John S. Daly | 1999
O que é a pertinácia?
Se uma pessoa batizada expressa uma opinião conflitante com o dogma católico, é patente que o elemento material da heresia está presente: o erro, no intelecto, contrário à Fé Católica. Mas é claro que não se segue que o pecado de heresia tenha sido cometido de modo imputável, ou que a pessoa em questão seja de fato herege.
Da perspectiva do Direito Canônico, uma única questão tem de ser perguntada: a pessoa percebe que a opinião dela entra em conflito com o ensinamento católico? Se a pessoa se dá conta disso, ela é considerada canonicamente como herege. O cânon 1.325 define herege como uma pessoa batizada, que ainda se chama a si própria de cristã, que “pertinazmente nega ou duvida de qualquer uma das verdades que devem ser cridas com fé divina e católica”. E a palavra “pertinazmente” é entendida pelos canonistas como significando que a pessoa está consciente do conflito entre a opinião dela e o ensinamento da Igreja. (Cf. Noldin: Theologia Moralis, vol. II, n.29; de Siena: Commentarius Censurarum, p.24; Dom Gregory Sayers: Thesaurus Casuum Conscientiae III,iv,18; Suarez: Opera, XII, p.474, ed. Vivès; Bouscaren e Ellis: Canon Law, p.902).
É importante evitar um mal-entendido neste ponto. É bem sabido que o Direito Canônico, como o direito civil, preocupa-se com fatos exteriormente verificáveis e seus efeitos externos. Não se envolve diretamente com o que se passa na alma do indivíduo, pois o ato interior não pode ser conhecido com certeza antes de ser exteriorizado. Em termos técnicos, a imputabilidade moral é considerada como pertencente ao foro interno, conhecido com certeza somente pelo indivíduo e por seu Criador, e pelo confessor no sacramento da Penitência. A imputabilidade canônica e seus efeitos pertencem ao foro externo e são avaliados em conformidade com as palavras e atos exteriores, não com as ocultas disposições interiores. Por essa razão, o Direito Canônico provê que, quando um católico comete uma infração exterior da lei, presume-se para os fins legais que ele o fez de modo consciente e culpável, a não ser e até que ele venha a provar o contrário (cânon 2.200/2).
Contando com esse princípio, alguns imaginaram que, quando uma afirmação herética é feita, presume-se ter sido pertinaz, isto é, que a pessoa sabia que a sua afirmação era herética e a afirmou mesmo assim. Esse modo de ver está bem equivocado. O cânon 2.200/2 exige que a culpa (a culpabilidade) seja presumida sempre que ocorra uma infração da lei, mas é claro que ele não autoriza a presunção da própria infração. É preciso primeiro saber que a lei foi realmente violada, ao menos exteriormente, antes que o cânon 2.200/2 possa ter qualquer aplicação.
E, segundo o entendimento dos canonistas, essa pertinácia, essa consciência de que a opinião própria está em conflito com o ensinamento católico, é essencial para o delito canônico de heresia. O cânon 2.200/2 não permite a ninguém presumi-la. Se um indivíduo faz uma declaração herética, já dissemos que precisamos descobrir se ele está ciente de que a opinião dele entra em conflito com a Fé. Podemos acrescentar agora que temos de averiguar a resposta a essa questão sem qualquer ajuda do cânon 2.200/2 e de sua presunção de culpa no foro externo. Doutro modo, estaríamos presumindo não somente a imputabilidade, mas o próprio crime, o que seria obviamente contrário à justiça.
Para esclarecer esse ponto, vamos formulá-lo em termos ligeiramente diferentes. Um herege é um cristão batizado que não aceita a regra da fé católica, isto é, que rejeita a autoridade da Igreja na formação das crenças religiosas dele. Sempre que qualquer pessoa rejeita a regra da fé da Igreja, presume-se canonicamente que o faz culpavelmente. Mas a mera negação de um dogma nem sempre comprova que a regra da fé católica está sendo rejeitada. Talvez o malfeitor não perceba que a opinião que ele afirmou é contrária à Fé. Para esclarecer essa questão, o cânon 2.200/2 não oferece qualquer ajuda. Não pode ser aplicado legitimamente para determinar, ainda que de modo provável, essa questão.
Então, como se pode determinar a ciência do indivíduo de que a visão dele não é ortodoxa? Há, na verdade, diversos meios. Ele pode afirmá-lo diretamente, ou dar a entender inequivocamente que ele está se separando da crença católica. Ou então, pode ser evidente, a partir de sua condição e educação, assim como do dogma específico que ele rejeita, que ele não pode não estar ciente dos fatos. Ou ainda, está aberto a qualquer um chamar a atenção dele para o ensinamento católico que entra em conflito com a posição dele. Uma vez que a doutrina católica tenha sido dada a conhecer de modo suficiente para ele, a persistência em negar ou duvidar dela determina a pertinácia e, portanto, o delito canônico de heresia.
Tudo isso parece bem claro e simples. Se surgiram mal-entendidos e interpretações conflitantes, foi principalmente porque as leis da Igreja a esse respeito, e os textos teológicos clássicos que lidam com isso, consideram heresia o ato de uma pessoa que um dia foi católica e reconheceu a autoridade divina que a Igreja possui para ensinar. Uma tal pessoa, é claro, se foge conscientemente desse ensinamento, é inevitavelmente culpada aos olhos de Deus de um pecado mortal contra a virtude da fé. (Denzinger 1.794 e 1.815).
A relevância da boa fé
Mas claro que há pessoas batizadas que se consideram cristãs e, no entanto, nunca reconheceram a autoridade da Igreja Católica. A algumas delas, nunca foi apresentada qualquer razão para submeterem-se ao Magistério católico como sendo a divinamente estabelecida regra da fé. Algumas mal ouviram falar da Igreja de Deus. Assim, há não-católicos batizados que se consideram discípulos de Jesus Cristo, mas que estão separados da Sua Igreja por ignorância invencível de qual seja ela. E todas essas pessoas caem dentro da definição de hereges dos canonistas, pois elas rejeitam abertamente aquilo que elas sabem que a Igreja Católica ensina; e por que fariam diferente, se não conhecem nenhuma razão para o aceitar?
Neste ponto o teólogo moralista se separa do canonista. A heresia, argumenta ele, é per se um pecado; o pecado de rejeitar uma verdade revelada por Deus. Mas os protestantes de boa fé que rejeitam o ensinamento católico não são culpados de pecado nenhum ao agirem assim, pois eles não se dão conta de que essas verdades foram reveladas por Deus. E, se eles não cometeram culpavelmente o pecado de heresia, com que direito se pode rotulá-los de hereges?
Muito corretamente o canonista responde que se presume a culpa de todos esses indivíduos no foro externo em virtude do cânon 2.200/2, visto que eles cometeram uma infração exterior da lei que exige assentimento a todo dogma católico (cânon 1.323/1). Sobre a culpa moral deles no foro interno, os canonistas deixarão que os moralistas teorizem e que os confessores determinem quando necessário. A tarefa própria dos canonistas é simplesmente avaliar o fato exterior de que uma dada pessoa batizada rejeita publicamente a regra da fé católica, e como tal é considerada, para todos os fins práticos, como estando excomungada e fora da Igreja.
Aqui alguns indivíduos fizeram confusão entre os fatos exteriores, canônicos, e os fatos morais internos. Fazendo referência a alguns dos autores teológicos clássicos, eles argumentam que a “pertinácia” é o elemento que torna a heresia culpável, um pecado imputável. E eles observam corretamente que os protestantes que estejam de boa fé não são culpáveis ou culpados de pecado imputável por sua rejeição da doutrina católica. Portanto, argumentou-se, falta a pertinácia ao caso. E, dado que a pertinácia é admitida pelos próprios canonistas como essencial ao ato material de heresia, ela certamente não pode ser presumida com justiça. Seria isso presumir o próprio fato do crime, não apenas sua culpa. Ademais, argumenta-se, dado que a pertinácia implica culpa moral na rejeição da doutrina católica, se se deve presumir que protestantes de boa fé sejam pertinazes e excomungados, o mesmo se deve aplicar aos católicos que, por um erro inocente, proponham uma opinião que eles não percebem que está em conflito com o dogma. Assim, os católicos que se pronunciem acerca de teologia com conhecimento insuficiente estariam sempre incorrendo em excomunhão no foro externo em virtude da presunção de pertinácia.
Que terrível confusão! E que foi só agravada por canonistas que tentaram responder sem detectar a raiz da discordância, pois eles às vezes concederam o último argumento de seus adversários, permitindo que o cânon 2.200/2 se aplicasse à mera declaração exterior de uma posição que a Igreja rejeita. Assim, eles admitem que se pode presumir que um indivíduo está em conflito com a Igreja, muito embora ele seja um bom e firme católico e meramente culpado de uma formulação equivocada. E eles concedem isso por não verem outro modo de defender o que eles sabem ser verdade: que os protestantes, independentemente de se estão em ignorância invencível ou não, são presumidos como excomungados e considerados fora da comunhão exterior da Igreja.
Dois sentidos distintos da palavra pertinaz
O cerne do problema, repetimos, é que a palavra “pertinácia” foi usada diferentemente por diferentes autores. Cada um dos usos é defensável, e a distinção é, em grande parte, um acidente da história. Mas, já que ela existe, é crucial não aplicar a esse termo empregado num sentido afirmações feitas sobre o seu outro sentido.
Os canonistas definiram a “pertinácia” como o reconhecimento ou ciência que alguém tem do conflito entre a sua própria crença e a crença da Igreja. Como tal, a pertinácia é essencial ao delito canônico de heresia; ela é parte da matéria ou (tecnicamente) corpus delicti da heresia. Portanto, precisa ser provada antes que alguém possa ser considerado herege, e o cânon 2.200/2, com a sua presunção de culpabilidade, não ajuda a prová-la, pois ele se aplica somente quando a lei já foi infringida exteriormente. E, se a doutrina católica é negada inadvertidamente por alguém que não percebe o erro que cometeu, não há nem sequer uma infração exterior da lei que exige crença ortodoxa.
Os moralistas, por outro lado, consideram a pertinácia como o constituinte formal do pecado de heresia: o estado desordenado da vontade na adesão a uma crença oposta à Fé. Como tal, a pertinácia nunca existe senão quando a crença herética é imputavelmente pecaminosa. E, para tanto, não uma, mas duas coisas são necessárias. Primeiro, a autoridade doutrinal da Igreja tem de ser proposta suficientemente ao indivíduo em questão. Segundo, o ensinamento específico da Igreja que conflita com o erro dele tem de ser proposto a ele suficientemente. Noutras palavras, de acordo com a definição, a pertinácia implica na ciência de duas verdades distintas: não só de que a Igreja rejeita a opinião apresentada, mas também de que a Igreja é a guardiã designada por Deus da Revelação divina para os homens.
Não há dúvida de que a definição dos moralistas é a mais antiga. Se as autoridades antigas (Santo Agostinho: Contra Manichaeos, De Civ. Dei, l. XVIII, c. 51, n. 1; Santo Tomás de Aquino: Summa Theologiae, II-II, q. 11, a. 2; Caetano, ad locum; Santo Afonso de Ligório: Summa Theologiae Moralis, l. 3, n. 19), que empregaram a palavra “pertinácia” à vontade perversa de alguém que rejeita pecaminosamente uma parte da Fé Católica, não advertem explicitamente para as duas condições supramencionadas como necessárias para tornar pertinaz uma declaração herética, é porque escreviam sobre ex-católicos que caíram em heresia. E alguém que já foi católico está necessariamente ciente da autoridade magisterial da Igreja. Ele pode ter falhado em advertir para o conflito entre a sua opinião declarada e um dado ensinamento da Igreja, mas ele não pode ser invencivelmente ignorante de que as suas opiniões têm o dever de estar em conformidade com o ensinamento católico. Então, não é surpreendente ver alguns autores definirem a pertinácia como o elemento formal do pecado de heresia, o estado perverso da vontade, ao mesmo tempo que mencionando uma única condição para isso: a ciência do ensinamento católico com o qual a sua crença declarada entra em conflito. Quanto a católicos e ex-católicos, isso é exato. Quanto a pessoas batizadas fora da Igreja, e talvez invencivelmente ignorantes da autoridade magisterial dela, porém, é uma simplificação excessiva, devida aos fatores que já notamos.
Poder-se-ia argumentar que o emprego, pelos canonistas, do termo “pertinácia”, com um significado ligeiramente diferente do uso teológico clássico, é responsável pela confusão? Indubitavelmente os canonistas diriam que eles precisavam de uma palavra para a decisão deliberada de sustentar uma crença contrária à da Igreja e que “pertinácia” foi escolhida por ser o termo clássico, assim definido por muitos dos teólogos que lhe deram popularidade. Por onde, qualquer confusão é devida, ao invés, ao fato de que os teólogos haviam feito duas afirmações sobre a pertinácia (a saber: 1. Que ela consiste na ciência do conflito entre a opinião própria e a doutrina católica, e 2. Que ela é o constituinte formal do pecado imputável de heresia) as quais, com referência a católicos que caem em heresia, são ambas verdadeiras, mas, com referência a pessoas batizadas que estejam em ignorância invencível quanto à Fé Católica, não podem ser ambas verdadeiras. Noutras palavras, a confusão é devida ao acidente histórico de que os teólogos equacionaram dois conceitos que, nos casos que eles estavam considerando, coincidiam invariavelmente, mas que, numa categoria distinta de casos, para a qual eles não advertiram, não coincidem necessariamente.
Como quer que seja, confusão ulterior pode ser evitada tendo em mente constantemente que todos os canonistas são concordes acerca do que “pertinazmente” significa quando essa palavra é empregada no texto atual do cânon 1.325/2. Ela significa que o incréu está ciente do conflito entre a sua crença e a doutrina católica, e é portanto sinônima de com conhecimento.
Portanto, um batizado criado em ignorância invencível da Igreja Católica é, não obstante, um herege pertinaz no sentido do cânon 1.325/2. Aos olhos de Deus ele não é moralmente culpado, mas, devido à sua infração exterior da lei que exige de todos os batizados a aceitação da doutrina católica, presume-se no foro externo (pelo cânon 2.200/2) que ele é culpável e que incorreu em excomunhão. Ele certamente não pertence à Igreja institucional.
Se os teólogos continuam a empregar a palavra “pertinácia” para designar o estado perverso da vontade que faz da profissão de uma declaração herética um pecado imputável, eles precisam reconhecer que o uso feito por eles, na medida em que se aplica aos não-católicos que estejam ou possam estar em ignorância invencível da autoridade divina da Igreja, não coincide com o uso canônico.
Por outro lado, admitindo uma possibilidade que os canonistas aparentemente relutariam muito em aceitar, os teólogos talvez quisessem argumentar que o cânon 1.325/2 foi mal-entendido e que a pertinácia que ele exige para a heresia é a culpa moral. De acordo com esse entendimento, um protestante de boa fé não é, falando canonicamente, um herege, já que ele não é moralmente culpado. Visto que ele é certamente considerado pela Igreja no foro externo como estando excomungado, isso deve ser atribuído a uma presunção legal, a saber, de que o cânon 2.200/2 autoriza a presunção de pertinácia [cf. O CÂNON 2200, § 2, E A PERTINÁCIA, do mesmo autor]. Mas como essa presunção claramente não se aplica a católicos que inadvertidamente apresentem uma proposição não-ortodoxa, alguma distinção precisa ser encontrada por meio da qual o cânon 2.200/2 permita a presunção de pertinácia dos não-católicos invencivelmente ignorantes, mas não dos católicos que equivocadamente fazem declarações heréticas ao mesmo tempo que retêm disposições interiores ortodoxas. E, como o Código não presta qualquer apoio a uma tal distinção, fica claro por que os canonistas rejeitaram unanimemente qualquer tentativa de interpretar o Código dessa maneira.
Concordância quanto aos fatos, discordância
quanto à expressão deles
Não se deve permitir que a confusão e a discordância a que nos referimos esconda o acordo perfeito que subsiste entre todos os autores teológicos e canônicos aprovados quanto aos fatos relevantes, independentemente do modo como se deva entender que o atual Código de Direito Canônico os enuncia. Esse acordo mostra-se da melhor maneira possível ao resumirmos a doutrina correta sem fazer nenhum uso do vocabulário que se mostrou suscetível de ambiguidade, e isso nós julgamos que pode ser feito como segue:
Todo católico tem o dever de aceitar a regra católica da fé, crendo no que quer que a Igreja ensine que foi revelado por Deus. Qualquer declaração feita por um batizado que revele que ele não aceita a regra católica da fé e rejeita conscientemente alguma parte da Revelação divina que a Igreja propõe à nossa crença prova que ele não é um católico, mas um herege, e considerado como tendo incorrido em excomunhão.
Em contrapartida, uma declaração não-ortodoxa que possa dever-se à mera inadvertência não prova nada desse tipo. Alguém que faça uma tal declaração não é comprovadamente um herege até que a doutrina católica seja suficientemente trazida à atenção dele e ele permaneça obstinado em sua posição.
O batizado que verdadeiramente for provado que rejeita a regra católica da fé será culpado de pecado se a autoridade da Igreja tiver sido proposta suficientemente a ele – o que sempre se aplicará a quem já foi católico, mas não se aplicará aos não-católicos se forem invencivelmente ignorantes –, mas não de outro modo. Porém, seja ele culpado ou não de pecado, sua rejeição da regra católica da fé atesta que, para todos os fins exteriores, ele deve ser considerado um herege excomungado, não um católico.
O verdadeiro papel do cânon 2.200/2 e sua
presunção de malícia
Tendo estabelecido esses fatos, podemos agora notar a verdadeira função do cânon 2.200/2 com relação ao delito de heresia. Esse cânon determina que quando uma lei é infringida exteriormente, a infração é presumida como sendo culpável para os fins do foro externo. Se um católico faz uma declaração não-ortodoxa, isso não dá a ninguém o direito de presumir, para qualquer fim que seja, que a não-ortodoxia dele é deliberada se isso já não for evidente. Mas, uma vez constatado que a não-ortodoxia foi consciente, o cânon 2.200/2 exige, sim, a presunção de que o afastamento da ortodoxia não foi meramente simulado, devido ao medo ou à demência. E com relação aos não-católicos, o cânon 2.200/2 estipula que eles são para os fins práticos considerados como culpáveis por sua heterodoxia e portanto excomungados – uma presunção legal que não altera de modo nenhum o fato de que eles talvez sejam invencivelmente ignorantes acerca da autoridade da Igreja, e portanto, no foro interno, sem culpa. Em ambos os casos, a Igreja, como instituição visível juridicamente capaz de reconhecer os seus membros, não pode considerar tais pessoas como sendo católicas.
Material e formal: mais ambiguidade
A discussão precedente leva, logicamente, à consideração da ambiguidade análoga, relevante para o mesmo tópico, que talvez tenha sido fonte de confusão ainda mais séria que a palavra “pertinaz”; a saber, a distinção entre heresia formal e material.
Todo objeto material existe em virtude de uma união de dois elementos: o estofo de que ele é feito (a matéria) e o formato em que esse estofo é moldado (a forma). Assim, um cálice é feito de vidro: sua matéria; mas ser feito de vidro não basta para fazer dele um recipiente apto para dele se beber vinho; ele também precisa de sua forma: o formato de um cálice.
A filosofia escolástica tomou a distinção dos dois elementos constitutivos dos objetos naturais e a aplicou, por extensão ou analogia, a outras entidades. Sua mais conhecida aplicação teológica é ao pecado. Cada pecado é considerado como consistindo de sua matéria (o ato físico) e sua forma (o ato desordenado da vontade). E essa aplicação é muito útil, pois facilita o reconhecimento dos casos em que a matéria do pecado não está acompanhada de sua forma. Assim, um homem que atira em seu vizinho realizou o ato físico próprio do pecado de assassinato. Mas se ele tivesse confundido, sem culpa, seu vizinho com um animal selvagem, sua intenção não teria sido desordenada. A matéria do pecado estava presente, mas não a sua forma. Passamos a dizer que esse homem pecou materialmente, mas não formalmente. Mas o que isso realmente significa é que ele não é culpado de pecado de jeito nenhum, pois na ausência do elemento formal, nenhuma entidade pode existir. Um pecado material não é realmente, ou plenamente, um pecado, não mais do que uma vidraça é um copo antes de ser moldada no formato de um copo.
Aplicação desses termos à heresia
Com relação ao pecado de heresia, foi dito que a matéria era o erro intelectual envolvido no assentimento a uma proposição heterodoxa, ao passo que a forma era a adesão obstinada da vontade. E, novamente, essa distinção esclareceu utilmente o fato de que alguém que assente a uma proposição heterodoxa por inadvertência, sem adesão obstinada da vontade, não era culpado do pecado de heresia.
O que turvou as águas foi o desenvolvimento linguístico enganador pelo qual a heresia material foi dita transformar a pessoa que a professa num herege material. Nenhuma conclusão poderia parecer mais natural para o leigo, mas ela não se segue realmente pela lógica. Um adestrador de leão aposentado não é, afinal de contas, um homem que adestra leões aposentados! E surge um problema sério quando designamos como herege material qualquer pessoa que dê assentimento, sem culpa moral, a uma proposição herética. O primeiro é que você criou uma categoria que abrange dois tipos muito distintos de membros e você, portanto, corre o risco de confundir os dois. Pois segundo essa definição, um bom católico que inadvertidamente sustenta uma doutrina condenada, sem se dar conta de que está condenada, é um herege material. E também o é um protestante se ele for invencivelmente ignorante das prerrogativas da Igreja. E muito embora seja verdade que há uma semelhança entre os dois casos (pois ambos, de fato, sustentam em sua mente doutrina não-ortodoxa e nenhum dos dois é culpável aos olhos de Deus por fazê-lo), sem embargo, há também um abismo imenso entre eles. Pois o primeiro é um católico, que adere habitualmente à regra católica da fé, ao passo que o último é um não-católico, que não tem qualquer conhecimento da correta regra da fé e é jogado de um lado para o outro no mar traiçoeiro da opinião particular.
A consequência inevitável dessa assimilação enganadora de dois tipos tão diferentes de pessoas é que elas gradualmente passarão a ser consideradas como verdadeiramente afins. Isso poderia acontecer numa de duas maneiras. Católicos equivocados poderiam ser considerados como nada melhores que protestantes de boa fé (e alguns “linha-dura” praticamente adotaram essa posição, argumentando que o erro mais inocente cria uma presunção de ânimo herético – noção esta que já vimos ser falsa). Mais comum tem sido o modo de ver não menos calamitoso segundo o qual um protestante, se estiver invencivelmente ignorante das prerrogativas da Igreja, não está em pior situação que um católico que inadvertidamente faça uma declaração doutrinária incorreta: como se a adesão à regra católica da fé, isto é, a submissão ao Magistério, fosse irrelevante, quando na realidade consiste naquilo de que a pertença jurídica à Igreja depende.
Corretamente, o elemento material envolvido em ser um herege é o dissentimento consciente da regra católica da fé, ao passo que o elemento formal é o estado perverso da vontade implicado nesse dissentimento. Feita assim a distinção, um católico que inculpavelmente proponha uma proposição herética por inadvertência pode talvez dizer-se que apresentou uma heresia material; mas ele não pode ser chamado de herege material. Ele não é um herege em nenhum sentido. Um herege é alguém que dissente totalmente da regra católica da fé, e ele será chamado de herege material se ele for invencivelmente ignorante da autoridade da Igreja que ele rejeita, e de herege formal se a autoridade da Igreja tiver sido proposta suficientemente a ele, de modo que o seu dissentimento dela seja culpável. (Isso é explicado com clareza pelo Cardeal Billot: De Ecclesia Christi, ed. 4, pp. 289-290).
Então, de acordo com o uso correto do termo, conforme delineado acima, um católico nunca pode se tornar um herege material. Ele não é invencivelmente ignorante da autoridade da Igreja, e qualquer dissentimento consciente dos ensinamentos dela torná-lo-á, portanto, um herege formal. Hereges materiais são exclusivamente aqueles batizados não-católicos que errem de boa fé. É por isso que o Dr. Ludwig Ott observa que “hereges públicos, mesmo aqueles que erram de boa fé (hereges materiais), não pertencem ao corpo da Igreja, ou seja à comunidade jurídica da Igreja” (Fundamentals of Catholic Dogma, p. 311).
E, aliás, a expressão escolhida pelo Dr. Ott – “hereges que erram de boa fé” – é aquela usada no Código de Direito Canônico (cânon 731), que evita completamente o termo potencialmente enganador “hereges materiais”.
Os efeitos da heresia
Antes de encerrar esta exposição sobre a natureza da heresia, talvez se deva fazer alguma menção a seus efeitos.
O cânon 1.325 rotula como herege todo aquele que, embora ainda chame a si próprio de cristão, pertinazmente (i.e. conscientemente) negue ou duvide de qualquer verdade de fide. Qualquer um a quem isso se aplique é considerado como não sendo católico caso manifeste externamente a sua heresia. (Se for puramente interna, ele cometeu um pecado mortal contra a virtude da fé, mas permanece dentro da comunhão da Igreja, e sem censura. – Cardeal Billot, op. cit. pp. 295 et seq.)
Todos os hereges incorrem em excomunhão automática em virtude do cânon 2.314. Isso precisa ser cuidadosamente distinguido de sua expulsão da Igreja: é possível alguém ser excomungado e ainda assim permanecer membro da Igreja, ou estar fora da Igreja mas, não obstante, não excomungado, como no caso de crianças batizadas criadas na heresia, entre a idade da razão (em torno de sete anos) e a idade de quatorze anos, antes da qual não é possível incorrer em excomunhão.
Alguém que cometa heresia pela ignorância do dever de acreditar em tudo que a Igreja ensina não incorrerá na excomunhão a não ser que a sua ignorância seja “afetada”, i.e. deliberadamente procurada (cânon 2.229). Mas, no foro externo, ele será considerado excomungado até que se prove o contrário. (Na prática, os convertidos que alegam, com base na ignorância, não terem incorrido em excomunhão são geralmente absolvidos condicionalmente, para evitar um procedimento jurídico complicado para avaliar a sua alegação.)
Os clérigos heréticos, assim como os leigos, incorrem em excomunhão; e em infâmia se aderirem publicamente a uma seita. Diferentemente dos leigos, eles também devem ser privados de qualquer benefício, dignidade, pensão ou ofício na Igreja a não ser que se arrependam ao serem admoestados; e, se uma segunda monição provar-se infrutuosa, eles devem ser depostos. Na realidade, se a heresia deles for pública, os seus ofícios são abandonados automaticamente sem qualquer advertência (cânon 188/4). E, se o clérigo herético não só negar ou duvidar de um dogma, mas aderir publicamente a uma seita herética, ele não apenas perderá o seu ofício ipso facto e incorrerá em infâmia; ele também, caso a monição não logre emendá-lo, será degradado (cânon 2.314).
Trad. por Felipe Coelho.
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