Pe. Hervé Belmont | 2014
Não, não é com o tiranicídio em si mesmo que me inquieto: este não é um problema moral de uso cotidiano. É a desenvoltura com relação à doutrina católica o que é verdadeiramente alarmante. Explico-me.
Percorrendo o catálogo de La Librairie Française, noto uma obra de título promissor: Jean Bastien-Thiry, De Gaulle e o tiranicídio — Aspecto moral de um ato político (Éditions des Cismes, Paris, 2013), por Pe. Olivier Rioult, que não conheço senão por isso. Encomendo então esse livro, esperando encontrar nele um estudo moral sobre o tiranicídio, partindo de um caso concreto.
Cumpre dizer desde já que minha decepção foi grande. A primeira razão disso é que o aspecto moral, mencionado no título, mal chega a ser evocado: duas páginas gerais (8 & 9) anunciando que se vai referir-se a Santo Tomás de Aquino, duas páginas (10 & 11) para responder à pergunta: O que é um tirano?, citando Santo Tomás de Aquino; duas páginas (16-18) para estudar a questão sobre A legitimidade do tiranicídio, citando também Santo Tomás de Aquino. O resto da obra consiste principalmente de um duplo processo: processo de canonização quanto ao tenente-coronel Bastien-Thiry, processo de condenação quanto ao general De Gaulle. Não era isso que eu procurava (Deus julgou-os com soberana Equidade), e não é o que nos interessa aqui.
A parte que evoca o aspecto moral não constitui senão 10% de um opúsculo que conta sessenta páginas. É bem pouco para dirimir questão tão grave. Tanto mais que Santo Tomás de Aquino está presente ali só como comparsa, e não como guia da reflexão [maître de réflexion]. Pois o segundo motivo de decepção é que esse estudo moral é extravagante, tratado com leviandade lamentável, pois no fim das contas o autor, mediante sucessivas diluições, sustenta o oposto do ensinamento do Aquinate.
Santo Tomás nega toda legitimidade moral ao tiranicídio:
“Se o excesso da tirania se tornasse intolerável, alguns acreditaram que incumbiria à coragem dos homens, que a isto se sentissem dispostos, matar o tirano e expor-se a perigos mortais pela liberação do povo. […] Mas isso não está conforme à doutrina dos Apóstolos (I Pedr. II, 18). […] Seria efetivamente perigoso para o povo e seus líderes se homens, por sua ação privada (privata præsumptione), empreendessem matar governantes, ainda que tirânicos. […] Se cada qual pudesse, à sua vontade, atentar contra a vida de um rei, o perigo de sacrificar um rei seria maior que a vantagem que haveria na morte de um tirano. Assim, melhor se vê que, contra a maleficência dos tiranos, não é por empresas de alguns particulares que cumpre proceder, mas por autoridade pública” (De Regimine principum I, 6).
Pois Santo Tomás distingue cuidadosamente tiranicídio de insurreição legítima. O primeiro nunca é permitido, pois permanece um ato de ordem privada (ainda que seja um feito de muitos e na intenção do bem público); a segunda pode ser permitida com condições bem estritas.
Dentre estas condições, os autores mencionam o fato de que a tirania precisa estar manifesta aos olhos da pars sanior (as pessoas sábias e honestas) da sociedade e que haja chances razoáveis de sucesso (por exemplo Castelein, Institutiones philosophiæ moralis et socialis, 1899). É porque a insurreição legítima não pode, em caso algum, ser ato de ordem privada; é necessário que seja seguramente um ato da sociedade, da qual a autoridade é — sob esse ponto de vista — uma função. É a sociedade mesma que pode rejeitar o tirano. Uma pessoa ou grupo particulares não podem fazê-lo em seu próprio nome (mas podem ter disto a iniciativa).
Bastien-Thiry parece confundir as duas coisas, legitimando o tiranicídio pela conjectura de que o êxito seria ponto de partida de uma reação vital da sociedade. É confessar que não se trata por ora de nada mais que um homicídio, que não se ergue acima de uma ação de “justiça” privada. Mas isso não impede o nosso moralista de ocasião de aquiescer, afirmando que “o coronel Bastien-Thiry e sua equipe não agiam em seu próprio nome, mas em nome de uma elite nacional…”. Não somente isso não passa de suposição, como é confundir a natureza de um ato com o resultado que dele se espera, é mostrar que se tem dificuldade de conceber o que é a sociedade.
É de deixar atônito. É como legitimar o furto toda vez que se puder entreter-se com a imaginação de que a pessoa roubada renunciará ao seu direito de propriedade.
Assiste-se, ao longo das páginas do livro que tratam da legitimidade do tiranicídio (16-18), a uma diluição progressiva do ensinamento de Santo Tomás de Aquino: seu categórico não é pouco a pouco transformado em simpor imersão nas considerações do autor mescladas às do coronel Bastien-Thiry — o que produz uma espécie de sobreposição de imagens entre tiranicídio e insurreição; entre o proibido, o perigoso e o permitido; no banho de equívoco entre matar o tirano, destituí-lo, subtrair-se à sua autoridade. À página 18, o golpe é desferido, e não se voltará atrás. Hábil? Talvez. Verdadeiro? Certamente que não.
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Mas não é este o vício principal do opúsculo em causa. O que choca ainda mais é a ausência de toda referência, e mesmo de qualquer alusão, ao Magistério da Igreja.
Ora, a Igreja Católica falou. Ela condenou as teorias que justificam o tiranicídio com enorme vigor. A dúvida não é permitida. A desenvoltura doutrinal torna-se odiosa.
Lê-se, nos atos do Concílio de Constança, a condenação seguinte:
“A proposição: ‘Todo tirano pode e deve licitamente e meritoriamente ser morto por qualquer de seus vassalos ou súditos, mesmo recorrendo a ciladas, à adulação ou a lisonjas, não obstante todo juramento ou aliança contratados com ele, e sem aguardar sentença ou ordem de qualquer juiz que seja…’ é errônea em matéria de fé e de costumes, e o concílio a reprova como herética, escandalosa, sediciosa e prestante a fraudes, enganos, mentiras, traições e perjúrios. Além disso, ele declara, decide e define que aqueles que sustentem com obstinação essa perniciosíssima doutrina são hereges” (décima-quinta sessão, 6 de julho de 1415, Denzinger 690).
Mal se poderia ser mais claro. E a cláusula final deveria ter convidado a alguma prudência: a doutrina é perniciosíssima, seus defensores obstinados são hereges.
— Objeção. Esta condenação é, certamente, severíssima, mas não faz parte dos atos de Constança aprovados pelo Papa Martinho V (que inclusive eludiu a questão na quadragésima-quinta e última sessão, 22 de abril de 1418). A condenação não é, pois, um ato do Magistério supremo da Igreja, nem pontifício nem universal.
— Resposta. Isso é perfeitamente exato. Mas essa condenação foi promulgada mais tarde, bem mais tarde, pelo Papa Paulo V, na bula Cura Dominici Gregis de 24 de janeiro de 1615, e em termos soleníssimos e muito formais: “Concilii Constantiensis declarationem, decretum ac definitionem circa doctrinam de nece tyranni editam tenoris huiusmodi : [aqui, o texto da condenação proferida em Constança]. Nos, matura deliberatione præhabita, hac nostra perpetua constitutione, apostolica auctoritate innovamus, et, quatenus opus sit, approbamus et confirmamus. Si quis autem diabolico ausu contrarium attentari præsumpserit, eo ipso anathemate innodatus existat.”
— Instância. Seja… É impossível de negar que a condenação de Constança tem plena autoridade na Santa Igreja Católica. Mas a mencionada condenação contém várias proposições que estão ligadas pela conjunção “et” ou então justapostas. Logo, basta não professar uma das proposições, para evitar de cair na condenação. Pode-se, pois, admitir o tiranicídio, com a condição de não empregar meios desleais.
— Resposta. E por que não dizer também que é permitido empregar meios desleais, com a condição de que isso não chegue até à morte?
O sentido óbvio do texto é condenar todas e cada uma das proposições enumeradas. Ademais, o Papa Paulo V, antes de proceder à promulgação da referida condenação, precisa cuidadosamente o sentido em que ele a entende. Para tanto, ele religa com a conjunção “aut” (“ou”) os diversos aspectos da conduta condenada, mostrando bem que são condenados, por um lado, o tiranicídio mesmo, e por outro lado cada um (quomodolibet) dos procederes anexos elencados. “Itaque, ut eorum nefarium et execrandum scelus, qui impias manus principum personis admovere, aut contra eorum salutem quomodolibet attentare diabolica præsumptione non verentur…” De resto, a condenação tendo por objeto principal o tiranicídio, teria sido inverossímil que o tiranicídio simpliciter pudesse escapar da condenação.
— Nova instância (tímida). Sim, a cláusula final (doutrina perniciosa, pessoas heréticas) deveria ter convidado a alguma prudência: mas não é fácil de conseguir o texto dessa bula…
— Nova resposta. Para tratar de um problema tão grave, há que fazer um pouco de esforço. Senão, mais vale ficar calado. Coloco-vos em anexo, infra, o texto da bula; está incluso no grande Bulário editado em Turim sob Pio IV, que está disponível no site archive.org, acessível ubique terrarum. Restar-vos-á o esforço de lê-lo e, se não o compreendeis em leitura direta, de traduzi-lo ou de fazer com que vos seja traduzido.
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Aí está o que encerra a questão moral. Aí está no que a obra que foi ocasião deste breve esclarecimento é inadmissível. Definitivamente.
E, ainda outra vez, para além das pessoas envolvidas, para além até mesmo do ponto de doutrina violentado, a desenvoltura manifestada com relação à doutrina da Igreja, ao Magistério da Igreja e ao próprio Santo Tomás de Aquino, tem algo de verdadeiramente sinistro.
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Para terminar, evoco dois pontos anexos, que poderiam, do ponto de vista histórico, modificar a maneira de encarar o caso como um todo.
1. Seja como for quanto ao juízo moral, seja como for quanto às intenções reais de Jean Bastien-Thiry, era tarde demais: em 22 de agosto de 1962 (data do atentado de Petit-Clamart) — após os Acordos de Evian (março de 1962), portanto —, o abandono da Algéria aos revolucionários do FLN era irreversível, assim como a cumplicidade do povo da França (91% de sim por parte dos franceses metropolitanos, ao referendo de 8 de abril de 1962). A eliminação física do general De Gaulle não podia mais mudar nada. Foi esta, em todo o caso, a análise claramente exprimida pelo coronel Chateau-Jobert (1912-2005) durante um jantar tão instrutivo quanto simpático (em abril de 1973 em Lausanne: o Pe. Jean-Michel Faure e o Pe. Jacques Seuillot me podem servir de testemunhas, pois éramos quatro).
2. Jean Bastien-Thiry pretendia deveras ao ocídio de De Gaulle? Não tenho luzes particulares sobre a questão. Eis o que extraio de Itinéraires (n.º 72 p. 107, abril de 1963) sob a pluma de Jean Madiran:
“Esta Declaração do Cel. Bastien-Thiry [de 3 de fevereiro de 1963] reproduz o texto que ele leu em audiência ao tribunal de justiça militar. É muito diferente do que tínhamos ouvido falar pelos rumores das rádios, dos artigos, dos comentários, dos comunicados. Em momento algum ela invoca aquela teoria do ‘tiranicídio’, de que se falou tanto. Jornalistas e doutores católicos, dando ouvidos somente ao bom coração que possuem, foram muito numerosos em atestar solenemente, nas suas publicações, que o inculpado Bastien-Thiry estava errado. É exato que a tradição e doutrina católicas, se bem que admitam em certos casos a resistência ativa à opressão, e a insurreição, não admitem o ‘tiranicídio’. Mas Bastien-Thiry não alegou forma alguma nem espécie alguma de tiranicídio. Ele invocou Santo Tomás de Aquino acerca da definição de tirano, e de modo nenhum acerca do assassinato do tirano. Ele próprio não matou nem quis matar. Ele não derramou o sangue de ninguém, embora ele tenha assumido o risco de o fazer. Sua tentativa, que fracassou, era de uma retirada [enlèvement] a mão armada do atual chefe de Estado.”
Paulus Papa V, ad perpetuam rei memoriam.
Cura dominici gregis, per abundantiam divinæ gratiæ humilitati nostræ commissa, impigre nos semper, et his præcipue calamitosis temporibus, invigilare cogit, ut pastorali sollicitudine diabolicæ versutiæ conatus destruantur, et ii maximo, quibus, sub ipso boni seu liciti operis titulo, incautos fallit, vel eos, qui sunt intrinsecus lupi rapaces, ovium vestimentis prætexit, salutemque principum, unde publica tranquillitas pendet, in discrimen vocare molitur. Adversus quam rerum perniciem, etsi ecclesiasticis decretis satis provisum est, tamen quoniam temporum conditio et rei gravitas postulant, nostraque in catholicos principes paterna charitas requirit, ut quorum salutem sinceris desideramus affectibus, et a Domino incessanter exposcimus eorum securitati, quantum in Domino possumus, consulamus, amplius providendum duximus.
Itaque, ut eorum nefarium et execrandum scelus, qui impias manus principum personis admovere, aut contra eorum salutem quomodolibet attentare diabolica præsumptione non verentur, ab Ecclesia catholica, quantum ex alto conceditur, ablegetur, et omnis aditus fraudibus et vesanis erroribus præcludatur ; concilii Constantiensis declarationem, decretum ac definitionem circa doctrinam de nece tyranni editam tenoris huiusmodi : « Præcipua sollicitudine volens hæc sacrosancta synodus ad extirpationem errorum et hæresum in diversis mundi partibus invalescentium providere, sicut tenetur et ad hoc collecta est, nuper accepit, quod nonnullæ assertiones erroneæ in fide et bonis moribus, ac multipliciter scandalosæ, totiusque reipublicæ statum et ordinem subvertere molientes, dogmatizatæ sunt, inter quas hæc assertio delata est : Quilibet tyrannus potest et debet licite et meritorie occidi per quemcumque vassallum suum vel subditum, etiam per clanculares insidias et subtiles blanditias, vel adulationes, non obstante quocumque præstito iuramento seu confœderatione factis cum eo, non expectata sententia vel mandato iudicis cuiuscumque. Adversus hunc errorem satagens hæc sancta synodus insurgere, et ipsum funditus tollere, præhabita deliberatione matura, declarat, decernit et definit, huiusmodi doctrinam erroneam esse in fide et in moribus, ipsamque tamquam hæreticam, scandalosam, et ad fraudes, deceptiones, mendacia, proditiones, periuria vias dantem, reprobat et condemnat. Declarat insuper, decernit et definit, quod pertinaciter doctrinam hanc perniciosissimam asserentes, sunt hæretici, et tamquam tales iuxta canonicas sanctiones puniendi ».
Nos, matura deliberatione præhabita, hac nostra perpetua constitutione, apostolica auctoritate innovamus, et, quatenus opus sit, approbamus et confirmamus. Si quis autem diabolico ausu contrarium attentare præsumpserit, eo ipso anathemate innodatus existat.
Volumus autem, ut hæc nostra constitutio ad valvas basilicæ Principis Apostolorum, et in acie campi Floræ Urbis affixa, ita omnes afficiat, ac si unicuique personaliter intimata fuisset.
Datum Romæ, apud Sanctam Mariam Maiorem, sub annulo Piscatoris, die xxiv ianuarii mdcxv, pontificatus nostri anno x.
Tradução por Felipe Coelho.
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