SOBRE OS CARISMAS – I

S. João Crisóstomo | século IV

XXXII HOMILIA

I Coríntios 12,

27. Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um por sua parte.

No intuito de evitar que alguém retruque: O que nos importa o exemplo do corpo? Ele obedece à natureza, enquanto nossas boas ações dependem do livre-arbítrio, o Apóstolo aduz nossas ações e explica que, por decisão da vontade, devemos ter a mesma concórdia que os membros têm por natureza, dizendo: “Ora, vós sois o corpo de Cristo”. Se, de fato, não convém haver dissensões no corpo, muito mais no corpo de Cristo, e tanto mais quanto a graça é mais poderosa do que a natureza. “E sois os seus membros, cada um por sua parte”. Não constituímos apenas um só corpo, mas também somos membros. A respeito dos dois casos ele disputou acima, reunindo muitos membros em um só corpo, e mostrando que, segundo a imagem do corpo, todos nos tornamos um só, e esta unidade é formada de muitos membros, está em muitos, compõe-se de muitos e pode haver entre muitos. O que significa: “Cada um por sua parte”? Quanto a vós e em medida conveniente, sois uma parte. “Corpo” referia-se ao corpo total, e não à igreja de Corinto, mas àquela difundida por toda a terra. “Por sua parte”, isto é, porque vossa igreja é parte da Igreja que está em toda a parte da terra, e do corpo formado por todas as igrejas, de sorte que não somente entre vós, mas também com toda a Igreja, que se encontra no orbe inteiro, deveis estar em paz, se sois justos, se sois membros de todo o corpo.

28. E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, doutores. Vêm, em seguida, os dons dos milagres, das curas, da assistência, do governo e o dom das línguas.

Faz aqui o que foi supramencionado: eles se gloriavam do dom das línguas, e por isso Paulo o coloca sempre em último lugar. Na realidade, ele não propõe o primeiro e segundo lugar sem motivo, mas preestabelece o mais precioso, assinalando dessa forma o que é inferior. Por essa razão, prepõe os apóstolos, possuidores de todos os carismas. E não disse simplesmente: Deus estabeleceu na Igreja apóstolos, ou profetas, e sim: “Em primeiro lugar, em segundo lugar, em terceiro lugar”, destacando o fato que assinalei. “Em segundo lugar, profetas.” Profetizavam alguns, como as filhas de Filipe, Agabo, aqueles mesmos que havia em Corinto, dos quais diz: “Quanto aos profetas, dois ou três tomem a palavra” (1Cor 14,29). E escrevia a Timóteo: “Não descuides do dom da graça que há em ti, que te foi conferido mediante profecia” (1Tm 4,14).

E havia então muito mais profetas do que no Antigo Testamento. Não se reduzia o dom da profecia a dez, vinte, cinquenta, cem profetas, mas essa graça se efundia largamente, e em cada Igreja existiam muitos. Se Cristo disse: “A Lei e os profetas até João” (Mt 11,13), referia-se aos profetas que predisseram sua vinda. “Em terceiro lugar, doutores”. Com efeito, tudo o que fala o profeta vem do Espírito; quanto ao doutor, algumas vezes enuncia o que provém da própria mente. Por isso dizia: “Os presbíteros que exercem bem a presidência são dignos de dupla honra, sobretudo os que trabalham no ministério da palavra e na instrução” (1Tm 5,17). Quem fala tudo no Espírito não emprega esforço, e por isso o Apóstolo o coloca após o profeta; de fato, nele tudo é dom, enquanto no outro acha-se incluído também o esforço humano. Por isso, tira muito de si, no entanto de acordo com as divinas Escrituras. “Vêm, em seguida, os dons dos milagres, das curas”. Vês que novamente das curas distingue os milagres, conforme fez anteriormente? Os milagres estão um pouco acima das curas. Efetivamente, quem opera milagres castiga e cura; quem, porém, possui a graça das curas, somente sana. E vê a perfeita ordem que emprega, colocando a profecia antes dos milagres e das curas. Efetivamente, mais acima, quando dizia: “A um o Espírito dá a palavra da sabedoria; a outro, a palavra da ciência” não se exprime em ordem, mas sem discriminação; aqui, ao invés, põe alguns primeiro e outros depois. Por que, então, dá precedência à profecia? Porque também no Antigo Testamento ocupa esse lugar. Com efeito, ao falar Isaías aos judeus, e demonstrar o poder de Deus, salientou o argumento da abjeção dos demônios; e disse que predizer o futuro era o máximo indício da divindade. Cristo, na verdade, que tantos milagres realizara, declarou não ser pequeno este sinal de sua divindade. Frequentemente assim termina o sermão: “Digo-vos isto agora… para que, quando acontecer, creiais que Eu sou” (Jo 13,19). Com razão, à profecia se pospõe o dom das curas; mas por que também ao da doutrina? Porque anunciar a palavra da pregação e semear a piedade no ânimo dos ouvintes, não é a mesma coisa que operar milagres, porque estes se realizam por causa do dom.

Quem ensina com a palavra e o exemplo da vida é maior. São denominados doutores os que ensinam com as obras e instruem com a palavra. Isso fez com que os apóstolos fossem apóstolos. Nos primórdios, de fato, alguns menos importantes tiveram aqueles dons, como os que diziam: “Senhor, não foi em teu nome que profetizamos… e fizemos muitos milagres?” e em seguida ouviam a resposta: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade” (Mt 7,22-23). Um perverso jamais utilizaria duplo modo de ensino: por obras e por palavras. Não é de admirar que o Apóstolo dê precedência aos profetas, pois não se refere simplesmente aos profetas, mas aos que pela profecia ensinaram e tudo falaram tendo em vista o bem comum, conforme nos esclarece na continuação: “Da assistência, do governo”. O que significa: “Assistência”? Proteger os fracos. Mas isso é carisma? Dize-me. Sem dúvida, é um dom de Deus proteger e distribuir bens espirituais; aliás, ele denomina carismas também muitas ações nobres nossas, a fim de nos preservar do desânimo, mas assinala que sempre precisamos do auxílio de Deus, ensina-nos a gratidão e assim nos torna mais propensos a agir, e desperta planos de ação.“O dom das línguas.” Vês onde coloca esse dom, sempre lhe destinando o último lugar? Aliás, uma vez que da lista se depreendem as grandes diferenças, e deste modo instigava-se a inveja dos que tinham carismas menores, por fim ataca-os com grande vigor, enquanto assaz lhes comprova que não se achavam muito diminuídos. Com efeito, era provável que eles, ao ouvirem tal explicação, replicassem: E por que não somos todos apóstolos? Acima empregou palavras de consolo, assinalando que necessariamente devia ser assim, de vários modos e sob a figura do corpo: “O corpo não se compõe de um só membro”; e ainda: “Se o conjunto fosse um só membro, onde estaria o corpo?”; e foram concedidos para proveito de todos: “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos”; e enfim, que todos haurem do mesmo Espírito e o carisma é indébita dádiva: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo”; e a manifestação do Espírito se realiza através de todos: “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito”; e são configurados conforme apraz ao Espírito e a Deus: “Mas, isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz”; e: “Mas Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua vontade”; e os menores são igualmente necessários: “Os membros do corpo que parecem mais fracos, são os mais necessários”; e são igualmente necessários, porque são integrantes do corpo tanto quanto os maiores: “O corpo não se compõe de um só membro, mas de muitos”; e os maiores precisam dos menores:“Nem tampouco pode a cabeça dizer aos pés: Não preciso de vós”; e recebem maior honra: “Aqueles que parecem menos dignos, são os que cercamos de maior honra”; e porque têm comum e igual solicitude: “Os membros tenham igual solicitude uns para com os outros”; e uma só é a glória e uma só a dor de todos eles: “Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria”. Acima, portanto, consolara desta maneira; aqui, porém, emprega palavra severa e repreensão. Com efeito, segundo o supramencionado, nem sempre se deve consolar, nem sempre fechar a boca. Por isso também ele, visto que havia consolado muito, por fim ataca-os vigorosamente, dizendo:

29. Porventura são todos apóstolos? Todos profetas? Todos têm o dom das curas?

Não se detém no primeiro ou segundo carisma, mas procede até o último, ou dizendo: Não posso ser tudo, segundo outra passagem: “Se o conjunto fosse um só membro, onde estaria o corpo?”, ou daí retira outra palavra de consolo. Qual? Mostrar que se trata de menores e maiores, porque nem a estes últimos foram outorgados os dons todos. Por que, pois, ficas pesaroso de não possuíres o dom das curas? Pondera que, apesar de bastante menor, muitas vezes não possui teu dom aquele que tem algo de maior. Por isso disse o Apóstolo:

30. Todos falam línguas? Todos as interpretam?

Como Deus a todos não concedeu totalmente os grandes dons, mas um a estes, outro àqueles, assim também fez relativamente aos menores, que não ofereceu a todos. Agiu desta forma, promovendo com isto grande concórdia e caridade, a fim de que cada qual, necessitado do próximo, se una a seu irmão. Conserva idêntica disposição relativamente às artes, aos elementos, às plantas, aos nossos membros, em tudo enfim. Após, segue-se um consolo muito oportuno que pode reanimar e tranquilizar a alma dolorida. Qual?

31. Aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos.

Assim se expressando, sugere que houve motivo para que eles recebessem dons menores e que está em seu poder, se quiserem, receber os maiores. Tendo dito: “Aspirai”, reclama deles aplicação e desejo das coisas espirituais. E não disse: maiores, e sim: “mais altos”, isto é, mais úteis, mais proveitosos. Quer dizer: continuai a aspirar pelos carismas, e eu vos mostrarei um caminho para os carismas. Não disse: carisma, e sim: “caminho” para valorizar o que vai dizer. E não vos aponto um, dois ou três carismas, mas um caminho que conduz a todos eles; e não apenas um caminho, mas ainda com hipérbole, aberto igualmente a todos. Não sucede como aos carismas, dos quais uns são doados a estes e outros àqueles, mas nem todos são concedidos a todos; aqui a dádiva é universal. Por isso convida a todos: “Aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos”, referindo-se à caridade para com o próximo. Em seguida, empreende a exposição a respeito e após tecer-lhe belo elogio, primeiro corta uma comparação com os carismas, apontando com grande cautela que sem ela nada são. Na verdade, se logo tratasse da caridade, e dissesse depois: “Passo a indicar-vos um caminho”, isto é, a caridade, e não emitisse uma comparação, alguns teriam zombado, por não apreenderem claramente a sua força, e ainda cobiçosos dos dons. Por essa razão, não a nomeia imediatamente, mas tendo primeiro despertado com a promessa a atenção do ouvinte, diz: “Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” e incita o desejo; nem assim, contudo, logo entra no assunto, mas aguça o desejo, primeiro disserta acerca dos mesmos e acentua que, sem a caridade, de nada valem; sugere-lhes a máxima necessidade de se amarem mutuamente, porque a omissão da caridade será a causa de todos os males. Talvez assim e com razão ela parecerá grande; na verdade, os carismas não somente não os uniram, mas até separaram os que estavam congregados; por si, contudo, a caridade haveria de conciliar os que pelos carismas se haviam dividido, congregando-os num só corpo. O Apóstolo não o declara imediatamente, mas apresenta o que eles principalmente desejavam, a saber, que a caridade é dom, e caminho excelente para todos os carismas. Por isso, embora não queiras fazer o que deves, amar o irmão, a fim de receberes um sinal maior e um copioso carisma, acolhe a caridade. E observa de onde o Apóstolo começa. Primeiro daquele que aparentemente era o mais admirável e importante entre os coríntios, a saber, o dom das línguas; e aduzindo o carisma, não trata dele só enquanto o possuíam, mas vai muito além. Na verdade, não disse: Se falar as línguas, e sim:

13,1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens

O que significa: “dos homens”? De todos os povos do orbe. E não lhe basta esta hipérbole, mas vai muito mais longe, acrescentando: e dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine.

Vês até onde rebaixa e lança por terra o carisma tão estimado? Não afirmou somente: Nada sou, mas: “Seria como um bronze que soa”, algo de insensível e inanimado. Como, porém, um bronze que soa? Emite, de fato, um som, mas em vão e inutilmente, para nenhum proveito. Além de nada realizar, pareço incomodar e pesar a muitos. Vês assemelhar-se aos seres inanimados e insensíveis quem está desprovido de caridade? Aqui se reporta à língua dos anjos, sem atribuir, contudo, um corpo aos anjos, mas o que diz é o seguinte: embora fale da maneira como os anjos costumam se comunicar entre si, sem a caridade nada sou; ao invés, faço-me oneroso e molesto. Diz o mesmo em outra passagem: “Ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra” (Fl 2,10). Não se exprime desse modo porque está atribuindo aos anjos joelhos e ossos. De forma alguma. Mas quer sublinhar a intensa adoração, da maneira em que nós a exprimimos. Assim nesse lugar não chamou de língua o órgão carnal, mas quis representar o mútuo colóquio dos anjos pelo modo que conhecemos. Em seguida, a fim de tornar a oração mais agradável, não se detém no dom das línguas, mas avança para os demais carismas, rejeita a todos se a caridade faltar, e esboça a imagem da caridade. E como quer ampliar a oração, começando dos menores, sobe aos maiores. Quando queria indicar sua ordem, colocou no fim o dom das línguas; agora enumera-o primeiro, subindo, segundo disse, aos poucos até os maiores. Pois, tendo se referido às línguas, logo passa à profecia, e diz:

2. Ainda que eu tivesse o dom da profecia,

E ainda com hipérbole. Como ali não se referiu às línguas, mas às línguas de todos os homens, e adiantou-se até as dos anjos, e então explicou que este carisma nada é sem a caridade, igualmente aqui não somente alude à profecia, mas à suma profecia. Pois, tendo dito: “Ainda que eu tivesse o dom da profecia”, fez o acréscimo: o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, com ênfase apresenta também aqui o carisma. Depois, progride em direção aos restantes. E para evitar que, enumerando cada um, se torne aborrecido, apresenta a mãe e fonte de todos, e novamente com hipérbole, nesses termos: ainda que tivesse toda a fé.

Não se contentou com afirmá-lo, mas ainda completou com o que Cristo declarou ser o máximo: a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria.

Pondera que ainda aqui diminuiu a dignidade de dom das línguas. Efetivamente, destacou muito o lucro da profecia, pelo fato de conhecer os mistérios e ter toda ciência e o grande feito da fé por transportar montanhas, enquanto ao dom das línguas, apenas cita o carisma e encerra o assunto. Considera que em poucas palavras abraça todos os carismas, mencionando a profecia e a fé, pois os milagres se realizam com palavras ou obras. Mas, por que asseverou Cristo que a mínima porção de fé pode transferir montes? – De fato, aponta para um mínimo, ao declarar: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: ‘Transporta-te daqui para lá, e ele se transportará’” (Mt 16,20). – Paulo, porém, afirma que esta é “toda a fé”. O que dizer? Menciona a ação de transportar montanhas, porque é grandiosa e não porque esgotasse o vigor contido na fé, mas porque aos mais rudes esse feito parecia grande devido ao volume material; daí vem que exalta a proposição. Quer dizer o seguinte: Se tiver toda fé e se puder transportar montes, mas não tiver caridade, nada sou.

3. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens em sustento dos famintos, ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria.

Ah! Que hipérbole! No entanto, explicita com um suplemento. Não disse: Se desse metade, ou duas, ou três partes de meus bens aos pobres, e sim: “Todos os meus bens”. Nem disse: Se desse, mas: “Ainda que distribuísse em sustento” de sorte que une às despesas também a solicitude no serviço.

Ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas”. Não disse: Ainda que eu morra, mas aqui igualmente com hipérbole. Menciona a pior espécie de morte, a saber, ser queimado vivo, e disse que também isso sem a caridade não é ação grandiosa. Por conseguinte conclui: “Isso nada me adiantaria”. Mas ainda não teria desenvolvido toda a hipérbole enquanto não apresentasse os testemunhos de Cristo acerca da esmola e da morte. Quais são estes testemunhos? Ele asseverou ao rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres… Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21); e tratando da caridade para com o próximo, disse: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Daí se evidencia que também diante de Deus este é o maior bem. Ora, eu digo, afirma Paulo, que mesmo que por causa de Deus entreguemos a vida, e nem apenas entreguemos, mas até sejamos queimados (é o que significa a palavra: “Ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas”), não retiraremos grande lucro se não amarmos o próximo.

Em consequência, não é de admirar que assegure não adiantarem muito os carismas sem a caridade, porque a vida é preferível aos carismas. De fato, muitos que manifestaram posse de carismas, por se terem pervertido, foram castigados; assim aqueles que em nome de Cristo profetizavam, expulsavam muitos demônios, e faziam muitos milagres, qual Judas, o traidor. Outros fiéis, porém, de vida pura, não precisaram de outro meio para a salvação. Se, segundo afirmei, carecem dos carismas, nada de espantoso. Certamente é grande hipérbole, e produz grande dificuldade afirmar que uma vida cuidadosa e pura nada pode sem a caridade, principalmente quando Cristo parece dar grande valor a ambas, isto é, à renuncia dos bens e aos perigos do martírio. Pois ao rico asseverou, conforme mencionei: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres… Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21); e aos discípulos, falando do martírio, declarava: “O que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”; e: “Quem der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho dele diante de meu Pai que está nos céus” (Mt 16,25 e 10,32). Efetivamente, é grande a aflição dessa ação preclara, e quase ultrapassa a própria natureza; sabem-no muito bem os que foram dignos dessas coroas. Palavra alguma pode exprimi-lo, de tal forma é peculiar à alma generosa e em extremo admirável.

Entretanto, esse feito extraordinário não adianta muito sem a caridade, afirma Paulo, mesmo se unido à renúncia aos bens. Por que, então, assim se expressa? Tentarei explicá-lo, interrogando primeiro de que maneira aquele que dá todos os bens em alimento pode não ter caridade. Na verdade, quem está disposto a entregar o corpo às chamas, embora tenha os carismas, talvez não ame. Mas como pode não amar quem não só dá os seus bens, mas também os dispende em alimento? O que responder? Talvez Paulo suponha existir o que é irreal, segundo gosta de fazer quando procura enunciar uma hipérbole, conforme agiu ao escrever aos gálatas: “Entretanto, se alguém – ainda que nós mesmos ou um anjo do céu – vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema” (Gl 1,8). Ora, nem ele, nem um anjo faria tal coisa; mas, para destacar a excelência do fato, alude a um caso que nunca haverá de suceder. E ainda escreve aos romanos: “Nem os anjos nem os principados, nem as potestades… poderão nos separar do amor de Deus” (Rm 8,38-39). Os anjos não o fariam; mas aqui também supõe o que não existe, segundo também o que se segue: “Nenhuma outra criatura”. Embora não haja outra criatura, porque abrange a todas, as que estão no alto e embaixo, quando diz: Todas. Mas aqui supõe até o que não existe, manifestando seu desejo por meio de uma hipérbole. Aliás, faz o mesmo, ao dizer: “Ainda que alguém distribuísse todos os bens, se não tivesse a caridade, nada lhe adiantaria”. Em todo caso, ou é isso o que quer dizer, ou que os doadores estejam unidos na caridade aos beneficiados, não deem simplesmente sem comiseração, e sim com compaixão, afeição, boa vontade e condoídos dos indigentes. Justamente por isso foi estabelecida a esmola pela lei de Deus. De fato, Deus poderia sem cooperação alguma alimentar os pobres, mas, para nos unir na caridade e despertar mutuamente o amor ao próximo, ordenou que os alimentássemos. Em consequência, diz também em outra passagem: “A boa palavra é melhor do que o presente”. E: “Uma palavra não vale mais do que um rico presente?” (Ecl 18,16-17). E Deus disse: “Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt 9,13). Costuma-se amar os beneficiados e esses serem gratos aos benfeitores. Daí se origina um vínculo de amizade e a lei o ordena. Mas, pergunta-se por que, tendo Cristo declarado a perfeição de ambas as ações, o Apóstolo assegura serem imperfeitas sem a caridade. Não é contradição. De forma alguma. Está perfeitamente de acordo com ele. Pois ao rico não apenas disse: “Vai, vende os teus bens e dá aos pobres”, mas concluiu: “Depois, vem e segue-me”. No seguimento de Cristo, nada mais comprova que alguém é seu discípulo do que o amor ao próximo. “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). E ao declarar: “Quem perder sua vida por mim, achá-la-á” (Mt 10,39); e: “Quem der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho dele diante de meu Pai que está nos céus” (Mt 10,32).

E o mais admirável na caridade é o seguinte: as outras virtudes aliam-se a alguns vícios. Por exemplo, o que se desfez das propriedades muitas vezes por isso se orgulha; o eloquente, não raro, acha-se contaminado pela ambição da glória; o humilde, devido a isso, interiormente por vezes se ensoberbece; a caridade, porém, está livre de toda essa malícia, porque ninguém se exalta em contraposição ao ser amado. Não me tragas apenas um só que ame, mas todos juntamente e então verificarás a força do amor; ou antes, se te apraz, imagina primeiro um ser amado e um amante, amante que ama como convém. A terra para ele é como o céu, frui em toda parte de tranquilidade, e tece para si inúmeras coroas. Ele conservará a alma isenta de inveja, ira, ciúme, arrogância, vanglória, concupiscência, amor desordenado e paixão. Ninguém quer infligir um mal a si mesmo, nem este ao próximo. Nesse estado acha-se em companhia do próprio Gabriel, embora ainda esteja na terra. E é tal quem possui a caridade. Quem opera milagres, e tem perfeita ciência sem a caridade, mesmo que ressuscite inúmeros mortos, não alcançará grande lucro, porque se mantém isolado dos outros, e não adere à união com nenhum dos companheiros de serviço. Por isso Cristo declarou que amar o próximo é sinal da caridade perfeita. Pois disse: “Se tu me amas mais do que estes, ó Pedro, apascenta as minhas ovelhas”. Vês que também aqui novamente insinua que a caridade é maior do que o martírio. De fato, se um homem tiver um filho querido, e estiver pronto a dar a vida por esse filho e de outro lado, se ele ama o pai, mas não tem os mesmos sentimentos para com seu próprio filho, ofenderia em extremo o pai, que não aceitaria que ele o amasse desprezando o neto. Se isso sucede entre pai e filho, muito mais entre Deus e os homens: Deus é o mais amoroso dos pais. Por isso, tendo afirmado: “Amarás ao Senhor teu Deus… Esse é o grande e o primeiro mandamento. O segundo, contudo”, não calou, mas adicionou: “é semelhante a esse: Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37.39). E observa com que espécie de hipérbole o exige. Efetivamente, a respeito de Deus, diz: “De todo o coração”, enquanto, relativamente ao próximo, ordena: “Como a ti mesmo”, o que equivale àquela expressão: “De todo o coração”. Se isso fosse cuidadosamente observado, jamais se conheceria escravo, ou livre, príncipe ou súdito, rico ou pobre, pequeno ou grande; nem o diabo o conheceria. Não diria um demônio e mais um outro, mas antes, cem ou inúmeros demônios nada poderiam onde existe caridade. O feno suportaria melhor que se lhe tocasse fogo do que o diabo toleraria a chama da caridade. Ela é mais forte do que uma muralha, mais dura do que o diamante; e, se mencionares outra matéria mais resistente, a firmeza da caridade ultrapassa a todas. A essa nem as riquezas, nem a pobreza vence; ou melhor, se houvesse caridade, não haveria pobreza, nem excessivas riquezas, mas somente as vantagens de ambas. Ora, assim tiraríamos proveito da abundância das riquezas, no entanto livres das preocupações; nem nos atormentaríamos com a solicitude acerca das riquezas, nem com o medo da pobreza.

E por que falar do proveito da caridade? Considera a própria caridade em si como é grande, que alegria proporciona, quanta graça estabelece na alma; esta é a sua principal prerrogativa. Na verdade, outras espécies de virtudes incluem luta, por exemplo, o jejum, a temperança, as vigílias com a inveja, a concupiscência com o menosprezo; entretanto a caridade traz grande proveito, muito prazer, nenhum trabalho. À semelhança de excelente abelha, de toda parte coleta coisas boas, que depõe na alma daquele que ama. A um escravo, a caridade torna a servidão mais suave que a liberdade. Quem ama não se alegra tanto de dar ordens quanto de recebê-las, embora seja agradável mandar. A caridade altera a própria natureza das coisas, e traz nas mãos todos os bens, mais carinhosa que uma mãe, mais opulenta que uma rainha; torna leve e fácil o que é laborioso, facilita a virtude, e manifesta que o pecado é muito amargo. Atenção! Parece desagradável dar, todavia ela o faz suave; receber o alheio parece delicioso e ela não lhe deixa a aparência de aprazível, aconselhando fugir de tal ato enquanto mau. Ainda maldizer parece suave a muitos; ela, porém, o declara amargo e doce o bendizer. Na verdade, nada mais suave do que elogiar o ser amado. Ainda, a ira acarreta certo prazer; aqui, porém, de forma alguma, mas fica enervada. Mesmo que o ser amado venha causar incômodos ao que o ama, jamais surge a ira, e sim lágrimas, exortações e súplicas, de tal modo mantém-se longe de se exasperar. Ao presenciar uma falha, chora e fica penalizado; mas tal dor ocasiona certo prazer, porquanto as lágrimas e o pesar da caridade são mais suaves do que a alegria e o riso. Não se sentem mais confortados os que riem do que os que choram pelos amigos. E se não acreditas, tenta enxugar-lhes as lágrimas, e eles acolheriam mal, considerariam insuportável. Ora, retrucas, o amor une-se a um prazer desordenado. Absolutamente, não. Fala corretamente, ó homem. Nada tão puro como a caridade genuína.

Não me fales daquela trivial e vulgar, mais doença do que caridade verdadeira, mas da desejada por Paulo, que visa ao bem do ser amado e verificarás ser mais ardorosa do que o amor dos pais. Ora, assim como os que ambicionam as riquezas, não querem gastá-las, mas consideram mais agradável viver com parcimônia do que vê-las diminuir, também o afeiçoado a outrem há de preferir inúmeros males a vê-lo ferido. Como, então, replicas, aquela egípcia, que amava a José, quis ultrajá-lo? Porque lhe dedicava amor diabólico. José, contudo, não o tinha, e sim a caridade reclamada por Paulo. Reflete, portanto, sobre a caridade donde provinham suas palavras e o que ela lhe dizia: Ultraja-me e torna-me adúltera; injuria meu marido, subverte toda a casa, e exclui a confiança em Deus. Palavras de quem não o amava, nem a si mesma. Ele, porém, porque amava sinceramente, repeliu tudo isso. E para saberes qual a sua preocupação, hás de deduzir da exortação que fez. Não somente a repeliu, mas admoestou-a a extinguir aquela chama: “Estando eu aqui, meu senhor não se preocupa com o que se passa na casa” (Gn 39,8). Logo traz-lhe a lembrança do marido para incutir-lhe pudor. Não disse: teu marido, mas: “Meu senhor”, o que poderia melhor retê-la e levar a pensar quem era, a quem amava, a senhora ao escravo. Pois, se ele é senhor, tu és senhora. Envergonha-te, sendo tal, de falar com o escravo, e pondera de quem és mulher, com quem te queres unir, e para com quem és ingrata, e que eu lhe devo a maior benevolência. Vê como enaltece os benefícios. Uma vez que a impudica estrangeira nada de sublime podia cogitar, incute-lhe pudor com raciocínios humanos, dizendo: “Estando eu aqui, meu senhor não se preocupa com o que se passa na casa”, isto é, confere-me inúmeros benefícios, e não posso lesar meu patrão em questões importantes. Fez-me o segundo em sua casa, e “nada me interditou, senão a ti”. Aqui, para envergonhá-la, exalta-lhe os sentimentos, com grande respeito. Não se interrompeu, mas ainda incluiu o título que poderia retê-la: “Porque és sua mulher. Como poderia eu praticar tão grande mal?” O que dizes? O marido não está presente, nem sabe que foi ultrajado? Mas Deus vê. Ora, ela nada lucrou com esses conselhos, e quis prendê-lo. Queria satisfazer seu furor, não o fez por amor a José, como se evidencia pelos atos posteriores. Pois estabeleceu um tribunal, acusou, prestou falso testemunho, e entregou à fera aquele que em nada a prejudicara, jogou-o no cárcere; ou antes, à medida que pôde, matou-o, isto é, armou contra ele o juiz. O que aconteceu, então? José era tal? Ao contrário; nem contradisse, nem acusou a mulher. Ora, dizes, não se lhe teria dado crédito. No entanto, era muito amado, como se evidencia não só pelo começo, mas também pelo final. Se aquele estrangeiro não o amasse muito, o teria matado, porque ele ficou calado, sem contradizer. Com efeito, era egípcio e príncipe, e segundo julgava, ultrajado relativamente ao leito conjugal; e da parte de um servo, e servo que recebera tantos benefícios. Mas o amor e a graça, que Deus lhe infundira, venceram tudo isso. Apesar da graça e do amor, se quisesse pleitear em juízo, havia não pequenos indícios, o próprio manto. Se ela tivesse sido violentada, sua túnica devia estar rasgada, o rosto ferido, e não retido o manto. “E vendo que eu levantava a voz e gritava, deixou sua roupa a meu lado, saiu e fugiu” (Gn 39,15). Por que ele o despiu? O que devia fazer aquela que sofria violência? Livrar-se de quem lhe infligia violência. Posso, contudo, não somente desse fato, mas também da continuação deduzir a benevolência e amor de José. Na verdade, quando se viu na necessidade de dizer a causa da prisão e daquelas delongas, nem então publicou a encenação. Qual a sua declaração? “Com efeito, fui arrebatado da terra dos hebreus e aqui mesmo nada fiz” (Gn 40,15). Em parte alguma menciona a adúltera, nem se gloria daquela ação, o que qualquer outro faria, não para se gabar, mas para não parecer que fora lançado no cárcere por causa de algum crime. Se nem os homens que pecam se abstêm de tal acusação, para não carregarem o peso da desonra, não seria digno de admiração aquele que, inocente, não manifesta o amor da mulher, não divulga a falta, e mesmo depois de subir ao trono, e se ter tornado rei de todo o Egito, não se recordou da injúria da mulher, ou reclamou castigo?

Vês como se preocupou. Acaso ela o amava? Não se enfurecera contra ele? Ela não amava a José, mas queria satisfazer a concupiscência; pois se alguém examinar cuidadosamente suas palavras, transpiram furor e morte. O que disse? “Trouxe-nos um hebreu para nos insultar” (Gn 39,14); exprobrava o benefício do marido, mostrava o manto, tornando-se mais cruel do que as feras. Ele, porém, agiu de modo diferente. E por que me refiro à benevolência para com ela, quando em relação aos irmãos, que quase o haviam suprimido, era tal e jamais proferiu a respeito deles, dentro ou fora, algo de grave. Com razão, disse Paulo que a caridade é a mãe de todos os bens, e a prefere aos milagres e outros carismas. Ora, diante de vestes e calçados de ouro, ainda precisamos de outro indício para reconhecer o imperador; se, contudo, virmos a púrpura e o diadema, nenhum outro sinal de reinado procuramos. O presente caso é idêntico. O diadema da caridade basta para assinalar o verdadeiro discípulo de Cristo, não somente a nós, mas também aos infiéis. “Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Por essa razão, este é o maior de todos os sinais, porquanto dá a conhecer o verdadeiro discípulo. Realizem eles embora inúmeros milagres, se entre si discordam, serão ridículos aos infiéis; de outra forma, se não operarem milagre algum, mas bastante mutuamente se amarem, diante de todos serão venerados e invencíveis. Igualmente não admiramos a Paulo por ter ressuscitado mortos, nem por causa dos leprosos que purificou, mas porque dizia: “Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem se escandaliza, sem que eu me abrase?” (2Cor 11,29). Mesmo se acrescentares inúmeros desses sinais, igualmente nada adiantarás. Com efeito, ele afirmava que lhe estava reservada grande recompensa, não devido aos milagres, e sim porque fez-se fraco com os fracos. “Qual é então o meu salário? É que, pregando o evangelho, eu o prego gratuitamente” (1Cor 9,18). E, quando se antepõe aos outros apóstolos, não diz: Fiz mais milagres do eles, e sim: “Trabalhei mais do que todos eles” (1Cor 15,10). Aliás, até queria morrer de fome, em prol da salvação dos discípulos: “Antes morrer que… Não! Ninguém me arrebatará esse título de glória!” (1Cor 9,15). Não era para gloriar-se, mas para que não parecesse uma exprobração. Em parte alguma costuma gloriar-se de suas boas obras, senão induzido pelas circunstâncias; se coagido, denomina-se insipiente.

Quando, acaso, se gloria das fraquezas, das ofensas recebidas, é devido à muita compaixão pelos atribulados, conforme a passagem em que declara: “Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco?” Estas palavras falam mais do que os perigos e ele as profere no fim, reforçando o sermão. Em comparação com ele, o que merecemos nós que nem mesmo em vista de nosso próprio bem desprezamos as riquezas, nem damos o supérfluo de nossos haveres? Ora, ele não agia desta maneira, mas entregava a alma e o corpo, para que conseguissem o reino aqueles que o apedrejavam e esbofeteavam. Assim, diz ele, Cristo me ensinou a amar, legando o novo mandamento do amor, que ele cumpriu por atos. Na verdade, ele, rei do universo, de natureza divina, não repeliu os homens criados do nada e aos quais conferira mil benefícios, e que o cobriam de opróbrios e escarros. Fez-se homem por causa deles, frequentou meretrizes e publicanos, curou possessos, e prometeu o céu. Apesar de tudo, eles o prenderam, esbofetearam, amarraram, flagelaram, zombaram dele, por fim o crucificaram. Nem assim os abandonou, mas suspenso da cruz, disse: “Pai, perdoai-lhes” este pecado (Lc 23,34). Quanto ao ladrão, que anteriormente o acusava, introduziu no paraíso, e de Paulo, perseguidor, fez um apóstolo; a seus íntimos, os discípulos seus comensais, porém, entregou à morte, por causa dos judeus, que o crucificaram. Recordando conjuntamente as ações de Deus e as dos homens, imitemos esses preclaros feitos, e adquiramos a caridade superior a todos os carismas, a fim de conseguirmos os bens presentes e futuros. Possamos deles nos tornar partícipes pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo, glória, império, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.

XXXIII HOMILIA

4. A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho.

Após ter enunciado que sem a caridade nem a fé, nem a ciência, nem a profecia, nem o dom das línguas, nem o das curas, nem a vida perfeita, nem o martírio têm proveito, na sequência descreve sua imensa beleza, ornando-lhe a imagem com as suas partes, quais outras tantas cores, e compondo cuidadosamente num conjunto as suas divisões. Não percorras, caríssimo, rapidamente as afirmações, mas examina diligentemente cada uma delas, a fim de contemplares o tesouro e a arte do pintor. Considera, portanto, de onde logo começa, e o que apresenta qual primeira causa de todos os bens. Qual é? A paciência, a raiz de toda sabedoria. Por isso afirmava um sábio: “O homem paciente é cheio de inteligência, o impulsivo é muito estulto” (Pr 14,29). E comparando a paciência com uma cidade fortificada, afirma ser mais segura do que esta. É uma espécie de arma invencível, uma torre inexpugnável, que facilmente repele qualquer ataque. Uma centelha que cai num abismo em nada o lesa, enquanto ela rapidamente se apaga; também se algo inopinadamente ocorre na alma paciente, facilmente se extingue, e absolutamente não a perturba. De fato, a paciência é o que há de mais firme; se mencionares um exército, riquezas, cavalos, muralhas, armas e seja o que for, nada dirás de igual à paciência. Na verdade, quem se acha assim armado e cercado, à semelhança de uma débil criança, é frequentemente atacado de ira, derribado, e enche tudo de tumulto e tormenta. O paciente, contudo, de certa maneira instalado no porto, goza de profunda tranquilidade. Mesmo que lhe inflijas um dano, não moves a rocha; mesmo que injuries, não abalas a torre; mesmo que lhe causes um ferimento, não golpeias o diamante. Por isso é denominado “longânime”, porque possui largueza e grandeza de alma. O que é amplo também tem o nome de grande. Mas este bem origina-se da caridade, e é muito proveitoso àqueles que o possuem e dele usufruem. Não me fales dos malditos, que praticam os vícios, e visto que nada padecem, tornam-se piores. Isso sucede não devido à paciência, mas por causa daqueles que não a utilizam conforme é justo. Por conseguinte, não me digas que são estes, e sim os mais indulgentes que dela retiram maior lucro. Quando alguns fazem o mal, que não lhes é retribuído de igual forma, admiram eles a mansidão do paciente e retiram grande lucro da sabedoria da doutrina. O Apóstolo não para aí, mas acrescenta outros atos bons, dizendo: “É benigna”. Uma vez que existem homens que não empregam a paciência para aumentar a própria sabedoria, e sim para se vingarem daqueles que os irritaram, o Apóstolo diz que a caridade não tem dessas falhas. Acrescenta, portanto: “É benigna”. Não pretende reacender a chama nos que se encolerizam contra os que agem mais benignamente, mas procura acalmá-la e extingui-la. Não apenas suporta com generosidade, mas também, curando e exortando, trata da úlcera e elimina a ferida da ira.

Não é invejosa”. Com efeito, é possível haver um homem paciente, invejoso, contudo, e este vício estraga-lhe as boas obras. A caridade, porém, foge também desse vício. “Não se ostenta”, isto é, não é arrojada, torna aquele que ama prudente, grave e bem ordenado. A ostentação é vício próprio do amor desonesto. Quem, contudo, conhece a verdadeira caridade, livra-se completamente dos vícios. Efetivamente, quando não se conserva a ira no íntimo, afastam-se a impertinência e as injúrias. De fato, a caridade instalada no íntimo da alma, qual ótimo agricultor, não permite que brotem tais espinhos. “Não se incha de orgulho.” Na verdade, observamos que muitos se orgulham bastante dessas prerrogativas, isto é, do fato de não serem invejosos, nem maus, nem pusilânimes, nem petulantes. Esses vícios não coexistem apenas com as riquezas e a pobreza, mas ainda com os bens naturais. Todavia a caridade diligentemente os expurga. Atenção! O paciente nem sempre é bondoso; se não é bondoso existe uma falha e ele corre o risco de incidir na recordação das injúrias. Por isso, a caridade aplicando o remédio, isto é, a benignidade, conserva pura a virtude. Ainda o benigno muitas vezes acomoda-se facilmente. A caridade também corrige esse defeito. “A caridade não se ostenta, não se incha de orgulho”. O homem bondoso e paciente, muitas vezes, é arrogante. A caridade igualmente elimina esse vício.

E verifica que o Apóstolo realça-lhe a beleza não apenas com as qualidades que possui, mas ainda mencionando o mal que não encerra. Diz, de fato, que ela conduz à virtude e elimina a malícia; ou antes, desde o início impede que brote. Com efeito, não diz: Sente emulação, mas supera a inveja. Nem ainda: É arrogante, todavia purifica-se deste vício. Afirma, ao invés: “Não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho”. E o que é mais admirável, pratica o bem sem esforço, e antes de entrar em guerra ou combate ergue o troféu. Não cobre seu possuidor de suor a fim de alcançar a coroa, mas sem labuta confere-lhe o prêmio. Qual a labuta onde não existe paixão oposta ao pensamento prudente?

5. Nada faz de inconveniente,

Por que digo: “Não se incha de orgulho”, uma vez que a tal ponto se distancia deste vício que não considera indecoroso sofrer pelo amado dores agudas? Aliás, não disse que age de modo inconveniente, mas suporta com generosidade a vergonha, e sim que nem a sente. Se os ambiciosos de pequenos lucros se submetem a quaisquer opróbrios, e não só não se envergonham, mas até ficam contentes, muito mais o possuidor dessa louvável caridade, não recusará coisa alguma para obter a segurança dos seres amados, ou melhor, não há de se furtar, mas até não se cora de padecer. Entretanto, para não oferecermos um mau exemplo, examinemos a questão relativamente ao próprio Cristo, e então verificaremos a força da palavra. O Senhor Jesus Cristo era cuspido e esbofeteado por servos miseráveis, e não só não considerava opróbrio o que acontecia, mas até exultava, e falava de glorificação. Não considerava indecoroso introduzir consigo no paraíso o ladrão e homicida antes dos outros, e falar com a meretriz, mesmo na presença de seus acusadores, oferecendo-lhe os pés para oscular e o corpo para irrigar com as lágrimas e enxugar com os cabelos, apesar de ter por espectadores os inimigos e adversários. Efetivamente, a caridade “nada faz de inconveniente”. Assim, os pais, se acaso forem grandes filósofos e oradores, não se coram de balbuciar juntamente com os filhinhos; e nenhum dos presentes os censura, mas parece-lhes muito belo, e até o aprovam. E se ainda as crianças se tornarem malcriadas, não sentem pudor de continuar corrigindo, cuidando, refreando suas teimosias. Com efeito, a caridade “nada faz de inconveniente”, mas, à guisa de asas douradas, encobre todos os delitos. Dessa forma amava a Davi Jônatas, que, ao ouvir da parte do pai: “Efeminado, filho de uma transviada!” (1Sm 20,30), não se corava, apesar de serem palavras muito ofensivas. De fato, significam: Filho de meretriz, louca pelos homens, que acorre aos transeuntes, fraco, mole, em nada viril, uma vergonha para ti mesmo e para a mãe que te deu à luz. Acaso aborreceu-se, escondeu-se envergonhado, apartou-se do amigo? Fez inteiramente o contrário. Elogiava sua amizade, embora se tratasse do rei de então e Jônatas era filho do rei, enquanto Davi era um errante, um prófugo. Nem assim se corou da amizade, visto que a caridade “nada faz de inconveniente”. É admirável que, ofendido, não se entregasse à dor e à irritação, mas ainda se alegrasse. Desse modo, após esses eventos, como se estivesse coroado, partiu e abraçou a Davi. A caridade desconhece a ignomínia, e desta forma apraz-se naquilo que é opróbrio para os outros. É ignominioso não saber amar e não estar ao lado do amado no perigo e tudo sofrer pelos amigos. Se digo: Tudo, não penses que me refiro a más ações, tal como se alguém disser que se auxilie a um jovem a obter uma amiga, ou sugerir algo de censurável. Com efeito, esse não ama; e isso recentemente vos mostrei, no caso da mulher egípcia. De fato, ama somente aquele que procura o proveito do ser amado, de sorte que, se alguém não busca captar este bem, embora diga mil vezes que ama, é o pior dos inimigos. Assim também outrora Rebeca, que tinha grande predileção pelo filho, praticou uma fraude e não se corou nem teve medo de ser surpreendida, embora incorresse em grande perigo, mas até se opôs à hesitação do filho, e disse: “Caia sobre mim tua maldição, meu filho!” (Gn 27,13).

Vês que também uma mulher possui ânimo apostólico? Optava Paulo (se é possível comparar um pequeno com um grande) ser anátema pelos judeus; assim também ela, para que o filho fosse abençoado, consentia em ser amaldiçoada. Cedia-lhe os bens, uma vez que com ele não receberia a bênção. Estava pronta a submeter-se sozinha aos males, porquanto de certo modo se alegrava e insistia, apesar de iminente o enorme perigo, e ansiava pelo término da questão. Temia que, se ele não se antecipasse a Esaú, tornar-se-ia vã sua astúcia. Por isso também encurtou as palavras e insistiu com o jovem, e depois que o deixou contradizer, apresentou o argumento suficiente para persuadi-lo. Não replicou: Falas sem fundamento e receias em vão, porque teu pai envelheceu e perdeu a sensibilidade mais aguda. Mas, o que disse? “Caia sobre mim tua maldição, meu filho!” Apenas não percas a oportunidade, nem estragues a presa, nem renuncies ao tesouro. Entretanto, Jacó não foi um mercenário ao lado do sogro durante catorze anos? Além da servidão, não caiu no ridículo por causa daquela fraude? Como? Acaso se ressentiu? Talvez tenha pensado que era desonroso permanecer na condição de escravo junto dos parentes, visto ser livre, filho de homens livres, e educado liberalmente e ser mais aflitiva ação injuriosa dos conhecidos? De forma alguma. O motivo que o movia era o amor, o qual fazia com que julgasse curto o longo prazo. “Anos, que lhe pareceram alguns dias” (Gn 29,20), tão longe se achava de se afligir e de corar dessa servidão. Com razão, portanto, dizia São Paulo: “A caridade nada faz de inconveniente”, não procura o seu próprio interesse, não se irrita.

Tendo dito: “Nada faz de inconveniente”, explicita igualmente o modo de nada fazer de inconveniente. Qual é? “Não procura o seu próprio interesse”. Aprecia sobretudo o amigo, e então julga indecoroso não poder livrá-lo de uma ação torpe, de sorte que, se for possível socorrer o amigo mesmo que acarrete para si opróbrio, não considera desonroso, porque se identifica com ele. A amizade é tal que o ser amado e o amante não são dois separados, mas de certo modo formam um só homem. Não se realiza tal feito alhures, a não ser por meio da caridade. Não procures obter, portanto, o que é teu, para o encontrares. Quem, de fato, procura seus interesses, não os alcança. Por isso Paulo declarava: “Ninguém procure satisfazer aos seus próprios interesses, mas aos do próximo” (1Cor 10,24). O nosso proveito resulta da utilidade do próximo, e o dele, do nosso. Por conseguinte, se alguém enterrar o próprio ouro na casa do próximo, e não quiser ir lá procurá-lo e desenterrá-lo, jamais o verá; assim em nosso caso quem não quiser procurar a própria utilidade incluída na do próximo, não conseguirá as coroas prometidas. Efetivamente, Deus dispôs desta forma a fim de permanecermos mutuamente unidos. Ora, se alguém despertar um menino sonolento para acompanhar o irmão e ele não o quiser fazer espontaneamente, faz entrega ao irmão de um objeto cobiçado e ambicionado, a fim de que o menino, desejoso de o tomar, persiga quem o segura; assim também age Deus. Em tal caso, ele entrega ao próximo o que é útil a cada qual, para que assim acorramos uns aos outros, e não fiquemos divididos. E se o quiseres, observa que ocorre entre nós também o que falamos. Encontro em ti o que me é útil, e em mim o que é proveitoso a ti. É vantajoso para ti aprenderes o que agrada a Deus, mas esse cuidado me foi confiado, a fim de o receberes de mim e seres obrigado a procurar-me. E para mim é vantajoso que tu te tornes melhor, porque receberei grande recompensa. O progresso, contudo, ainda está em teu poder, e por isso sou obrigado a te acompanhar para que te faças melhor e eu receba de ti o que me é proveitoso. Por essa razão, dizia Paulo: “Pois, quem é, senão vós, a nossa esperança?”, e ainda: “Nossa esperança, a nossa alegria, a coroa de glória” (1Ts 2,19-20). Os discípulos, portanto, eram a alegria de Paulo e eles tinham no Apóstolo a sua. Por isso, também derramava lágrimas, se acaso os visse em perigo de perdição. Ainda, o bem deles achava-se em Paulo, e por isso assegurava: “Pois é por causa da esperança de Israel que estou carregado de cadeias” (At 28,20); e também: “É por isso que tudo suporto, por causa dos eleitos, a fim de que também eles obtenham a salvação” (1Tm 2,10). Tal se verifica também na vida terrena, pois diz: “A mulher não dispõe do seu corpo, mas é o marido quem dispõe. Do mesmo modo, o marido não dispõe do seu corpo; mas é a mulher quem dispõe” (1Cor 7,4). Assim também agimos nós quando queremos prender dois homens um ao outro; não deixamos nenhum a seu arbítrio, mas estendendo uma corrente no meio, fazemos com que um fique preso ao outro. Queres verificar isso entre os magistrados? O juiz não se julga a si mesmo, mas procura o que é útil a outrem. Ainda os súditos procuram o bem do príncipe, pelo respeito, o serviço etc. Os soldados tomam as armas em nosso favor e por nós enfrentam o perigo, e nós por eles assumimos os trabalhos e lhes fornecemos a subsistência.

Se, porém, disseres que cada qual o faz procurando seus interesses, concordo; todavia, através do alheio cuida do que lhe é peculiar. Na realidade, a não ser que o soldado combata em favor daqueles que o nutrem, não há quem lhe administre o sustento; por sua vez, se este último não sustentar o soldado, não há quem o defenda. Vês que a caridade abrange tudo e a tudo provê? Mas não te canses até que apreendas integralmente em que consiste essa cadeia de ouro. O Apóstolo, depois de assegurar: “Não procura o seu próprio interesse”, diz em seguida os bens dela oriundos. Quais? “Não se irrita, não guarda rancor.” Vê que não só domina os vícios, mas não deixa que seu domínio se estabeleça. Não disse: Irrita-se, na verdade, mas vence a ira, e sim: “Não se irrita”; nem: Nada de mal opera, mas nem ao menos concebe a ira. Não só não planeja o mal, mas nem o imagina contra o ser amado. Como o faria, ou como se irritaria se nem ao menos alimenta uma suspeita? Aí está a fonte do amor.

6. Não se alegra com a injustiça, isto é, não lhe agrada o mal alheio; e não só, mas o que é muito mais: mas se regozija com a verdade.

Congratula-se com os que agem bem, conforme ordena Paulo: “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram” (Rm 12,15). Dessa forma, não inveja, não se incha de orgulho, uma vez que considera os bens alheios como se fossem propriamente seus. Vês como a caridade faz aos poucos do discípulo um anjo? Isento de ira, puro de inveja e livre de todo vício tirânico, julga-o o Apóstolo além da natureza humana, tendo aportado à impassibilidade dos anjos. Entretanto, não contente com isso, tem algo de maior a dizer, colocando no fim o que é mais forte. Assegura:

7. Tudo desculpa, por paciência, benignidade; quer seja oneroso, custoso, quer sejam injúrias, ou golpes, ou morte etc. E isso ainda se constata no que afirma o bem-aventurado Davi. O que, pois, há de mais doloroso do que ver o filho se insurgir, atribuir-se o poder e sedento do sangue paterno? Até essa provação tolerou aquele santo; não admitiu lançar palavras duras contra o parricida, mas, firmemente apoiado na caridade, ao transmitir ordens aos generais, deu prescrições acerca da incolumidade do filho. Por isso ele tudo suporta. Insinua-se aí sua força, enquanto se indica sua bondade pelos seguintes termos: “Tudo espera, tudo crê, tudo suporta”.

O que quer dizer: “Tudo espera”? Não perde a esperança de obter qualquer espécie de bens para o amigo; mesmo que ele se mostre malvado, permanece solícito em corrigir, providenciar. “Tudo crê”. Com efeito, não apenas espera, mas igualmente crê, porque muito ama; apesar de não advirem os bens esperados e até mesmo o amigo se tornar mais molesto, ele ainda suporta, segundo se diz: “Tudo suporta”.

8. A caridade jamais passará.

Vês que coroa lhe impõe Paulo, e a preferência por este dom? O que significa: “Jamais passará”? Não se rompe, não se dissolve, pois ama a todos. Quem ama, nunca pode odiar, seja o que for que acontecer; este é o seu maior bem. Tal era Paulo e por esse motivo dizia: “Na esperança de provocar o ciúme dos da minha raça” (Rm 11,14), e continuava a esperar. E exortava a Timóteo: “Ora, um servo do Senhor não deve brigar; deve ser manso para com todos… É com suavidade que deve educar os opositores, na expectativa de que Deus lhes dará… a conversão para o conhecimento da verdade” (1Tm 1,24-25). Mas, dirás, não se devia odiar no caso de serem inimigos e pagãos? A eles não se deve odiar, e sim a doutrina; não o homem, mas as más ações, o ânimo corrupto. De fato, o homem é obra de Deus, enquanto o erro é obra do diabo. Não mistures, portanto, o que pertence a Deus com o que cabe ao diabo. Na verdade, os judeus eram blasfemos, perseguidores, injuriadores e diziam inúmeras calúnias contra Cristo. Então Paulo, que mais do que todos os outros amava a Cristo, os odiava? De forma alguma; ao invés até amava e fazia tudo em favor deles. E ora dizia: “O desejo do meu coração e a prece que faço a Deus em favor deles é que sejam salvos” (Rm 10,1), ora: “Quisera eu mesmo ser anátema, separado de Cristo, em favor de meus irmãos” (Rm 9,3). Assim igualmente Ezequiel, vendo-os ser massacrados, dizia: “Ah, Senhor, vais destruir todo o resto de Israel?” (Ez 9,8) e Moisés: “Agora, pois, se perdoasses o seu pecado…”, perdoa! (Ex 32,31). O que diz Davi? “Não odiaria os que te odeiam, Senhor? Não detestaria os que se revoltam contra ti? Eu os odeio com ódio implacável!” (Sl 139,21-22). Ora, nem tudo o que Davi diz nos salmos foi proferido em nome de Davi; de fato, nesse trecho ele diz: “Acampado nas tendas de Cedar” e: “À beira dos rios de Babilônia nos sentamos e choramos” (Sl 120,5; 137,1); ele, na realidade, não esteve em Babilônia, nem nas tendas de Cedar. Aliás, agora exige-se de nós maior sabedoria. Por isso, quando os discípulos pediram que caísse fogo do céu, como no tempo de Elias, Cristo disse: “Não sabeis de que espírito sois” (Lc 9,55). A Antiga Lei ordenava não somente odiar a impiedade, mas também os próprios ímpios, a fim de que a amizade não fornecesse ocasião para a iniquidade; por isso, proibia os casamentos e convivência com os pagãos e de todas as maneiras os prevenia.

Agora, porém, que fomos chamados a uma mais sábia e elevada atitude, que nos preserva de sofrer dano, ordena admiti-los e consolá-los. Eles não nos prejudicam; ao invés, nós lhes causamos proveito. Como se exprime então? Não se deve odiar, mas ter compaixão. Se odiares, como poderás converter com facilidade o errante? Como hás de orar pelo infiel? Escuta o que declara Paulo, e saberás que importa rezar: “Eu recomendo, pois, antes de tudo, que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças, por todos os homens” (1Tm 2,1). É igualmente claro que então nem todos eram fiéis. E ainda: “Pelos reis e todos os que detêm a autoridade”. É evidente que eles eram ímpios e iníquos. Em seguida, acrescenta o motivo da oração: “Eis o que é bom e aceitável diante de Deus, nosso salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (ib. 3.4). Por isso no caso de uma mulher pagã unida a um fiel, ele não dissolve o matrimônio. E que união mais estreita do que a do homem e a mulher? “Serão dois numa só carne” (Gn 2,24); e grande é ali a união e ardente o amor. Se, contudo, devêssemos ter ódio aos ímpios e iníquos, iríamos também ter ódio aos pecadores e assim procedendo sempre avante, nós nos separaríamos da maioria dos irmãos, ou melhor, de todos; pois ninguém, é certo, está isento de pecado, ninguém. Pois se fosse necessário odiar os inimigos de Deus, não somente os ímpios, mas também os pecadores deviam ser odiados; e assim nos tornaríamos piores do que as feras, com aversão por todos, inchados de orgulho, como aquele fariseu. Ora, não foi isso que ordenou Paulo. O que prescreveu? “Admoestai os indisciplinados; reconfortai os pusilânimes; suportai os fracos; sede pacientes para com todos” (1Ts 5,14). E como será quando ele declara: “Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, notai-o, e não tenhais comunicação alguma com ele” (2Ts 3,14)?

E o que fará a declaração: “Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, notai-o, e não tenhais comunicação alguma com ele” (2Ts 3,14)? É sobretudo aos irmãos que se dirige, não, porém, em sentido estrito. E não cortes as palavras subsequentes. Acrescenta-as. Ao dizer: “Não tenhais comunicação alguma com ele”, aditou: “Não o considereis, todavia, como um inimigo, mas procurai corrigi-lo como irmão” (ib. 15).

Vês que ordena odiar o pecado, não o pecador. De fato, dividir-nos é obra do diabo, que assaz se empenha em eliminar a caridade, a fim de cortar o caminho da conversão, e deter o infiel no erro, na inimizade, e em consequência impedir-lhe a salvação. Quando o médico odeia o doente e evita-o, e o doente tem aversão ao médico, acaso haverá de convalescer, se um não chama, e o outro não procura? Por que então, pergunto, tens horror do próximo e dele foges? Por ser ímpio? Ora, então importava aproximar-te, tratar dele, a fim de lhe restituíres a saúde. Se sofre de mal incurável, foi-te ordenado fazer o possível. Também Judas sofria de mal incurável, no entanto Deus não desistiu de corrigi-lo. Tu, portanto, igualmente não te canses. Apesar de ser ingrato o trabalho de libertá-lo da impiedade, receberás a recompensa como se tivesses obtido essa libertação e farás com que ele próprio admire tua mansidão, e assim toda a glória reverterá para Deus. Mesmo que operes milagres, ressuscites mortos etc., os gentios jamais tanto te admirarão quanto ao verificarem que és manso, suave, e de costumes moderados. Não é ação insignificante; enfim, muitos serão libertados do mal. Nada atrai tanto quanto a caridade. Na verdade, por causa deles, isto é, dos sinais e milagres, serás invejado, enquanto por causa da caridade, serás admirado e amado, e os que te amam haverão de progredir e abraçar a verdade. Se, porém, algum não se tornar fiel rapidamente, não te espantes, não insistas, nem procures obter logo um resultado; de certo modo que ele te louve e ame nesse ínterim, depois progredirá. E para bem apreenderes o quanto é grande essa ação, escuta como também Paulo se justifica perante o juiz infiel, pois declara: “Julgo-me feliz por ter hoje de me justificar diante de ti” (At 26,2). Não se expressava desse modo a fim de adulá-lo, de forma alguma, mas desejoso de lucrá-lo por meio da mansidão. E em parte o ganhou, e captou a benevolência do juiz que até então o julgava criminoso, e o mesmo que fora conquistado diante de todos os presentes confessou em alta voz que fora vencido: “Ainda um pouco e por teus raciocínios fazes de mim um cristão!” (At 26,28).

Qual a resposta de Paulo? Lançou mais longe a rede e disse: “Não somente tu, mas todos aqueles que hoje me escutam, tornem-se como eu, exceto essas cadeias” (ib. 29). Por que dizes, Paulo: “Exceto essas cadeias”? E que confiança te restará, se te coras e delas foges, e isto na presença de tantos homens? Acaso em tuas cartas não te glorias sempre acerca delas, não te denominas prisioneiro, e levas para toda parte essas cadeias qual diadema? O que aconteceu para agora depreciares os vínculos? Não os deprecio, diz ele, nem me envergonho, mas adapto-me à fraqueza deles, porque ainda não podem compreender por que me glorio. Aprendi de meu Senhor que não se coloca “remendo de pano novo em roupa velha” (Mt 9,16), por isso me expressei dessa forma. Com efeito, nossa doutrina é mal recebida por eles, e a cruz malvista. Se ainda adiciono os vínculos, a repulsa será maior. Por isso, omito-os a fim de ser bem acolhido. Efetivamente, parece-lhes que estar carregado de vínculos é ignomínia, porque ainda não degustaram a glória que constituem entre nós. Convém condescender. Com efeito, se aprenderem a verdadeira sabedoria, então reconhecerão a beleza desses ferros e o esplendor desses vínculos. Dissertando sobre outros assuntos, denomina-os graça, dizendo: “Pois nos foi concedida, em relação a Cristo, a graça não só de crermos nele, mas também de por ele sofrermos” (Fl 1,29). Então, porém, visava somente a que os ouvintes não se envergonhassem da cruz. Assim, avança mais. De fato, ao se introduzir uma pessoa no palácio real, ela não é forçada a observar o que está dentro antes de ver os pórticos fora, nem lhe parecerá admirável o exterior a não ser que venha a conhecer tudo por dentro. Portemo-nos também nós relativamente aos pagãos todos com condescendência, com caridade. Essa, de fato, é grande mestra, capaz de reconduzir do erro, compor os costumes, abrir caminho à filosofia, das pedras criar homens. E se queres aprender qual a sua força, apresenta-me um homem tímido, covarde, que tem medo até das sombras; um colérico, áspero, mais parecido com uma fera do que com um homem; um impuro e libertino, cheio de todos os vícios. Confia-o às mãos da caridade, e introduze-o nesta escola, e logo verás aquele tímido e meticuloso, transformar-se em viril, magnânimo, e ousado em tudo, sem dificuldade. O mais admirável, porém, é o seguinte: continua inalterável a natureza, e sobre a própria alma tímida a caridade mostra o seu poder. É comparável a uma espada de chumbo, não de aço, a qual, embora conservando a natureza do chumbo, seria cortante como o aço. Atenção! Jacó era um homem simples, vivia em casa, inexperiente de fadigas e perigos, de vida sossegada e livre, e como uma virgem abrigada no aposento ficava dentro e no máximo devia guardar a casa, livre do movimento e tumulto externo etc., sempre quieto e tranquilo. E então? Depois que se acendeu a chama do amor, aquele homem simples e caseiro se transformou em resistente e laborioso. Não sou eu que o digo, mas ouve o próprio patriarca. Acusando o sogro, disse: “Eis que há vinte anos que estou contigo”. E como decorreram estes vinte anos? Ele mesmo completa: “Durante o dia devorava-me o calor, à noite o frio, e o sono fugia-me dos olhos” (Gn 31,28.40). Dessa forma se exprimia aquele homem simples, que vivia em casa, sossegado. Evidencia-se que era tímido porque na expectativa de encontrar-se com Esaú, morria de medo. Todavia àquele tímido o amor tornou mais audacioso que o leão. Pois, qual obstáculo postou-se adiante de todos, pronto a ir primeiro ao encontro daquele que, segundo sua opinão, era feroz e respirava morticínio, e defender as mulheres com o próprio corpo. Queria ser o primeiro na linha de batalha a enfrentar quem lhe causara temor e tremor. O amor das mulheres era mais forte do que o temor. Vês que, sendo tímido, de repente se fez audaz, sem alterar seu modo de ser, mas fortificado pelo amor? Pois evidencia-se, pelas mudanças de lugar em lugar, que ainda continuava tímido. Mas, ninguém entenda que essas palavras acusam o justo. De fato, não é pecado ser tímido porque se origina da natureza, e sim por medo agir contra o dever. É possível, na verdade, que um homem naturalmente tímido se torne forte e magnânimo devido à piedade. O que sucedeu a Moisés? Não fugiu de medo de um só egípcio, e foi para o exílio? Entretanto aquele fugitivo, que não suportou as ameaças de um só homem, depois que degustou o mel da caridade, de modo excelente e sem coação alguma, prontificou-se a perecer juntamente com o povo amado. Disse ele: “Agora, pois, se perdoasses o seu pecado… Perdoa! Se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste” (Gn 32,32). De resto, são desnecessários outros exemplos de que o amor transforma um homem cruel em manso, e um libertino num homem casto. É evidente a todos. Seja mais selvagem do que uma fera, o amor o converte em mansa ovelha. Com efeito, o que havia de mais cruel e furioso do que Saul? Quando, porém, a filha soltou seu inimigo, nem uma palavra amarga proferiu contra ela; e ele que matara quase todos os sacerdotes por causa de Davi, vendo que a filha o deixara sair de casa e apesar da fraude preparada por ela, nenhuma palavra de indignação pronunciou, detido pelo freio mais poderoso do amor. A caridade costuma amansar os homens, e também produzir homens honestos. Se alguém ama sua mulher como deve, por mais inclinado à libertinagem que seja, jamais verá uma outra, por amor à sua, pois diz a Escritura: “O amor é forte, é como a morte!” (Ct 8,6). Por conseguinte, a fornicação não provém senão da falta de amor. Visto que a caridade gera todas as virtudes, plantemo-la com todo cuidado na alma para que nos confira muitos bens, e colheremos frutos ubertosos, pois ela é sempre verdejante, não murcha jamais. Assim, portanto, alcançaremos os bens eternos. Possamos consegui-lo pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo, glória, império, honra, agora e sempre, e nos séculos dos séculos. Amém.

Excerto de: SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Comentários às Cartas de São Paulo, II, Homilias sobre a Primeira Carta aos Coríntios. Editora Paulus, Coleção Patrística, Edição Kindle.

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