S. João Crisóstomo
Século IV
VIGÉSIMA HOMILIA
22. As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, como ao Senhor,
23. porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é Cabeça da Igreja e o salvador do Corpo.
24. Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos.
Um sábio, após abranger muitas coisas no número das bem-aventuranças, incluiu ainda o seguinte: “Um marido e uma mulher que vivem bem” (Eclo 25,2). E ainda em outra passagem considera bem-aventurança a mulher viver em concórdia com o marido. De fato, Deus, nos primórdios, demonstra grande solicitude por este consórcio. Falando acerca de ambos os cônjuges como se fossem um só, dizia: “Homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27); e ainda diz a Escritura: “Não há homem nem mulher” (Gl 3, 28). Não há tanta união entre um homem e outro quanto entre a mulher e o homem, convenientemente unidos. Por isso, um bem-aventurado homem, que se referia a uma excessiva amizade, e chorava a um de seus amigos, com o qual se sentia unânime, não nomeou pai, mãe, filho, irmão, amigo. Mas, o que disse? “A tua amizade me é mais cara do que o amor das mulheres” (2Sm 1,26). Em verdade, em verdade este amor é mais dominador do que qualquer tirania. Pois as outras são muito fortes, mas esta consta de desejo veemente, e é imarcescível. É certo amor inserto na natureza, e às ocultas une os corpos. Por isso, no início a mulher foi tirada do homem; posteriormente da união de homem e mulher nasceram homens e mulheres. Vês a união e conexão, e que Deus não deixou introduzir-se um elemento estranho? Vê quanto dispôs. Permitiu casar-se com a própria irmã, ou antes não era só irmã, mas filha, ou antes não era filha, era mais que filha, a saber, sua própria carne. Fez tudo isso nos primórdios, a fim de que o homem se unisse como as pedras (numa construção). Fez deles um só. Não criou a mulher de outro estofo, a fim de não ser recebida como estranha; nem estancou somente nela o matrimônio, para que o homem não se recolhesse em si mesmo e se separasse dos demais. Entre as plantas são mais excelentes as de um só tronco que se expande em muitos ramos do que se tudo em vão só se mantém perto da raiz. Se tiver muitas raízes, não será uma árvore digna de admiração. Igualmente neste caso, fez com que só de Adão germinasse todo o gênero humano, estabelecendo necessariamente que não houvesse divisão, nem separação. E contraindo mais, fez com que as irmãs e filhas não mais se tornassem esposas deles, para que de novo não contraíssemos num só o amor, e de outro modo nos separássemos. Por isso dizia: “Desde o princípio o Criador os fez homem e mulher” (Mt 19,4). Deste problema se originam grandes males e grandes bens para as casas e as cidades. Nada tanto combina com nossa vida como o amor entre homem e mulher. Por esta causa muitos tomam as armas, e até perdem a vida. Não foi simplesmente, nem em vão que Paulo teve grande solicitude por esse assunto, dizendo: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, como ao Senhor”. Por quê? Porque se vivem em concórdia, e educam bem os filhos, mantêm em ordem os escravos, aspiram este bom odor os vizinhos, os amigos e parentes. Do contrário, tudo se revoluciona e confunde.
Se os generais de um exército entre si estão em paz, é bom o andamento; se inquietos, revolucionam tudo. O mesmo acontece em nosso caso. Por isso o Apóstolo disse: “Mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como convém no Senhor” (Cl 3,18). Ah! Por que em outra em passagem se diz: “Qualquer de vós que não renunciar à mulher, ao marido, não pode me seguir” (cf. Lc 14,33)? É necessário submeter-se, como ao Senhor, e ele afirma que por causa do Senhor deve-se renunciar? De fato, deve-se. Mas a palavra: “Como” nem sempre indica igualdade. Ou diz o seguinte: Bem o sabeis, servis o Senhor. Também afirma noutra parte que não é por causa do marido, mas primeiramente por causa do Senhor. Ou: Quando cedes ao marido, considera que obedeces para servir o Senhor. Pois se: “Aquele que se revolta contra a autoridade (civil), opõe-se à ordem estabelecida por Deus” (Rm 13,1), muito mais aquela que não se submete ao marido. Assim Deus quis no início. Digamos, portanto, que o homem ocupa o lugar da cabeça, e a mulher o do corpo. Em seguida, também com boas razões mostra que o homem é a cabeça da mulher. “Como Cristo é Cabeça da Igreja e o salvador do Corpo. Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos”. Em seguida, após declarar: “O homem é a cabeça da mulher, como Cristo é Cabeça da Igreja”, acrescentou: “E o salvador do Corpo”. A cabeça é, pois, a salvação do corpo. Lança a caridade e a providência por fundamento ao marido e à mulher, tributando a cada qual o lugar conveniente; ao marido o domínio e providência, à mulher, a sujeição.
“Como a Igreja está sujeita a Cristo”, isto é, homens e mulheres: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, como a Deus”.
25. E vós, maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja
Ouviste o excesso da submissão. Louvaste e admiraste a Paulo, homem extraordinário e espiritual, que estabelece o estilo de vida. Muito bem. Mas ouve o que de ti reclama. Emprega ainda o mesmo exemplo: “E vós, maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja”. Viste a medida da obediência? Escuta a medida do amor. Queres que a mulher te obedeça, conforme a Igreja a Cristo? Tem solicitude por ela bem como Cristo pela Igreja. Mesmo se for preciso dar a vida, até mesmo ser mil vezes ferido, suportar e sofrer seja o que for, não recuses. Nada fizeste ainda à imitação de Cristo. Pois tu procedes após estar unido; ele, porém, o fez em favor daquela que lhe tinha aversão e ódio. Ele, em sua grande solicitude, sujeitou a seus pés aquela que lhe tinha aversão, odiava, desprezava, enchia de escarros, e insultava pela lascívia, mas não o conseguiu por meio de ameaças, injúrias, medo ou coisa semelhante. De igual forma procede em relação a tua mulher. Mesmo se a vires com desprezo, injuria com lascívia, menosprezo, poderás submetê-la a teus pés por meio de grande solicitude, amor e amizade. Nada é mais tirânico do que estes vínculos, principalmente relativamente ao marido e à mulher. É possível conter um servo pelo medo, ou melhor, talvez nem mesmo ele; pode escapar e ir embora. Quanto à partícipe de tua vida, contudo, mãe de teus filhos, causa de toda alegria, não deves contê-la por medo e ameaças, mas por amor e afeição. Qual a união se a mulher tem horror do marido? Que prazer terá o marido, se conviver com a mulher à semelhança de uma escrava, não de uma livre? E se tiveres de sofrer algo por causa dela, não a ultrajes. Cristo não procedeu desta maneira.
e se entregou por ela,
26. a fim de purificá-la
Por conseguinte era impura, tinha máculas, era disforme, de condição obscura. Seja qual for a mulher que tomares, não receberás tal esposa qual Cristo à Igreja, nem é tão diferente de ti quanto a Igreja é de Cristo. No entanto, ele não a abominou, nem a odiou por causa da imensa fealdade. Queres ouvir qual é a sua fealdade? Ouve o enunciado de Paulo: “Outrora éreis trevas” (Ef 5,8). Viste sua negrura? O que há de mais negro do que as trevas? Viste a sua audácia? “Vivendo em malícia e inveja” (Tt 3,3). Viste a impureza? “Desobedientes, insensatos.” O que digo? Era estulta e maldizente; no entanto, tendo tantos defeitos, como se fosse bela, amada, admirada, ele entregou-se a si próprio em prol da disforme. Paulo dizia estupefato: “Dificilmente alguém dá a vida por um justo” (Rm 5,7); e ainda: Cristo morreu por nós quando éramos ainda pecadores” (cf. Rm 8,9). E acolhendo tal esposa, ornou-a, lavou-a, e nem isso recusou.
26. a fim de purificá-la pela água do batismo e santificá-la pela palavra
27. para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem manchas nem rugas, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível
Pelo batismo lava-lhe a impureza. Pela “palavra”. Qual? Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Não apenas a ornou, mas fê-la gloriosa. “Sem manchas nem rugas, ou coisa semelhante”. Também nós busquemos tal beleza, e seremos seus operários. Não exijas da esposa o que não lhe compete. Vês que a Igreja recebeu tudo do Senhor; por meio dele fez-se gloriosa, sem mancha. Não repudies a esposa disforme. Escuta a Escritura: “Pequena é a abelha entre os alados, mas o seu produto é o primeiro em doçura” (Eclo 11,3). É obra de Deus; não a injuriarias, e sim àquele que a fez. O que importa na mulher? Não a louves pela elegância da forma; é próprio dos impudicos o louvor, aquele ódio, e o próprio amor. Procura a beleza da alma; imita o esposo da Igreja. A beleza exterior enche-se de arrogância e insolência, provoca ciúmes e não raro levanta suspeitas absurdas. Mas não causa prazer? Até o primeiro e segundo mês, ou no máximo até um ano, não mais. Pelo hábito desaparece o encanto. No entanto, os males decorrentes da beleza, permanecem: o luxo, a arrogância, o desprezo. Em relação à que não é tal, nada disso sucede; mas com razão o amor inicial permanece por muito tempo, porque a beleza se origina da alma, não do corpo.
Dize-me. O que há de melhor que o céu? E melhor do que os astros? Por maior que seja o número de corpos que mencionares, não encontrarás um tão alvo; quaisquer que sejam os olhos, não são tão alegres. Até os anjos se admiraram quando foram criados e também nós agora apreciamos, mas não tanto quanto no começo. Tal é o hábito: Não ocasiona grande espanto. Quanto mais na mulher! Se, porém, sobrevier uma doença, tudo esvoaça, desaparece. Peçamos da mulher a benevolência, a moderação, a indulgência. São estas as notas da beleza. Não busquemos a elegância corporal, nem a censuremos por aquilo que não está em seu poder; ou antes, não a vituperemos absolutamente, porque seria audacioso. Não nos exasperemos, nem nos indignemos. Não vedes quantos homens casados com mulheres formosas, morreram de modo miserável? Quantos que possuíam mulheres que não eram tão belas, chegaram à extrema velhice muito felizes? Expurguemos as máculas internas, tiremos as rugas do íntimo, limpemos as manchas existentes na alma. É a beleza que Deus reclama. Façamo-la bela diante de Deus, não de nós. Não procuremos o dinheiro, nem a nobreza exterior, mas a da alma. Ninguém se enriqueça por intermédio da mulher. São riquezas torpes e vergonhosas. Não procure absolutamente enriquecer-se deste modo. “Ora, os que querem se enriquecer caem em tentação, e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que mergulham os homens na ruína e perdição” (Tt 6,9). Não reclames da mulher abundância de dinheiro, e facilmente terás o restante. Quem, dize-me, por favor, omitindo o principal, cuida do mínimo? Mas, ai de mim, é usual. E se temos um filho, não nos empenhamos em que se torne bom, mas em encontrar-lhe uma mulher rica; não que tenha bons costumes, e sim abundantes riquezas. E se olharmos para o estilo de vida, não procuramos um tipo imaculado, mas que nos traga grande lucro, e tudo se transforme em dinheiro. Desta forma tudo se corrompe, porque fomos dominados pela cobiça.
28. Assim também os maridos devem amar as suas próprias mulheres como a seus próprios corpos.
Que sentido tem a asserção? É imagem maior e exemplo mais forte. E não só isto, mas é mais próximo e manifesto, e o motivo é justo. O outro não era tão necessário. Não se diga: Ele era Cristo, e era Deus, e entregou-se a si próprio; com outro motivo e método o comprova dizendo: “Assim devem”, não é gratuito, mas débito. Tendo dito: “Como a seus próprios corpos”, acrescentou:
29. pois ninguém jamais quis mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida,
Isto é, trata-a com empenho. De que modo é a própria carne? Escuta: “Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!” (Gn 2,13). Não só isto, mas também: “E serão ambos uma só carne” (Ef 5,31). E: “Como Cristo amou a Igreja”. Volta ao primeiro exemplo.
30. porque somos membros do seu Corpo.
“De sua carne e de seus ossos”. De que modo? Foi feito de nossa matéria, como Eva era carne da carne de Adão. Com razão, porém, relembrou os ossos e a carne. Partes principais em nós são a carne e os ossos. Estes são subjacentes, uma espécie de quilha e a carne seria a construção. Mas é evidente. De que modo? Como a afinidade é grande, também aqui. O que significa: De sua carne? Isto é, extraído dele verdadeiramente. E por que somos, de fato, membros de Cristo? Porque em conformidade com ele. E como da carne? Estais cientes todos vós, participantes dos mistérios. Dele imediatamente somos formados. E de que modo? Escuta ainda S. Paulo: “Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isso também ele participou da mesma condição” (Hb 2,14). Mas foi ele quem nos fez participar, não nós a ele. De que forma somos de sua carne e de seus ossos? Alguns dizem sangue e água, mas não é; e sim, segundo quis manifestar, isto é, sem cópula ele nasceu por obra do Espírito Santo e assim também nós somos gerados no batismo. Vê quantos exemplos para acreditarmos naquela geração. Ó loucura dos hereges! Confessam que o nascido da água é na verdade gerado, mas não admitem que nos tornamos corpo de Cristo. Se não creem que assim nos tornamos, como se concilia que somos “de sua carne e de seus ossos”? Reflete no seguinte: Adão foi formado, Cristo nasceu; do lado de Adão saiu a corrupção, do lado de Cristo originou-se a vida. No paraíso germinou a morte, na cruz a morte foi eliminada.
O Filho de Deus fez-se de nossa natureza, e a nós (participante) da sua; ele nos tem em si, e nós o temos em nós.
31. Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão ambos uma só carne. Eis o terceiro motivo: Revela que, tendo deixado os pais, dos quais nasceu, une-se a ela. De resto, é carne o pai, a mãe e o filho proveniente da união de ambos. De fato, da mistura dos sêmens o filho é gerado; portanto, os três são uma só carne. Assim, portanto, nós nos tornamos uma só carne com Cristo por participação; e muito mais nós do que a criança. Por quê? Porque assim foi desde o início. Não me digas que a mulher é tal e tal. Não vês que também na carne existem muitos defeitos? Um é coxo, outro tem os pés tortos, outro as mãos secas, outra algum membro fraco. No entanto, não se exaspera, nem o amputa, mas muitas vezes o prefere a um outro. E com razão, porque é seu. Deus quer que tenhamos à mulher tanto amor quanto cada qual dedica a si próprio; mas não por sermos partícipes de uma só natureza, e sim, principalmente, por serem um só, não dois, representando um a cabeça e outro o corpo. E por que o Apóstolo diz em outra passagem: “E a cabeça de Cristo é Deus” (1Cor 11,3)? Digo também eu: Como somos um só corpo, também Cristo e o Pai são um só. Por conseguinte, manifesta-se que ainda o Pai é Cabeça. Ele dá dois exemplos, a saber, do corpo e de Cristo. Por isso acrescenta:
32. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja.
Que quer dizer isto? Assegura que é grande mistério, uma vez que o bem-aventurado Moisés, ou melhor o próprio Deus, sugeriu algo de grande e admirável. De fato diz: “Refiro-me à relação entre Cristo”, visto que ele, tendo deixado o Pai, desceu, veio para junto da esposa, e se tornaram um só espírito: “Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito” (1Cor 6,17). E diz de forma bela: “É grande este mistério”, como se dissesse: Mas a alegoria não arruína o amor.
33. Em resumo, cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo e a mulher respeite o seu marido.
Em verdade, em verdade é mistério, e grande mistério, porque abandonou o pai que o criou, gerou, educou, e a mãe que concebeu, deu à luz na dor e aflição, os pais que tantos e tão grandes benefícios conferiram, com os quais houve diuturna convivência, a fim de aderir àquela que não conhecera, com a qual nada de comum possuía, e a preferiu a todos. Em verdade, é mistério. E os pais não se indispõem diante deste fato, ou melhor, sentem se tal não acontecer, e alegram-se ao gastarem muito e terem grandes despesas. Com efeito, é grande mistério, oculta sabedoria. Há muitos séculos Moisés profetizou, e Paulo agora exclama: “Refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja”. Mas não foi por causa dele somente, mas também por causa da mulher que se preceituou que ele dela cuide como da própria carne, conforme Cristo cuida da Igreja. “E a mulher respeite o seu marido”. Não trata apenas do referente à caridade; de que, então? “Respeite o seu marido”. A mulher detém a segunda espécie de domínio. Por conseguinte, não exija igualdade em honras. Está sujeita à cabeça, que não a menospreze por estar sujeita. É corpo. Se a cabeça desprezar o corpo, ela também perecerá. Em certo equilíbrio ofereça o amor correspondente à obediência. Qual a cabeça, tal o corpo. As mãos, os pés e os restantes membros lhe ofereçam serviço; ela, porém, proveja com toda inteligência. Nada mais proveitoso do que esta união. E haverá amor onde existe o medo? Principalmente talvez então haverá. Com efeito, quem teme também ama; quem ama respeita a cabeça, ama-a enquanto membro, porque a cabeça é também membro do corpo inteiro. Por isso ele a uma submeteu, e a outra pôs acima, a fim de haver paz. Onde há igualdade em honras, jamais existe paz. Nem se a casa tiver forma democrática, nem se todos dominam. É indispensável haver um só governo. E isso sempre nos negócios materiais. Onde os homens são espirituais, haverá paz. Havia (na Igreja primitiva) cinco mil pessoas, e ninguém dizia ser própria coisa alguma de seus bens (cf. At 4,32), mas eram submissos uns aos outros. Indício de sabedoria e de temor de Deus. E mostrou o modo da caridade, não porém do temor.
E vê que ele amplia o que compete ao amor, narrando a respeito de Cristo e da própria carne: “Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe”. O que compete ao temor não dilata. Por que motivo? Porque quer antes dominar do que amar. Se existe amor, o restante virá em consequência; se existe temor, não. Efetivamente, quem ama a mulher, embora não seja muito moderada, haverá de tudo tolerar.
É difícil e árdua a concórdia, sem a união pela tirania do amor; o temor, porém, não regula tudo isso. O Apóstolo se detém mais neste assunto que é válido. Ao ordenar que respeite, lucra a mulher, à qual parece prejudicar. Ao homem, porém, é ordenado o principal, a saber, amar. De que forma agir, se a mulher não respeitar? Ama, cumpre teu dever. Quando os outros não prestam o que devem, cumpramos nós o dever. Por exemplo: “Submetei-vos uns aos outros no temor de Cristo”. O que sucede se o próximo não se submete? Obedece tu à lei de Deus. Neste caso igualmente: A mulher não amada respeite, para não suceder mal algum por causa dela; e o marido, se a mulher não respeitar, ame, contudo, a fim de não haver falhas. Cada qual recebeu o que lhe é peculiar. Tal matrimônio é segundo Cristo, matrimônio espiritual, geração espiritual, não do sangue, nem de dores de parto. Tal foi também a geração de Isaac. Escuta a Escritura: “Sara deixou de ter o que têm as mulheres” (Gn 18,11). Matrimônio não passional, nem corporal, mas inteiramente espiritual, estando a alma unida a Deus por união inefável, somente por ele conhecida. Por isso diz: “Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito” (1Cor 6,17). Vê que se empenha em unir carne a carne, e espírito a espírito. Onde estão os hereges? Se o matrimônio fosse censurável, não empregaria a denominação de esposo e esposa, não exortaria que fosse contraído: “Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe”, e ainda acrescentaria: “Refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja”. a esse respeito diz o salmista: “Ouve, ó filha, vê e inclina o teu ouvido; esquece o teu povo e a casa do teu pai, que o rei se apaixone por tua beleza” (Sl 45,11). Por isso também Cristo dizia: “Saí do Pai e vim” (Jo 16,28). Mas, ao dizer que deixou o Pai, não penses em algo semelhante ao que sucede entre os homens, uma mudança de lugar. Diz-se que saiu não por ter saído, mas por causa da carne, tal como a palavra: “Saí do Pai”. Por que não disse acerca da mulher: Unir-se-á a seu marido? Por que motivo? Porque falava acerca do amor e dirigia-se ao homem. Ao se dirigir a ela, refere-se ao respeito: “O homem é cabeça da mulher”, e: “Cristo é Cabeça da Igreja”. Ao homem fala do amor, e lhe transmite o que é atinente a este; fala-lhe do amor, estimulando-o, e fazendo com que adira. Aquele que deixou o pai por causa da mulher, e depois a abandona e deixa, merecerá perdão? Não vês quanta honra Deus quer que ela consiga, ao te afastar do pai e unir-se a ela? Mas de que modo agir, pergunta-se, se fizermos nosso dever, mas ela não nos acompanhar? “Se o não-cristão quer separar-se, separe-se!” (1Cor 7,15). O irmão e a irmã não estão sujeitos a tal escravidão. Mas ao ouvires mencionar o respeito, é exigência do respeito conveniente à mulher livre, não a uma escrava, pois é teu corpo. Do contrário, ultrajas a ti mesmo, infligindo ignomínia a teu corpo. O que significa o temor? Que não contradiga, não se insurja, não ambicione o primeiro lugar; basta que chegue a este ponto. Se, porém, amas segundo foi preceituado, farás até coisas maiores; ou melhor, não obrarás por temor, mas por amor. Teu sexo é de certo modo mais fraco, precisado de grande auxílio, de muita indulgência. O que se dirá dos que contraem segundas núpcias? Não as condeno, de modo algum, porque o Apóstolo as concedeu, mas uso de condescendência. Oferece-lhe tudo, em favor dela tudo faze e sofre; é teu dever. Ele não quer aqui admoestar por comparação com exemplos dos gentios, conforme age muitas vezes. Basta o grande e forte exemplo de Cristo, principalmente relativo à submissão. “Deixará o homem o seu pai e a sua mãe”. Eis o que acontece entre os pagãos. Mas não disse: Coabitará, e sim: “E se ligará”, aludindo à exata união, ao amor veemente. Não se contentou com isso, mas pelo acréscimo mostrou de tal modo a sujeição que não parece mais existirem dois. Não disse: Um espírito; não disse: Uma alma, pois é evidente e possível a qualquer um; mas a fim de serem “uma só carne”.
A segunda espécie de domínio – é da mulher e – consiste em governo e igualdade em honras. Todavia, o homem possui algo mais. Nisso principalmente se baseia a tranquilidade da casa. Adotou a expressão de que ele é Cristo, não apenas porque a deve amar, mas também orientar. Declara que seja: “Santa e irrepreensível”. Carne, para amar, e: “E se ligará”, igualmente para amar. Pois, se cuidares de que seja “santa e irrepreensível”, o restante virá por si. Busca o que é de Deus e as coisas humanas virão com facilidade. Orienta a mulher, e toda a casa se ordena. Escuta o que diz Paulo: “Se desejam instruir-se sobre algum ponto, interroguem os maridos em casa” (1Cor 14,35). Se assim administrarmos a casa, seremos aptos também a presidir na Igreja, porque a casa é uma Igreja em tamanho menor. Deste modo, quando homem e mulher são bons, têm proeminência. Pensa em Abraão, Sara e Isaac, nos trezentos e dezoito servos. A casa inteira era bem ordenada, repleta de piedade. Sara cumpria o preceito do Apóstolo, e respeitava o marido. Escuta o que diz: “Velha como sou e o meu senhor também é já entrado em anos” (Gn 18,12). E ele a amava tanto que a atendia em tudo o que desejava. O menino era virtuoso, e os servos também eram admiráveis, e não hesitaram em enfrentar o perigo com o senhor, não protelaram nem perguntaram a causa. Um dos que os presidiam era tão bom que à sua fidelidade foram confiadas a missão de obter casamento para o filho único, e a viagem além dos limites da região. Se o exército for bem-ordenado sob um comandante, jamais a guerra sofrerá incremento. No assunto tratado igualmente, grande é a concórdia da casa quando marido, mulher, filhos e escravos se entregam aos mesmos cuidados. Em caso contrário, não raro devido a um só escravo malvado tudo se revoluciona e se dilui e ele sozinho frequentemente dissipa e corrompe o todo. Tenhamos, portanto, grande solicitude pela mulher, os filhos e os escravos, cientes de que facilitaremos a administração. A prestação de contas ser-nos-á clemente e benigna e diremos: “Eis eu e os filhos que o Senhor me deu” (Is 8,18). Se o marido for admirável, chefe ótimo, o restante do corpo não sofrerá violência.
Exprimi o desenvolvimento exato da posição da mulher e do marido, exortando-a a respeitá-lo qual cabeça e a ele a que a ame qual esposa. Mas, pergunta-se, de que maneira? É evidente o dever; exporei de que forma. Desprezar o dinheiro, visar uma única meta, a saber, a virtude da alma, conservar o temor de Deus diante dos olhos. O Apóstolo o exprimia ao se tratar dos servos: “Sabendo que todo aquele que fizer o bem ou o mal, receberá o bem ou o mal do Senhor” (Ef 6,8), e é válido ainda nesta passagem. Deve amar não tanto por causa dela, quanto por Cristo. Indica-o dizendo: “Como ao Senhor”. Governe, portanto, de certo modo em obediência ao Senhor, obrando tudo por causa dele. É suficiente para induzir, persuadir e não permitir disputas e dissensões. Nenhum fiel calunie o marido junto da esposa, nem o homem acredite levianamente algo contra a mulher. A mulher não perscrute em vão e curiosamente a entrada e a saída do marido, nem ele dê motivo de suspeita. Dize-me. Por que dedicas o dia inteiro aos amigos, a tarde à mulher? Nem assim podes satisfazê-la, nem eliminar as suspeitas. Se a mulher te acusar, não te irrites; é efeito da amizade, não da arrogância. Aquelas acusações, ardentes sentimentos e receios provêm de um amor ardente. Teme que alguém se introduza em sua união, cause detrimento ao bem principal, roube-lhe o chefe, desmorone-lhe o casamento. Existe outro motivo de desconfiança. Nenhuma delas cuide excessivamente dos servos, nem o marido de uma serva, nem a mulher do escravo. São atitudes suficientes para provocar suspeitas. Reflitamos acerca daqueles justos. A própria Sara ordenou que o patriarca tomasse Agar por mulher. Sara exigiu, ninguém obrigou, e não foi Agar que lhe tirou o marido; mas embora Abraão por longo tempo passasse sem filhos, preferiu jamais ser pai do que entristecer a mulher. Todavia depois o que diz Sara? “Que o Senhor julgue entre mim e ti!” (Gn 16,5). Se fosse um outro, não se teria encolerizado? Não levantou as mãos contra ela, dizendo mais ou menos o seguinte: O que dizes? Não queria ter relações com a mulher; tudo foi projetado por ti e ainda acusas? Ele nada de semelhante proferiu. Mas, o que disse? “Pois bem, tua serva está em tuas mãos; faze-lhe como melhor te parecer” (ib. 6). Entregou a companheira para que Sara não se aborrecesse. Ora, eis a grande benevolência! Pois, em uma mesa comum, até os ladrões estão de acordo com os adversários (e conforme diz o salmista: “A quem me unia uma doce intimidade” – Sl 55,15). Mas, tornar-se uma só carne (em que consiste a união matrimonial) atrai muito mais. Ora, nada disso venceu o justo, mas entregou-a à mulher, mostrando que nada acontecera por culpa sua; e o que é mais, despediu-a, apesar de grávida. Quem não se compadeceria daquela que lhe dera um filho? O justo, contudo, não se dobrou, porque preferia a tudo o amor da mulher.
Imitemo-lo no seguinte: Ninguém exprobe a pobreza da mulher, ninguém lhe cobice as riquezas; e tudo se resolve. E não diga a mulher ao marido: Covarde e tímido, cheio de torpor e de indolência, preguiçoso e sonolento! Humilde e de origem obscura, atravessou perigos e peregrinações e obteve grandes posses e a mulher agora usa ornatos de ouro, é carregada em carruagem com mulas brancas por toda parte, tem turmas de escravos e grupos de eunucos. Tu, porém, te dissipas e vives inutilmente. A mulher não se exprima desta forma, ou de outra semelhante. Não ocupa a posição de corpo para dar ordens à cabeça, mas para atender e obedecer. Como, portanto, suportará a pobreza? Onde encontrará alívio? Prefira ser quais as mais pobres do que ela própria, considere quantas jovens nobres e de estirpe nobre, não somente nada receberam do marido, mas também lhes doaram bens, que foram todos esbanjados. Pense nos perigos que daí se originam e abrace a vida isenta destas questões. Em resumo, se for afeiçoada ao marido, nada dirá de tal, mas há de preferir tê-lo junto de si sem aquisições a alcançar dez mil talentos com tribulação e solicitude, que sempre encontra a mulher, estando ele ausente. O marido, ouvindo isso, uma vez que tem o domínio, não se volte a injúrias e golpes, e no entanto exorte, admoeste, persuada com razões a parte mais fraca, não levante a mão contra ela. Longe estas atitudes de uma pessoa livre. Não inflija ultrajes, nem ignomínia, nem maldições; chame à ordem, contudo, aquela que é um tanto insensata. Donde virá esta atitude? Se aprender quais as verdadeiras riquezas, a sabedoria do alto, nada disto condenará. Ensine-lhe não ser a pobreza mal algum; ensine não só através de palavras, mas também de obras; ensine a desprezar a glória, e a mulher nada disso dirá, nem desejará. Qual modelo, desde a tarde do casamento, ensine-lhe a prudência, a suavidade; para que viva honestamente logo desde o começo, desde o vestíbulo, rejeite a ambição das riquezas. Ensina-lhe a sabedoria e aconselhe a não ter brincos de ouro pendentes das orelhas, nem se ornar de ouro no rosto e no pescoço, nem colocá-lo no leito, nem usar vestes áureas e suntuosas. Seja elegante o ornato, mas a elegância não incida em ultraje e injúria. Com efeito, deixando estas coisas para os histriões, enfeite a casa com muito decoro, onde mais se aspire moderação do que outro suave odor. Daí provêm dois ou três bens: Primeiro, a esposa não lastimará quando desfeito o quarto nupcial, devolvidos forem as vestes, os vasos de ouro e prata; segundo, o esposo não terá o cuidado de não se estragarem e de serem guardados os que foram comprados. Acrescente-se o terceiro, o principal dos bens. Revela-se a mentalidade: Não se deleita nisto e desmancha o restante, sem jamais serem permitidos danças e cânticos impudicos. Sei que alguns me julgarão ridículo por enunciar estas normas. Mas se acreditardes em mim, com o decurso do tempo, diante das vantagens, reconhecereis o lucro. E se dissipará o riso, e serão ridicularizados os costumes atuais; e vereis que os presentes usos são próprios de meninos tolos e de homens embriagados; entretanto o que aconselho é peculiar à prudência, à sabedoria e à cidadania do alto. O que digo, portanto, que importa fazer? Afasta das núpcias os cantos torpes, os satânicos, as cantilenas desonestas, a afluência tumultuosa de jovens impuros, e a esposa poderá manter-se moderada. Imediatamente pensará consigo mesmo: Ah! O que é este homem? É filósofo. Não dá valor à vida presente. Casou-se para ter filhos, educá-los e para manter a casa. Isso desagradará à esposa? No primeiro e segundo dia, não depois; terá o máximo prazer, livre de qualquer suspeita. De fato, quem não gosta de flautas, dançarinos, ou cantos flácidos por ocasião das núpcias, jamais terá ânimo de fazer ou dizer torpezas. Posteriormente, porém, após eliminares tudo isso do matrimônio, porta-te bem, prolonga o pudor por longo tempo, e logo não se dissipe. A jovem, mesmo impudica, saberá calar oportunamente, por respeito ao marido e estranha ao assunto. Não abandones depressa o pudor, conforme fazem os homens impudicos, mas prolonga-o por muito tempo; haverá grande lucro. Neste ínterim não acusará, nem se queixará do que estabeleceres.
Estabelece normas para todo aquele tempo em que o pudor, freio imposto à alma, não deixa espaço para queixas, nem censuras. Quando obtiver confiança e liberdade de palavra, com muita segurança tudo haverá de alterar e confundir. Haverá oportunidade melhor de formar a mulher do que durante o tempo em que respeita e teme o marido, retida pelo pudor? Então impor-lhe-á normas e ela obedecerá, de boa ou má vontade. Como manterás o pudor? Manifestando que não te envergonhas menos do que ela, que falas pouco, e com grande gravidade e atenção; então deporás nela palavras de sabedoria e ela receberá. Deves introduzi-la num costume ótimo, a saber, o pudor. Se quiseres, darei um exemplo do que deves dizer-lhe. De fato, se Paulo não deixou de dizer: “Não vos recuseis um ao outro” (1Cor 7,5), dirigindo-se ao cônjuge, ou antes, não ao cônjuge, mas à alma espiritual, nós com mais razão não o omitiremos. O que, portanto, lhe diremos? Com muito amor digamos: Nós, filhinha, te acolhemos por partícipe de nossa vida, e te introduzimos na sociedade do mais importante e necessário, a saber, da procriação, e administração da casa. O que, por conseguinte, te pedimos? Ou antes, fala primeiro o que é atinente ao amor. Nada concorre mais para convencer o ouvinte a aceitar as palavras, quanto saber que procedem de muito amor. De que modo, pois, demonstrarás amor? Se disseres: Podia optar entre muitas, mais ricas, de estirpe nobre, mas não as escolhi. Apreciei teu estilo de vida, honestidade, condescendência, moderação. Em seguida, logo prepara o caminho para falar da sabedoria e repreende as riquezas com certa precaução. Com efeito, se apenas censurares as riquezas, serás importuno; se esperares ocasião conveniente, tudo conseguirás. Parecerás fazê-lo em apologia, não qual uma pessoa austera, desagradável, mesquinha, e se aproveitares uma oportunidade, até se alegrará. Dirás, portanto (é necessário repetir): Podia escolher esposa rica e opulenta, mas não cogitei disso. Por quê? Não foi em vão, inutilmente. Sabia com razão que as riquezas não constituem posses, mas são desprezíveis. Possuem-nas os ladrões, as meretrizes e os violadores de sepulcros.
Por isso, omitindo esses assuntos, trato da virtude de tua alma, que prefiro a todo ouro. Uma jovem prudente e nobre, piedosa, é equiparada em apreço à terra inteira. Por isso te desejei e te amo, e prefiro até à minha vida. A vida presente nada é; suplico, exorto e faço o possível para levarmos de tal forma a presente vida que possamos estar conjuntos uns e outros com toda segurança no século futuro. O tempo presente é breve, caduco e frágil; se formos dignos de passar aqui uma vida agradável a Deus, sempre estaremos com Cristo e seremos felizes uns e outros. Anteponho a tudo o teu amor e nada me é mais penoso do que discordar de ti alguma vez. Mesmo se for necessário perder tudo, ficar mais pobre do que Iros, enfrentar extremos perigos, sofrer seja o que for, tudo será suportável e leve, enquanto tu me tiveres afeto; e serão desejáveis os filhos enquanto me fores afeiçoada. Deves proceder de igual modo. Em seguida, insere as palavras do Apóstolo de que Deus quer esta mútua benevolência. Escuta a Escritura: “Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe e se ligará à sua mulher” (Ef 5,31). Não haja entre nós pretexto de mesquinhez. Falhem as riquezas, a multidão dos escravos, as honrarias externas. Isso me é preferível a tudo. Quanto ouro, que tesouros serão mais desejáveis à mulher do que estas palavras? Não receies que a amada fique insolente, mas confessa que a amas. De fato, as meretrizes que se unem ora a este, ora àquele, com razão se exaltam contra os amantes, ao ouvir essas palavras. A mulher livre, porém, e a jovem nobre nunca se enaltecem com essas palavras, mas muito mais se inclinam. Manifesta valorizar a sua convivência, e preferir estar em casa por causa dela do que na praça, antepô-la a todos os amigos e aos filhos dela recebidos, e amá-los por causa dela. Quando fizer algum bem, louva-a e admira; se acontecer coisa absurda, conforme acontece às jovens, exorta e admoesta. De todos os lados acusa as riquezas e gastos exagerados, e aponta-lhe o ornamento oriundo do decoro e da respeitabilidade. E assiduamente ensina-lhe o que conferem.
As preces sejam entre vós comuns. Todos devem ir à igreja. O marido reclame da mulher em casa uma parte do que ali se diz e lê, e ela do marido. Se a pobreza oprimir, apresente os santos homens, Pedro e Paulo, cuja boa fama era maior do que a de todos os reis e opulentos, e como passaram a vida com fome e sede. Ensina-lhe que na vida nada é terrível a não ser ofender a Deus. Se alguém deste modo e por causa disso se casar, não será muito inferior aos monges, nem o casado aos solteiros. Se queres também oferecer um almoço ou dar um banquete nada de desonesto, de indecoroso, mas se encontrares um homem santo que possa abençoar vossa casa, e atravessando seu limiar possa trazer-te toda bênção de Deus, convida-o. Direi mais. Nenhum de vós procure desposar mulher mais rica, mas antes mais pobre. Não lhe dará prazer por meio das riquezas quanto pesar devido aos opróbrios, por exigir mais do que forneceu, por causa das injúrias, das excessivas despesas, das palavras pesadas. Talvez dirá: Ainda não gastei do que é teu, ainda visto o que é meu, do que me doaram meus pais. O que dizes, ó mulher? Ainda revestes o que é teu? E o que há de mais miserável do que estas palavras? Não tens de próprio nem o corpo, e possuis riquezas tuas? Não sois mais dois no matrimônio, mas uma só carne; e duas são as posses, não uma! Ó cobiça do dinheiro! Um só homem vos tornastes, apenas um ser vivo, e ainda dizeis: São minhas? É abominável esta palavra e malvada, instigada pelo diabo. Deus criou em comum as coisas mais indispensáveis, e estas não são comuns? Não é lícito dizer: A luz é minha, o sol é meu, a água é minha. As coisas mais importantes são comuns e as riquezas não? Pereçam mil vezes as riquezas, ou antes não as riquezas, mas as decisões, o abuso das riquezas, a preferência a tudo. E ensina isso entre outras coisas, mas com muito amor. A própria exortação à virtude acarreta grande tristeza, especialmente à muito jovem e frágil. Uma vez que as palavras provêm da sabedoria, fala com amor. Principalmente extermina e expulsa de sua alma o meu e o teu. Se disser: O que é meu, responde: O que dizes que é teu? Não sei, porque eu nada tenho de próprio. Por que dizes: Meu? Tudo é teu? Desculpa-lhe esta palavra. Não vês que os pequeninos assim agem? Quando o menino nos tira o que estamos segurando e ainda mais quer tomar, concedemos e dizemos: Sim, isso é teu e aquilo também. Façamos o mesmo com a mulher; pois a sua mente é mais pueril ainda. E se disser: É meu, responde: Tudo é teu e eu sou teu. Não é adulação, mas grande prudência. Assim poderás reprimir-lhe a ira, extinguir a amargura. Seria adulação se fizesses algo de indecoroso. Em nosso caso, porém, trata-se de máxima filosofia. Dize-lhe, portanto: Eu também sou teu, ó filhinha. Assim também exortou Paulo: “O marido não dispõe do seu corpo; mas é a mulher quem dispõe” (1Cor 7,4). Se não tenho poder sobre meu corpo, muito menos sobre as riquezas. Acalmá-la-á, assim falando, extinguirás a chama, infligirás opróbrio ao diabo, torná-la-á mais escrava do que se fosse comprada; com estas palavras a ligarás. Por isso, por meio do que falaste, ensinaste a jamais proferir: Meu e teu. Nunca a chames sem consideração, mas com carícias, com honra, com muito amor. Honra-a e não precisará ser honrada por outros; não precisará de glória da parte do próximo se fruir da que tu lhe dás. Prefere-a a todos, por causa da beleza e da sabedoria, e louva-a. Assim a convencerás a não dar atenção a estranhos, aliás, rir-se-á de todos eles. Ensina-lhe o temor de Deus; tudo manará qual de uma fonte e a casa encher-se-á de bens inumeráveis. Se procuramos os bens incorruptíveis, os corruptíveis igualmente afluirão. “Buscai, em primeiro lugar, o reino de Deus, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (6,3). Quais serão os filhos de tais pais? E quais os servos de tais senhores? Quais todos os que deles se aproximam? Não sucederá encherem-se de bens incontáveis? Com efeito, na maior parte dos casos, os costumes dos servos seguem os costumes dos senhores, e assemelham-se os seus desejos.
Amam as mesmas coisas, exprimem-se conforme aprenderam, vivem do mesmo modo. Se assim nos orientarmos e atendermos às Escrituras, aprenderemos mais. Desta forma poderemos agradar a Deus, passar virtuosamente a vida presente, e alcançar os bens prometidos àqueles que o amam. Consigamo-lo todos nós pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo glória, império, honra, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.
RECOMENDAÇÃO COMPLEMENTAR: A CONFUSÃO DOS FINS DO MATRIMÔNIO
Excerto de: SÃO JOÃO CRISÓSTOMO; Comentário às Cartas de São Paulo (1), Homilias sobre as Cartas aos Efésios, hom. XX.
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