John S. Daly | 1999
João Paulo II não é o cabeça da Igreja Católica – ele é o cabeça de uma religião falsa. Esta é uma proposição verdadeira, que às vezes é usada como argumento do qual se extrai a seguinte conclusão: todo aquele que reconhece João Paulo II como cabeça de sua religião não pertence, portanto, à Igreja Católica, mas à falsa religião da qual João Paulo II é objetivamente o cabeça: a religião frequentemente chamada de Igreja Conciliar.
Afirmo que esse argumento depende de uma falácia lógica. Pode até ser possível justificar sua conclusão com base nalgum outro fundamento (embora eu não julgue que o seja), mas este argumento, ao menos, não colhe. Pode até parecer plausível antes de o examinarmos de perto, mas, sob análise detida, ele é incapaz de passar no teste da simples lógica.
Consideremos duas pessoas hipotéticas que acreditem ambas que João Paulo II é papa e se submetam a ele como tal.
A primeira está determinada acima de tudo a ser fiel a João Paulo e a permanecer em sujeição a ele, quer ele seja ou não seja verdadeiramente o cabeça da Igreja Católica.
A segunda está determinada acima de tudo a ser fiel à Igreja Católica, e sujeita-se a João Paulo por crê-lo cabeça da Igreja Católica, embora um cabeça desastroso.
Ambas estão equivocadas em pensar que João Paulo II seja papa, mas há uma vasta diferença entre as disposições de uma e outra. A primeira não tem a intenção primordial de permanecer na comunhão da Igreja Católica, ao passo que a segunda tem, sim, essa intenção. A primeira é pertinaz na sua submissão ao antipapa, enquanto a segunda não é.
Agora, quando se diz que alguém está comprovadamente fora da Igreja pelo simples fato de que “reconhece João Paulo II como o cabeça de sua religião”, o argumento parece dar como certo que todos aqueles que creem que João Paulo seja papa caiam na primeira categoria – sua intenção primordial é pertencer à religião de João Paulo II, seja ela católica ou não. Mas essa presunção é patentemente injustificada.
Ademais, a própria formulação da premissa é tendenciosa. Nos é dito que alguém “reconhece João Paulo II como o cabeça de sua religião”. Mas isso é apenas um jeito não usual de dizer que essa pessoa pensa que João Paulo II é papa, e esse jeito de dizer isso é escolhido para dar ao argumento especioso uma aparência de validade que ele, de outro modo, não possuiria.
Para evidenciar isso, reformulemos em termos diferentes a proposição na qual o argumento falacioso está fundado. “Antônio Simplício pensa que João Paulo II é o cabeça da Igreja Católica e, portanto, sujeita-se a ele como tal.”
Estamos de acordo que Antônio Simplício está enganado sobre a questão de fato, dado que João Paulo II na realidade não é o cabeça da Igreja Católica, mas de um corpo religioso bastante diferente. Mas mediante qual possível processo de raciocínio pode-se inferir, a partir daí, que o próprio Antônio Simplício pertença necessariamente à religião falsa da qual João Paulo II efetivamente é o cabeça, e não à religião à qual ele quer pertencer e à qual ele julga que pertence, a saber: a Igreja Católica?
Não devemos ser distraídos pelo pensamento de que outras razões talvez existam pelas quais Simplício não seja católico. É bem possível, por exemplo, que ele tenha adotado várias doutrinas falsas ensinadas por João Paulo II, ao mesmo tempo que percebendo que elas não têm como ser conciliadas com a doutrina católica. Nesse caso, ele certamente não é católico. O meu escopo é puramente considerar se o erro acerca de se João Paulo II é ou não é papa basta por si só para provar que alguém pertence à religião de João Paulo e, portanto, não à Igreja Católica.
Se esta última fosse uma conclusão lógica, seguir-se-ia que um americano que pensasse que a rainha Elizabete II é presidente dos Estados Unidos seria na realidade inglês. Seguir-se-ia que um soldado que, na névoa da batalha, confundisse um oficial inimigo com seu próprio general teria desertado. Ou, para tomar um exemplo histórico real, seguir-se-ia que os ingleses que, quando da morte de Maria Tudor, erroneamente consideraram o marido dela, Filipe II, legítimo rei da Inglaterra eram, portanto, na realidade, súditos do reinado do qual Filipe era rei: a Espanha. Afinal, eles “reconheciam Filipe II como o rei de seu país”, não reconheciam? Logo, eles devem ter sido súditos do país do qual Filipe era rei, não devem? Mas essas conclusões estão manifestamente erradas.
Seria mera evasão argumentar que as provisões da lei canônica acerca do cisma são diferentes das provisões da lei civil acerca de mudanças de nacionalidade. O argumento a que estou começando a responder aqui não se baseia no Direito Canônico de maneira nenhuma; ele alega que, por necessidade lógica direta, quem quer que pense que João Paulo II é papa deve na realidade pertencer à seita herética da qual ele na realidade é o cabeça. Considero que já foi dito o suficiente para demonstrar que a lógica sozinha não é capaz de chegar a uma tal conclusão.
A falácia consiste essencialmente na ambiguidade. O que pode ser simples erro de fato é expressado em termos que o fazem parecer como se na realidade fosse um ato intencionado, e ainda por cima com uma intenção predominante.
Uma analogia com a teologia sacramental pode mostrar-se útil. Para conferir um sacramento validamente, é preciso tencionar fazer o que a Igreja faz. Isso é doutrina padrão. Mas também é doutrina padrão que os sacramentos podem ser conferidos validamente por pessoas que sustentam os erros mais grosseiros sobre o que a Igreja faz. Assim, a Igreja julgou válido o batismo mesmo quando o ministro havia declarado que o batismo não produzia absolutamente nenhum efeito na alma. (Cf. Instrução do Santo Ofício ao Vigário Apostólico da Oceania, 18 de Dezembro de 1872, Fontes n.º 1.024.) E ela regularmente considera válidos os matrimônios mesmo quando as partes não acreditavam ser indissolúvel o matrimônio. (Cf. Côn. E.J. Mahoney, Priests’ Problems, p. 223 et seq.) A razão disso, como a Igreja mesma a exprime, é que erro concomitante na mente sobre o ato realizado não impede necessariamente a vontade de ter a intenção de fazê-lo corretamente; e, se a vontade tem duas intenções incompatíveis (por exemplo: 1. conferir o batismo tal como Cristo o entendeu, e 2. não produzir efeito na alma), a intenção predominante surtirá efeito e a intenção subordinada será ineficaz. (Cf. Cânon 1084 e Fontes, loc. cit.)
Assim, por tudo o que a simples lógica pode nos dizer, a crença errônea de que João Paulo II seja papa não prova, de modo algum, a intenção de estar sujeito à religião da qual ele na realidade é o cabeça; e, se duas intenções conflitantes estiverem presentes (1. ser católico, e 2. estar sujeito a João Paulo II), não se pode concluir que a última predomine sobre a primeira sem evidências de que tal fosse realmente a intenção mais forte na vontade da pessoa.
O argumento que estamos examinando só parece convincente porque exprime um fato verdadeiro em termos ambíguos que permitiriam tirar a conclusão apenas se fossem verdadeiros num sentido só, ao passo que eles de fato são verdadeiros somente em sentido bem mais limitado.
Alguém que desejasse formular esse argumento como silogismo seria forçado a se conformar com algo no seguinte sentido:
Maior: Quem quer que reconheça alguém como o cabeça de sua religião é membro da religião da qual esse alguém na realidade é o cabeça.
Menor: João Paulo II é o cabeça da Seita Conciliar, não da Igreja Católica.
Conclusão: Logo, quem quer que reconheça João Paulo II como cabeça de sua religião é membro da Seita Conciliar, não da Igreja Católica.
Mas a premissa maior aqui é facilmente distinguida: (a) quem quer que reconheça alguém como o cabeça de sua religião independentemente de qual possa ser essa religião é membro de seja qual for a religião de que esse alguém na realidade é o cabeça – concedo; (b) quem quer que reconheça alguém como o cabeça de sua religião apenas por erroneamente supô-lo cabeça de uma determinada religião à qual se presta adesão é membro de seja qual for a religião de que esse alguém na realidade é o cabeça – nego!
Flagrantemente, a conclusão não se segue de maneira independente do sentido em que se afirme que alguém “reconhece João Paulo II como papa” – a não ser que adotemos a ideia absurda de que todos os juízos errôneos se auto-realizam.
Mais uma vez, deve-se salientar que estas observações não provam que seja possível ser católico ao mesmo tempo que julgando erroneamente que João Paulo II é o papa. Provam apenas que um argumento específico em prol da opinião contrária é infundado.
Apêndice
Às vezes se escutam outros argumentos que pretendem levar à mesma conclusão geral. Também estes são, no parecer deste escritor, defeituosos. Na realidade, são tantas tentativas de contornar os fatos inegáveis de que a heresia e o cisma dependem da pertinácia e de que confusão é coisa muito diferente de pertinácia. Eis alguns breves comentários sobre os mais conhecidos.
Falso Argumento 1. “Quem quer que seja membro de uma religião falsa, ainda que de boa fé, não pode simultaneamente ser membro da Igreja Católica. Ora, a religião que emergiu do Vaticano II, e da qual João Paulo II é o cabeça, é de fato uma falsa religião, comumente chamada de Igreja Conciliar. Logo, nenhum de seus membros pode ser católico.”
Réplica. Aqui a premissa maior certamente se verifica quando se sabe que a falsa religião não é a Igreja Católica. Mas a característica peculiar da Igreja Conciliar é a de ser verdadeiramente possível que algumas pessoas sinceras mas ignorantes pensem que ela é a Igreja Católica. Existe alguma autoridade clara que afirme que mesmo num tal caso a pessoa errante está juridicamente excluída da verdadeira Igreja? Este escritor nunca viu evidência alguma de que isso seja assim. Mas, ainda que assim fosse, permanece uma dificuldade ulterior a ser solucionada: quais são os critérios que estabelecem que alguém de fato pertence à Igreja Conciliar? Argumentar que aceitar João Paulo II necessariamente realiza isso é meramente retornar à falácia refutada acima. Argumentar que a aceitação dos novos ritos e doutrinas da Igreja Conciliar comprova esse fato pode muito bem ser verdade, mas claramente não se aplica àqueles tradicionalistas que rejeitam essas aberrações ao mesmo tempo que continuam – por mais cabeça-duramente – a pensar que João Paulo II de fato seja papa.
Falso Argumento 2. “A aceitação de um falso papa é necessariamente ato de cisma, ao menos material.”
Réplica. Se bem que seria muito conveniente se assim fosse, infelizmente não é, como todas as autoridades concordam. Analogamente, a rejeição de um verdadeiro papa por sinceramente crê-lo ilegítimo também não é um ato cismático. (Cf. Wernz-Vidal: Ius Canonicum, Vol. vii, n. 398; Szal, Rev. Ignatius: Communication of Catholics with Schismatics, Catholic University of America, 1948, p. 2; de Lugo: Disp., De Virt. Fid. Div., disp. xxv, sect. iii, nn. 35-8; Catholic Encyclopaedia, Vol. XIII, pp. 540,41.)
Falso Argumento 3. “Se alguém é católico ou cismático é questão de fato externo, que não tem nada a ver com intenções interiores.”
Réplica. As mais altas autoridades católicas enxergam a coisa de modo diferente: “…o pecado de cisma é, falando propriamente, um pecado especial, em razão de o cismático querer separar-se daquela unidade que é o efeito da caridade… Por onde, os cismáticos propriamente ditos são aqueles que voluntária e intencionalmente separam a si próprios da unidade da Igreja…” (Summa Theologiae, II-II, Q. 39, A. 1). O cânon 1.325/2 define o cismático como alguém que “recusa sujeitar-se ao Romano Pontífice ou ter comunhão com os membros da Igreja a ele submetidos.” A Bula Coenaedeclarou excomungados “os cismáticos e todos os que pertinazmenteretirem-se da obediência ao Romano Pontífice reinante”. (destaques acrescentados)
Falso Argumento 4. “O Cânon 2200/2 provê que infrações exteriores da lei sejam consideradas maliciosas no foro externo. A aceitação de um falso papa constitui uma infração externa da lei para este fim e, portanto, a pertinácia é presumida.”
Réplica. Esta teoria beneficiou-se de alguma voga no mundo anglófono graças à influência do Sr. Martin Gwynne e, no mundo francófono, graças à do diácono Zins. Embora talvez compreensível, ela está inquestionavelmente errada. Não se pode presumir pertinácia em casos de cisma ou heresia por força desse cânon, não mais do que se pode presumir que toda perda de filho não nascido que uma mulher possa sofrer tenha sido aborto voluntariamente induzido. A pertinácia (neste caso, dar-se conta de que o prelado que a pessoa chama de papa não é na realidade o cabeça da Igreja Católica) é parte essencial do delito de cisma e presumi-la seria presumir não somente a malícia, mas o próprio crime. Um erro sobre se alguém é ou não é papa, embora seja um erro grave, decididamente não é uma infração exterior de lei alguma. Os mesmos princípios aplicam-se ao cisma como à heresia: a pertinácia não é presumida e os católicos que cometem erros em pontos de fato ao mesmo tempo que continuam a professar submissão ao Magistério e união com a Santa Sé não são cismáticos nem hereges, nem tampouco são juridicamente presumidos tais. (Cf. Cardeal Billot: De Ecclesia, tese XI; Côn. E. J. Mahoney: The Clergy Review, 1952, vol. XXXVII, p. 459; Decreto do Santo Ofício sobre a cismática “Ação Católica” na Romênia, 20 de junho de 1949, (Acta Apostolicae Sedis, vol.XLI, p. 333); Catholic Encyclopaedia, Vol. XIII, pp. 540,41.)
Falso Argumento 5. “Teólogos respeitados fazem referência a uma presunção jurídica de pertinácia em certos casos.”
Réplica. Eles aludem a pessoas que sabem muito bem que não pertencem à comunhão da Igreja Católica e não têm desejo algum de o fazer, mas cujo cisma é involuntário como resultado de ignorância invencível do dever de entrar para a Igreja. As palavras deles não têm aplicação nenhuma a pessoas que desejam ser membros da Igreja Católica, mas estão confusas – durante um tempo de confusão sem precedentes – acerca de se um dado pretendente é ou não é papa. (Cf. Cardeal Billot: De Ecclesia, tese XI).
Falso Argumento 6. “João Paulo II não é meramente um falso reivindicador do Papado; ele é um antipapa manifestamente herético que preside uma nova religião com novas doutrinas e nova liturgia. Como tal, supô-lo papa não é meramente um erro de fato, mas de fé. Ele não só não é papa, como ele nem teria como ser papa, e a religião dele nem sequer seria possível que fosse a Igreja Católica. Com efeito, considerá-lo papa envolve apartar-se da ortodoxia, seja pensando que as doutrinas de João Paulo não são heréticas, ou então pensando que um herege possa ser papa.”
Réplica. Há argumentos que podem muito bem ajudar a convencer alguém de que João Paulo II não tem possibilidade alguma de ser papa. Mas não temos prova de que todos os que aceitam João Paulo estejam cientes e equipados para avaliá-los. Acreditar que João Paulo seja papa não pode, por si só, ser chamado de erro na fé, dado que Deus não fez revelação nenhuma acerca da situação de João Paulo. Pode implicar em erro, ou basear-se em erro, mas, de qualquer modo, erros de fé não são necessariamente pertinazes tampouco, nem é permitido presumir que o sejam. O dilema final é inútil, já que a crença de que um herege possa conservar o Papado, embora errada, é defendida por alguns teólogos e certamente não é herética. Ademais, o dilema não leva em conta muitos possíveis estados mentais que os católicos podem ter ao avaliarem a condição de João Paulo. Alguns podem nem sequer estar cientes de que a Igreja condenou os erros dele. Outros podem ser embromados pela defesa de que uma interpretação ortodoxa frequentemente pode ser forçada às palavras dele contra o seu sentido natural. Outros ainda podem supô-lo inciente de que as suas doutrinas não são ortodoxas. Todas essas defesas podem ser respondidas, mas há pessoas ignorantes ou desorientadas que sustentam sinceramente cada uma delas e, portanto, não manifestaram nenhuma disposição cismática ou herética ao malograrem em despertar para a realidade concernente ao estado presente da Santa Sé.
Falso Argumento 7. “Tentativas de escusar os tradicionalistas não-sedevacantistas da acusação de cisma, ainda que de boa fé, solapam o direito de julgar que o próprio Wojtyla é herege. O sedevacantismo moderado é, destarte, incoerente.”
Réplica. Para dizer que alguém que alega ser católico não o é realmente (como resultado de heresia ou cisma), é preciso determinar duas coisas: a objetiva negação de um dogma ou separação da comunhão católica, e a pertinácia, ou percepção de que a própria posição conflita com a da Igreja. No caso de João Paulo II, ambas são evidentes pelos parâmetros ordinários de constatação. No caso da maioria dos católicos tradicionais não-sedevacantistas, a pertinácia certamente não é evidente.
Falso Argumento 8. “Se você realmente pensa que os tradicionalistas não-sedevacantistas não são pertinazes, você obviamente passou pouco tempo debatendo com eles.”
Réplica. Na realidade, eu de fato fiz uma pausa em tais debates, para descobrir o que a pertinácia é. Descobri que autores aprovados sustentam que alguém pode ser gravemente culpável por erro sem ser pertinaz. Com efeito, todo e qualquer fator que ao menos diminua a culpa é suficiente para escusar da pertinácia (Cf. Cânon 2229§2 e seus comentadores passim). Então, meu objetivo aqui não é justificar o fracasso supino da maioria dos tradicionalistas em dar-se conta daquilo que a devida diligência teria possibilitado à maioria deles enxergar: é somente observar que, se eles realmente não o enxergaram, eles ainda são membros da Igreja Católica, por mais pecaminosa e escandalosa que a confusão deles possa ser – não que eu considere que o Evangelho dê qualquer encorajamento a tais medições de culpa.
Falso Argumento 9. “Casos de adesão obstinada a João Paulo II por parte de pessoas que estavam bem cientes das evidências que deveriam ter convencido qualquer pessoa razoável são bem atestados.”
Réplica. Tudo isso é muito crível, mas as evidências de que alguns tradicionalistas estão em cisma não ajudam o argumento que alega que todos estejam. Alguns sedevacantistas, afinal de contas, são crédulos, temerários e prontos a pensar mal do próximo e das motivações deste, especialmente quando ele tem a impertinência de discordar deles… mas seguramente que ninguém alegaria que todos sejam!
Trad. por Felipe Coelho.
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