Pe. Hervé Belmont | 2006
Designa-se pelo nome de iluminação final uma teoria que afirma que, na hora da morte, todo homem recebe uma iluminação especial da graça de Deus que lhe permite escolher entre Deus e o mal, entre o Céu e o Inferno. Será verdade? O que a Igreja diz disso? O que a teologia diz disso? Trata-se do caso das crianças mortas sem batismo, ou então se trata, para o adulto, da aceitação ou recusa da massa dos pecados que foram cometidos durante a vida?
Pesquisando documentos sérios, forçoso é constatar que a colheita é bem escassa. Escassíssima até. Os teólogos antigos não falam disso, apenas alguns modernos fazem alusão a isso e, o mais das vezes, a propósito das crianças mortas sem Batismo, e ainda para dizer que não dá para dizer grande coisa além de que isso é contrário ao pensamento da Igreja. Pode-se conferir, por exemplo, na obra de Albert Michel Enfants morts sans baptême [Crianças mortas sem batismo], Paris: Téqui, 1954.
Dessa pesquisa, podemos ainda assim extrair o seguinte.
1. Essa teoria é gratuita. Nada, nem na Sagrada Escritura, nem no Magistério da Igreja, nem no ensinamento dos Padres e dos teólogos, nem na pregação dos Santos, nada permite afirmar que uma tal iluminação exista. É aos que a afirmam que cabe trazer um começo de prova ou de verossimilhança.
Remetendo-nos ao que diz Santo Tomás de Aquino sobre a morte e suas circunstâncias, vemos bem que não há espaço algum para essa iluminação nem para a possibilidade dela. Assim Contra Gentes, IV, 91, 92, 93, 95.
2. Essa teoria é suspeita. Embora o Magistério não se tenha pronunciado diretamente, há mesmo assim indicações claríssimas sobre o que pensa disso a Igreja.
a] Eis o que escreve José Ricart Torrens, Du nombre des élus [Sobre o número dos eleitos], Nouvelles Éditions Latines, 1965, pág. 127:
« Em 5 de março de 1936, o Santo Ofício inscreveu no Índex dos livros proibidos o livro de Luis G. Alonso Getino, Del gran numero de los que se salvan y de la mitigación de las penas eternas (Madrid, f.e.d.a., 1934).
Em 6 de março de 1936, o Osservatore Romano comentava assim esta colocação no Índex:
“Esta condenação merece que lhe anexemos especial importância e que a assinalemos sem demora à atenção dos fiéis pelo erro gravíssimo que poderia causar-lhes a leitura do livro em questão. A referida publicação, com efeito, se inspira em ideias postas em voga há algum tempo, especialmente por teólogos protestantes; apoiando-se em argumentos especiosos e interpretações arbitrárias de textos da Santa Escritura e citando certas expressões pronunciadas por alguns Padres e Doutores, ataca-se a fundo a clara e precisa doutrina tradicional católica sobre a eternidade e a natureza das penas do Inferno. E, como se isso não bastasse, defende-se ainda por cima, ex professo, no mencionado volume, uma estranha teoria sobre uma pretensa iluminação especial que as almas humanas receberiam de Deus no momento de sua separação do corpo, e graças à qual elas se converteriam intimamente e perfeitamente ao Criador e seriam assim justificadas e salvas.
Certamente, não são necessárias muitas palavras para fazer compreender o quão grave é o perigo escondido por trás dessas teorias que, não somente não têm fundamento algum na Revelação, mas estão mesmo em contradição com ela e com o sentir comum da Igreja.”»
b] Eis o que escreve Albert Michel, Doctrine et vie chrétiennes [Doutrina e vida cristãs], Paris: Berche et Pagis, 1946, pág. 310:
« É, portanto, no mínimo, grave temeridade imaginar que logo após a morte uma prorrogação normal, acompanhada de iluminação da graça, será ainda concedida ao pecador para converter-se. O Concílio do Vaticano preparara a definição seguinte: “Após a morte, termo de nossa vida, cumpre-nos comparecer todos imediatamente ao tribunal de Cristo… e após esta vida mortal, não é mais possível a penitência para se justificar.”»
Aqui está o texto exato ao qual faz referência A. Michel:
« Post mortem quæ est viæ nostræ terminus, illico omnes manifestari nos oportet ante tribunal Christi, ut referat unusquisque propria corporis prout gessit, sive bonum, sive malum (II Cor. v, 10) ; neque ullus post hanc mortalem vitam relinquitur locus pænitentiæ ad justificationem. » [Mansi LIII, 175. Citado no Dictionnaire de Théologie Catholique, artigo Mort, col. 2494]
O Concílio Vaticano I tendo sido interrompido pela guerra franco-alemã de 1870, esse texto não pôde ser apresentado nem votado. Não é, portanto, por si mesmo, um ato do Magistério. Mas é uma boa expressão do ensinamento constante da Santa Igreja Católica.
3. Essa teoria é nefasta. Ela entretém o pecador numa falsa segurança, contrariando a moção interior da graça que o atrai ao arrependimento e à conversão. Ela se opõe à pregação cristã, que deve recordar em tempo e fora de tempo os fins últimos e a sua gravidade. Efetivamente, com muita frequência Deus Se serve, para converter os pecadores, do temor salutar que Seu julgamento inspira, do temor de ser surpreendido pela morte em estado de pecado.
Essa teoria vem, pois, desarmar ou mesmo aniquilar a obra de Deus, deixando o pecador imaginar consigo que ele sempre pode resistir à graça, por lhe restar uma última chance que resgatará tudo.
Não se deve crer que se exalta a misericórdia de Deus imaginando uma sistemática repescagem in extremis. A misericórdia de Deus é infinitamente maior: é durante o curso da vida aqui embaixo que ela converte, que ela santifica, que ela eleva o ex-pecador aos vértices mais sublimes da união com Deus – recordemo-nos de Santa Maria Madalena – mediante uma graça que transforma interiormente, e comunica paz e edificação; ela não encoraja o pecado nem contradiz suas próprias advertências.
Gratuita, suspeita, nefasta. A teoria da iluminação final não tem a menor chance de ser verdadeira. É necessário esquecer bem depressa essa invenção dos homens acerca de realidades que lhes escapam totalmente e que eles não poderiam conhecer senão por Revelação divina. Mais vale converter-se do que se tranquilizar, mais vale rogar pelos pecadores que enganá-los sobre o estado deles. Sejamos instrumentos da verdadeira misericórdia de Deus, não propagadores das falcatruas dos homens.
Tradução por Felipe Coelho.
Deixe um comentário