UMA DISTINÇÃO ILUSÓRIA, UMA CONCLUSÃO INDEVIDA SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA

À esquerda, o Pe. Bernard Lucien, e à direita, o Pe. Hervé Belmont.

Pe. Hervé Belmont | 1992

Depois de redigir muitas obras de doutrina clara e vigorosa, consagradas à defesa e aplicação da fé católica em nossos tempos de crise e apostasia, o Sr. Pe. Bernard Lucien acaba de operar uma radical mudança de orientação.

Ele torna público, com efeito, que ele agora está convicto de que não há contradição entre a doutrina católica condenatória da liberdade religiosa – condenatória da afirmação segundo a qual todo homem tem direito à liberdade civil em matéria religiosa – e o ensinamento do Vaticano II que afirma a existência de um tal direito. Ele declara, por conseguinte, não aderir mais à “Tese de Cassicíaco”, tese segundo a qual a Igreja Católica está atualmente carente da autoridade do Soberano Pontífice e de tudo aquilo que dela decorre, ficando salva a permanência material da hierarquia. Ele reconhece, portanto, autoridade pontifícia a João Paulo II e autoridade doutrinal ao Vaticano II.

Esse segundo ponto é simplesmente evocado sem maiores precisões, ao passo que o primeiro é um pouco desenvolvido. O Pe. Lucien apela aí à distinção entre agir segundo a própria consciência e agir como quiser: segundo ele, enquanto Gregório XVI e Pio IX condenam os que afirmam a existência de um direito à liberdade de agir (em matéria religiosa) como se queira, o Vaticano II nada mais faz que ensinar o direito à liberdade de agir segundo a própria consciência; não haveria, pois, contradição.

Querendo-se examinar essa nova posição, há então duas perguntas a fazer:

– é verdade que a distinção proposta pelo Pe. Lucien permite resolver a contradição?
– segue-se daí que a “Tese de Cassicíaco” não pode mais ser considerada verdadeira, como a adequada explicação da situação da Igreja Católica desde o Vaticano II?

Se a resposta de ao menos uma dessas duas questões for negativa, é preciso recusar seguir o Pe. Lucien na nova via em que ele se engaja.

1. A crise da Igreja não se reduz unicamente à questão da liberdade religiosa

A segunda questão não é nova. Quando o Padre de Blignières e o priorado Santo Tomás de Aquino operaram, em 1987-1988, a mesma virada de casaca que o Pe. Lucien hoje, este último redigira uma primeira refutação, para a qual ele me havia pedido uma introdução. Recordava esta que a crise da Igreja não pode ser reduzida unicamente à questão da liberdade religiosa, e que a “Tese de Cassicíaco”, que procura analisar essa crise à luz da fé, não se fundamenta somente, nem sequer principalmente, na contradição da liberdade religiosa. O Pe. Lucien, em epílogo a essa obra, retomava por sua conta essa maneira de ver. É tanto mais surpreendente vê-lo opinar hoje em sentido inverso, quanto, do ponto de vista da fé, nada mudou fundamentalmente nos últimos quarenta anos. Apresentamos a referida introdução, seguida do epílogo do Pe. Lucien:

« Introdução

Em carta intitulada “Nouvelles de la société Saint-Thomas-d’Aquin” [Novidades da Sociedade Santo Tomás de Aquino] (inverno de 1988), o Pe. Louis-Marie de Blignières dá a conhecer a mudança de orientação que o priorado Santo Tomás de Aquino acaba de operar.

Eis como pode ser resumido este anúncio:

Nossas investigações convenceram-nos de que não há contradição entre o ensinamento do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, por um lado, e as condenações emanadas pelos papas do século passado contra a liberdade de consciência e de cultos, de outro lado.

Como consequência disso, nós não aderimos mais à ‘Tese de Cassicíaco’ – que afirma que a Igreja está atualmente carente da Autoridade do Soberano Pontífice e daquilo que dela decorre, ficando salva a permanência material da hierarquia – e nós reconhecemos, portanto, a autoridade pontifical de João Paulo II e a autoridade doutrinal do Concílio Vaticano II.

O Pe. Bernard Lucien analisará logo adiante a argumentação que tenta mostrar a ausência de contradição; essa argumentação – que, na realidade, não traz nenhum elemento verdadeiramente novo – é apenas esboçada na carta de que se trata aqui: ela se vê desenvolvida numa brochura do frade Dominique-Marie de Saint-Laumer incluída na mesma remessa.

O propósito desta introdução é recordar que a questão da crise da Igreja e da situação da autoridade não tem como ser reduzida unicamente o ponto da liberdade religiosa, que não é mais do que um elemento – importantíssimo, certamente – de um conjunto muito mais vasto.

Ficamos estarrecidos que a nova convicção dos religiosos de Chémeré sobre a liberdade religiosa ponha em causa a sua análise da situação da autoridade na Igreja; tamanha fragilidade intelectual poderia fazer suspeitar de que eles nunca aderiram verdadeiramente à “Tese de Cassicíaco”, ou ao menos que eles não tenham retido dela mais do que um esquema intelectual que se esfacelou quando a sua convicção mudou. Já a realidade, ah!, ela não muda tão depressa quanto o espírito de um dominicano. Dado que é nesta realidade, por ela observada e analisada teologicamente, que se funda dita “Tese de Cassicíaco”, não há razão objetiva de pô-la em questão.

A realidade é que o povo cristão como um todo perdeu a fé. Claro que só Deus sonda os rins e os corações, mas é observável e certo que a maioria dos cristãos não professa mais a fé da Igreja, nem no seu modo de viver, nem nas suas palavras quando interrogados sobre sua adesão a esta ou aquela verdade pertencente ao depósito revelado.

A realidade é que esta “apostasia imanente”, segundo a expressão de Maritain, foi querida por aqueles que deveriam tê-la impedido e que, pelo contrário, introduziram e em seguida – quando os efeitos ficaram visíveis – mantiveram suas causas. Certamente que o estado presente do mundo e as técnicas de escravidão às ideologias reinantes e corruptoras da fé não facilitam a vida cristã. Mas, precisamente, é para este mundo que os cristãos foram empurrados pela hierarquia e segundo o espírito do Vaticano II. Eles ficaram desarmados, abandonados, privados do ensinamento da doutrina católica, desfigurada por numerosos catecismos e pregações, face ao desencadeamento da heresia que encontrou muita cumplicidade aberta e oficial no seio da Igreja.

A realidade é uma reforma litúrgica infestada do espírito do protestantismo; reforma que não é nem fruto nem expressão da fé da Igreja; reforma que faz o povo cristão perder o sentido da infinita santidade de Deus ao esvaziar os testemunhos exteriores de adoração e desviar a liturgia para o “culto do homem”.

A realidade é que a doutrina da liberdade religiosa não é um acidente isolado em meio a uma exposição irrepreensível da doutrina católica, nem uma imperícia sem consequências surgida por acaso em céu sereno, e bem depressa esquecida. A liberdade religiosa está na origem da renegação dos últimos Estados católicos, ela está no coração do alinhamento da Igreja com o mundo, ela é uma doutrina em perfeita ressonância com o ecumenismo escandaloso, e negador da santa fé católica, praticado por João Paulo II, e do qual é oportuno recordar alguns exemplos:

– “É com grande alegria que vos dirijo minha saudação, a vós, muçulmanos, nossos irmãos na fé no Deus único” [Paris, 30 de maio de 1981]; declaração a Hassan II, “comendador dos crentes”: “Nós temos o mesmo Deus” [Casablanca, 19 de agosto de 1985];
– “Hoje, eu venho a vós pelo patrimônio espiritual de Martinho Lutero, eu venho como peregrino” [Mayence, 17 de novembro de 1980];
– assistência ativa e pregação a um ofício luterano [Roma, 11 de dezembro de 1983];
– recepção de uma delegação do B’nai B’rith (ramo da anticatólica franco-maçonaria, reservado unicamente aos judeus) falando de um “reencontro entre irmãos” [Roma, 17 de abril de 1984];
– representação na colocação da pedra fundamental de uma mesquita [Roma, 11 de dezembro de 1984];
– assistência a ritos animistas na “floresta santa” [Lomé, Togo, 8 de agosto de 1985];
– Recepção do “sinal do tilak” de uma sacerdotisa hindu [Índia, 2 de fevereiro de 1986];
– visita à sinagoga de Roma, e participação ativa no ofício [14 de abril de 1986];
– organização da reunião de Assis [27 de outubro de 1986].

A realidade é que, de fato, os que querem conservar a fé católica, confessá-la integralmente e produzir as obras dela não podem fazê-lo senão contra a autoridade, ou ao menos à margem dela.

A realidade é que os autores ou fautores de heresia e de imoralidade vivem tranquilamente nas estruturas conciliares, e que o franzir as sobrancelhas a que alguns espalhafatosos foram sujeitos não constitui em nada uma defesa e promoção da fé católica.

A realidade é que a inteligência da fé é destruída pela invasão do personalismo, que é a filosofia subjacente, empregada pelos textos do Vaticano II. O personalismo, que desde há muito envenenou o pensamento católico, é a filosofia dos direitos do homem, da abertura para o mundo, da liberdade religiosa e do ecumenismo, a filosofia que arrastou o povo cristão a pensar e argumentar à margem da luz da fé católica e que, em retorno, solapa esta.

Essa situação é incompatível com a existência da Autoridade Pontifícia em Paulo VI e João Paulo II, em razão da promessa de assistência que Jesus Cristo fez aos Apóstolos e a seus sucessores: aí está o que enuncia e demonstra a Tese de Cassicíaco, que, como se vê, tem um fundamento muitíssimo mais amplo que só o caso da liberdade religiosa.

Certamente que esta constitui um caso extremo no qual é fácil de mostrar a incompatibilidade radical entre o comportamento de Paulo VI e João Paulo II e a posse da Autoridade Pontifícia. Mas a Tese de Cassicíaco foi elaborada e afinada pelo Rev. Pe. Guérard des Lauriers sem explorar o caso da liberdade religiosa, e aqueles que a expuseram, explicaram, defenderam ou ilustraram nunca a reduziram assim – ainda que tenham posto a ênfase – a este ponto particular que permite observar como que “in vitro” a situação do fiel na crise da Igreja.

Estas são as primeiras reflexões que acorrem ao espírito por ocasião da leitura dessa carta em que o Padre de Blignières expõe as razões de uma reviravolta; era bom recordar a realidade eclesial, e assim mostrar que a inferência entre, por um lado, a ausência de contradição sobre a liberdade religiosa (seja como for quanto a esta, que o Pe. Lucien examinará) e, por outro lado, a presença atual da Autoridade na cabeça da Igreja, é ilegítima. »

E agora o epílogo do Sr. Pe. Lucien:

« Epílogo

Não podíamos, num estudo destinado a esclarecer os fiéis conturbados e escandalizados pela reviravolta de “Chémeré”, analisar em detalhe todos os erros e falsas perspectivas contidas na brochura do frade Dominique-Marie de Saint-Laumer.

Cremos haver demonstrado suficientemente, sobre os dois pontos essenciais, que a argumentação dele é sem alcance. O leitor julgará.

Mas, acima de tudo, que o fiel católico não se esqueça da realidade que se esparrama diante de seus olhos.

A defecção dos que ocupam a Sé Pontifícia, desde o Vaticano II, é antes de tudo um fato incessantemente manifestado pela multiplicação dos atos e das omissões contrários ao bem sobrenatural da Igreja, e pela inércia cúmplice e generalizada perante a evidente destruição que se realiza no seio da Igreja.

Devemos todos pedir a graça de resistir ao Inimigo, “fortes na fé”, e de ”perseverar até o fim”, sem omitir de rogar ao Senhor pelo retorno daqueles que ainda ontem combatiam o “bom combate da fé” mas que acabam de se entregar, para que eles “se arrependam e retornem às suas primeiras obras”. Ut in omnibus honorificetur Deus. »

2. A nova distinção do Pe. Lucien

Cumpre agora responder à primeira questão, reproduzindo a distinção que constitui o essencial da argumentação do Pe. Lucien [A], examinando o ensinamento real do Vaticano II [B], recordando o sentido e o alcance das condenações de Gregório XVI e Pio IX [C] e trazendo algumas confirmações daquilo que afirmamos [D].

[A] A distinção

Eis como o Pe. Lucien propõe resolver a contradição entre a declaração Dignitatis Humanæ do Vaticano II e as condenações dos Papas Gregório XVI e Pio IX:

« O que não se viu

Uma diferença essencial entre o direito afirmado por Dignitatis Humanæ e aquele condenado por Gregório XVI e Pio IX foi negligenciada.

Dignitatis Humanæ afirma o direito à liberdade de agir (em matéria religiosa) segundo a sua consciência.

Os dois papas citados negam a existência de um direito à liberdade de agir (em matéria religiosa) como se quer.

(Verificar-se-á facilmente esses dois pontos referindo-se à frase central de Dignitatis Humanæ para o primeiro, e aos dois primeiros capítulos de meu livro sobre a liberdade religiosa para o segundo. Ver também abaixo, partes 5 e 6.)

Ora, é inteiramente possível, e mesmo frequente, que um homem aja como ele quer, sem agir conforme a sua consciência. Muitas vezes, com efeito, o pecador age contra a sua consciência (noutros casos, o pecador age segundo a sua consciência culpavelmente errônea). Além disso, em cada homem, o juízo de consciência é exercido pela razão prática, que apreende antes de tudo os princípios gerais da ordem moral. Esse conhecimento dos princípios gerais varia com as pessoas, sobretudo segundo as condições do entorno social e da educação, ou ainda outros dados mais individuais, sendo tudo isso observável do exterior. E assim, ao menos quanto a uma parte e em certos casos, é possível julgar prudentemente do exterior (supondo que se tenha uma razão legítima para fazê-lo) se uma pessoa age ou não segundo a sua própria consciência.

Logo, o direito de agir como se quiser é formalmente diferente do direito de agir conforme a própria consciência, e concretamente concede muito mais, em termos de isenção de coação.

Logo, não há contradição entre a condenação do primeiro e a afirmação do segundo. »

[B] O ensinamento do Vaticano II

Retomemos o segundo parágrafo da Dignitatis Humanæ, no qual vem definida a liberdade religiosa tal como a entende o Vaticano II:

“O Concílio do Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Essa liberdade consiste nisto: todos os homens devem estar subtraídos à coação por parte tanto dos indivíduos quanto dos grupos sociais e de qualquer poder humano que seja, de tal maneira que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência nem impedido de agir segundo a sua consciência, tanto em privado quanto em público, sozinho ou associado a outros, dentro de justos limites.”

O Pe. Lucien sublinha que unicamente o direito tal como é definido nesta passagem está presente como objeto direto do ensinamento conciliar e como fundado na Revelação, e que portanto só ele é decisivo. É verdade, com a condição de fazer a precisão de que um documento de tal importância deve ser lido como um todo coerente (coisa que ele é), e que, em particular, os desenvolvimentos e as consequências que são tiradas dessa primeira afirmação vão permitir-nos precisar o sentido dela, e determinar o significado da expressão “segundo a sua consciência” que está em causa aqui. Isso é tanto mais necessário quanto, no parágrafo 9.º da declaração, após essas consequências terem sido enunciadas, é reafirmado que essa doutrina está enraizada na Revelação.

Ora, o documento inteiro mostra que o Vaticano II realmente entende não fazer o direito à liberdade religiosa depender de uma disposição subjetiva, do fato de que a própria consciência seja seguida ou não seja seguida, do fato de que a consciência seja errônea ou não o seja, do fato de que o erro da consciência seja moralmente imputável ou não.

É o que afirma o final do mesmo segundo parágrafo da declaração conciliar:

“Logo, não é numa disposição subjetiva da pessoa, mas na sua própria natureza, que se funda o direito à liberdade religiosa. Por isso, o direito a essa imunidade persiste inclusive naqueles que não satisfazem à obrigação de procurar a verdade e de aderir a ela…”

Eis um comentário autorizado dessa precisão, pois emanado do Cardeal Béa, então presidente do Secretariado para a União dos Cristãos, que estava encarregado da redação da Dignitatis Humanæ (Rivista del clero italiano, maio de 1966, La Documentation Catholique de 3 de julho de 1966, col. 1186):

“Noutros termos, igualmente o direito daquele que erra de má-fé permanece completamente a salvo, com a condição de respeitar a ordem pública, condição que vale para o exercício de todo e qualquer direito, como se verá mais adiante. E o documento conciliar lhe dá esta razão peremptória: este direito ‘não se funda […] numa disposição subjetiva da pessoa, mas na natureza dela’; logo, não pode ser perdido em razão desta ou daquela condição subjetiva, pois estas não mudam nem podem mudar a natureza do homem.”

Mais autorizada ainda é a interpretação que lhe dá João Paulo II, em discurso ao quinto colóquio internacional de estudos jurídicos:

“Este direito é um direito humano e, portanto, universal, pois não decorre da ação honesta das pessoas ou de sua consciência reta, mas das pessoas mesmas, isto é, de seu íntimo ser, o qual, nos seus componentes constitutivos, é essencialmente idêntico em todas as pessoas. Trata-se de um direito que existe em cada pessoa e que existe sempre, mesmo na hipótese de ele não ser exercido ou de ser violado pelos sujeitos mesmos nos quais ele é inerente.” (10 de março de 1989. La documentation catholique n.º 1974, página 511)

Portanto, cumpre manter que a expressão “segundo a sua consciência” que figura na afirmação do direito à liberdade religiosa tem o sentido que lhe é dado geralmente no mundo contemporâneo: “segundo a sua decisão íntima e pessoal, da qual não tem de prestar contas aos homens”, independentemente de qual seja a qualificação moral dessa decisão. É nesse sentido que se exprime o primeiro parágrafo da declaração:

“A dignidade da pessoa humana é, em nossos tempos, objeto de uma consciência cada vez mais viva; cada vez mais numerosos são aqueles que reivindicam para o homem a possibilidade de agir em virtude de suas próprias opções (proprio suo consilio) e com responsabilidade inteiramente livre; não sob pressão de coação, mas guiado pela consciência de seu dever.”

Essa equivalência entre “segundo a sua consciência” e “segundo a sua própria vontade” se reencontra ao longo do documento inteiro, que aliás é incompreensível caso não se a admita. Com efeito, Dignitatis Humanædeclara o direito à liberdade religiosa para os grupos e comunidades – que, enquanto tais, não têm consciência – assim como para os indivíduos. Isso é precisado no título e desenvolvido nos parágrafos 4.º e 5.º do documento conciliar.

Mas é, sobretudo, o sexto parágrafo que torna impossível de compreender “segundo a sua consciência” em sentido clássico e restritivo. Esse parágrafo enuncia, com efeito, a liberdade (civil) de apostatar:

“Segue-se que não é permitido ao poder público, por força, intimidação ou outros meios, impor aos cidadãos a profissão ou a rejeição da religião que for, nem impedir alguém de ingressar numa comunidade religiosa ou de a abandonar.”

Ora, segundo a teologia católica mais certa, é impossível para um católico abandonar “segundo a sua consciência” a Santa Igreja; assim ensina o Concílio Vaticano I:

“A condição daqueles que aderiram à verdade católica graças ao dom celeste da fé é completamente diferente da condição dos que, conduzidos por opiniões humanas, seguem uma falsa religião; aqueles que receberam a fé sob o Magistério da Igreja nunca podem ter motivo justo de mudar ou de pôr em dúvida esta fé.” (20 de abril de 1870. Denzinger n.º 1794)

Esse mesmo parágrafo 6.º da declaração opõe-se à prática secular da Igreja que exige que uma discriminação social seja feita por motivo puramente religioso, a saber: a isenção do serviço militar e dos tribunais civis para os clérigos:

“O poder civil deve velar que a igualdade jurídica dos cidadãos, a qual por sua vez pertence ao bem comum da sociedade, jamais seja lesada, de maneira aberta ou larvada, por motivos religiosos, e que, entre eles, nenhuma discriminação seja feita.”

O próprio Pe. Lucien mostra que faz uma leitura errônea da definição conciliar da liberdade religiosa, quando ele afirma:

“Corretamente entendida, a afirmação de Dignitatis Humanæ não põe em causa de forma essencial a prática da Igreja na Cristandade.”

Essa prática, que consistia em opor-se à liberdade religiosa dos acatólicos, é porém explicitamente recusada pelo parágrafo 6.º da declaração conciliar:

“Se, em razão de circunstâncias particulares nas quais se encontrem os povos, um reconhecimento civil especial é concedido na ordem jurídica de uma cidade a uma dada comunidade religiosa, é necessário que simultaneamente o direito à liberdade em matéria religiosa seja reconhecido e respeitado por todos os cidadãos e todas as comunidades religiosas.”

Podemos, portanto, concluir disso que a afirmação do Vaticano II não é “corretamente entendida” pelo Pe. Lucien. A expressão “segundo a sua consciência” não é uma restrição da liberdade religiosa – a qual é “para todos os cidadãos e todas as comunidades religiosas” (§ 6. 2). A integralidade do desenvolvimento da doutrina sobre a liberdade religiosa faz abstração da cláusula “segundo a sua consciência” e contradiz mesmo o sentido tradicional dessa expressão. Após o quê, o Vaticano II declara (§ 9):

“Esta doutrina da liberdade tem suas raízes na Revelação divina, o que, para os cristãos, é um título a mais para serem santamente fiéis a ela.”

[C] As condenações de Gregório XVI e Pio IX

O Pe. Lucien afirma que os Papas do século XIX condenaram o direito à liberdade de agir como se quer. A expressão não se encontra neles, por isso o Pe. Lucien recorre à investigação lexicográfica de sua obra sobre a liberdade religiosa (páginas 27 a 32) para afirmar que a locução “liberdade de consciência” tem de fato esse sentido na época deles; ele vê aí no mínimo uma “forte presunção”. Se, no entanto, nós a retomamos ponto por ponto, podemos nos dar conta de que, dentre 14 referências, 5 fazem a precisão “segundo aquilo que se crê verdadeiro” ou algo de equivalente, 2 fazem a precisão “como se queira” e 7 não fazem precisão alguma. Isso mostra que a expressão passa facilmente de uma coisa à outra (assim como o Vaticano II quanto à liberdade religiosa) e na realidade faz abstração do fato de que se siga ou não à própria consciência.

Parece-nos isto, aliás, inteiramente normal, pois a ordem legislativa e jurídica da sociedade não pode estar fundada num estado de consciência, nem condicionada por ele; o direito público não se refere senão ao bem comum e objetivo.

Logo, há realmente identidade entre a liberdade de consciência das condenações da Igreja e a liberdade religiosa do Vaticano II. Em parte nenhuma, com efeito, Gregório XVI ou Pio IX excluem, das condenações que eles fulminam, o direito de quem segue a própria consciência ou algo de similar; suas condenações têm alcance geral, assim como a afirmação da Dignitatis Humanæ. Trata-se em ambos os casos da liberdade religiosa, pura e simplesmente.

[D] Confirmações

Passagens numerosas do livro do Pe. Lucien sobre a liberdade religiosa conservam toda a sua força para mostrar a perversidade da liberdade religiosa, mesmo que se admita a distinção que ele propõe agora:

“Segundo a doutrina tradicional, a verdade religiosa, e concretamente a posse em comum dessa verdade, assim como a prática comum da verdadeira religião, são um elemento primordial do bem comum. E é por isso que, de si, a propaganda do erro religioso é contrária ao bem comum: donde a impossibilidade de um direito natural, de um direito da pessoa, à liberdade em matéria religiosa” (página 283).

“Gregório XVI não se contenta de rejeitar uma liberdade ilimitada das opiniões, sem maiores precisões. Ele indica, da forma mais explícita possível, o modo de determinar o justo limite: o que é funesto é a liberdade do erro; faz-se necessário um freio, a autoridade com o poder coercitivo dela, para manter os homens no caminho da verdade” (página 38).

Dado que se trata do bem comum e da ordem legislativa, as disposições subjetivas não entram em consideração. Se o erro religioso for pregado, a boa fé do pregador não diminuirá as devastações nas almas e na sociedade (pode ser que muito pelo contrário). O bem comum nem por isso será menos lesado, e é todavia ele que a lei deve promover.

Conclusão

A distinção proposta pelo Pe. Lucien é, por um lado, ausente das condenações proferidas pela Igreja e, por outro lado, puramente verbal. Ela é real por si, claro está, mas ela não teria como o ser, nem nas afirmações do Vaticano II, nem com relação à ordem jurídica e legislativa – pois é bem disso que se trata –, a qual não pode ser fundada num estado de consciência ou condicionada por ele, nem com respeito ao bem comum que a lei deve promover.

A contradição entre o Vaticano II e a doutrina católica permanece, portanto, inteira.

Havendo respondido com um “não” às duas questões exigidas pelo exame da carta do Pe. Lucien, nós nos recusamos a segui-lo duplamente. Não é sem particular tristeza com sua defecção, e, como no epílogo que reproduzimos acima ele exortava a “rogar ao Senhor pelo retorno daqueles que ainda ontem combatiam o ‘bom combate da fé’ mas que acabam de se entregar, para que eles ‘se arrependam e retornem às suas primeiras obras’”, nós lhe aplicaremos a lei do talião rezando por ele com fervor e perseverança.

P.S. Encontra-se confirmação da refutação ao Pe. Lucien no artigo de um partidário convicto da liberdade religiosa, mas que conserva uma certa moderação, o Pe. John Courtney Murray s.j. (Nouvelle revue théologique, 1966, n.º 1, pp. 41-67).

Página 47: “Na fórmula da declaração ‘juxta conscientiam’, ou ‘contra conscientiam’, o sentido do termo consciência combina com o sentido da fórmula inicial segundo o seu próprio juízo e livremente. O sentido, portanto, não é técnico; ele está suficientemente abonado pelo uso popular.”

Ibid. “A questão da verdade ou do erro da consciência não tem relação nenhuma com o problema jurídico-social da liberdade religiosa. Essa liberdade se exerce na sociedade civil. Ora, não há autoridade nenhuma na sociedade civil, nem sequer o poder do Estado, que esteja em condições de emitir juízo sobre a verdade ou o erro da consciência dos homens.”

Trad. por Felipe Coelho.

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