S. Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face | 1895
Em 25 de dezembro de 1886 recebi a graça de sair da infância, numa palavra, a graça de minha conversão completa. — Voltávamos da Missa da meia-noite, na qual tive a ventura de receber o Deus forte e poderoso. Chegando aos Buissonnets, senti alegria de ir pegar meus sapatos na lareira. Tanta alegria nos proporcionara na infância o antigo costume, que Celina queria continuar a ter-me como caçula, por ser o bebê da família… Papai gostava de ver minha satisfação, de ouvir meus gritos de alegria, quando eu retirava cada surpresa de dentro dos sapatos encantados, e o contentamento do meu querido Rei aumentava minha felicidade. Jesus, porém, querendo mostrar-me que devia livrar-me dos defeitos da infância, subtraiu-me também as inocentes alegrias dessa idade. Permitiu que Papai, extenuado com a Missa da meia-noite, se enfadasse à vista dos meus sapatos na lareira, e proferisse estas palavras que me atravessaram o coração: “Afinal, que sorte ser este o último ano!…” Então, subia eu a escada para tirar o chapéu. Conhecendo minha sensibilidade, e vendo lágrimas brilharem em meus olhos, Celina também estava bem a ponto de chorar, pois me queria muito bem e compreendia minha mágoa: “Ó Teresa, disse-me ela, não desças. Ser-te-ia por demais custoso ir neste momento ver o que há nos teus sapatos”. Teresa, porém, já não era a mesma. Jesus transformara-lhe o coração. Depois de sufocar minhas lágrimas, desci rapidamente a escadaria. A comprimir as batidas do coração, peguei meus sapatos, coloquei-os diante do Papai, e fui tirando alegre todos os objetos, com ar feliz de uma rainha. Papai ria-se, tinha também recuperado a alegria, e Celina estava sob a impressão de um sonho!… Felizmente, era uma doce realidade. Teresinha reencontrara a força de ânimo que perdera aos quatro anos e meio, e conserva-la-ia para sempre!…
A partir desta noite de luz, começou o terceiro período de minha vida, o mais belo de todos, o mais repleto de graças do Céu… A tarefa que em dez anos não me foi possível desempenhar, Jesus a executou num ápice, contentando-se com minha boa vontade, que nunca me faltou. Como seus Apóstolos, poderia dizer-lhe: “Senhor, pesquei toda a noite, e nada apanhei” [Lc 5, 5]. Para comigo, mais misericordioso ainda, do que para com seus Discípulos, o próprio Jesus tomou a rede, lançou-a, e recolheu-a cheia de peixes… Fez-me pescadora de almas. Senti grande desejo de trabalhar pela conversão dos pecadores, desejo que nunca sentira de maneira tão pronunciada… Senti, numa palavra, a caridade penetrar-me no coração, a necessidade de esquecer-me a mim mesma, para dar prazer, e, desde então, fui feliz!…
Quando num domingo olhava uma gravura de Nosso Senhor na Cruz, impressionei-me com o sangue que escorria de uma das mãos divinas. Acometeu-me grande dor, considerando que o sangue caía por terra, sem que a ninguém interessasse recolhê-lo. E tomei a resolução de manter-me em espírito de fé junto à Cruz, para receber o divino orvalho que dela promana, compreendendo que, depois, deveria espargi-lo por sobre as almas… No coração me repercutia também, continuamente, o brado de Jesus na Cruz: “Tenho sede!” [Jo 19, 28] Estas palavras acendiam em mim um ardor estranho e muito vivo… Queria dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me a mim própria devorada de sede pelas almas… Não eram ainda as almas de sacerdotes que me empolgavam, mas as de grandes pecadores. Ardia no desejo de desviá-los das chamas eternas… Com o fito de incitar meu zelo, o Bom Deus mostrou-me que meus desejos lhe eram agradáveis. — Ouvira falar de um grande facínora, que acabava de ser condenado à morte, por crimes horrendos [Henrique Pranzini, cujo processo começou em 9 de julho de 1887 e terminou no dia 13 pela condenação à morte. Foi então que Teresa se apaixonou pela conversão dele. Pranzini foi executado a 31 de agosto de 1887]. Tudo levava a crer que morreria impenitente. A todo custo queria eu impedi-lo de cair no inferno. Para o conseguir, aplicava todos os meios imagináveis. Sentindo que nada poderia por mim mesma, ofereci ao Bom Deus todos os infinitos méritos de Nosso Senhor, os tesouros da Igreja. Pedi afinal a Celina mandasse celebrar uma missa em minha intenção, não me animando a fazê-lo pessoalmente, pelo receio de ser obrigada a declarar que era por Pranzini, o grande criminoso. Não queria também declará-lo à Celina, mas ela fez-me perguntas tão carinhosas e insistentes, que lhe confiei meu segredo. Longe de zombar de mim, pediu-me para me ajudar na conversão do meu pecador. Aceitei-o reconhecida, pois quereria que todas as criaturas se unissem a mim, para implorarmos o perdão do culpado. Sentia, no fundo do coração, a certeza de que nossos desejos seriam atendidos. Entretanto, na intenção de criar coragem para continuar a rezar pelos pecadores, declarei ao Bom Deus que estava muito segura de seu perdão ao mísero e desditoso Pranzini; que nisso acreditaria, apesar de que não se confessasse nem manifestasse alguma sombra de arrependimento, tanta era a minha confiança na infinita misericórdia de Jesus; mas, que para meu simples consolo lhe pedia, unicamente, um “sinal” de arrependimento…
Minha oração foi atendida ao pé da letra! Não obstante a determinação de Papai não lêssemos nenhum jornal, julguei não estar desobedecendo, quando lia os tópicos que se referiam a Pranzini. No dia imediato à execução, tomo em mãos o jornal La Croix. Abro-o pressurosa, e que vejo?… Oh! minhas lágrimas traíram minha emoção, foi preciso recatar-me… Não tendo confessado, Pranzini subiu ao patíbulo e preparava-se para meter a cabeça no lúgubre orifício, quando, levado por súbita inspiração, se volta e toma o Crucifixo, que o sacerdote lhe apresentava, beijando três vezes as Sagradas Chagas!… Sua alma foi então receber a misericordiosa sentença Daquele que declara haver no Céu maior alegria por causa de um só pecador que faz penitência, do que por noventa e nove justos que não precisam de penitência! [Lc 15, 7]…
Obtive o “sinal” pedido, e o sinal era uma expressão fiel de graças que Jesus me tinha outorgado, para me induzir a rezar pelos pecadores. Não foi diante das Chagas de Jesus, vendo correr seu Sangue Divino, que a sede de almas me calou no coração? Queria eu dar-lhes a beber esse Sangue imaculado, e os lábios do “meu primeiro filho” foram colar-se às sagradas chagas!!!… Que resposta de inefável doçura!… Oh! a partir dessa graça singular, dia por dia se avolumava meu desejo de salvar almas. Tinha a impressão de que Jesus me dizia, como à samaritana: “Dá-me de beber!” [Jo 4, 7] Era um verdadeiro intercâmbio de amor. Às almas dava o Sangue de Jesus, a Jesus oferecia as mesmas almas retemperadas com seu divino orvalho. Assim me parecia tirar-lhe a sede. Mas, quanto mais lhe dava de beber, tanto mais crescia a sede de minha pobre alminha, e era esta sede ardente que ele me dava como a mais deliciosa bebida de seu amor…
Em pouco tempo, o Bom Deus soube fazer-me sair do estreito círculo, no qual girava, sem saber como dele sairia. Grande é minha gratidão, quando vejo o caminho que me fez percorrer, todavia, devo dizê-lo: apesar de já ter dado o passo maior, restavam-me ainda muitas coisas a que devia renunciar. Uma vez desembaraçado de seus escrúpulos e de sua excessiva sensibilidade, meu espírito se desenvolveu. Sempre gostei do grandioso, do belo, mas naquela época fui levada por extremo desejo de saber. Não me restringindo às aulas e aos exercícios que minha professora me dava, aplicava-me por mim mesma a estudos especiais de história e ciências. Outros estudos deixavam-me indiferente, mas estas duas matérias prendiam toda a minha atenção. Desta forma, adquiri em poucos meses maiores conhecimentos, do que durante meus anos de estudos. Oh! que tudo não passava de vaidade e tribulação de espírito [cf. Ecl 2, 11]… Muitas vezes, acudia-me à mente o capítulo da Imitação de Cristo, onde se fala de ciências [Imit. de Cristo III, 43], mas sempre industriava um meio de continuar, apesar de tudo, dizendo a mim mesma que, estando em idade de estudar, nenhum mal havia em fazê-lo. Creio não ter ofendido ao Bom Deus (muito embora reconheça ter aí aplicado um tempo inútil), porque para tal fim só empregava certo número de horas, que não queria exceder, com o intuito de mortificar o desejo demasiado vivo de saber… Estava na idade mais cheia de perigos para as adolescentes. O Bom Deus, contudo, fez por mim o que Ezequiel refere em suas profecias: “Passando junto a mim, viu Jesus que me chegara o tempo de ser amada. Fez aliança comigo, e passei a pertencer-lhe como sua… Estendeu sobre mim seu manto, lavou-me com aromas preciosos, revestiu-me de roupas recamadas, e deu-me colares e adereços de inestimável valor… Nutriu-me com flor de farinha, com azeite e mel em abundância…então fiquei formosa aos seus olhos, e fez de mim poderosa rainha!…” [Ez 16,8-13]
Sim, Jesus fez tudo isso por mim. Poderia retomar cada palavra que acabo de escrever, provando que se realizou em meu favor, mas as graças que citei mais acima, demonstram-no de maneira suficiente. Vou apenas falar do alimento que me prodigalizou “em abundância”. Desde muito, nutria-me da “flor de farinha”, contida na Imitação de Cristo. Era o único livro que me fazia bem, pois não tinha ainda deparado com os tesouros que se ocultam no Evangelho. Sabia, de memória, quase todos os capítulos da minha querida Imitação de Cristo. Esse livrinho não me deixava nunca. No verão, carregava-o no bolso; no inverno, dentro do regalo; isto se tornou tradicional. Em casa de Titia, entretinham-se muito com ele, abriam-no ao léu, e faziam-me recitar de cor o capítulo que se apresentava aos olhos.
Excerto de: SANTA TERESA DO MENINO JESUS E DA SAGRADA FACE; A história de uma alma, Paulus, 2017, pp. 112-117 (manuscrito A, capítulo V, folhas de 45 à 47).
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