Pe. Bernard Lucien | 1984
Anexo I de seu estudo:
L’Infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église
[A Infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal da Igreja]
(Nice: Éditions Association Saint-Herménégilde,
Documents de Catholicité, 1984, vi+158p.,
pp. 113-127:
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O OBJETO SECUNDÁRIO DA INFALIBILIDADE DO MAGISTÉRIO (p. 113)
– A questão (p. 115)
– O que está decidido pela Igreja e o que é discutido livremente (p. 116)
– A doutrina da Igreja (p. 117)
– Complemento e confirmação: o “Projeto Kleutgen” (p. 122)
– Resumo – Conclusão (p. 126)
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A questão
“Deve ser crido com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra de Deus, quer escrita ou transmitida, e que a Igreja, quer com juízo solene ou com seu magistério ordinário e universal, propõe a ser crido como divinamente revelado.” (D. 1792).
Demonstramos que esta declaração da Dei Filius afirma, e define implicitamente, a existência de um modo de exercício ordinário do magistério infalível. Essa afirmação, contudo, se acha contida num parágrafo que visa ensinar qual é o objeto material da fé (Cf. pág. 39). Os Padres do concílio julgaram não poder explicar isso de maneira precisa sem tomar como critério a proposição pela Igreja. É ela, efetivamente, que com seu magistério vivo está encarregada de dar a conhecer infalivelmente aos homens de todas as épocas o conteúdo da Revelação. Como foi dito muitas vezes, Jesus não escreveu livros, mas fundou uma Igreja que tem o poder de falar em Seu nome: “Quem vos escuta, a mim escuta”.
A intenção do parágrafo “Porro fide divina” não é, pois, explicar o alcance da infalibilidade do magistério, mas somente dizer “aquilo que deve ser crido com fé divina e católica”. Notemos, ademais, que o concílio não pretende indicar tudo o que é possível de crer com fé divina e católica, mas, sim, aquilo que todos devem crer assim: “credenda sunt” – devem ser cridas. Vacant observa isso no início de seu comentário a esse parágrafo:
“Era natural que o Concílio do Vaticano se ocupasse do objeto da fé, nos ensinamentos dele sobre essa virtude. Apenas, nessa questão como nas demais, ele teve em vista principalmente os erros e as necessidades do nosso tempo. Assim, ele não se deteve em decidir o que é que pode ser objeto de nossa fé. Estimou tê-lo indicado suficientemente ao declarar, na definição dessa virtude, que ela consiste em crer aquilo que Deus revelou, ab eo revelata vera esse credimus. Ora, ele se ateve a declarar o que deve ser objeto de nossa fé, de todos nós, fide catholica credenda; pois ele queria dar o golpe de misericórdia num erro contemporâneo, já fustigado por Pio IX, e que pretendia que não se está obrigado a crer a não ser nas verdades definidas por juízo solene da Igreja.”
(E.T., tomo II, p. 84)
Essa perspectiva levou o concílio a inserir a precisão: “Que a Igreja propõe a ser crido COMO DIVINAMENTE REVELADO”. Essa cláusula não figurava na primeira redação do parágrafo (cf. pág. 38). Ela visa, como testemunha Dom Martin, “impedir a inclusão, na doutrina da fé, das opiniões de escola, mesmo dotadas de certeza, ensinadas nas escolas católicas” (M. 51, 322 C-D).
Pela mesma razão, o parágrafo “Porro fide divina” não contempla a infalibilidade do magistério — seja ele ordinário ou solene — a não ser quanto às verdades apresentadas como divinamente reveladas.
A questão se apresenta, então: a infalibilidade do magistério se estende, sim ou não, a um domínio mais vasto: a verdades que a Igreja não apresenta, ao menos não explicitamente, como reveladas, mas simplesmente como certas, obrigatórias, ou ligadas à Revelação, etc.?
O que está decidido pela Igreja e o que é discutido livremente
A propósito da infalibilidade e da fé divina, existem duas grandes orientações entre os teólogos, desde a luta contra a jansenismo.
Para uns, há coextensão absoluta entre o objeto da infalibilidade e o da Revelação. Para os outros, o objeto da infalibilidade ultrapassa o da Revelação, estendendo-se a verdades extrínsecas mas ligadas a ela.
Essa oposição, por mais radical que possa ser do ponto de vista especulativo, se reabsorve porém quando se trata de reconhecer na prática a infalibilidade da Igreja. Eis como Journet expõe isso:
“Reencontramos aqui, a propósito dos fatos dogmáticos, a divergência (indicada mais acima) na maneira de justificar o desenvolvimento dogmático por explicitação.
Na primeira perspectiva, que nós adotamos, o carisma da assistência infalível não pode garantir senão o que está contido no depósito ao menos implicitamente e quoad se: a infalibilidade é coextensiva com o domínio do revelado e da fé divina.
Na segunda perspectiva, o carisma da assistência divina pode garantir até mesmo aquilo que é exterior ao depósito, desde que seja conexo com ele: a infalibilidade extravasa do domínio do revelado e da fé divina.
Mas aquilo que, na segunda opinião, é considerado como exterior e conexo com o depósito coincide com aquilo que, na primeira opinião, é-lhe interior, de modo que a oposição especulativa entre as duas perspectivas é sem consequências para a conduta prática; e compreende-se – como dissemos mais acima, na pág. 65, e veremos mais adiante, na pág. 112 – que o primeiro Concílio do Vaticano não tenha querido dirimir a contenda.”
(Le Message Révélé, DDB, 1964, p. 108)
Como se vê, a divergência entre os teólogos não diz respeito ao fato da infalibilidade da Igreja tocante às verdades não explícitas no depósito embora a ele ligadas; ela diz respeito ao fato de saber se essas “verdades conexas” devem ser consideradas como verdadeiramente contidas no depósito, ou como extrínsecas a este. Correlativamente, uma segunda discussão refere-se à qualidade da adesão que deve ser prestada a essas verdades conexas infalivelmente apresentadas pela Igreja:
Caso se considere essas verdades como contidas no depósito, a adesão será considerada um assentimento de fé divina. Na outra posição, falar-se-á de “fé eclesiástica”: o motivo próprio e imediato da adesão é considerado, então, ser a autoridade infalível da Igreja, distinguida da autoridade de Deus que revela. Dir-se-á, assim, que essas verdades infalivelmente propostas pela Igreja, mas não como reveladas, são “teologicamente certas”. A certeza da fé eclesiástica é, destarte, inferior à certeza da fé divina. Mas cumpre notar bem que essa inferioridade não é relativa à inerrância, a característica negativa da certeza; ela é relativa ao elemento positivo da certeza, que é a causa de sua solidez: aqui, Deus mesmo; ali, a Igreja assistida por Deus.
A doutrina da Igreja
A doutrina da Igreja já nos é conhecida pelos testemunhos competentes de Vacant e Journet: todos os teólogos católicos reconhecem o fato da infalibilidade referente ao objeto secundário do magistério.
Vamos agora esclarecer ulteriormente esta doutrina, referindo-nos diretamente às fontes que apresentam o estado da questão: trata-se, também aí, do Concílio Vaticano I e de seus Atos.
Antes de tudo, considerando as coisas de maneira geral, a doutrina da infalibilidade da Igreja aparece já como teologicamente certa, em virtude dos ensinamentos indiretos sobre o tema contidos na constituição Dei Filius (D. 1798):
“Ademais, a Igreja, que recebeu, ao mesmo tempo que o encargo apostólico de ensinar, o mandamento de guardar o depósito da fé, tem, de Deus, o direito e o dever de proscrever a falsa ciência (I Tim VI, 20), para que ninguém seja presa de uma filosofia que não passa de vã mistificação (cf. Col. II, 2; Cânon 2). Por isso, todos os cristãos fiéis, não só não têm o direito de defender como legítimas conclusões da ciência opiniões reconhecidas como contrárias à doutrina da fé, sobretudo quando a Igreja reprovou-as, mas eles estão absolutamente obrigados a considerá-las, pelo contrário, como erros revestidos de alguma enganadora aparência de verdade.”
Essa mesma Constituição proclama, em epílogo:
“Ora, dado que não é suficiente evitar a heresia, mas é igualmente necessário fugir com diligência dos erros que dela em maior ou menor medida se aproximam, Nós advertimos a todo mundo do dever de observar também as constituições e os decretos nos quais opiniões malsãs desse tipo, não enumeradas aqui em detalhe, foram prescritas e proibidas pela Santa Sé.”
Já Pio IX proclamara tal doutrina na carta Gravissimus inter (11 de dezembro de 1862) ao Arcebispo de Munique (D. 1676):
“Por isso a Igreja, em virtude do poder que lhe foi confiado por seu divino fundador, tem não só o direito como o especial dever de não tolerar e, inclusive, de proscrever e condenar todos os erros, se a integridade da fé e a salvação das almas o exigirem. A todo filósofo que queira ser filho da Igreja, e também à filosofia, incumbe o dever de nunca dizer nada contra o que a Igreja ensina, e de retratar aquilo que for objeto de advertência da Igreja. Nós afirmamos e declaramos que a opinião que ensina o contrário é absolutamente falsa e das mais injuriosas para a fé mesma, para a Igreja e sua autoridade.”
Em seguida, a doutrina da infalibilidade do magistério quanto ao objeto secundário recebeu confirmação fulgurante na definição da infalibilidade do Papa (D. 1839).
Com efeito, o concílio afirma que o Papa é infalível, não quando ele define doutrina “a ser crida com fé divina” (fide divina credenda), mas de maneira geral quando ele define doutrina “a ser aceita” (tenenda). Assim, estão abrangidas na infalibilidade todas as doutrinas atinentes à fé ou aos costumes e que sejam apresentadas como certas, como obrigatórias, como absolutas, em suma: como “a serem aceitas”. [N. do T. – As traduções mais ou menos consagradas de textos magisteriais ou teológicos em português variam bastante no modo de traduzir a expressão “doutrina(s) tenenda”: que devem ser aceitas, acolhidas, abraçadas, mantidas, sustentadas, defendidas, adotadas, ou mesmo cridas lato sensu, etc.].
Dom Senestrey, que foi um dos iniciadores dessa formulação, expôs bem seu alcance (M. 52, 1152, nota 3):
“Está dito aquilo que deve ser aceito; essa frase, efetivamente, se exprime segundo os termos da primeira Constituição sobre a fé, na qual lê-se no cap. III: aquilo que a Igreja… propõe como a ser crido. Nesse local se trata dos artigos de fé; já que aqui se trata do objeto, não a ser crido com fé divina, mas a ser aceito infalivelmente, pode-se dizer de maneira similar: o que é proposto para ser aceito.”
Dom Gasser, em nome da Deputação da Fé, explicou de maneira detalhada, duas vezes seguidas, esta questão do objeto na definição da infalibilidade pontifícia. Eis aqui sua última intervenção, datada de 16 de julho de 1870 (M. 52, 136-1317):
“A terceira observação diz respeito ao objeto da infalibilidade. Já falei longamente acima, e ainda assim, como as próprias restrições manifestam, vários reverendíssimos padres continuam ainda incertos quanto ao sentido das palavras que se referem a ele, e por isso eles propõem diversas fórmulas novas para o objeto da infalibilidade. E, a maior parte do tempo, essas fórmulas contêm duas proposições, dentre as quais a primeira, o mais das vezes, é indeterminada, de modo que ela se refere a todos os decretos pontificais, sem distinções; e, na segunda proposição, a primeira é de algum modo determinada e limitada. A Deputação da Fé não pode aprovar uma tal maneira de enunciar a coisa; ela prefere em muito a sua fórmula, já admitida pela assembleia geral; enuncia esta, em uma única proposição, tudo aquilo que diz respeito ao objeto da infalibilidade, de tal modo, todavia, que ele é apresentado sob uma dupla noção, uma genérica e outra específica.
A noção genérica é que o Romano Pontífice goza de infalibilidade quando, desempenhando o seu encargo de pastor e doutor supremo, ele define uma doutrina, sobre a fé e os costumes, a ser aceita por toda a Igreja; por essa noção genérica, nós somos informados de que o Pontífice romano falando ex cathedra é infalível ao definir alguma coisa que tenha relação com a fé e os costumes. Mas, pela noção específica que é ajuntada, nós ficamos sabendo que há uma distinção a ser feita, na extensão dessa infalibilidade, para sua aplicação a cada um dos decretos do Romano Pontífice; de tal maneira que alguns destes (como também é o caso em se tratando das definições dogmáticas dos concílios) são certos de fé; e, consequentemente, quem negar que o Papa é infalível ao emitir tais decretos, por esse fato mesmo, – quer o Papa negue ou afirme a doutrina em questão –, tornar-se-ia herege; os outros decretos do Romano Pontífice são, também eles, certos quanto à infalibilidade deles, mas essa certeza não é igual, assim como, nas demais definições e decretos dos concílios, a certeza não é igual no que se refere à infalibilidade do concílio. De fato, essa certeza é uma certeza teológica somente, no sentido de que quem negar que a Igreja – ou, de igual maneira, o Papa – é infalível em tais decretos não seria, enquanto tal, abertamente herege, mas cometeria um erro extremamente grave e, junto desse erro, um pecado dos mais graves. Assim, em nossa fórmula, nós enunciamos todo o objeto em uma só proposição mas sob uma dupla noção, genérica e específica: de maneira que, pela noção genérica, aparece somente o objeto da infalibilidade em geral e, com a noção específica, aparece a certeza dessa infalibilidade: de fé, ou certeza teológica somente.”
[N. do T. – Não parece ocioso recordar aqui o enunciado da definição da infalibilidade papal, sublinhando as três palavrinhas que acabam de ser explicadas (D. 1839):
“O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, desempenhando seu ofício de Pastor e Doutor de todos os cristãos, define, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, a doutrina da fé e dos costumes a ser aceita pela Igreja universal [Romanum Pontificem, cum (…) doctrinam de fide vel moribus ab universa Ecclesia tenendam definit], se beneficia, graças à assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do Bem-Aventurado Pedro, daquela infalibilidade com que o divino Redentor quis munir a Sua Igreja quando ela define a doutrina da fé e da moral; por isso, tais definições do Pontífice Romano são irreformáveis por sua própria força, e não por força do consentimento da Igreja.”]
Na sua primeira intervenção sobre essa questão (11 de julho), Dom Gasser dera testemunho do acordo de todos os teólogos sobre o fato dessa infalibilidade, e explicara que as discussões deles recaiam unicamente sobre a “nota teológica” a ser dada a essa doutrina (M. 52, 1226):
“3º, como eu disse, há outras verdades com maior ou menos proximidade ligadas aos dogmas revelados, as quais, embora em si mesmas não reveladas, são porém requeridas para a guarda integral do depósito, para a boa explicação dele e para sua definição eficaz; as verdades desse tipo, às quais pertencem também os fatos dogmáticos, na medida em que sem elas o depósito da fé não pode ser salvaguardado e exposto, não pertencem por si mesmas ao depósito da fé, mas antes à guarda do depósito da fé. Daí que absolutamente todos os teólogos católicos reconhecem que a Igreja é infalível na proposição autêntica e na definição dessas verdades, de modo que negar essa infalibilidade é um erro muito grave. Já a diversidade de opiniões refere-se unicamente ao grau de certeza, isto é: se a infalibilidade na proposição dessas verdades – e, portanto, na condenação de erros com censuras inferiores à nota de heresia – deve ser considerada como dogma de fé, de forma que quem negar essa infalibilidade seria herege; ou então se é somente uma verdade não revelada em si mesma, mas deduzida do dogma revelado e, portanto, só teologicamente certa.”
Journet, que aliás faz referência aos dois textos de Gasser, recapitulou bem esse estado da questão na sua obra já citada (Le Message Révélé) pp. 64-65:
“A Igreja, por meio de seu magistério, define de maneira infalível e irreformável: primeiro que tudo, as verdades de fé católica, isto é, as verdades que ela declara estarem contidas no depósito revelado, e que devem, por conseguinte, ser cridas com fé divina. E ela define também de maneira infalível e irreformável aquilo que é chamado por abreviação de verdades infalíveis: verdades ‘conexas’ e fatos ‘dogmáticos’, cuja negação acarretaria a [negação] do próprio depósito revelado. Essas verdades são definidas como infalíveis, porque estão implicitamente contidas no depósito revelado, e são, portanto, críveis com fé divina, com base na autoridade mesma de Deus? Ou permanecem elas exteriores ao depósito revelado, e, portanto, a ser cridas com fé somente eclesial, com base na autoridade imediata da Igreja, que se supõe então assistida de maneira infalível e não somente prudencial? E, então, acaso se haveria de conceder que a Igreja pode definir infalivelmente um ponto que não estivesse incluso no depósito divino? É a primeira opinião que nos parece admissível. Mas, tendo assinalado as duas opiniões, os Padres do primeiro concílio do Vaticano não quiseram dirimir o debate. Essa reserva aparece no modo como o concílio definiu a infalibilidade do Papa: está dito que o Romano Pontífice ‘goza daquela infalibilidade com que o divino Redentor quis dotar a sua Igreja quando ela define a doutrina da fé e dos costumes’ (D. 1839). Que a Igreja, e, portanto, parelhamente o Papa, goza de infalibilidade ao definir uma ‘verdade revelada’, todos consideram isso certo com uma certeza de fé; que a Igreja e, portanto, parelhamente o Papa, goza de infalibilidade ao definir uma ‘verdade conexa’ ou um ‘fato dogmático’, uns o consideram certo com uma certeza de fé (1.ª opinião), os outros consideram-no certo com uma certeza teológica (2.ª opinião).”
Voltando, pouco adiante, a essa questão (op. cit. p. 108 § 1), Journet precisa bem que, mesmo nessa segunda opinião, se está lidando com uma “certeza absoluta, inabalável, embora inferior à certeza de fé”. Nós próprio sublinhamos esse ponto, um pouco mais acima (pág. 117 § 5). Trata-se, evidentemente, do correlato necessário da infalibilidade, quer seja ela atribuída imediatamente a Deus, ou então igualmente a Deus mas, numa espécie de mediação, por autoridade da Igreja (é, aliás, esse segundo modo de ver, implicado pela noção de “fé eclesiástica”, que a “primeira opinião” do texto de Journet estima alheia à realidade).
Complemento e confirmação: o “Projeto Kleutgen”
A exposição que acabamos de fazer sobre a infalibilidade do magistério relativa ao objeto secundário acha-se bem confirmada e ilustrada pelo “Projeto Kleutgen”, de que já falamos (págs. 15-16). Estava, efetivamente, previsto que o ponto de doutrina que nos ocupa fosse explicitamente definido na segunda constituição sobre a Igreja. Eis aqui o texto previsto no esquema, reformado pelo Padre Kleutgen em conformidade com os desejos dos Padres conciliares (M. 53, 313 C – 314 A):
“Ademais, este dom assinalado da infalibilidade, concedido à Igreja pela assistência do Espírito Santo, e que é preciso distinguir do carisma da inspiração, é inteiramente destinado a isto: que a Igreja guarde o bom depósito conforme a advertência do Apóstolo (II Tim I, 13), ou seja, a divinamente transmitida doutrina da fé e dos costumes; que ela o proteja de toda novidade profana e de toda corrupção (I Tim VI, 20); que ela o declare com maior precisão e de maneira mais rica de acordo com a oportunidade, e que ela o defenda contra os ataques da falsa ciência. Logo, muito embora o magistério eclesiástico se refira propriamente e principalmente à palavra de Deus, escrita ou transmitida; contudo, é necessário que ele trate também de todas as coisas tais que a guarda desse divino depósito não pode ser exercida sem um juízo a seu respeito*. [* “(Aqui, se poderá ajuntar, caso se queira): dentre as quais, se encontram, para começar, as doutrinas de direito natural e de outras disciplinas humanas, e também a doutrina de livros cujo sentido próprio e autêntico se procura.” (Nota de Kleutgen.)] Ora, o dom divino pelo qual a Igreja não pode errar se estende tanto quanto o encargo supremo de ensinar que ela recebeu. Por isso, há que condenar a opinião dos que afirmam que o assentimento da inteligência não seja devido a certas definições da Igreja, porque elas estatuem sobre coisas que não estão contidas por si mesmas no depósito da revelação, ou porque editam elas com autoridade, sim, uma sentença a ser aceita, mas sem declará-la dogma divinamente revelado.”
O Padre Kleutgen ajuntara justificações teológicas detalhadas ao esquema reformado que ele apresentava. Acreditamos útil transcrever aqui os argumentos que ele expõe a favor da infalibilidade da Igreja quanto ao objeto secundário do magistério (M. 53, 326-328):
“1. Quando Cristo Senhor enviou Seus apóstolos, e neles a Igreja, prometendo estar com eles até o fim do tempo, Ele ordenou que aqueles que viessem a crer e ser batizados fossem instruídos de modo a observarem tudo aquilo que Ele havia ordenado (Mat., final). Por isso, a Igreja não terá cumprido o seu encargo se ela não formou os fiéis de maneira que eles saibam conformar toda a vida deles aos preceitos de Cristo. Isso não pode ser feito se não se instruir os fiéis a julgarem, a partir do revelado, muitas coisas em si mesmas não reveladas. Assim como, de fato, existem múltiplos vínculos entre a ordem sobrenatural e a ordem natural, assim também os dogmas revelados, tanto os especulativos como mais ainda os práticos, estão vinculados e mesclados de múltiplas maneiras às coisas conhecidas pela razão natural e pela experiência. Ora, pertencendo ao encargo da Igreja dirigir os fiéis nesses juízos, ela será protegida do erro, pela presença do Redentor, no cumprimento dessa parte de seu encargo tanto quanto nas outras.
2. Isso que vemos pelo encargo da Igreja, conhecemos também pelas palavras com que Jesus Cristo prometeu a assistência do Espírito divino: Ele vos ensinará todas as coisas (Jo XIV, 26); Ele vos ensinará toda a verdade (Jo XVI, 13). Certamente que essas palavras não devem ser forçadas, de nossa parte, [de modo a entender] que a Igreja seria instruída pelo Espírito Santo mesmo em coisas que nada têm a ver com a salvação eterna; mas não se deve, tampouco, tomá-las de modo tão restritivo que se pense que a Igreja não é guiada a não ser em afirmações reveladas. Acaso uma promessa tão ampla não abrange, portanto, todas as coisas cujo conhecimento é necessário para compreender com fruto a doutrina de Cristo e para segui-la em toda a nossa vida? E não é preciso, para que sejam certíssimos os juízos da Igreja sobre essas coisas, que o Espírito Santo faça a ela novas revelações, mas somente que Ele a dirija, tanto na compreensão da palavra de Deus como no uso da razão. Nós mesmos, porventura, não julgamos todos os dias muitas coisas não reveladas, a partir das verdades reveladas, e acaso não devemos assim fazer? Aquilo, portanto, que cada um de nós faz com risco de erro, a Igreja o faz, em seus juízos públicos, estando protegida desse risco, pela assistência do Espírito Santo.
Do que dissemos até aqui não se infere, de maneira próxima, senão isto: a Igreja, ao definir coisas por si mesmas não reveladas, mas ainda assim ligadas ao revelado, não pode enganar-se. Ora, daí se deduz, com justiça, aquilo que buscamos. Pois as coisas condenadas não como heréticas, mas como errôneas, escandalosas etc., são o mais das vezes dessa espécie. Mas passemos aos argumentos diretos e próprios.
3. Os erros que não são heresia, mas dela se aproximam em maior ou menor medida, não subtraem a fé, mas corrompem-na. O que Melchior Cano ilustra pela comparação com as doenças (‘De Locis Theologicis’ L. 12, c. 5), muitas das quais, embora não letais, contudo ferem gravemente a saúde, conduzindo pouco a pouco à morte; e o Card. de Lugo, tomando outro exemplo, chama de baluartes, de bastiões, os juízos da Igreja de que tratamos, pois eles protegem a doutrina da fé (De Fide, disp. 20, n. 97). Se, pois, a Igreja se enganasse nesses juízos, poder-se-ia ainda chamá-la coluna e sustentação da verdade? Acaso não subverteria ela própria a fé, com seus juízos errôneos? E certamente que ela não cumpriria o encargo dos bons pastores, o qual consiste em oferecer alimentos salutares, mas conduziria o rebanho a pastos de morte, apartando-o dos lugares salubres.
4. Isso, que dissemos em geral quanto à doutrina de fé, deve ser considerado principalmente na regra dos costumes. As condições da vida humana são tão variadas e múltiplas, que inumeráveis questões são levantadas sobre os costumes, para as quais não se acha resposta na Revelação mesma. E, no entanto, a Igreja definiu muitas delas com juízo, marcando as más opiniões com as censuras de que estamos falando. Se, pois, ela se enganasse nesses juízos, porventura seria santa aquela que, com sua doutrina e autoridade, nos desviaria da honestidade, e que nos induziria ao mal? Compreender-se-á o alcance desta razão, considerando as proposições de Eckart condenadas por João XXII; as de Wicleff e de Huss, pelo concílio de Constança; e, sobretudo, as opiniões condenadas por Alexandre VII, Inocêncio XI e Alexandre VIII.
5. E, dado que é certo para praticamente todos que a Igreja não tem como errar na regra dos costumes, de tal maneira que ela decrete que se deve considerar má alguma coisa boa, ou como um bem a algo ruim: porventura é coisa diferente proscrever uma opinião como temerária, errônea, escandalosa, sediciosa etc., declará-la interdita e desonesto o favorecê-la e defendê-la?
6. E, em verdade, a Igreja tem o costume de proferir, com a mais extrema gravidade e severidade, os juízos de que falamos. Por onde tudo o que dissemos fica reforçado. Se efetivamente a Igreja, ao condenar essas opiniões, puder se enganar, que se segue daí senão que é possível que todos os fiéis sejam forçados pela Igreja, divinamente estabelecida como mãe e mestra, a abraçar erros que corrompem a fé e os costumes, em virtude de um decreto severo e sob pena de excomunhão?
7. Há também um argumento tão manifesto e forte, que pode bastar por si só. Em grande número de constituições com as quais são condenados erros, as censuras não são aplicadas em particular a cada opinião, mas são dadas conjuntamente às opiniões enumeradas; não que todas as censuras se apliquem a cada opinião, mas de tal maneira que ao menos uma das censuras se aplique a cada opinião: isso é chamado de condenar in globo. Sendo a Igreja infalível ao infligir todas as censuras, não há grande inconveniente em deixar às discussões dos teólogos a aplicação das censuras para cada opinião, pois é certo que cada opinião proscrita merece ao menos uma delas e deve ser reprovada. Mas, se a Igreja não fosse infalível a não ser ao proferir a censura de heresia, todo o seu juízo feito dessa maneira carece de força e de eficácia. O que se daria a conhecer, caso isso fosse admitido? Tão somente que, por exemplo, dentre muitas opiniões de Wicleff, algumas são heréticas e, portanto, certamente condenáveis. Mas, como não se sabe de quais se trata, não se sabe tampouco quais delas são condenadas com juízo infalível. Meça o leitor a amplitude desse argumento, e a gravidade do que ele encerra. Da mesma maneira que as opiniões de Wicleff e Huss pelo concílio de Constança, foram condenadas as de Lutero por Leão X, as de Baio por São Pio V, as de Miguel de Molinos por Inocêncio XI, trinta e uma proposições dos jansenistas por Alexandre VIII, finalmente as opiniões de Quesnel na Bula Unigenitus por Clemente XI e, depois, por vários de seus sucessores. Para todos esses erros, portanto, se a Igreja for infalível somente quando atribui a nota de heresia, teremos que confessar aquilo que acabamos de dizer, ou seja: que o juízo da Igreja não prova a perversidade de nenhuma delas. Uma tal opinião, que retira toda a força a tantas constituições que todo o mundo católico venera como regras de fé, não pode ser verdadeira nem tolerável.”
Completemos e recapitulemos essas explicações de Kleutgen, indicando os dois cânons previstos, no esquema reformado, para acompanhar a doutrina exposta no capítulo sobre este tema (M. 53, 316 D):
“Cânon 9. Se alguém disser que a Igreja de Cristo pode se desprender da verdadeira fé, quer seja crendo, quer seja ensinando, ou ao menos que ela não está protegida do erro em nada além daquilo que está contido, por si mesmo, na palavra de Deus: seja anátema.
Cânon 10. Se alguém disser que é permitido, sobre alguma opinião proscrita pela Igreja, ensinar ou pensar contra o que a Igreja determinou: seja anátema;
ou: Se alguém disser que a Igreja pode enganar-se ao condenar opiniões más com censura inferior à de heresia, ou sem nenhuma nota precisa: seja anátema.”
A propósito desses cânons, Kleutgen declara (M. 53, 329 B):
“Que esse ponto é tão certo, que pode ser sancionado por um cânon, concluímos por um lado com base no que dissemos acima, a partir da Escritura mesma, e por outro lado isso se conhece pelo fato de que, em caso contrário, a Igreja não seria infalível mesmo nos casos dos Concílios ecumênicos. Leia-se, por exemplo, os cânons do Concílio de Trento sobre a Santa Eucaristia, sobre o Sacrifício da Missa e também sobre o Matrimônio, nos quais são definidos muitos pontos que, por si sós, não podem ser ditos revelados.”
Resumo – Conclusão
Fica patente, portanto, que a infalibilidade do magistério com relação às verdades ligadas ao depósito da fé é, ela própria, uma doutrina infalivelmente ensinada (de maneira implícita) pela prática constante do magistério da Igreja, que exige submissão absoluta da inteligência a seus decretos que emitem censuras inferiores à de heresia. Essa doutrina é, igualmente, teologicamente certa, em virtude de diversos textos do magistério, sobretudo do Vaticano I, e também em virtude do consenso unânime dos teólogos.
Ela é próxima de definição, considerando-se o esquema previsto para a segunda constituição sobre a Igreja, no Vaticano I.
Enfim, deve-se frisá-lo, ela é em parte definida no texto do Vaticano I sobre a infalibilidade do Papa (D. 1839).
Explicitemos esse último ponto.
Cumpre bem observar que a questão das “verdades conexas” contém dois aspectos distintos. A questão pode se referir à doutrina em si mesma: acaso determinada proposição, não contida de si mesma no depósito, mas que deste se deduz necessariamente, pode ser ensinada infalivelmente pela Igreja? Está aí, propriamente, a questão do “objeto secundário”.
Mas a questão pode se referir, não mais de modo direto à doutrina, mas à apresentação da doutrina pela Igreja: porventura a Igreja é infalível ao apresentar alguma doutrina a ser aceita, sem declará-la explicitamente revelada? Esta segunda questão, se bem que não esteja desvinculada da precedente, é-lhe contudo realmente distinta. Efetivamente, pode suceder que a Igreja apresente uma doutrina que objetivamente é revelada, sem declará-la tal, sem se pronunciar sobre o caráter “de si revelado”.
Quanto a esta parte, a questão foi definida pela constituição Pastor Æternus do Vaticano I. Esta, efetivamente, não exige para a infalibilidade que o Papa (ou a Igreja) apresente a doutrina “como revelada”, mas somente que defina a doutrina “a ser aceita”.
Portanto, do ponto de vista do critério, que é a proposição pelo magistério, a questão está definitivamente decidida.
Querendo-se remontar daí para o primeiro aspecto da questão, nem tudo está dito. Pois, para concluir absolutamente com base unicamente no texto do Vaticano I que define a infalibilidade do Papa, seria preciso ter certeza de que, de fato, o magistério apresentou como “a serem aceitas” verdades por si mesmas não reveladas. Ora, como explicava Journet nos textos que citamos, os adversários da “fé eclesiástica” consideram como objetivamente reveladas (implicitamente, mas “de si”) doutrinas sobre as quais a Igreja efetivamente proferiu o juízo: “a ser aceita”, e as quais os partidários da “fé eclesiástica” (como o Padre Kleutgen) estimam não serem por si mesmas reveladas (somente “virtualmente” reveladas).
Esta primeira parte da questão, de ordem ontológica e não criteriológica, permanece, portanto, – atendo-se unicamente ao texto do Vaticano I sobre a infalibilidade do Papa – aberta, como declarou Gasser e como recorda Journet.
Deixemos a última palavra ao magistério, que, por boca de Leão XIII, recapitula em uma frase vigorosa as exigências da infalibilidade com relação às doutrinas ligadas ao depósito (os destaques são nossos):
“O Soberano Pontífice precisa poder declarar com autoridade o que é que a palavra divina contém, quais doutrinas concordam com ela e quais doutrinas se afastam dela; pela mesma razão, ele deve poder mostrar o que é bom e o que é mau, o que é necessário fazer e o que é necessário evitar para se salvar; de outro modo, ele não poderia ser o intérprete certo da palavra de Deus nem o guia seguro da vida humana.”
(Leão XIII, Sapientiæ Christianæ, E.P.S. E. 513.)
Trad. por Felipe Coelho, de: “Annexe I : L’objet secondaire de l’Infaillibilité du Magistère ”, pp. 113-127 de: L’Infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église, Nice: Éditions Association Saint-Herménégilde, Documents de Catholicité, 1984, vi+158p.
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