O SOBRENATURAL NA HISTÓRIA

Dom Prosper Guéranger, O.S.B. | 1858

Assim como, para o cristão, a filosofia separada da fé não existe, assim também não há história puramente humana. O homem foi divinamente chamado ao estado sobrenatural; este estado é o fim do homem, e os relatos da humanidade devem oferecer um rastro dessa realidade.

Deus poderia deixar o homem em estado natural; aprouve, contudo, à Sua bondade chamá-lo a uma ordem superior, comunicando-Se a ele, chamando-o, em última instância, à visão e à posse da Sua divina essência. A fisiologia e psicologia naturais são, portanto, impotentes para explicar ao homem seu destino último. Para fazê-lo de modo completo e exato, é preciso recorrer ao elemento revelado, e toda filosofia que, abstraindo a fé, pretende determinar unicamente pela razão o fim do homem, está por isso mesmo convicta e culpada de heterodoxia. Somente Deus podia ensinar ao homem, pela revelação, tudo o que concerne realmente ao plano divino; só na revelação está a chave da verdadeira ordem do homem.

Não há dúvida de que a razão pode, em suas especulações, analisar os fenômenos do espírito, da alma e do corpo, mas justamente porque não pode captar o fenômeno da graça – que transforma o espírito, a alma e o corpo para uni-los a Deus de uma maneira inefável ela [a razão] não é capaz de explicar plenamente o homem tal como ele é, seja quando a graça santificante que nele habita transforma-o em um ser divino, seja quando tendo repelido este elemento sobrenatural a [graça santificante] pelo pecado ou não tendo ela ainda penetrado, o homem encontra-se como que abaixo de si mesmo.

Não há, portanto, nem pode haver verdadeiro conhecimento do homem abstraindo-se a revelação. A revelação sobrenatural não era necessária em si mesma: o homem não tinha nenhum direito a ela; mas como Deus a deu e promulgou, desde então a natureza somente não basta para explicar o homem.

Logo, a graça – sua presença ou ausência – é essencial aos estudos antropológicos.

Não existe em nós uma só faculdade que não requeira seu complemento divino; a graça aspira a percorrer o homem inteiro, a fixar-se nele em todos os níveis. E é para que nada falte a essa harmonia do natural e do sobrenatural nessa criatura privilegiada, que o Homem-Deus instituiu Seus sacramentos, que a arrebatam, elevam e deificam, desde o momento do nascimento até que ela chegue à visão eterna do bem supremo; do bem supremo que ela já possuía pela graça, mas que não podia perceber senão pela fé.

Mas se o homem não pode ser conhecido plenamente sem o auxílio da luz revelada, é possível imaginar que a sociedade humana, em suas diversas fases que chamamos história, possa ser explicada sem recorrer-se a essa mesma luz que nos ilumina sobre nossa natureza e nosso fim? Teria porventura a humanidade destino diferente do homem? Seria a humanidade então algo distinto do homem multiplicado? Não. Ao chamar o homem à união divina, o Criador convida também a humanidade. Nós o veremos bem no último dia quando, de todos esses milhões de indivíduos se formar, à direita do soberano juiz, um povo imenso, “que ninguém podia contar” como nos diz São João (Ap 7, 9).

Até que chegue esse dia, a humanidade, isto é, a história, é o grande palco em que a importância do elemento sobrenatural se manifesta claramente, seja pela docilidade dos povos à fé, em que ele domina as tendências baixas e perversas que se fazem sentir tanto nas nações como nos indivíduos; seja por seu enfraquecimento e quase extinção pelo mau uso da liberdade humana, que seria o suicídio dos impérios, se Deus não os tivesse criado “restauráveis” (Sb 1, 14).

Por isso a história, se quiser ser verdadeira, deve ser católica, pois o catolicismo é a verdade completa, e todo sistema histórico que desconsiderar a ordem sobrenatural na exposição e apreciação dos fatos é um sistema falso que nada explica, e que deixa os relatos da humanidade em um caos e contradição permanente com todas as ideias que a razão pode conceber sobre os destinos de nossa espécie aqui na terra.

É justamente porque perceberam isso, que os historiadores não-católicos de nossos dias se deixaram arrastar por ideias tão estranhas, quando quiseram fazer o que chamam de filosofia da história. Essa necessidade de generalização não existia no tempo do paganismo. Os historiadores dos gentios não tiveram uma visão de conjunto dos registros históricos da humanidade. A ideia de pátria é tudo para eles, e não se percebe jamais no narrador uma preocupação, por menor que seja, em relação ao gênero humano considerado em si mesmo. Somente a partir do catolicismo a história foi observada de maneira sintética. O catolicismo, pensando no destino sobrenatural do gênero humano, acostumou nosso espírito a ver além do estreito círculo do egoísmo nacionalista.

É em Jesus Cristo que foi revelada a fraternidade humana e, desde então, a história geral tornou-se um objeto de estudo. O paganismo não teria podido escrever senão uma fria estatística dos fatos, se estivesse em condições de redigir de uma maneira completa a história universal do mundo.

Diremos ainda mais: a religião católica criou a verdadeira ciência histórica, dando-lhe por base a Bíblia; e ninguém pode negar que hoje, apesar dos séculos transcorridos, apesar de algumas lacunas, não estejamos mais avançados no conhecimento dos povos da antiguidade do que estiveram os historiadores que essa mesma antiguidade nos legou.

Os narradores não-católicos dos séculos XVIII e XIX copiaram do método católico, o modo de generalização, mas dirigiram-no contra o sistema ortodoxo. Perceberam muito cedo que, apoderando-se da história e colocando-a a serviço de suas ideias, aplicavam um duro golpe contra o princípio sobrenatural; pois a verdade é que a história testemunha a favor do catolicismo. Sob esse aspecto, o êxito desses historiadores foi enorme; nem todo mundo consegue perceber um sofisma, mas todos compreendem um fato ou um encadeamento de fatos, especialmente quando o historiador sabe utilizar o acento particular que encanta a sua geração.

Três escolas serviram-se do campo da história sucessivamente, e às vezes simultaneamente.

A escola fatalista, que também pode ser chamada ateia, que não vê nos acontecimentos senão a necessidade, mostrando a espécie humana como prisioneira de um encadeamento invencível de causas brutais seguidas de efeitos inevitáveis.

A escola humanística, que se prostra diante do ídolo do gênero humano, cujo desenvolvimento progressivo, apoiado nas revoluções, filosofias e religiões, ela proclama. Esta escola consente facilmente em admitir a ação de Deus ao início, como tendo dado princípio à humanidade. Mas essa mesma humanidade, uma vez emancipada, foi deixada por Deus para fazer seu próprio caminho, e avança em uma via de perfeição indefinida, despojando-se neste caminho de tudo o que poderia ser obstáculo à sua marcha livre e independente.

Por fim, temos a escola naturalista, a mais perigosa das três, porque oferece uma aparência de cristianismo, proclamando a cada página a ação da Providência divina. Essa escola tem por princípio fazer constantemente a abstração do elemento sobrenatural; para ela, a revelação não existe, e o cristianismo é um incidente feliz e benfazejo no qual aparece a ação de causas providenciais. Dizem eles: mas quem sabe se amanhã, se em um século ou dois, os recursos inesgotáveis que Deus possui para o governo do mundo não conduzirão, de forma mais perfeita, a novos destinos, sob o olhar divino, e a história se iluminará com um esplendor mais vivo?

Fora destas três escolas resta apenas a escola católica. Esta não busca, não inventa e nem sequer duvida. Seu procedimento é simples: consiste pura e simplesmente em julgar a humanidade, como julga o homem individual. Sua filosofia da história tem como princípio a sua fé. Sabe que o Filho de Deus feito homem é o rei deste mundo, a quem “foi dado todo o poder no céu e na terra” (Mt 28, 18).

A aparição do Verbo Encarnado é para ela o ponto culminante da história humana, e por isso divide a duração da história em duas grandes partes: antes de Cristo, depois de Jesus Cristo. Antes de Jesus Cristo, muitos séculos de espera; depois de Cristo, um período de tempo cuja duração nenhum homem conhece, porque nenhum homem conhece a hora do nascimento do último eleito. O mundo, afinal, não se conserva senão para os eleitos, que são a causa da vinda do Filho de Deus encarnado.

Com este dado certo, de uma certeza divina, a história já não tem mistérios para o católico. Se estende seu olhar para o período anterior à Encarnação do Verbo, tudo se explica. O movimento das diversas raças, a sucessão dos impérios são o caminho aberto para a passagem do Homem-Deus e dos seus profetas; a depravação, os tempos sombrios, as inauditas calamidades são indícios da necessidade que sente a humanidade de conhecer Aquele que é ao mesmo tempo Salvador e Luz do mundo. Não que Deus tenha condenado à ignorância e ao castigo este primeiro período da humanidade; longe disso, os socorros lhe foram assegurados. A ele pertenceu Abraão, o pai de todos os crentes que virão; mas é justo que a maior efusão da graça se tenha dado pelas mãos divinas d’Aquele sem o qual, seja antes da sua vinda, seja depois, nada poderia ser justo.

O Messias por fim chega, e a humanidade, cujo progresso estava estagnado, lança-se no caminho da luz e da vida. O historiador católico segue melhor ainda os destinos da sociedade humana neste segundo período, quando se cumprem todas as promessas.

Os ensinamentos do Homem-Deus lhe revelam com grande clareza o modo com o qual deve julgar os acontecimentos, seu alcance e sua moralidade. Só tem uma mesma medida, quer se trate de um homem ou de um povo. Tudo o que expressa, mantém ou propaga o elemento sobrenatural é socialmente útil e vantajoso; tudo o que o contraria, o debilita e o destrói é socialmente funesto. Por esse procedimento infalível, compreende o papel dos homens de ação, dos acontecimentos, das crises, das transformações, das decadências; sabe de antemão que Deus age em sua bondade, e que permite em sua justiça, mas sempre sem revogar seu plano eterno, que é glorificar seu Filho na humanidade.

Mas o que torna sempre mais firme e serena a reflexão do historiador católico é a certeza que lhe dá a Igreja, que está à sua frente como uma luz que ilumina divinamente todos os seus juízos. Ele sabe que vínculo estreito une a Igreja ao Homem-Deus, como ela está assegurada contra todo erro no ensino e na direção geral da sociedade católica, como o Espírito Santo a anima e conduz; é, pois, nela que buscará o critério de seus juízos.

As fraquezas dos homens da Igreja, os abusos temporários não o escandalizam, porque ele sabe que o Pai tolera o joio em seu campo até a ceifa. Se tem de narrá-los, não omitirá os tristes episódios que dão testemunho das paixões da humanidade e que atestam, ao mesmo tempo, a força do braço que sustenta a obra de Deus; mas ele sabe onde se manifesta a direção, o espírito da Igreja, seu instinto divino. Recebe-os, os aceita, confessa-os corajosamente; aplica-os em seu trabalho de historiador. E, do mesmo modo, nunca a trai, nunca a sacrifica. Chama de bom o que a Igreja julga bom, e mau o que a Igreja julga mau. Que lhe importam os sarcasmos, as chacotas dos covardes medíocres? Ele sabe que está na verdade porque está com a Igreja e a Igreja está com Cristo.

Outros se obstinaram em não ver senão o lado político dos acontecimentos, e por isso vão regredir ao ponto de vista pagão; nosso historiador, porém, ficará firme, porque está seguro de não se enganar. Se hoje as aparências parecem ser contra seu julgamento, sabe que amanhã os fatos, cujo escopo ainda não se revelou, darão razão à Igreja e a ele.

Este papel é humilde, estou de acordo; mas pergunto que garantias comparáveis têm a apresentar o historiador fatalista, o humanista e o naturalista. Põem à frente seu juízo pessoal: qualquer um tem, portanto, o direito de lhes dar as costas.

Para atacar o historiador católico, é necessário antes demolir a Igreja sobre a qual ele se apoia. É verdade que há dezenove séculos os tiranos e filósofos vêm tentando derrubá-la, mas suas muralhas estão tão solidamente construídas que até hoje não puderam arrancar uma só pedra.

Mas se o nosso historiador se aplica em buscar e indicar, na sucessão dos acontecimentos deste mundo, o vínculo que liga próxima ou remotamente cada um deles ao princípio sobrenatural, com maior razão ainda evitará calar, dissimular, atenuar os fatos que Deus produz fora da conduta ordinária, e que têm por fim assegurar e tornar mais palpável ainda o caráter maravilhoso das relações fundadas entre Ele mesmo e a humanidade.

De fato, há três grandes manifestações do poder divino, que dão ao milagre um selo divino aos destinos do homem sobre a terra.

O primeiro desses fatos é a existência e o papel do povo judeu no mundo. O historiador não pode se abster de destacar a aliança que Deus estabeleceu com este pequeno povo, os inauditos milagres que o distinguiram; a esperança da humanidade depositada no sangue de Abraão e Davi; a missão dada a esta raça frágil e desprezada de conservar o conhecimento do verdadeiro Deus e os princípios da moral, em meio à defecção sucessiva de quase todos os povos; as migrações de Israel, primeiramente ao Egito, mais tarde ao centro do Império Assírio, sempre à medida que o teatro dos negócios humanos se desloca e se estende. De maneira que às vésperas do dia em que Roma, herdeira momentânea dos outros impérios, venha a ser rainha e dona da maior parte do mundo civilizado, o judeu a terá precedido em toda parte; lá estará com seus oráculos traduzidos doravante à língua grega; aí será conhecido de todos os povos, isolado, não-assimilado, sinal de contradição, mas dando testemunho do advento cada vez mais próximo d’Aquele que deve unir todas as nações e “juntar em um só corpo os filhos de Deus até então dispersos” (Jo 11, 52).

Essa milagrosa influência do povo judeu que escapa a todas as leis ordinárias da história, o narrador a mostrará de bom grado por meio das profecias confiadas a este povo, e que não apenas são para nós uma luz do passado, mas que também tão vivamente preocuparam aos gentios, durante os séculos que precederam e se seguiram à chegada do Filho de Deus. Cícero já ouvira seu eco quando fala, com uma espécie de temor misterioso, do novo império que se preparava. Virgílio, no mais harmonioso dos seus cânticos, repete as ênfases de Isaías; Tácito e Suetônio atestam que o universo todo se volta, com expectativa, para a Judéia, e que o pressentimento geral é de ver chegar desse país homens que conquistarão o mundo. Rerum potirentur [“…foi escrito nos textos antigos dos sacerdotes, que, naquele momento, o Oriente tinha provado sua força e que os homens saídos da Judeia se tornariam os donos do mundo (Rerum potirentur)”. A conquista da Judeia nas Histórias de Tácito – HISTÓRIAS – LIVRO V – TÁCITO]. Por acaso se negará ainda que a história, para ser verídica, deva entender a regência do sobrenatural?

O segundo fato, que se encadeia ao primeiro, é a conversão dos gentios dentro e fora do Império Romano. O historiador católico deverá mostrar que essa obra imensa procede diretamente da mão de Deus que, para operá-la, serviu-se de leis simplesmente providenciais.

Aí assinalará, com Santo Agostinho, o milagre dos milagres; com Bossuet, fará ver o momento decisivo, que não tem semelhança senão quando a Criação saiu do nada para a glória do seu Criador. Contará a colossal grandeza da missão e a exiguidade dos meios; as significativas preparações a uma mudança que pressagia que este mundo deve pertencer senão a Jesus Cristo, preparações que, ao mesmo tempo, são elas mesmas obstáculo a qualquer êxito humano da empresa; os apóstolos, armados somente com a palavra e com o dom dos milagres, que a confirmam e fazem penetrar; as profecias judaicas estudadas, comparadas e aprofundadas em todo o império, e tornando-se, como nos atestam os escritos dos três primeiros secos, um dos mais poderosos instrumentos das conversões; a constância sobre-humana dos mártires, cuja imolação quase incessante, longe de m extirpar a nova sociedade, a propaga e a fortifica; por fim, a cruz, o patíbulo do filho de Maria, coroando depois de três séculos o diadema dos Césares; as ideias, a linguagem, as leis, os costumes, em uma palavra, todas as coisas transformadas segundo o plano que tinham trazido da Judéia os novos conquistadores que o império esperava, e que souberam triunfar sobre ele, derramando o próprio sangue sob a espada romana.

Em meio a todos esses prodígios, o historiador católico se sente à vontade e nada o impressiona, porque sabe e proclama que tudo na terra sucede para os eleitos, e que os eleitos são para Cristo. Cristo está com ele na história e, portanto, é muito simples que a história não se pode explicá-la sem Ele, e que com Ele a história aparece em toda sua claridade e em toda sua grandeza.

A sucessão dos acontecimentos da humanidade responde ao começo da história; mas desde a publicação do Evangelho, os destinos do mundo têm novo curso; depois de ter esperado seu Rei, agora a terra o possui.

A preparação sobrenatural que havia se manifestado no papel do povo judeu, e essa outra preparação por sua vez natural e sobrenatural que havia aparecido na marcha sempre progressiva do poderio romano, chegou cada uma a seu término.

Tudo está consumado, Jerusalém cede seus direitos suas honras a Roma; Tito é o executor das grandes obras do Pai celestial que vinga o sangue de seu Filho Eterno [Alusão à destruição do templo de Jerusálem por forças romanas lideradas pelo comandante Tito, no ano 70 d.C, profetizada por Nosso Senhor, conforme se lê em Lucas, 5, 6: “De tudo isto que vedes, virão dias em que não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida”. (N. do. E)]. Porém o milagre do povo judeu não cessa; transforma-se, e as nações terão perante seus olhos, até a véspera do último dia, o espetáculo não mais de um povo privilegiado, mas de um povo amaldiçoado por Deus.

Quanto ao império pagão, ele edificou, sem o saber, a capital do Reino de Jesus Cristo; ser-lhe-á dado sediá-lo por mais três séculos. É de lá que partirão esse editos sanguinários que não terão outro efeito que o de mostrar aos séculos futuros o vigor sobrenatural do cristianismo.

Depois, quando vier o tempo, o Império cederá o lugar, e partirá a refugiar-se no Bósforo, e a indefectível dinastia dos Vigários de Cristo, que não tem abandonado seu posto desde o martírio de Pedro, seu primeiro elo, cingirá a coroa na cidade das sete colinas [Isto é, Roma, fundada em 753 a.C. sobre uma das Sete Colinas: (Capitólio, Quirinal, Viminal, Esquilino, Célio, Aventino e Palatino) que rodeavam a comunidade primitiva. Outras colinas de Roma são a Pinciana e Janículo].

O império cairá pedra por pedra sob os golpes dos bárbaros; mas antes de lhe infligir a humilhação e o castigo que os crimes seculares acumularam sobre ele, a justiça divina esperará que o catolicismo, vitorioso das perseguições, tenha estendido bem alto e bem longe seus ramos, para dominar em todas as partes as ondas desse novo dilúvio; ver-se-á depois o império cultivar novamente, e com pleno êxito, a terra renovada e rejuvenescida por essas águas purificantes, ainda que devastadoras.

Por acaso, depois de expor todas essas maravilhas, o historiador católico mudará o tom de sua narrativa? Voltar-se-á para a explicação meramente casual dos acontecimentos da terra? Não é porventura o sobrenatural apenas o ponto central da história, de modo que desde esse momento a ação divina deva permanecer velada sob as causas segundas até o fim dos tempos? Que Deus não queira que assim seja!

Um terceiro fato sobrenatural, fato que deve durar até a consumação dos séculos, chama sua atenção e exige toda sua eloquência. Este fato é a conservação da Igreja através dos tempos, sem corrupção em sua doutrina, sem alteração em sua hierarquia, sem interrupção em sua duração, sem desfalecimento em sua marcha. Milhares de coisas humanas foram inventadas, desenvolveram-se e caíram em decadência; a conduta habitual da Providência velou por elas durante sua duração; hoje são apenas traços na história. A Igreja está sempre de pé; Deus a sustenta diretamente, e todo homem de boa-fé, capaz de aplicar as leis da analogia, pode ler nos fatos relacionados a ela essa promessa imortal de perdurar sempre, que ela traz inscrita em sua base, pela mão de Deus.

As heresias, os escândalos, as defecções, as conquistas, as revoluções, nada tem conseguido destruí-la; rechaçada de um país, avança em outro; sempre visível, sempre católica, sempre conquistadora e sempre sofredora.

Este terceiro fato, que não é senão a consequência dos primeiros, termina por dar ao historiador católico a razão de ser da humanidade. Ele conclui, com evidências, que a vocação da nossa espécie é uma vocação sobrenatural; que as nações sobre a terra não somente pertencem a Deus, que criou a primeira família humana, mas que elas também são, como disse o Profeta, o domínio particular do Homem-Deus. Então, basta de mistérios na sucessão dos séculos, basta de vicissitues inexplicáveis; tudo se resolve por si mesmo com este elemento divino.

Sei que hoje é preciso muita coragem, sobretudo quando não se faz parte do clero, para tratar a história sob essa ótica. Crê-se sinceramente, e por nada desse mundo quer-se admitir as teorias das escolas fatalista e humanista, mas a escola naturalista é tão influente pelo seu número e talento, é tão benevolente com o cristianismo, que se torna difícil criticá-la e não parecer a seus olhos nada mais que um escritor místico, no máximo um poeta; quando se aspira, na verdade, à reputação de homem de ciência e de filosofia.

Tudo o que posso dizer, é que a história tem sido tratada, desde o ponto de vista que me permiti expor, por dois poderosos gênios católicos cuja reputação está acima de qualquer dúvida. A Cidade de Deus de Santo Agostinho, e os Discursos sobre a História Universal de Bossuet são duas aplicações do que expliquei acima. O caminho está, portanto, delineado por mestres, e é possível se expor, seguindo tais homens, aos fúteis juízos do naturalismo contemporâneo.

É muito bom, sem dúvida, conduzir a própria vida interior pelo princípio sobrenatural; mas seria uma grave inconsequência, uma tremenda irresponsabilidade, que esse mesmo princípio não conduzisse também a nossa pena.

Vejamos a humanidade em suas relações com Jesus Cristo, seu chefe; não a separemos nunca d’Ele em nossos juízos nem em nossos relatos [históricos], e quando nosso olhar fitar o mapa do mundo, recordemo-nos antes de tudo de que temos sob os olhos o império do Homem-Deus e de sua Igreja.

Excerto de: Dom PROSPER GUÉRANGER, O.S.B.; O Sentido Católico da História, Editora Castela, 2020, pp. 21-36.

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