecado por não sei que resistência oculta à graça ou por um humor atrabiliário. É um problema bem mais grave, pois é fruto daquilo que Pio XII qualificou como “graves atentados contra a disciplina e a unidade da Igreja” (Ad Apostolorum Principis, 29 de junho de 1958). Como imaginar trabalhar por essa unidade, como se dispor a reconhecer essa unidade, se não se repudia aquilo que a ataca de modo vital? Uma comparação fará compreender-me. O cônego Joseph-Marie Timon-David (1823-1891) [13], fundador da Obra do Sagrado Coração para a juventude operária, escreveu um Tratado da confissão das crianças e dos jovens em três volumes, repleto de uma sabedoria toda sobrenatural e de uma experiência longamente meditada.

[13. Eles escreviam em seu Testamento Espiritual a 19 de março de 1885: “Sede sempre católicos sem nenhum epíteto, católicos com o Papa e como o Papa.”]

Quando ele trata daquilo que ele nomeia os perigos da confissão – mas isso diz respeito igualmente a todos os educadores, legítimos ou autoproclamados –, ele escreve um parágrafo formidável para aqueles que se deixam levar por afetos mal regulados (sem nem falar dos que seriam pecaminosos). “Deus é ciumento: zelotes Dominus (Ex. XXXIV, 14). O menor afeto, quando é demasiado natural, é suficiente para irritá-lo contra nós, e o primeiro castigo que nos tocará é a perda praticamente certa daqueles filhos que amamos em demasia. Deus parece nos dizer: ‘Essa criança pertence a mim; eu a confiei a ti, mas para mim, para conduzi-la a mim por todos os meios em teu poder, por todos os dons que eu tão abundantemente te prodigalizei. Ao invés disso,tu guardaste-a para ti. Pois bem, ela não será nem para ti nem para mim.’ Que punição terrível…” (7.ª edição, 1892, t. I, pp. 78-79).

Há aí motivo para tremer. Há uma verdadeira analogia com as sagrações sem mandato. Deus é cioso de Sua Igreja: Ele reservou para Si a constituição dela, sua unidade hierárquica e sua indefectibilidade; é Ele, e somente Ele, que pode produzi-las. Assim, Ele parece nos dizer: “Dado que empreendestes querer vós mesmos prover à perenidade da minha Igreja, dado que usurpastes aquilo que pertence somente a mim, dado que atentastes contra a unidade do Corpo Místico de Meu Filho, pois bem, eu vos deixo sair do apuro por vossa conta, e ficareis na indigência e na cegueira.”

Foi a triste história que ocorreu a Saul. Em guerra contra os filisteus, ele aguardava impacientemente a vinda de Samuel para a oferta do Sacrifício destinado a implorar o apoio do poder divino. E Samuel não vinha… Então, ele se decidiu a oferecer ele próprio o holocausto, usurpando o ofício sacerdotal. Logo após essa oferta sacrílega, Samuel chegou. Para se justificar, Saul argumentou que havia sido forçado pela necessidade (que de fato era grande: os hebreus desertavam do exército, e o inimigo pressionava muitíssimo). Necessitate compulsus, obtuli holocaustum. A necessidade: os pretextos não variam nada! Samuel respondeu-lhe em nome de Deus: “Agistes loucamente, e não observastes as ordens que o Senhor vosso Deus vos dera. Se não tivésseis cometido esta falta, o Senhor teria agora consolidado para sempre o vosso reinado sobre Israel; mas vosso reino não subsistirá ao futuro” (I Reis XII, 7-14).

Foi também a triste aventura do povo hebreu inteiro no deserto. Por não ter posto a confiança em Deus, que lhes abria a terra prometida que alguns exploradores haviam visitado, e por se terem permitido atemorizar-se por considerações humanas, ele foi condenado a errar no deserto até que todos os que haviam saído da terra do Egito estivessem mortos (Num. XIII, 31 – XIV, 30).

“Entretanto a murmuração do povo começava a levantar-se contra Moisés, Caleb fez o que pôde para refreá-la, dizendo: Vamos e tomemos conta da terra, porque nós poderemos conquistá-la. Mas os outros, que tinham ido com ele, diziam pelo contrário: De nenhuma sorte podemos ir contra este povo, porque é mais forte do que nós. E diante dos filhos de Israel depreciaram o país que haviam explorado, dizendo: A terra que percorremos devora os seus habitantes; o povo que vimos é de estatura extraordinária. Vimos lá certos monstros, dos filhos de Enac da raça dos gigantes, comparados com os quais nós parecíamos gafanhotos.

Toda a multidão se pôs a gritar e chorou aquela noite inteira, e todos os filhos de Israel murmuraram contra Moisés e Arão, dizendo: Quisera Deus que nós tivéssemos morrido no Egito; e tomara Deus que pereçamos neste vasto deserto, e que o Senhor não nos introduza nessa terra, para não sermos passados à espada e as nossas mulheres e os nossos filhos não serem levados cativos. Por ventura não nos seria melhor voltar para o Egito? Disseram uns para os outros: Escolhamos um chefe e voltemos para o Egito.

Tendo ouvido isto Moisés e Arão, prostraram-se por terra diante de toda a multidão dos filhos de Israel. Josué, porém, filho de Nun, e Caleb, filho de Jefone, que também tinham explorado a terra, rasgaram as suas vestes, e disseram a toda a multidão dos filhos de Israel: A terra que nós percorremos é muito boa. Se o Senhor nos for propício, introduzir-nos-á nela, e dar-nos-á esta terra, que mana leite e mel. Não sejais rebeldes contra o Senhor, nem temais o povo desta terra, porque podemos devorá-lo como pão; eles acham-se destituídos de toda a defesa; o Senhor está conosco, não temais.

E, como toda a multidão gritasse e quisesse apedrejá-los, apareceu a glória do Senhor a todos os filhos de Israel sobre o tabernáculo da aliança. E o Senhor disse a Moisés: Até quando me há de ultrajar este povo? Até quando não me acreditarão, depois de todos os milagres que tenho feito diante deles? Eu, pois, os ferirei com peste, e os exterminarei, e a ti far-te-ei príncipe duma outra nação, maior e mais forte do que esta.

E Moisés disse ao Senhor: É, pois, para que os Egípcios, do meio dos quais tiraste este povo; é para que eles e os habitantes desta terra que ouviram dizer que tu, Senhor, estás no meio deste povo e és visto face a face, e que a tua nuvem os protege, e que vais adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, e de noite numa coluna de fogo; é para que ouçam que fizeste morrer uma tão grande multidão como se fora um só homem, e digam: Ele não pôde introduzir o povo no país, que lhe tinha prometido com juramento; por isso os matou no deserto. Seja, pois, glorificada a fortaleza do Senhor como tu juraste, dizendo: O Senhor é paciente e de muita misericórdia, que tira a iniquidade e as maldades, e que nenhum culpado deixa impune, visitando os pecados dos pais sobre os filhos até à terceira e quarta geração. Perdoa, te suplico, o pecado deste povo, segundo a tua grande misericórdia, assim como lhe foste propício desde que saíram do Egito até este lugar.

E o Senhor disse: Eu perdoei conforme o teu pedido. Por minha vida, que toda a terra será cheia da glória do Senhor. Todavia todos os homens, que viram a minha majestade e os milagres que fiz no Egito e no deserto, e que me tentaram já dez vezes, e não obedeceram à minha voz, não verão a terra que eu prometi a seus pais com juramento; nenhum dos que me& ultrajaram a verá.

Mas, quanto ao meu servo Caleb, que cheio de outro espírito me seguiu, eu o introduzirei nesta terra que ele percorreu; e a sua posteridade a possuirá. Visto que os Amalecitas e os Cananeus habitam nos vales, amanhã levantai os acampamentos, e voltai para o deserto pelo caminho do Mar Vermelho.

E o Senhor falou a Moisés e a Arão, dizendo: Até quando murmurará contra mim este ímpio e ingrato povo? Eu ouvi as queixas dos filhos de Israel. Dize-lhes, pois: Por minha vida, diz o Senhor, eu vos farei como vos ouvi dizer. Neste deserto ficarão estendidos os vossos cadáveres. Todos vós que fostes contados desde vinte anos para cima, e que murmurastes contra mim, não entrareis na terra na qual eu jurei fazer-vos habitar, exceto Caleb, filho de Jefone, e Josué, filho de Nun.”

Haverá um Moisés para interceder por todos aqueles que terão imitado os hebreus dizendo: “Escolhamos para nós um líder” (as reações não mudam nada!) para fazer às vezes do eleito de Deus?

Tradução por Felipe Coelho.

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