Pe. François Laisney, F.S.S.P.X. | 1993
Recensão de: Le développement de la doctrine catholique sur
la liberté religieuse, Bouère: DMM, 1988 (Brian. W. Harrison)
1. A “distinção” do padre Harrison.
O cerne do problema analisado neste livro é a questão: “Direito ou tolerância?” Questão já posta pelos próprios títulos dos esquemas propostos no concílio pelo Cardeal Ottaviani (a tolerância religiosa) e pelo Cardeal Béa (a liberdade religiosa).
Ora, o padre Harrison resolve o problema por meio de um grande sofisma oculto sob uma aparência de lógica. Esse sofisma é exposto nas páginas 126-128; eu o resumo honestamente:
A. Cumpre distinguir entre a propagação do erro e a tolerância dessa propagação.
B. A propagação do erro é em si um mal; a tolerância dessa propagação em vista do bem comum é em si um bem.
C. O erro não tem direito algum; unicamente o bem pode ter direitos.
D. Logo, dizer: “há um direito de propagar o erro” (proposição a) é errôneo; mas dizer: “há um ‘direito de ser tolerado’[1] na propagação pública do erro” (proposição b) é exato.
[1 – Op. cit., p. 130, noutras palavras: um direito à imunidade de coação.]
Ele exprime claramente essa conclusão D na pág. 128. Diz ele: “Indubitavelmente, a) é incompatível com a doutrina tradicional da Igreja… O Concílio cuida muito particularmente em não ensinar nada além de b)…”
2. Análise: confusão entre objeto e sujeito da tolerância.
Concedo as proposições A, B e C; mas nego a conclusão D e o nexo lógico com as proposições precedentes. Há, com efeito, passagem indevida, entre A-B-C e D, do objeto para o sujeito. Separar essas duas proposições a) e b)é um sofisma.
Realmente, cumpre ver bem o sujeito e o objeto do direito.
Dizer: a propagação do erro é um mal em si; a tolerância dessa propagação em vista do bem comum é em si um bem, é pôr-se no nível do objeto do direito.
Dizer: a pessoa humana não tem direito de propagar seus erros religiosos, mas tem direito à “imunidade de coação no que concerne à propagação pública de sua religião”, é pôr-se no nível do sujeito do direito.
Há, pois, manifestamente um deslizamento [que passa] do objeto para o sujeito. Há, além disso, uma análise malfeita da tolerância: o sujeito do direito à tolerância é aquele que tolera, não aquele que é tolerado: aquele que tolera tem o direito de tolerar; aquele que é tolerado não tem direito algum de ser tolerado! Demonstrarei esta segunda parte da minha proposição adiante; estudemos a primeira.
3. O sujeito do direito à tolerância é quem tolera.
O objeto de um direito é um bem; o sujeito desse direito é aquele que está ordenado a esse bem: se ele possui essLie bem, ele tem o direito de preservá-lo e, se ele não o possui, ele tem o direito de recebê-lo (por exemplo, direito a um salário). Ora, o bem atrelado à tolerância é a paz pública: o sujeito desse direito à tolerância é, portanto, o conjunto dos cidadãos, enquanto tais, e não aqueles que propagam esses erros. Muito pelo contrário, enquanto tais (“reduplicative”), estes são um perigo para a paz; enquanto tais, portanto, eles perdem o seu direito à paz. (Assim como o malfeitor, enquanto tal, perde o seu direito à liberdade e pode ser encarcerado).
Numa palavra, a raiz desse sofisma é a confusão entre o sujeito que tolera e o sujeito que é tolerado. Parece-me inacreditável que um homem, de resto, inteligente faça uma tal confusão… e depois ele ainda acusa “a incapacidade de Mons. de Smedt de apreender (sua) distinção”! Mas não há pior cego que aquele que cobre os olhos para não ver.
4. Quem é tolerado não tem “direito” algum de ser tolerado.
Mostremos agora que quem é tolerado não tem direito algum de ser tolerado. Pertence à ordem da justiça que o mal seja punido, e o bem, recompensado. Logo, que o mal não seja punido é em si uma falta de um bem devido. Receber uma pena é equivalente a pagar uma dívida de justiça; é um bem. Isso é tão verdadeiro, que as almas do purgatório se regozijam de poder pagar uma dívida que elas têm com a justiça divina: elas amam o bem da ordem da justiça divina. A pena não é o bem do indivíduo punido, mas ela se insere num bem superior, a saber, a ordem da justiça. Dizer que há um direito de ser tolerado, um direito à imunidade malgrado o mal objetivo, é dizer que há um direito a que a ordem da justiça não seja aplicada, o que é absurdo.
É impossível que duas coisas opostas sejam devidas à mesma pessoa: a pena e a imunidade; na medida mesma em que, por sua falta (por sua propagação de erros), a pessoa incorre numa pena, ela perde o seu direito à imunidade. A expressão “direito de ser tolerado” não é somente “paradoxal” (p. 130) mas implica numa impossibilidade.
Mesmo que o Estado tenha o dever de tolerar, isso não dá a ninguém um direito de ser tolerado, salvo um “direito civil” no sentido de que o indivíduo tem o direito de que o Estado respeite os deveres dele, Estado (não o dever do Estado para com esse indivíduo, mas para com a paz pública).
5. Espaço autônomo?
Poder-se-ia fazer uma objeção ao parágrafo precedente mediante a distinção seguinte: quem é tolerado não tem direito “simpliciter” de ser tolerado, mas tem um direito “secundum quid”, a saber, “de ser tolerado pelo poder civil” que não teria o direito de interferir nesse “espaço autônomo”, domínio protegido pela dignidade da pessoa humana.
A resposta é simples: a adesão interior escapa ao domínio da autoridade humana, não somente civil como também eclesiástica, pois “o homem enxerga o exterior, somente Deus julga os corações” (I Reis 16, 7). Mas a prática exterior do erro, e mais ainda a propagação desse erro, é do domínio público e não pode, portanto, ser excluída do domínio da autoridade civil. Pretender que haja um domínio onde o homem teria direito à imunidade de ofender Nosso Senhor Jesus Cristo (direito à tolerância = direito à imunidade), é uma impiedade. Opõe-se diretamente a São Paulo: “oportet Illum regnare”.
É, no mais, diretamente contrário à Escritura Santa, que prescreve a pena de morte para os que propagam o erro religioso (Deut. 13, 1-11 e Deut. 17, 2-7): é que a prática exterior de uma religião falsa, e mais ainda a propagação do erro religioso, realmente não é um domínio “autônomo” onde a autoridade humana não possa intervir. É notável que, nessa última passagem (Deut. 17, 2-7), Deus não demanda que se recorra ao juiz religioso, a saber: os sacerdotes da família de Arão, nem mesmo que se recorra aos simples levitas, mas simplesmente aos juízes locais (anciãos da vila que se assentavam perto dos portões da cidade), portanto ao poder civil. Manifestamente, a liberdade religiosa não é doutrina contida na Sagrada Escritura. Elias, obedecendo aos mandamentos divinos e matando num só dia 450 profetas de Baal, certamente não foi “ecumênico” à moda do Vaticano II! (ver III Reis 18, 19-40). Diz ele muito bem: “Até quando claudicareis vós para os dois lados? Se o Senhor é Deus, segui-o; se Baal o é, segui-o! Mas o povo não lhe respondeu” (III Reis 18, 21). É a condenação do ecumenismo e da “liberdade religiosa” do Vaticano II mais simples, mais clara e mais impressionante.
6. Admissões significativas.
Ouçamos, porém, a confissão: “Essa expressão (‘direito de ser tolerado’) não foi utilizada pelo concílio…, a fim de atribuir uma maior importância ao que havia de novo nessa doutrina (a parte que o mundo moderno queria ouvir)… mas isso (a saber, o direito de ser tolerado) é, sem embargo, o resumo do ensinamento da Dignitatis Humanae” (p. 131). Há aí três admissões: 1. que essa doutrina é nova, 2. que é aquilo que o mundo moderno queria ouvir, 3. que é o resumo da doutrina de Dignitatis Humanae.
7. Justiça e caridade: direito e tolerância.
Que a autoridade deva considerar não somente a ordem da justiça, mas também a ordem da caridade (segundo a qual, pode-se e por vezes deve-se tolerar os pecadores em vista de sua conversão: caritas patiens est), não dá, tampouco, um direito de ser tolerado. Com efeito, o próprio da caridade é doar; por caridade, dá-se aquilo que nos pertence; por justiça, entrega-se aquilo que pertence ao próximo. O dom de caridade é recebido pelo pobre sem que este tenha direito algum a ele. Igualmente, o fato de ser tolerado é um favor ao qual não se tem direito. Dizer que se tenha um direito de receber um favor por caridade é destruir a natureza mesma da caridade, que é um dom. (Donum Dei é um dos nomes do Espírito Santo.) Que aquele que doa tenha o dever de doar é uma coisa, que aquele que recebe tenha um direito de receber é outra completamente diferente: Cristo tem o direito de receber de nós na pessoa do pobre; mas o pobre não tem, por si mesmo, nenhum direito de receber.
8. Comparação esclarecedora.
Que aquele que é lesado possa escolher entre a tolerância ou a justiça é uma coisa; que aquele que lesa tenha um direito de ser tolerado no ato mesmo pelo qual ofende é coisa totalmente diversa, é um absurdo. Que uma mulher tenha o direito de suportar pacientemente seu marido que bate nela, é uma coisa (ela tem o direito de tolerá-lo); que o marido tenha um direito a que a sua mulher o tolere quando ele bate nela, é algo inteiramente diferente, é absurdo (ele não tem nem o direito de ser tolerado, nem o direito à imunidade!) Mesmo que a mulher possa ter o dever de tolerá-lo em deferência aos filhos que têm necessidade de uma família estável, isso não quer dizer que ele tenha um direito de ser tolerado: o dever da mulher de tolerá-lo corresponde aos direitos dos filhos, não do marido. (Os membros da família têm direito à estabilidade do matrimônio, incluso aí o marido; mas, na medida em que ele agride sua mulher, nessa mesma medida ele é, ele próprio, a causa da instabilidade e, portanto, perde o seu direito a essa estabilidade.)
O paralelo é claro: a autoridade civil tem o direito de tolerar aqueles que propagam uma religião falsa, pode até ter o dever de tolerá-los em atenção aos outros cidadãos; mas isso não quer dizer que aqueles que propagam uma religião falsa tenham um direito de ser tolerados; enquanto cidadãos, eles têm o direito à paz pública; mas, na medida mesma em que propagam erros, eles põem essa paz em perigo e perdem, assim, o seu direito a essa paz (para eles); é tão somente por deferência aos demais que a autoridade civil pode ter o dever de tolerá-los. Assim, não existe direito de ser tolerado.
Esse último exemplo parece-me insuperavelmente claro para ilustrar o sofisma do padre Harrison.
9. Outros sofismas do padre Harrison.
Há outros sofismas nesse livro (seria preciso um livro inteiro para os refutar a todos). Tomemos como exemplo pág. 129: “O fundamento desse direito à imunidade de coação na propagação mesma de uma falsa religião, segundo o concílio, é simplesmente que o controle dessa atividade não é da competência do poder civil.” Basta uma simples distinção sobre a palavra “competência” para trazer à luz o sofisma subjacente: o poder civil não tem competência para julgar com autoridade sobre as matérias religiosas, mas ele tem competência para receber o julgamento da Igreja e para executá-lo. A autoridade em matéria religiosa pertence à Igreja; mas, porque “provas certas e indubitáveis estabelecem (a religião católica) como a única verdadeira entre todas” (Leão XIII), os Estados têm competência para reconhecer isso e, portanto, para receber os julgamentos da Igreja. (Negar a competência do Estado para receber os julgamentos da Igreja é negar a competência dele para reconhecer a verdadeira religião, é negar que existem “provas certas e indubitáveis (que) estabelecem (a religião católica) como a única verdadeira entre todas”.)
10. Sofisma da resposta aos Dubia [2].
[2 – Trata-se de um estudo realizado por Dom Lefebvre no qual ele expôs a Roma [N. do T. – leia-se: a Ratzinger] suas dificuldades em admitir a declaração Dignitatis Humanae e ao qual o Vaticano [N. do T. – leia-se: Ratzinger e sua equipe]respondeu em 1987. [N. do T. – Os Dubia em francês podem ser baixados via este link.] O texto dos Dubia pode ser adquirido no seminário de Écône. (Nota da Redação de Le Sel de la Terre).]
O sofisma de quem respondeu aos Dubia é um pouco diferente. Ele põe-se no nível do fundamento do direito e distingue entre as ações e a natureza. Enquanto aderente ao erro, o não-católico não tem direito; mas, enquanto pessoa humana, ele tem direitos (anteriores à passagem à ação). Nós o concedemos.
E eis que o nosso “teólogo” vem pretender então que a imunidade “a coactione”[3] pertence aos direitos fundados na natureza mesma, considerada anterior à ação! Respondamos: a liberdade “a coactione” só pode ser do domínio da ação. [3 – Liberdade com relação a coação externa.]
Ao raciocinar-se sobre os direitos religiosos da pessoa humana anteriores à ação, é preciso considerar que a inteligência humana antes de toda e qualquer ação não conhece nada (ela é um quadro no qual nada foi escrito ainda, “tabula rasa”, diz Santo Tomás, na esteira de Aristóteles). Por conseguinte, se há um direito em matéria religiosa que precede à ação, é o direito ao ensino religioso… da verdade religiosa evidentemente! Assim como há um certo direito ao ensino das verdades naturais (não de todas, mas daquelas que são necessárias à vida social), assim também há um direito ao ensino das verdades sobrenaturais necessárias à salvação. Desse direito de toda pessoa humana decorre imediatamente o direito da Igreja, mestra da verdade (e direito da verdadeira Igreja somente), de ensinar a todos os homens. Esse direito de receber o ensinamento da Igreja é bem diferente do direito de cada qual propagar a sua religião; o primeiro é verdadeiro, o segundo é falso.
CONCLUSÃO
Usquequo Domine! Até quando vai-se tentar defender o indefensável mediante sofismas tais? Enquanto Roma quiser impor essas doutrinas falsas, haverá sempre “teólogos” para tentar justificá-las.
[N. do T. – Mas não serão também teólogos entre aspas os que pretendem que Roma, ou seja um Papa verdadeiro e legítimo, possa impor falsas doutrinas para a Igreja inteira durante meio século?… E todo o rigor, clareza e ortodoxia admiráveis que o A. demonstra acima, não os deixa de lado agora inopinadamente ao passar, nesta breve conclusão, a um assunto em que é ele o verdadeiro sofista (vide os dois incríveis “portanto” logo abaixo!) e acerca do qual ele se torna réu de tudo aquilo de que acusa tão certeiramente o Rev. Dr. Harrison, tanto nesta Conclusão quanto ao final do Cap. 3 supra?]
Esses sofismas provêm da vontade de justificar o injustificável. Roma querendo impor o Vaticano II em TUDO, isso não tem como dar certo: será preciso realmente que um dia eles reconheçam que há no Vaticano II (pastoral, não dogmático, portanto sem vontade de obrigar, portanto sem infalibilidade “ex sese”[4]) erros (se bem que não se trata de heresias, pois contrariam-se conclusões teológicas antes que verdades de fé definidas). [4 – “Por si mesmo”. O próprio Pe. Harrison reconhece que esses textos são geralmente considerados como “não infalíveis” (p. 10).]
Pe. François Laisney
Trad. por Felipe Coelho, de Le Sel de la Terre, n.º 3, pp. 119-124.
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