S. Agostinho de Hipona | século IV ou V
XVIII
59. … [D]ado que não se sabe com que intenção procedem os homens ao buscar as coisas necessárias para o futuro, ou ao reservá-las quando não há necessidade de consumi-las imediatamente, uma vez que as podem buscar ou reservar com coração simples ou com coração dúplice, disse muito bem o Senhor em seguida: Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, segundo o juízo com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também a vós (Mt 7,1-2). Não creio que nos preceitue, neste passo, outra coisa que o interpretar no melhor sentido o que não sabemos com que intenção se faz. O que está escrito: Vós os conhecereis pelos seus frutos (Mt 7,20), refere-se ao que patentemente não se pode fazer com boa intenção, como os comércios carnais ilícitos, as blasfêmias, os furtos, as bebedeiras e coisas semelhantes, de todas as quais nos é permitido julgar, como diz o Apóstolo: Porque que me importa a mim julgar aqueles que estão fora [da Igreja]? Porventura não julgais vós aqueles que estão dentro? (1Cor 5,12). Quanto ao gênero dos alimentos, uma vez que se pode comer qualquer comida própria dos homens com boa intenção e coração simples, e pois sem pecado de concupiscência, proíbe o Apóstolo sejam julgados os que comem carne e os que bebem vinho pelos que se abstêm de tais alimentos. O que come – diz – não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o recebeu. E acrescenta: Quem és tu para julgar o servo alheio? Se ele está de pé ou cai, isso é com o seu senhor (Rm 14,3-4). Di-lo porque, tratando-se de coisas que se podem fazer com intenção boa, simples e magnânima – conquanto também se possam fazer com intenção má –, queriam eles, os romanos, sendo somente homens, julgar das intimidades do coração que só Deus pode julgar.
60. Também a isto se refere o que diz ele alhures: Não julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não só porá às claras o que se acha escondido nas trevas, mas ainda descobrirá os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o louvor [que lhe é devido] (1Cor 4,5). Assim, há certas obras intermédias que se fazem com intenção que não conhecemos, dado poderem-se fazer com intenção ou má ou boa, e que, portanto, é temerário julgar, e ainda mais condenar. Virá o tempo em que serão julgadas, quando Ele não só porá às claras o que se acha escondido nas trevas, mas ainda descobrirá os desígnios dos corações. Diz, ademais, em outra passagem, o Apóstolo: Os pecados de alguns homens são manifestos [mesmo] antes de se examinarem em juízo; mas os de outros manifestam-se somente depois (1Tm 5,24). Chama manifestos àqueles pecados cuja intenção é indubitável; estes precedem ao juízo, ou seja: sendo o juízo posterior a estes pecados, não será temerário. São posteriores, em contrapartida, os pecados ocultos, que no devido tempo serão julgados. E deve pensar-se também assim a respeito das obras boas: Igualmente as boas obras são manifestas; e as que o não são ainda, não podem permanecer ocultas (1Tm 5,25). Em suma, julguemos dos atos manifestos, e deixemos para Deus o juízo dos ocultos: estes, sejam bons, sejam maus, poderão permanecer ignorados até chegar o tempo de se manifestarem.
61. Há duas ocasiões em que devemos evitar o juízo temerário: quando não se sabe com certeza com que intenção se fez uma coisa, e quando se ignora como será futuramente o que agora aparece como bom ou como mau. Assim, por exemplo, se alguém, queixando-se do estômago, deixou de jejuar, e tu, não acreditando nele, o atribuíste à glutonaria, terás julgado temerariamente. Da mesma forma, se percebes em alguém manifesta glutonaria ou manifesto vício de bebida, e o repreendes como se nunca pudesse corrigir-se ou mudar, não menos terás julgado temerariamente. Não repreendamos, por conseguinte, as ações que se fizeram com intenção que não conhecemos, nem ponhamos em dúvida a emenda do autor das que são manifestamente censuráveis; evitaremos assim o juízo de que agora Ele nos fala: Não julgueis, para que não sejais julgados (Mt 7,1).
62. Pode chamar-nos a atenção o que Nosso Senhor em seguida acrescenta: Pois, segundo o juízo com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também a vós (Mt 7,2). Se cometemos juízo temerário, por acaso nos julgará temerariamente Deus a nós? Ou, se medimos com medida injusta, porventura terá Deus uma igual para medir-nos a nós? Digo isto porque compreendo por medida o próprio juízo. De modo algum são temerários os juízos de Deus, nem a ninguém aplica Ele nenhuma medida injusta. Inequivocamente, o sentido de tais palavras é que a mesma temeridade com que ofendes a outrem haverá de ser teu próprio castigo; não penses jamais, portanto, que a injustiça prejudica tão só o que é sua vítima e não o que é seu autor. Mais ainda: muitas vezes não prejudica o que sofre a ofensa, senão que necessariamente se volta contra o mesmo ofensor. Que mal, com efeito, causou aos mártires a maldade de seus perseguidores? Aos próprios perseguidores, porém, grandíssimo mal. Conquanto alguns deles tenham acabado por corrigir-se, enquanto eram perseguidores, todavia, estavam enceguecidos por sua própria malícia. Assim, não raro o juízo temerário não prejudica o que é julgado temerariamente, ao passo que o que temerariamente julga é prejudicado por sua própria temeridade. E neste mesmo sentido, a meu ver, é que se disseram as palavras seguintes: Todos os que tomarem espada morrerão à espada (Mt 26,52). Mas não é certo que muitos tomaram espada e, no entanto, não morreram à espada, como não morreu o mesmo Pedro? Não obstante, para que ninguém pense que este se livrou de tal pena por lhe terem sido perdoados os pecados – conquanto nada mais absurdo que pensar que poderia ter sido maior a pena da espada, não sofrida por Pedro, que a pena da cruz, que ele indubitavelmente sofreu –, que se dirá dos ladrões que foram crucificados com o Senhor? Porque o que mereceu o perdão, mereceu-o após ter sido crucificado; e o outro absolutamente não o mereceu. Por acaso estes dois ladrões tinham crucificado todos aqueles a que tinham tirado a vida, tendo sido esta a causa mesma de merecerem eles próprios morrer na cruz? É risível pensá-lo. Que outro motivo, pois, há para dizer: Todos os que tomarem espada morrerão à espada senão que a alma perece vítima de seu próprio pecado?
XIX
63. E, uma vez que aqui nos adverte o Senhor quanto ao juízo temerário e injusto – pois quer que tudo quanto fizermos seja feito com coração simples e voltado unicamente para Deus; ademais, ignoramos com que intenção se fazem muitas obras, razão por que seria temerário julgá-las; e, já que os que temerariamente julgam do que desconhecem e facilmente censuram são os que antes que emenda e correção buscam injuriar e fazer mal, vício próprio da soberba ou da inveja –, acrescenta o seguinte: E por que vês tu a aresta no olho de teu irmão, e não vês a trave no teu olho? (Mt 7,3). E tal se dá quando, diante de um pecado do próximo, alguém o repreende por ódio. Quanta distância entre a aresta e a trave, ou seja, entre a ira e o ódio! Com efeito, o ódio é ira inveterada, tão robustecida, por assim dizer, pela longa duração, que justissimamente pode chamar-se viga. O que se encoleriza contra outrem pode concomitantemente desejar-lhe a emenda, mas aquele que odeia não lha pode querer.
64. Ou como dizes a teu irmão: Deixa-me tirar-te do olho uma aresta, tendo tu no teu uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás para tirar a aresta do olho do teu irmão (Mt 7,4-5). Ou seja: primeiro livra-te do ódio, e já depois poderás corrigir a quem amas. E com toda a sua justiça diz o Senhor: Hipócrita. Acusar os delitos é um dever de todo e qualquer varão bom e benévolo, e, quando o fazem os maus, desempenham papel alheio, assim como procedem os hipócritas, que escondem atrás da máscara o que são enquanto ostentam o que não são. Por hipócritas, portanto, há que entender os fingidores, esse gênero de gente molesta com que devemos ter sempre cuidado, e que, conquanto seja por ódio ou por inveja que se atribui a tarefa de acusar todos os vícios, pretende aparecer como conselheira. Estejamos piedosa e prudentemente atentos, por conseguinte, para que, quando a necessidade nos obrigue a repreender ou censurar alguém, pensemos primeiramente se nós mesmos já não tivemos o vício de que se trata ou até se ainda não o temos; e, se o tivemos e já não o temos, lembremo-nos da fraqueza comum, a fim de que a repreensão ou censura se preceda não de ódio, mas de misericórdia; e, siga-se quer a emenda daquele que repreendemos ou censuramos, quer sua perversão (dado ser incerto o resultado), estaremos certos da simplicidade do ângulo por que o vimos. Se, todavia, refletindo acerca de nós mesmos, julgamos que somos culpados da mesma culpa em que caiu aquele a quem pretendíamos repreender ou censurar, não o repreendamos nem censuremos, mas choremos com ele, e não o exortemos a obedecer-nos, mas a esforçar-se por emendar-se junto com nós mesmos.
65. E fiz-me judeu com os judeus – dizia o Apóstolo – para ganhar os judeus; com os que estão sob a lei, [fiz-me] como se estivesse sob a lei (não estando eu sob a lei), para ganhar aqueles que estavam sob a lei; com os que estavam sem lei, [fiz-me] como se estivesse sem lei (não estando sem lei de Deus, mas estando na lei de Cristo), para ganhar os que estavam sem lei. Fiz-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar a todos (1Cor 9,20-22). E dizia isto não por fingimento – ao contrário de como pretendem alguns entendê-lo, para que seu próprio fingimento se abone por exemplo tão autorizado –, mas por caridade, que o fazia considerar como sua a fraqueza daquele a quem queria socorrer. E confirma-o ele próprio ao dizer: Sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos, para ganhar um maior número (1Cor 9,19). E, para que compreendamos que dizia isto não por fingimento, mas precisamente por essa caridade que nos impele a compadecer-nos dos fracos como se fracos fôssemos nós mesmos, diz-nos alhures: Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; convém somente que não façais desta liberdade um pretexto para viver segundo a carne; mas servi-vos uns aos outros pela caridade (Gl 5,13), o que não pode dar-se senão se cada um considera a fraqueza do próximo como sua, e a suporta com toda a equanimidade, até que se livre dela aquele cuja salvação se busca.
66. Assim, só raramente, ou melhor, só em caso de extrema necessidade, devemos recorrer à repreensão, buscando, ainda assim, como sempre, que não sejamos servidos nós mesmos, mas Deus, já que é Ele o fim único; e, para que não façamos nada com duplicidade de coração, há sempre que tirar de nosso próprio olho a viga da inveja, da malícia e do fingimento, a fim de que, vendo agora, possamos tirar a aresta do olho do irmão. Olhá-la-emos, então, com olhos de pomba, como se diz são os olhos da Esposa de Cristo (Ct 4,1), a que Deus escolheu para Si, a gloriosa Igreja, sem mácula nem ruga (Ef 5,27), ou seja, santa e imaculada*.
* Escreveria Santo Agostinho: “Não quis dizer com isto que já o seja completamente, conquanto não haja dúvida de que foi escolhida para sê-lo quando tornar a aparecer Cristo, que é sua vida. Então também ela aparecerá, com Ele, na glória. E em razão desta glória é que se chama Igreja gloriosa” (Retractationum Libri Duo, liv. I, cap. 19, n. 9).
Transcrito de SANTO AGOSTINHO; Sobre o Sermão do Senhor na Montanha, Editora Filocalia, 2017, trad. por Carlos Nougué.
Obrigado pelo post e me levou ao livro citado e acabei de comprar na Amazon. É um tema que sempre esbarramos com os modernistas e suas obras de malabarismo mental para defender tudo.
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