SOBRE OS CARISMAS – II

S. João Crisóstomo | século IV

XIV HOMILIA

I Coríntios 13,

8. Quanto às profecias, desaparecerão, quanto às línguas, cessarão, quanto à ciência, também desaparecerá.

O Apóstolo, depois de ter demonstrado a excelência da caridade, porque os carismas e as ações importantes da vida dela carecem, e após ter enumerado todas as suas qualidades e provado que é o fundamento da perfeita sabedoria, em terceiro lugar, expôs a sua dignidade. E assim age, ora para persuadir aos que se julgavam diminuídos que, de posse dela, poderiam obter o principal efeito dos milagres, em nada seriam inferiores aos detentores dos carismas, e até os superariam, ora também para reprimir os que por causa dos carismas maiores se exaltavam, e sublinha que nada seriam sem a caridade. Dessa forma, amar-se-iam mutuamente, sem inveja e arrogância, e ainda o amor recíproco expulsaria para longe esses vícios, visto que a caridade “não é invejosa, não se ostenta”. Assim, de todas as partes cercá-los-ia de muralha firmíssima, e de múltipla concórdia que curaria todas as doenças e se fortificaria. Para tanto, revolve inúmeros raciocínios com que lhes alivia o aflitivo desânimo. Na verdade, é um mesmo Espírito que dá, assegura ele, doa segundo a utilidade, distribui conforme lhe apraz, e divide gratuitamente, sem nenhuma coação. Seja pequeno o que recebeste, igualmente és membro do corpo e com isso usufruis de grande honra. Precisa de ti que tens menos aquele que recebe mais. O máximo carisma e o caminho mais excelente, contudo, é a caridade. Na verdade, proferia estas coisas, estreitando-os entre si por duplo vínculo, para que não julgasse o possuidor da caridade ter de menos, e os que, correndo após ela, a alcançassem não estivessem sujeitos a defeitos humanos por possuírem a raiz dos carismas, ou porque, nada tendo, não poderiam disputar. Pois, quem alguma vez foi aprisionado pela caridade, liberta-se de se tornar contencioso. Daí, após manifestar-lhes quantos bens haveriam de recolher, descreve seus frutos, reprimindo-lhes as falhas através desses elogios. De fato, cada uma das enunciações era remédio suficiente para curar-lhes as feridas. Por isso dizia: “É paciente”, em oposição aos que entre si disputam. “É benigna”, contra os que discordam entre si e os pérfidos. “Não é invejosa”, contra os que invejam os melhores dotados.“Não pratica o mal”, contra os que estão divididos. “Não se incha de orgulho”, contra os que se exaltam em confronto com os demais. “Nada faz de inconveniente”, contra os que não querem condescender. “Não procura o seu próprio interesse”, contra os que desprezam os demais. “Não se irrita, não guarda rancor”, contra os que ultrajam. “Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade”, novamente contra os invejosos. “Tudo desculpa”, contra os que armam insídias. “Tudo espera”, contra os que desesperam. “Tudo suporta… Jamais passará”, contra os que facilmente discordam. Tendo sempre e com hipérbole, portanto, revelado que ela é grande, novamente a outro título o faz, enaltecendo por meio de outra comparação a sua dignidade, nesses termos: “Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão”. Se, pois, ambas foram introduzidas em razão da fé, e esta já se havia propagado por toda a terra, seria supérfluo utilizá-las. Mas a mútua caridade não cessará, ao contrário crescerá agora e no futuro, e então mais do que agora. Aqui existem muitas coisas que enfraquecem a caridade: riquezas, negócios, achaques corporais, enfermidades espirituais; no além, nada disso haverá. Não é espantoso que cessem as profecias e o dom das línguas; dizer, porém, que a ciência desaparecerá, certamente levanta uma questão. Ele afirma: “Quanto à ciência, desaparecerá”. Como? Então iremos viver na ignorância? De forma alguma, sobretudo porque então a ciência crescerá, e por isso o Apóstolo assegurava: “Depois, conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,12). No intuito, portanto, de evitar que julgasses que, à semelhança da profecia e das línguas, também a ciência cessaria, devido à locução: “Quanto à ciência, desaparecerá”, não se interrompeu, mas acrescentou o modo do desaparecimento, concluindo logo:

9. Pois o nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia.

10. Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá.

Não desaparecerá, portanto, a ciência, e sim a limitação do conhecimento. Pois não conheceremos somente dentro destes limites, mas ainda muito além. Para exemplificar: agora sabemos que Deus está em toda parte, mas desconhecemos de que modo. Que fez tudo do nada, sabemos, mas ignoramos de que maneira. Que nasceu da Virgem, não como, absolutamente. Então, porém, conheceremos mais ampla e mais claramente. Em seguida, o Apóstolo explica quanto medeia, o que não é pouco, dizendo:

11. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio da criança.

Por outro exemplo, declara-o novamente, nesses termos:

12. Agora vemos em espelho

Em seguida, uma vez que o espelho mostra de certo modo a aparência, acrescentou: “E de maneira confusa”, mostrando por meio de uma hipérbole ser parcial o conhecimento presente, “mas, depois, veremos, face a face”.

Não diz que, de fato, Deus tenha face, mas expõe mais clara e explicitamente. Vês que o ensino é progressivo?

Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.

Observaste de que modo rebaixa duplamente o orgulho deles? Afirma que o conhecimento é parcial, e que não o extraem de si próprios. Não fui eu que o conheci, mas ele que se me deu a conhecer, afirma. Ele aqui me conheceu primeiro, e veio ao meu encontro; depois, eu irei ao seu encontro muito mais do que agora. De fato, quem está sentado nas trevas, enquanto não contemplar o sol, não apreende a beleza dos raios, mas essa haverá de se revelar, desde que o sol brilhe; quando ele acolher este esplendor, enfim irá em seguimento da luz. É esse o sentido da expressão: “Como sou conhecido”. Não significa que haveremos de conhecê-lo tal qual ele próprio nos conhece, mas assim como ele agora se revela, também nós então o abraçaremos, e conheceremos muita coisa que agora é secreta, e fruiremos daquela feliz convivência e sabedoria. Se Paulo, que possuía tão elevado conhecimento, se considerava criança, pondera a grandeza da realidade; se ele contempla em espelho e enigma, considera qual será a visão face a face. Para te explicar um pouco essa diferença, quero emitir um débil raio desse conhecimento para esclarecer-te. Recorda as prescrições da Lei, antes que a graça raiou. De fato, elas antes da graça pareciam um tanto grandes e admiráveis; no entanto escuta o que Paulo diz a respeito, depois que veio a graça: “Mesmo a glória que então se verificou já não pode ser considerada glória, em comparação com a glória atual, que lhe é muito superior” (2Cor 3,10). Para elucidar melhor o que digo, dissertemos sobre uma ação, que então se realizava misticamente, e então verificarás a grande diferença; e, por favor, consideremos a Páscoa, a antiga e a nova, e então conhecerás a excelência da nova. Os judeus a celebravam também, mas em espelho e enigma; nossos mistérios inefáveis não lhes ocorriam à mente, nem conheciam as realidades que prenunciava. Viam imolar o cordeiro, o sangue do animal e as portas ungidas; entretanto, que o Filho de Deus encarnado haveria de ser imolado e de libertar o mundo inteiro, e dar este sangue a degustar a gregos e bárbaros, que haveria de abrir o céu a todos e oferecer os bens celestes a todo o gênero humano, e haveria de tomar o corpo manchado de sangue e elevá-lo acima do céu e dos céus dos céus, e simplesmente acima de todos os exércitos celestes dos anjos, arcanjos e outras virtudes, e assentá-lo no próprio trono real, à direita do Pai, fulgindo de inefável glória – isso certamente nenhum daqueles, nem qualquer outro homem previamente conheceu, ou pôde imaginar.

O que dizem, contudo, os muito ousados? A palavra: “Agora o meu conhecimento é limitado”, dizem eles, refere-se ao plano divino e de fato, Paulo teve perfeito conhecimento de Deus. E por que se denomina criança? Como vê por espelho? Como em enigma, se tem toda a ciência? Por que o atribui como exímia ação só ao Espírito e a nenhum poder criado, dizendo: “Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, se não o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus” (1Cor 2,11). E Cristo ainda o declara próprio somente de si mesmo, exprimindo-se da seguinte maneira: “Não que alguém tenha visto o Pai; só aquele que é junto de Deus viu o Pai” (Jo 6,46), denominando visão o conhecimento claro e perfeito. Como, porém, aquele que conhece a substância, pode ignorar os planos divinos? Aquele conhecimento é maior do que esse. Por conseguinte, não conhecemos a Deus? De forma alguma! Sabemos que existe, mas o que é a sua substância, absolutamente não. E para teres conhecimento de que ele não se refere aos planos divinos quando diz: “Agora o meu conhecimento é limitado”, escuta a continuação, pois acrescenta, de fato: “Mas, depois, conhecerei como sou conhecido”. Com efeito, não é conhecido pelos planos divinos, mas da parte de Deus. Ninguém, portanto, julgue tal impiedade pequena ou simples; é dupla, tríplice, múltipla. Não é apenas absurdo alguém se gloriar de conhecer o que compete somente ao Espírito e ao Unigênito Filho de Deus. Além disso, nem a Paulo foi possível, sem uma revelação do alto, receber mesmo parcialmente aquele conhecimento, enquanto eles próprios afirmam terem extraído tudo dos próprios raciocínios. Não podem exibir parte alguma da Escritura que a esse respeito tenha falado. Deixando de lado, portanto, a sua insensatez, prossigamos a examinar a subsequente exposição sobre a caridade. O Apóstolo não se contentou com isso, mas ainda complementa:

14,1. Procurai a caridade.

De fato, deve-se ir atrás dela e correr resolutamente, de tal modo nos escapa e tantos são os obstáculos a suplantar naquela corrida. Por isso, precisamos de grande força para a apreendermos. Querendo demonstrá-lo, não disse Paulo: Segui a caridade, e sim: “Persegui a caridade”, nos excitando e estimulando a apreendê-la. De fato, Deus, desde o princípio, planejou inúmeras formas de infundi-la em nós. Pois a todos deu um só protoparente, Adão. Por que não fomos plasmados todos nós da terra? Por que não nascemos adultos, como ele? A fim de que o parto, a educação dos filhos, o nascimento nos unissem mutuamente. Por isso, nem a mulher Deus criou do pó da terra. Não bastava para o pudor nos induzir à concórdia sermos feitos da mesma substância, se não tivéssemos o mesmo protoparente. Deus no-lo concedeu também. Agora, separados pelas distâncias, julgamo-nos estranhos uns aos outros; tivesse o gênero humano dois princípios, seria muito pior. Por isso, uniu num só corpo todo o gênero humano, sob uma só cabeça. E uma vez que no princípio pareciam ser dois, vê como os congregou e uniu numa só carne, pelo casamento: “Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2,24). Não disse: A mulher, e sim: “O homem”, porque nele é mais intensa a concupiscência. Mais intensa para que, ao domínio do amor, se dobrasse a força prevalente, e dependesse da mais fraca. Ao instituir o matrimônio, deu à mulher por marido aquele do qual ela fora tirada. Deus pospõe todas as coisas à caridade. Não obstante tudo isso, o primeiro homem logo a tal ponto se tornou insensato, e o diabo suscitou tamanha luta e inveja; o que não teria feito se os dois não tivessem brotado de uma só raiz? Em seguida dispôs Deus que uma parte mandasse e a outra obedecesse (porque a igualdade costuma produzir contendas), e não quis uma democracia e sim uma monarquia, e que cada casa mantivesse a ordem de um exército. De fato, rei é o marido, prefeito ou general é a mulher, os filhos ocupam o terceiro posto, depois o quarto pertence aos escravos, que também dão ordens aos inferiores, e muitas vezes um só de todos é o chefe, representante do senhor e que de resto continua escravo. E após, ainda outros domínios, entre os quais o das mulheres, ou dos filhos, e entre os filhos novamente outra ordem segundo a idade e o sexo; nem entre os filhos a mulher obtém a prevalência. E quase em toda parte Deus estabeleceu vários domínios, a fim de que tudo permanecesse em concórdia e ordem perfeita. Por isso, quando existiam apenas dois seres humanos e antes que o gênero se propagasse, ordenou que o homem mandasse e a mulher obedecesse. E ainda a fim de que esta não fosse desprezada como inferior e rejeitada, vê como a honrou e uniu, mesmo antes da criação, uma vez que disse: “Façamos-lhe uma auxiliar” (Gn 2,18), revelando que ela fora feita para o bem do homem, e desta forma reconduziu-o àquela que fora criada por causa dele, pois temos maior afeto às obras feitas em nosso benefício. E para que ela, de seu lado, não se exaltasse por ter sido concedida ao homem como auxiliar, e se rompesse o vínculo, tirou-a do lado, sublinhando que ela era parte do corpo. No intuito de que o homem não se enaltecesse, não o deixou sozinho conforme estivera o primeiro, mas fez o contrário, introduzindo a procriação dos filhos; e com isso deu-lhe a precedência, sem permitir, contudo, que ele constituísse todo o conjunto.

Vês quantos vínculos de amor, naturais penhores de concórdia, Deus criou? Na verdade, se a substância é idêntica, a isto se chega, porque todo animal ama a seu semelhante; o mesmo acontece pela circunstância de ter sido a mulher tirada do homem, e de outro lado os filhos se originarem de ambos. Daí provêm muitas formas de afeto. A um amamos enquanto pai, a outro como avô; a uma por ser a mãe, a outra enquanto ama; a outro porque filho, neto ou bisneto; a outra enquanto filha e a outra como neta; a este como irmão, a outro qual sobrinho; a uma enquanto irmã e a outra como sobrinha. E que necessidade há de nomear todos os parentes? Ele concebeu outro móvel de afeto. Tendo proibido os casamentos dos parentes, encaminhou-nos para os estranhos, e a nós, de outro lado, os atraiu. Uma vez que entre consanguíneos não era lícita a união, uniu por meio do casamento com estranhos, congregando através de uma esposa casas inteiras, e coligando famílias inteiras entre si. “Não tomarás por esposa tua irmã, nem a irmã de teu pai, nem outra jovem que tenham tal parentesco contigo” (cf. Lv 18,9ss). São impedimentos para o matrimônio. E Deus cita nominalmente os graus de parentesco. Para mútua afeição é suficiente a origem comum de uma só mãe. A ti convêm outras afinidades. Por que estreitas o vasto âmbito da caridade? Por que inutilmente desperdiças a afeição, porquanto tens novas oportunidades de amizade, casando-te com uma estranha, e por meio dela obtendo uma série de parentes: mãe, pai, irmãos e seus afins? Vês de quantas maneiras Deus nos uniu? No entanto, não lhes bastaram, mas fez com que precisássemos de outras, a fim de nos congregar, porque as carências induzem às amizades. Por isso, não permitiu que as mesmas plantas brotassem em toda parte, obrigando-nos a conviver com os demais. Tendo determinado que precisássemos uns dos outros, tornou fácil o intercâmbio. Doutro lado, a questão ocasiona outro tipo de incômodos e dificuldades. Se quem necessitasse de um médico, de um operário ou de outro artífice devesse empreender longa viagem, seria um estrago. Por isso também foram construídas cidades que agrupassem os homens. Mas, para que pudéssemos facilmente ter acesso aos que estão longe, Deus estendeu o mar no espaço intermediário e deu-nos a velocidade dos ventos, facilitando as viagens. No início reuniu a todos num só lugar. Antes que fizessem mau uso do primeiro dom que haviam recebido, a concórdia, não os dispersou. De todos os modos, porém, nos coligou: por meio da natureza, do parentesco, da língua e do lugar. Não queria que perdêssemos o paraíso (se o quisesse, não teria posto ali no princípio o homem que criara), mas a causa da expulsão foi a desobediência. Igualmente não queria que existissem várias línguas; do contrário, desde o início teriam existido. Outrora, porém, em toda terra havia as mesmas palavras, uma só língua para todos. Por isso, quando quis despovoar a terra, nem então nos fez de matéria diversa, nem transferiu o justo para outro lugar; deixou no meio da tempestade o santo homem Noé, e através dele, qual centelha para o mundo todo, reacendeu a chama do gênero humano. No princípio, porém, criou apenas um poderio, dando ao homem precedência sobre a mulher, mas como o gênero humano ficou transtornado por muita desordem, instituiu outro, a saber, o dos senhores e magistrados; e isso por causa da caridade. Uma vez que a malícia dissolveu e arruinou o gênero humano, estabeleceu nas cidades os juízes, que, à guisa de médicos, eliminando a malícia, esta peste da caridade, a todos congregassem na unidade. Visando, porém, que houvesse grande concórdia não apenas nas cidades, mas também em cada uma das casas, deu ao homem a honra do domínio e a precedência, e à mulher a concupiscência, e a ambos o dom da procriação dos filhos, e ainda preparou outros meios para induzir à caridade. Nem tudo permitiu ao homem, nem tudo à mulher, mas separou o que cabia a cada qual, destinando a casa à mulher, e ao homem o exterior: ao homem em vista da subsistência, o cultivo da terra, à mulher, a provisão das vestes, a tela e a roca, dando-lhe habilidade para tecer. Mas pereça a cobiça, que faz desaparecer tal diferença. De fato, a preguiça de muitos conduziu alguns homens à tecelagem, e colocou-lhes nas mãos as navetas, os fios e os estames. Todavia, mesmo assim brilha a providência divina. Pois precisamos das mulheres para variadas obras indispensáveis, precisamos dos subordinados para diversas exigências da vida. É tão grande tal necessidade que mesmo o mais rico dos homens não está isento dessa conjuntura, de sorte que carece do trabalho de um inferior. Não somente os pobres precisam dos ricos, mas igualmente os ricos dos pobres, e estes são mais indispensáveis àqueles dos que aqueles a estes.

Para maior clareza, imaginemos, se vos apraz, duas cidades. Uma somente de ricos, outra de pobres. Na cidade dos ricos não se encontra pobre algum, na dos pobres nenhum rico, num expurgo completo de ambas. E vejamos qual poderá melhor bastar-se a si mesma. Se chegarmos à conclusão de que provavelmente será a cidade dos pobres, tornar-se-á evidente que os ricos são mais carentes. Efetivamente, na cidade dos ricos não haverá artífice, nem arquiteto, nem operário, nem sapateiro, nem padeiro, nem agricultor, nem ourives, nem tecedor de cordas, nem ofício algum semelhante. Qual o rico que alguma vez exerceu tais tarefas, visto que mesmo os que a eles se entregam, no caso de se enriquecerem, não mais suportam as fadigas dessas ocupações? Como, portanto, essa cidade se manterá? Os ricos, responderás, comprarão dos pobres o necessário a peso de ouro. Por conseguinte, não se bastam a si mesmos, porque precisam dos outros. Como construirão casas? Ou até isso comprarão? Mas a natureza não as produz. Será, portanto, necessário chamar artífices e transgredir a prescrição inicial sobre os habitantes da cidade. Rememorai termos dito que nela não haveria pobre algum. Eis, contudo, que a necessidade, mesmo contra nossa vontade, os chama e introduz. Daí se vê que não subsiste uma cidade sem os pobres. Se a cidade persistir em não acolher nenhum, deixará de ser cidade, e arruinar-se-á. De fato, não se bastará a si mesma, a não ser que reúna alguns pobres para sua manutenção. Verifiquemos, de outro lado, se a cidade dos pobres passa necessidade, na falta de ricos. E em primeiro lugar examinemos o conceito de riquezas, e mostremos claramente de que constam. O que são as riquezas? Ouro, prata, pedras preciosas, vestes de seda, púrpura e ouro. Cientes, portanto, do conteúdo das riquezas, devemos bani-las da cidade dos pobres, se verdadeiramente queremos fundar uma cidade de pobres; nem por sonho ali apareça ouro, nem tais vestimentas; sim, nem prata ou vasos de prata. E então? Dize-me. Por isso a cidade viverá na penúria? Absolutamente, não. Se for necessário construir, não se faz mister possuir ouro, prata, pérolas, mas ter habilidade e mãos; não, porém, mãos quaisquer, e sim calosas, de dedos endurecidos e de muita força, bem como madeira e pedras. Ao se tratar de tecer uma veste, não se precisa também de ouro, de prata, mas de mãos e da habilidade de operárias. Como será para se cultivar a terra e cavar? Há necessidade de ricos ou de pobres? É claro que de pobres. E se for necessário trabalhar o ferro, ou algo semelhante, precisamos principalmente de gente do povo. Em que, então, empregaremos os ricos, a não ser que importe destruir essa cidade? Pois se eles ali ingressarem e incidirem na ambição de ouro e pérolas, esses filósofos (denomino filósofos aqueles que não buscam o supérfluo) entregando-se ao ócio e ao prazer, por fim perdem tudo. E se as riquezas não são úteis, replicas, por que foram dadas pelo Senhor? E de onde se deduz que foram doados por Deus. A Escritura diz: “A mim pertencem a prata e o ouro” (Ag 2,9), e dá-los-ei a quem eu quiser. Daí, se não fosse uma ação vil, agora eu haveria de dar gargalhadas, zombando dos que assim falam, pois se comportam como pequeninos que, diante de uma régia mesa, põem na boca com o alimento tudo o que encontram; da mesma forma misturam passagens das divinas Escrituras aos seus próprios interesses. Sei que o profeta disse: “A mim pertencem a prata e o ouro”; quanto às palavras: “Dá-los-ei a quem quiser”, não se encontra nesta passagem, mas é acréscimo espúrio. Explicarei por que Deus proferiu aquelas palavras. O profeta Ageu havia prometido frequentemente aos judeus que, após a volta da Babilônia, haveria de mostrar-lhes o templo em sua forma anterior, mas alguns não acreditavam em suas palavras, julgando quase impossível que o templo, reduzido a pó e cinza, fosse restaurado de tal modo; ele, dissipando a incredulidade deles, fala em nome de Deus, mais ou menos o seguinte: Por que temeis? Por que não acreditais? “A mim pertencem a prata e o ouro”, e não preciso de empréstimo a fim de decorar o edifício. E para manifestar que é assim, aditou: “A glória futura deste Templo será maior do que a passada” (Ag 2,9). Em consequência, não apliquemos teias de aranha na túnica régia. Se alguém for surpreendido a tecer na púrpura uma trama destoante, sofrerá o pior castigo; pior ainda, nas espirituais, porque não será falta leve. E por que me refiro a adição e subtração? De um só ponto, de uma leitura em falso muitas vezes se deduziram sentidos despropositados.

De onde, pois, vêm os ricos? – perguntas. Com efeito, foi dito: “Pobreza e riqueza vêm do Senhor” (Eclo 11,14). Interroguemos, portanto, aqueles que nos fazem estas objeções: Realmente todas as riquezas e toda pobreza provêm do Senhor? Quem o diria? De fato, verificamos que da rapina, da perversidade de violar os sepulcros, da magia e de várias causas parecidas muitos acumulam riquezas, e os que as possuem não são dignos nem de viver. E então? Responde-me. Diremos que essas riquezas provêm de Deus? De forma alguma. Mas, de onde? Do pecado. De fato, a meretriz enriquece por desonra do corpo; um formoso adolescente muitas vezes vende seu viço e com torpeza possui ouro; o violador de sepulcros, que os destrói, congrega riquezas injustas, e igualmente o ladrão que perfura paredes. Então, todas essas riquezas são oriundas de Deus? O que, portanto, replicaremos? Toma conhecimento primeiro de que a pobreza não vem de Deus, e trataremos do problema. Quando um jovem pródigo tiver consumido suas riquezas com meretrizes, ou com os impostores, ou outros amores semelhantes, e ficar pobre, não é evidente que não foi Deus quem o ocasionou, mas a sua prodigalidade? De outro lado, se alguém empobrecer por preguiça, ou por insensatez cair na pobreza, ou por empreender negócios perigosos e iníquos, não é bem claro que não foi Deus quem fez com que um deles caísse na pobreza? Então, a Escritura mente? Absolutamente não, mas são estultos os que não examinam com o devido cuidado o que foi escrito. Na verdade, se é claro que a Escritura é verídica, e for demonstrado que nem todas as riquezas vêm de Deus, a dúvida é consequência da fraqueza daqueles que não leem convenientemente. E devíamos vos despedir, depois de resolvermos as objeções contra as Escrituras, a fim de vos punir pela negligência nessa leitura. Todavia eu vos poupo bastante e não posso continuar a vos ver perturbados e confundidos; vamos, solucionemos a questão, primeiro mencionando o que foi dito, quando foi dito e a quem. Na realidade, Deus não fala igualmente a todos; nem nós nos dirigimos de igual modo a crianças e a adultos. Quando, pois, essas palavras foram proferidas? Por quem? E a quem? Por Salomão, no Antigo Testamento, aos judeus, que conheciam apenas as coisas sensíveis e por meio delas experimentavam o poder de Deus. Pois estes são os que diziam: “Acaso também pode dar o pão?” (Sl 78,20). E: “Queremos ver um sinal feito por ti” (Mt 12,28). “Nossos pais comeram o maná no deserto” (Jo 6,31). “Seu deus é o ventre” (Fl 3,19). Uma vez que eles o experimentavam por esses pontos, ele lhes disse: Deus certamente pode criar ricos e pobres; não quer dizer que o faça, mas que o faz quando quiser, segundo a palavra: “Ameaça o mar e o seca, e a todos os rios reduz a deserto” (Na 1,4), apesar de jamais ter isso acontecido. Por que então o profeta o diz? Não se trata do que sempre faz, mas do que lhe é possível fazer. Qual a pobreza e qual a riqueza que ele dá? Lembra-te do Patriarca e saberás quais as riquezas que Deus concede. Pois ele enriqueceu a Abraão; e depois a Jó, conforme esse mesmo declara: “Se recebemos do Senhor os bens, não deveríamos receber também os males?” (Jó 2,10). Foi também essa a fonte das riquezas de Jacó. De Deus, contudo, vem uma pobreza louvável, segundo a que Cristo aconselhava àquele rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres… Depois vem e segue-me” (Mt 19,21); e de outra parte dá aos discípulos esta norma: “Não leveis ouro, nem prata, nem duas túnicas” (Mt 10,9). Não afirmes, contudo, que é ele quem concede todas as riquezas, pois foi demonstrado que algumas são acumuladas devido a assassinatos, rapinas e mil outros meios.

Mas o discurso retorne à primeira questão: se, pois, os ricos para nada servem, por que existem? O que dizer? Que não nos são proveitosos os que desta forma se tornam ricos; aqueles, porém, que Deus fez enriquecer, são muito úteis. Toma conhecimento disso pelas ações deles. Pois Abraão possuía riquezas para todos os peregrinos e pobres. Quando estava sentado à porta ao meio-dia, ele recebeu os três hóspedes que julgava serem homens; matou o vitelo e tomou três medidas de farinha. Pondera a liberalidade e prontidão com que fez essas despesas, ministrando juntamente com os bens o serviço manual, apesar de ser tão velho. Era um refúgio para hóspedes e necessitados. Nada reservava para si, nem mesmo o próprio filho, que, a uma ordem de Deus, entregou também. Com o filho deu-se a si mesmo, e a toda a sua casa, quando se empenhou em recuperar o sobrinho. E não o fazia por dinheiro, mas somente por humanitarismo. Quando os que salvara queriam dar-lhe os despojos, recusou até um fio ou uma correia de sapato.

Tal era igualmente o bem-aventurado Jó. De fato, dizia: “Abri sempre minha porta ao viandante. Eu era olhos para o cego, era pés para o coxo. Era o pai dos pobres”. “O estrangeiro nunca pernoitou às intempéries.” Não eram frustrados os pobres, se necessitados; nem deixei o pobre sair de minha porta com o saco vazio (cf. Jó 31,32; 29,15-16). E para agora não mencionarmos tudo, praticava muito mais, consumindo tudo em favor dos indigentes. Queres também ver o uso que fizeram dos bens alguns ricos que Deus não fez tais? Vê aquele que não dava a Lázaro nem as migalhas de sua mesa; vê Acab, que roubou a vinha; vê Giezi e todos os que se lhes assemelham. Pois os que, segundo a justiça, possuem bens, recebidos das mãos de Deus, gastam-nos conforme os preceitos de Deus. Aqueles, porém, que na aquisição deles ofenderam a Deus, agem de modo semelhante ao despendê-los, dissipando-os com meretrizes e parasitas, ou os enterram e entesouram, nada gastando com os mendigos. E por que, replicas, Deus permite que tais homens enriqueçam? Por ser paciente, por querer nos conduzir à penitência, por ter preparado a geena, por ter determinado um dia em que há de julgar o mundo inteiro. Se imediatamente castigasse os maus ricos, Zaqueu não teria tido oportunidade de se converter, de sorte a dar o quádruplo do que roubara, e acrescentar metade de seus bens. Mateus não teria tido ocasião de converter-se e tornar-se apóstolo, se fosse arrebatado antes do tempo oportuno; nem muitos de seus pares. Deus espera, chamando todos à penitência. Se, porém, não quiserem, mas permanecerem nos mesmos pecados, escutarão o que diz Paulo: “Ora, com a sua obstinação e com seu coração impenitente, estarão acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus” (Rm 2,5). No intuito de fugirmos dessa ira, enriqueçamo-nos com bens celestes e sigamos a louvável pobreza. Assim também conseguiremos os dons celestes. Possamos todos nós consegui-lo, pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo glória, poder, honra, agora e sempre e nos séculos dos séculos. Amém.

XXXV HOMILIA

I Coríntios

14,1. Persegui a caridade. Entretanto, aspirai aos dons do Espírito, principalmente à profecia.

Uma vez que o Apóstolo cuidadosamente discorreu sobre a virtude da caridade, enfim exorta a abraçá-la com todo empenho, dizendo: “Persegui”. Quem persegue olha apenas para o fim perseguido, para ele tende e não desiste enquanto não o alcança. O perseguidor, se não é possível por si mesmo, por meio dos que estão à sua frente prende o fugitivo, estimulando os que estão perto a agarrar e segurar o preso com toda diligência, até que ele próprio chegue. Também nós devemos agir desse modo. Quando não conseguimos alcançar a caridade, mandamos que os que estão perto a agarrem até que cheguemos; em seguida, segurando-a, não a larguemos, a fim de que não nos escape. Frequentemente, de fato, ela se afasta de nós, porque não a utilizamos devidamente, mas a ela antepomos todas as coisas. Por isso, importa empregar todos os meios para conservá-la cuidadosamente. Se isso acontecer, de então em diante não precisaremos de muito esforço, ou antes, nem do mais leve esforço, mas no meio de delícias, e em festa, avançaremos pelo caminho estreito da virtude. Por isso, ele diz: “Persegui a caridade”. Em seguida, para evitar que se pense ter ele dissertado sobre a caridade com o fito de extinguir os carismas, acrescentou:

Entretanto, aspirai aos dons do Espírito, principalmente à profecia.

2. Pois aquele que tem o dom das línguas, não fala aos homens, mas a Deus. Ninguém o entende, pois o seu espírito enuncia coisas misteriosas.

3. Mas aquele que profetiza, fala aos homens, edifica, exorta, consola.

Faz por fim uma comparação entre os carismas, e diminui o dom das línguas, mostrando que não é inútil, nem muito útil por si mesmo. Na realidade, eles disso muito me orgulhavam porque o consideravam um grande carisma. Consideravam-no grande porque foi o primeiro que os apóstolos receberam, e com tamanho aparato. Entretanto, não era muito mais importante do que os outros. Por que, então, os apóstolos o receberam em primeiro lugar? Porque haveriam de atravessar todas as partes do mundo. Como no tempo em que foi construída a torre, a língua que era uma só se dividiu em muitas (Gn 11), assim agora que eram muitas, frequentemente se concentravam num só homem, que falava as línguas dos persas, dos romanos e dos indianos e muitas outras, ecoando nele o Espírito. E esse carisma era denominado dom das línguas, porque era possível falar conjuntamente várias línguas. Vê, portanto, como o diminui e exalta. Pois, dizendo: “Aquele que tem o dom das línguas, não fala aos homens, mas a Deus. Ninguém o entende”, o diminui, sublinhando que não é de grande utilidade; e de outro lado, ao acrescentar: “pois o seu espírito enuncia coisas misteriosas”, o enaltece, a fim de não parecer supérfluo, inútil, e concedido em vão. “Mas aquele que profetiza, fala aos homens, edifica, exorta, consola”. Viste que mostra a excelência deste dom devido ao proveito comum, sempre dando preferência ao que é útil a muitos? Eles, pois, não falam aos homens? Dize-me. Mas, não é igual a edificação, a exortação, o consolo.

Embora seja comum a ambos, tanto ao profeta quanto ao que fala em línguas, ser movido pelo Espírito, o primeiro, a saber, o profeta prevalece, porque é útil também aos ouvintes. Quanto aos que falam em línguas, não ouvem os que não têm o dom. Como? Então eles a ninguém edificavam? Certamente, diz, mas a eles somente, e por isso adiciona:

4. Aquele que fala em línguas, edifica a si mesmo.

E de que maneira, se não sabe o que profere? Mas agora trata daqueles que sabem o que dizem, no entanto, não são capazes de enunciar para os outros o que sabem.ao passo que aquele que profetiza edifica a assembleia. A mesma distância que medeia entre um só e a Igreja existe entre este e aquele. Viste a sabedoria do Apóstolo, que não aniquila o dom, mas assinala que traz lucro, pequeno embora, suficiente apenas para quem o possui? Em seguida, a fim de não se julgar que ele os diminui por invejar-lhes o dom das línguas (visto que entre eles vários possuíam este dom), corrige-lhes a suspeita, dizendo:

5. Desejo que todos faleis em línguas, mas prefiro que profetizeis. Aquele que profetiza é maior do que aquele que fala em línguas, a menos que este as interprete, para que a assembleia fique edificada.

Mais e menos não são atinentes a polos contrários, mas referem-se àquilo que supera.

Por conseguinte, é evidente que não censura o dom, mas aponta os melhores, apresentando-se solícito por tutelá-los e com a alma livre de qualquer espécie de inveja. De fato, não disse: dois ou três, e sim: “Desejo que todos faleis em línguas”; e não só, mas também “que profetizeis”. E isso mais do que aquilo, porque é maior quem profetiza. Após evidenciar e demonstrar, fala ainda, não, contudo, de modo absoluto, mas com um suplemento, porque acrescenta: “A menos que este as interprete”, se possível, quer dizer, interpretar equivale a profetizar, diz ele, porque são muitos os que retiram proveito. Observe-se principalmente que o requer sobremaneira.

6. Suponde agora, irmãos, que eu vá ter convosco, falando em línguas. Como vos serei útil, se a minha palavra não vos levar nem revelação, nem ciência, nem profecia, nem ensinamento?

Por que me refiro a outros? Suponhamos que seja Paulo quem fale em línguas. Nem assim trará maior lucro aos ouvintes. Assim se exprime, mostrando que busca o que lhes é útil e não que odeie os que possuem o carisma, quando nem na própria pessoa recusa demonstrar que é inútil. Sempre aplica à sua própria pessoa as questões graves, como dizia no começo da Carta: “Quem é Paulo? Quem é Apolo? Quem é Cefas?” (cf. 1Cor 3,5). Aqui procede da mesma maneira, dizendo: “Como vos serei útil, se a minha palavra não vos levar nem revelação, nem ciência, nem profecia, nem ensinamento?

Quer dizer: Se não falar algo que vos seja possível apreender facilmente e seja manifesto, mas apenas mostrar que possuo o dom das línguas, nada lucrareis com as línguas que ouvistes. Deixai. Que lucro traz a palavra que não entendeis?

8. E se a trombeta emitir um som confuso, quem se preparará para a guerra?

O discurso encaminha das coisas supérfluas às mais necessárias e úteis. Declara ser sabido que não somente relativamente à cítara, mas até à trombeta tal acontece. Nelas há ritmo, e emitem algumas vezes um som bélico; outras vezes, não; e outras vezes convoca para as fileiras, outras vezes despede. E se alguém não o souber, incidirá em extremo perigo. O Apóstolo o assinala, e aponta para o erro, dizendo: “Quem se preparará para a guerra?” Se não o fizer, perde totalmente. E, replicas, o que nos importa? Importa-nos em grau máximo, e por isso ele acrescenta:

9. Assim também vós. Se vossa linguagem não se exprime em palavras inteligíveis, como se há de compreender o que dizeis? Estareis falando ao vento.

Isto é, nada falareis, e a ninguém. E sempre mostra que é dom inútil. E se inútil, respondes, por que foi dado? Para ser útil àquele que o recebe; se, contudo, há de ser também útil aos outros, é indispensável uma interpretação. Assim ele se expressa, conciliando-os entre si, de sorte que se um não tiver o dom de interpretar, procure outro que o tenha, e por intermédio deste torne útil o seu dom. Por essa razão sempre explica que se trata de coisa imperfeita, para assim os congregar. Com efeito, se dissesse que julga bastar-lhe o dom, menos louva que reprime, não deixando que brilhe corretamente por meio da interpretação. Na realidade, é um dom belo e necessário, mas se tiver quem explane o que foi dito. Efetivamente o dedo é indispensável, mas se o separas dos restantes, não será proveitoso. A trombeta também é necessária, mas quando emite um som vago, é molesta. A arte igualmente não se revela, a não ser que se lhe submeta a matéria, nem a matéria é informada a não ser que se lhe imponha uma forma. Coloca, portanto, o som como sujeito, a sua pureza como forma. Se essa estiver ausente, de nada serve o sujeito.

10. Existem no mundo não sei quantas espécies de linguagens, e nada carece de linguagem.

Isto é, tantas línguas, tantas palavras dos citas, trácios, romanos, persas, mouros, indianos, egípcios e outros inumeráveis povos.

11. Ora, se não conheço a força da linguagem, serei como um bárbaro para aquele que fala.

Não penses que isso sucede apenas entre vós, diz ele, mas no meio de todos verás que isso acontece. Apesar de assim me exprimir, não reprovo o som, mas destaco que me será inútil se não for claro e manifesto. Logo, a fim de não fazer pesada a acusação, iguala a falta, dizendo: “será como um bárbaro para mim, e eu para ele” , não pela natureza da palavra, mas por nossa ignorância. Viste como progressivamente conduz ao que é peculiar ao assunto? Aliás, é costume seu aduzir exemplos distantes, e terminar com o que é mais adequado e próximo. Com efeito, após ter falado da flauta e da cítara, em parte falhas e inúteis, chega à trombeta, mais útil, e por fim à própria voz. Assim também anteriormente, quando discorria para explicar não ser proibido aos apóstolos receber auxílios, começou primeiro pelos agricultores, pastores e soldados, depois dirigiu o discurso para mais perto do tema proposto, a saber, os sacerdotes do Antigo Testamento. Pensa, por favor, como sempre se esforça por isentar o dom de uma acusação e atribuir a culpa aos que o receberam. Não disse, portanto: Serei um bárbaro, e sim: Um bárbaro para quem fala. Ainda, não afirmou: Quem fala é um bárbaro, e sim: Quem me fala é um bárbaro. O que fazer, portanto? Não somente não censurar, mas ainda exortar e ensinar. Assim ele faz aqui. Depois de ter acusado, repreendido, e ter exposto que é inútil, por fim aconselha, nesses termos:

12. Assim também vós: visto que aspirais aos dons do Espírito, procurai tê-los em abundância, para a edificação da Igreja.

Viste que sempre e em toda a parte seu escopo é um só? Estabeleceu uma regra sempre e para todos: proveito de muitos, auxílio para a Igreja. Não disse: para possuirdes dons, e sim: “tê-los em abundância”, isto é, para terdes com fartura. Tão longe estou de não querer que os tenhais que aspiro a terdes em abundância, entretanto de forma a promover o bem comum. Enuncia de que modo isso se fará, acrescentando:

13. E por isso aquele que fala em línguas deve orar para poder interpretá-las.

14. Se oro em línguas, o meu espírito está em oração, mas a minha inteligência nenhum fruto colhe.

15. Que fazer, pois? Orarei com o meu espírito, mas hei de orar também com a minha inteligência. Cantarei com o meu espírito, mas cantarei também com a minha inteligência.

Daí explica que depende deles a obtenção do carisma. “Deve orar”, diz ele, isto é, dê sua contribuição. Pois, se pedires zelosamente, receberás. Pede, portanto, não somente que tenhas o dom das línguas, mas também o da interpretação, a fim de seres útil a todos, sem ter o carisma reservado a ti mesmo apenas. Porque “se oro em línguas, o meu espírito está em oração, mas a minha inteligência nenhum fruto colhe”.

Viste que aos poucos o tom se eleva para mostrar que aquele, que assim é, não apenas aos demais é inútil, mas também a si mesmo, porque a sua inteligência “nenhum fruto colhe”. Com efeito, se alguém falar somente a língua dos persas, ou outra estranha, sem saber o que profere, certamente será um bárbaro não apenas diante do próximo mas até para si, porque desconhece o sentido da palavra. Antigamente, portanto, havia muitos que tinham o dom da oração juntamente com o das línguas. Ao orar, a boca falava o idioma dos persas ou dos romanos, a inteligência, contudo, não percebia o que se dizia. Por isso, declarava o Apóstolo: “Orarei com o meu espírito, mas hei de orar também com a minha inteligência”, isto é, o carisma que me foi dado move minha língua, “mas a minha inteligência nenhum fruto colhe”. Qual é, pois, o dom, excelente e útil? E como fazer? E o que pedir a Deus? Orar por meio do Espírito, isto é, do carisma e com a inteligência. E por isso, dizia: “Orarei com o meu espírito, mas hei de orar também com a minha inteligência. Cantarei com o meu espírito, mas cantarei também com a minha inteligência”. Novamente aqui assinala o mesmo: a língua fale e a inteligência não ignore o que se diz. Pois, se não for assim, haverá confusão.

16. Com efeito, se deres graças apenas com o teu espírito, como poderá o ouvinte não iniciado dizer “Amém” à tua ação de graças, visto que não sabe o que dizes?

17. Sem dúvida, tua ação de graças é valiosa, mas o outro não se edifica.

Observa como aqui de novo visa ao que foi disseminado, buscando em toda parte a edificação da Igreja. Chama de não iniciado o leigo e mostra que sofrerá grande prejuízo se não puder responder: Amém. Quer dizer o seguinte: Se bendizes em língua estranha, sem saber o que dizes, ou interpretar, o leigo não pode responder: Amém. Se não ouve a conclusão: Pelos séculos dos séculos, não responde: Amém. Novamente para não parecer vituperar em demasia o dom das línguas, consola aquele que acima assegurou proferir mistérios, dirigir-se a Deus, edificar a si mesmo, e orar no espírito. Daí retirara grande consolo. O mesmo faz aqui, dizendo: tu, de fato, dás graças muito bem, falas movido pelo Espírito, mas quem nada ouve, nem sabe o que se diz, fica sem grande proveito.

Em seguida, porque havia assaz invectivado os possuidores deste dom, como insignificante, a fim de não parecer diminuí-lo, por estar dele privado, vê o que diz:

18. Dou graças a Deus por falar em línguas mais do que todos vós.

Faz o mesmo em outro lugar. Estando para conter os excessos do judaísmo e demonstrar enfim que nada valiam, primeiro afirma possuir seus privilégios e em abundância, e depois os classifica de prejuízo, dizendo: “Se algum outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus; quanto à Lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça que há na Lei, irrepreensível” (Fl 3,4-6). E então, após ter manifestado que ele isso tudo possuía em excesso, diz: “Mas o que era para mim lucro eu o tive como perda, por amor de Cristo” (Ef 3,7). O mesmo faz aqui, dizendo: “Falo em línguas mais do que todos vós”. Não deveis orgulhar-vos, como se fôsseis os únicos a possuir tal dom, pois eu também o possuo, e mais do que vós.

19. Mas numa assembleia prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, para instruir também os outros,

O que quer dizer: “Prefiro dizer… com a minha inteligência, para instruir também os outros”? Entendo o que digo e posso também interpretar, falar com inteligência e ensinar aos ouvintes.

A dizer dez mil palavras em línguas.

Por quê? Para instruir também os outros.

A primeira ação serve só para ostentação, a segunda traz muitas vantagens. Em toda parte ele procura o que é útil à comunidade. Ora, o dom das línguas era estranho, mas o dom da profecia era habitual e antigo e outrora já fora concedido a muitos, enquanto aquele era então pela primeira vez; todavia não era muito cobiçado. Por isso, não o utilizava. Não quer dizer que não o tivesse, mas que buscava o que era mais vantajoso para todos. Estava livre da vanglória e visava apenas trazer melhoras aos ouvintes. Pelo fato de estar livre da vanglória, via o que era útil a si e aos outros. Com efeito, quem está reduzido a tal servidão não somente não vem a discernir o proveito dos outros, mas nem o seu próprio. Tal era Simão, o qual não descobriu o que lhe convinha, porque deu atenção à vanglória. Tais eram os judeus, que por causa dela deram ao diabo a propinar a sua própria salvação.

Daí também se originaram os ídolos, e os filósofos pagãos por essa loucura desviaram-se para ensinamentos perversos. Observa a perversidade desse vício. Por causa dele alguns empobreceram, e outros se empenharam em obter riquezas. Tão grande é sua tirania que domina posições contrárias. Pois, por temperança, alguns se apegam à vanglória, ou de outro lado, alguns ao adultério; uns à justiça ou à injustiça, às delícias ou ao jejum, à mansidão ou à audácia, às riquezas ou à pobreza. Alguns pagãos, quando era lícito receber dons, a fim de serem admirados, não aceitavam. Não foram assim os apóstolos; de fato, pelas obras mostraram-se isentos de vanglória. Efetivamente, quando os chamavam de deuses, e estavam prontos a sacrificar-lhes touros com guirlandas, não somente o impediram, mas até rasgaram as vestes. E, ao curarem o coxo, estando todos boquiabertos, eles diziam: “Por que não tirais os olhos de nós, como se fosse por nosso próprio poder que fizemos este homem andar?” (At 3,12). Os pagãos, na verdade, escolhiam a pobreza quando se achavam entre homens que admiravam a pobreza; estes, contudo, por ela optam no meio de homens que desprezam a pobreza e louvam as riquezas. E se recebiam algo, socorriam os indigentes, não por vanglória, mas tudo praticavam por amor aos homens. Os outros, porém, bem ao contrário, o faziam como se os indigentes fossem inimigos e peste para a natureza humana. Um deles, inutilmente jogou todos os seus bens no mar, imitando os loucos e os insensatos; um outro deixou todos os seus campos para pasto de ovelhas. Assim tudo visava à vanglória. Ao invés, os apóstolos davam o que recebiam, e distribuíam aos pobres com tanta liberalidade que passavam fome continuamente. Se, porém, amassem a vanglória, não receberiam para distribuir, de medo de suspeitas. De fato, os que renunciaram a seus bens por causa da glória, mais ainda recusarão ofertas alheias, a fim de não parecerem necessitar dos outros, nem ficarem sujeitos a suspeitas. Aos apóstolos verás servindo e mendigando em favor dos indigentes, mais amorosos do que os pais. Vê as normas moderadas do Apóstolo, livres da vanglória. “Se, pois, temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso” (1Tm 6,8). Não se assemelha àquele homem andrajoso de Sinope, que habitava num tonel e de nada precisava. Causava admiração a todos, mas a ninguém era proveitoso. Paulo, contudo, nada disso fazia. Não ambicionava honras, mas com decoro usava as vestes, assiduamente morava numa casa, e era zeloso pelas demais virtudes. O Cínico as desprezava, vivendo na intemperança, portando-se abertamente de modo vergonhoso, atacado da loucura da vanglória. Se alguém interrogar acerca da causa de morar num tonel, não terá outra resposta senão exclusivamente a vanglória.

Paulo também alugara a casa em que morava em Roma. Tinha podido coisa mais difícil, muito mais resistiria a isso. Mas não visava à glória, fera cruel, demônio maligno, peste da terra toda, víbora envenenada. Como aquele animal rasga o ventre materno com os dentes, assim esse vício dilacera quem o gera. Onde então encontrar remédio para essa múltipla moléstia? Se destacares aqueles que o calcaram aos pés, e olhares para tal modelo, porás em ordem a tua vida. Quanto ao patriarca Abraão… Mas ninguém critique se repetimos, se frequentemente o relembramos e em tudo. É o que o torna especialmente digno de admiração e não merece desculpa alguma os que não o imitam. Pois, se mostrarmos que esse justo agiu corretamente relativamente a uma parte, aquele a uma outra, talvez se retruque que a prática da virtude é difícil; visto não ser fácil fazer simultaneamente bem todas as coisas, cada um dos santos o realizaram parcialmente. Mas, se encontramos um só e mesmo homem que consiga praticar tudo integralmente, que desculpa terão os que, sob o regime da Lei e da graça, não podem chegar à mesma medida que alcançaram os que viveram antes delas. Como, portanto, esse patriarca venceu e superou uma fera, quando teve a controvérsia com o sobrinho? De fato, tendo-lhe tocado a menor porção e perdido a parte principal, não ficou pesaroso. Sabeis, porém, que, nestas questões, a vergonha do prejuízo é o que há de pior para os pusilânimes, especialmente quando são os donos de tudo, conforme ele era naquela ocasião, e fora o primeiro a prestar honras, sem receber retribuição. Nada disso, porém, o abalou, e contentou-se com a pior parte; idoso e injuriado pelo jovem, tio pelo sobrinho, não se irou, não se encolerizou, não suportou mal, mas com igualdade de ânimo o amava e cuidava dele. Além disso, tendo alcançado a vitória naquela grande e terrível guerra, e tendo repelido com violência os bárbaros, por ocasião da vitória, não triunfou nem erigiu um troféu. Queria apenas salvar, não se ostentar. Acolheu de outra vez os estrangeiros, e não se vangloriou, mas ele próprio ocorreu e se prostrou, todavia não como a prestar um benefício, e sim a receber; apesar de não conhecer os recém-chegados, chamou-os de senhores, e fez a esposa prestar um ofício servil. Anteriormente, no Egito, onde era respeitado, recuperou a própria esposa, e tendo obtido tantas honras, diante de ninguém se ostentou. Quando os habitantes de uma região o denominavam rei, ele, contudo, pagou o preço de um sepulcro. Ao enviar o servo para trazer uma mulher para o filho, não mandou que dissesse a seu respeito nada de grande ou excelente, mas apenas que trouxesse a esposa. Queres também examinar os que viveram sob o regime da graça, de toda parte cercados da grande glória da doutrina evangélica e ver que então igualmente esse vício foi eliminado?

Pensa nos pronunciamentos daquele mesmo Apóstolo que diz estas coisas, atribuindo tudo a Deus, relembrando assiduamente seus próprios pecados, e não as suas boas obras. Nas forçosas correções aos discípulos, chama a ação de insipiência, e cede a primazia a Pedro. Não se envergonha de trabalhar manualmente em companhia de Priscila e Áquila (At 18) e sempre se esforça por mostrar-se humilde; não anda orgulhosamente pela praça, cercado de povo, mas enfileira-se entre os que são obscuros. Por esse motivo dizia-se sobre ele: “Uma vez presente, é um homem fraco” (2Cor 10,10), isto é, desprezível, sem luxo algum; e ainda: “Pedimos a Deus, não cometais mal algum. Nosso desejo não é parecer aprovados” (2Cor 13,7). O que de espantoso se ele despreza essa glória? Pois menospreza a glória superior, o reino e a geena, conforme o beneplácito de Cristo – uma vez que deseja ser anátema, separado de Cristo (Rm 9,3), em prol da glória de Cristo, e embora declare querer em favor dos judeus padecer, assim se expressa, a fim de que nenhum estulto julgue que ele esteja procurando alcançar os bens que lhes foram prometidos – se estava pronto a perder esta glória, por que admirar que despreze a humana? Mas os homens de hoje deixam tudo naufragar, não apenas por cobiça da glória, mas também, ao invés, por cólera e medo da desonra. Com efeito, se alguém te louva, sentes orgulho; se te injuria, ficas deprimido. E os corpos fracos se ressentem por qualquer coisa; assim também as almas pusilânimes. Essas se arruínam não só pela pobreza, mas também pelas riquezas, não apenas com o sofrimento, mas também com a alegria, e mais ainda com as coisas excelentes do que com as lastimáveis. Efetivamente, a pobreza obriga à temperança, enquanto as riquezas frequentemente arrastam a grandes males. Aos febricitantes tudo causa mal-estar; assim, o ânimo depravado de todos os lados é atingido.

Cientes disso, não fujamos da pobreza, nem apreciemos as riquezas; mas preparemos o ânimo para completa idoneidade. Na verdade, quem edifica uma casa, não tem por meta que sobre ela não caia chuva, nem nela penetre um raio de sol – seria impossível – e sim que seja capaz de resistir às intempéries. E quem arma um navio não cuida de que não haja embate das ondas, nem tempestade no mar – seria impossível – e sim que o bordo do navio seja capaz de tudo suportar. De outro lado, quem cuida da saúde do corpo não busca que não haja alteração de temperatura, e sim que o corpo facilmente a tolere. Assim de igual modo façamos relativamente à alma, e não nos empenhemos em fugir da pobreza, ou enriquecer, mas em atuar com diligência em cada uma dessas situações. Por conseguinte, deixando-as de lado, adaptemo-nos bem às riquezas e à pobreza. Pois, mesmo que não ocorra falha humana – na maioria dos casos é impossível –, será melhor quem não busca riquezas, mas com facilidade tudo suporta, do que aquele que continua sempre rico. Por que motivo? Em primeiro lugar, aquele tem em si mesmo bens garantidos, enquanto este possui bens exteriores. É melhor o soldado que confia no vigor corporal e na arte bélica do que somente na força das armas; da mesma forma é melhor quem se acha protegido pela virtude do que aquele que se fia nas riquezas. Em segundo lugar, mesmo que não caia na pobreza, não é possível manter-se imperturbável; as riquezas acarretam muitas lutas e agitações. Não é assim a virtude, que só traz prazer e segurança. Torna o homem inexpugnável aos pérfidos. As riquezas, ao invés, facilmente são tomadas e arrebatadas. E como entre os animais o cervo e a lebre são os mais fáceis de capturar por causa da timidez natural, o javali, o touro e o leão dificilmente caem em ciladas, assim também se verifica quanto aos opulentos e os que voluntariamente vivem na pobreza. Estes são semelhantes ao leão e ao touro, os outros ao cervo e à lebre. De fato, o que não receia o rico? Acaso, não os ladrões? Os potentados? Os invejosos? Os caluniadores? E por que falo de ladrões e caluniadores, quando até os servos são suspeitos? E por que me refiro a um vivo? Morto, não se acha livre dos malefícios dos ladrões, a morte não o coloca em segurança, mas os malfeitores depredam o morto – de tal modo as riquezas resvalam. Eles não somente perfuram as casas, mas violam os sepulcros e as urnas. Quem mais infeliz do que aquele a quem nem a morte pode oferecer segurança? Infeliz o corpo que nem mesmo inanimado fica livre das tribulações presentes, pois aqueles que cometem tal crime fazem guerra até ao pó e à cinza, e muito pior do que durante a vida! Então, quando os ladrões penetravam no tesouro, remexiam os cofres, mas abstinham-se de tocar no corpo, e não roubavam a ponto de despojá-lo; agora, porém, nem disso se abstêm as mãos execrandas dos violadores dos sepulcros, mas mexem e reviram, e com suma crueldade ultrajam-no. Após ter sido jogado por terra, abandonam-no despojado das vestes que o envolviam. Qual, pois, maior inimigo do que as riquezas, que levam à perdição as almas dos vivos, infligem ultrajes aos corpos dos mortos, sem deixar que a terra os encubra? Isso é comum aos condenados, réus comprovados dos crimes mais torpes. Com efeito, após terem sofrido a pena capital, os magistrados de nada mais se ocupam; destes, porém, as riquezas após a morte, impõem penas gravíssimas, exibindo-os nus e insepultos.

Espetáculo terrível e digno de compaixão! Suportam, pois, males mais graves do que os sentenciados pelos juízes encolerizados. De fato, eles, após um ou dois dias insepultos, são enterrados; aqueles, depois de enterrados, são despojados e ultrajados. E se os ladrões não se afastam, roubando também a urna, não é devido a seu valor, mas a sua insignificância; é esta que a protege. Se confiássemos o morto a uma rica urna, e não a construíssemos de pedra, mas de ouro, também a perderíamos. A tal ponto são pérfidas as riquezas, que não pertencem tanto aos possuidores quanto aos que empreendem roubá-las. Por isso, supérfluo o discurso que tenta demonstrar serem as riquezas difíceis de defender, visto que nem na morte estão seguros os seus possuidores. Ora, quem não se congraçaria com o morto, mesmo que fosse uma fera, um demônio etc.? Contemplar o defunto basta para dobrar até um temperamento férreo ou insensível. Por isso, diante de um morto, seja embora adversário e inimigo, qualquer um lacrimeja juntamente com os maiores amigos; a ira se extingue com a vida, e a misericórdia se infiltra. Nas exéquias e funerais não se distingue quem é inimigo, de tal modo todos respeitam a natureza comum e as leis dela derivadas. Mas as riquezas, nem isso; legam a ira para os seus possuidores, e tornam inimigos do defunto aqueles que não sofreram injustiça alguma, porque verdadeiramente desnudar um defunto é peculiar aos mais cruéis adversários e inimigos. A natureza, de fato, reconcilia com ele até os inimigos; as riquezas, porém, fazem guerra mesmo aos que não podem acusar de crime algum, e cruelmente se exasperam contra o corpo que jaz em grande solidão. Ora, muitas considerações ali podem atrair à misericórdia: um morto, imóvel, propenso à terra e à corrupção, desvalido. Nada disso dobra aqueles execrandos, por causa da tirania oriunda da cobiça. O amor do dinheiro, cruel tirano, insiste ordenando atos desumanos, e transformando-os em feras, atrai às urnas. Quais feras atacam os mortos, e não se absteriam das carnes, se os membros lhes trouxessem alguma utilidade. Das riquezas usufruímos o seguinte: somos até depois da morte ultrajados, privados da sepultura, que até os mais ousados criminosos conseguem. Dize-me. A tal ponto são inimigas, e ainda devemos amá-las? Absolutamente não, irmãos, absolutamente. Fujamos, sem olhar para trás, e se vierem às nossas mãos, não as retenhamos, mas prendamo-las às mãos dos pobres. Esses vínculos podem melhor retê-las, e nunca escaparão daqueles tesouros; apesar de infiéis permanecerão fiéis, plácidas, mansas, transformadas por meio da esmola dada pela direita. Se alguma vez, portanto, elas nos advierem, transmitamo-las; do contrário, se não vierem, não as procuremos, não tenhamos sufocação, nem consideremos felizes os que as possuem. De que modo será considerado feliz? A não ser que digas serem felizes os que lutam com as feras, porque os que propõem esses combates mantêm presas as que compraram, mas nem eles próprios ousam aproximar-se e tocá-las, por pavor e tremor. O mesmo acontece aos ricos, que fecharam nos tesouros as riquezas, cruel fera, e delas cada dia recebem inumeráveis ferimentos, ao contrário inteiramente do que acontece com os animais. Pois as feras soltas, de fato, danificam os que vêm a seu encontro; se fechadas e guardadas, causam perda aos que as possuem e conservam. Quanto a nós, tornemos mansa a fera. Amansará se não a aprisionarmos, mas as conduzirmos às mãos de todos os necessitados. Assim também alcançaremos os maiores bens, e na vida presente viveremos seguros, repletos das melhores esperanças, e no dia que há de vir estaremos confiantes. Seja concedido a todos nós obtê-lo pela graça e amor aos homens etc.

Excerto de: SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Comentários às Cartas de São Paulo, II, Homilias sobre a Primeira Carta aos Coríntios. Editora Paulus, Coleção Patrística, Edição Kindle.

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