S. Francisco de Sales
1609
HONESTIDADE DAS PALAVRAS
E RESPEITO QUE SE DEVE AO PRÓXIMO
Se alguém não peca por palavras, é um homem perfeito (Tg 3,2), diz São Tiago.
Tem todo o cuidado em não deixar sair de teus lábios alguma palavra desonesta, porque, embora não proceda de uma má intenção, os que a escutam a podem interpretar de outra forma. Uma palavra desonesta que penetra num coração frágil estende-se como uma gota de azeite e às vezes toma posse de tal modo dele que o enche de mil pensamentos e tentações sensuais. É ela um veneno do coração, que entra pelo ouvido;
e a língua que serve de instrumento a esse fim é culpada de todo o mal que o coração pode vir a sofrer, porque, ainda que neste se achem disposições tão boas que frustrem os efeitos do veneno, a língua desonesta, quanto dela dependia, procurou levar esta alma à perdição. Nem se diga que não se prestou atenção, porque Nosso Senhor disse que a boca fala da abundância do coração (Mt 12,34). E, mesmo que não se pensasse nada de mal, o espírito maligno o pensa, e por meio dessas palavras suscita o sentimento mau nos corações das pessoas que as ouvem.
Diz-se que quem comeu a raiz denominada angélica fica com um hálito doce e agradável, e os que possuem no coração o amor à castidade, que torna os homens em anjos na terra, só tem palavras castas e respeitosas. Quanto às coisas indecentes e desonestas, o apóstolo nem quer que se nomeiem nas conversas, afirmando que nada corrompe tanto os bons costumes como as más conversas. Se se fala dissimuladamente e em torneios sutis e artificiosos de coisas desonestas, o veneno encerrado nessas palavras é ainda mais sutil, danoso e penetrante, assemelhando-se aos dardos, que são tanto mais para temer quanto mais finos são e mais agudas têm as pontas. Quem quer granjear deste modo o nome e a estima de homem espirituoso ignora completamente o fim da conversa; a con versa deve parecer-se com o trabalho comum de um enxame de abelhas para fazer um mel precioso, e o modo de agir dessas pessoas pode-se comparar a um montão de vespas em torno de uma podridão. Assim, se um louco te disser palavras indecentes, testemunha-lhe logo a tua indignação, voltando-te para falar com uma outra pessoa ou de algum outro modo que te sugerir a prudência.
Muito má qualidade e ter um espirito motejador. Deus odeia extremamente este vício e puniu-o, como se lê no Antigo Testamento, com muita severidade. Nada é mais contrário à caridade e máxime à devoção que o desprezo do próximo, mas a irrisão e mofa trazem forçosamente consigo este desprezo; é, pois, um pecado muito grave e dizem os moralistas que, entre todos os modos de ofender o próximo por palavras, este é o pior, porque tem sempre unido o desprezo, ao passo que nos outros a estima ainda pode subsistir. Mas, quanto a esses jogos de palavras espirituosas com que pessoas honestas costumam divertir-se, com uma certa animação, sem pecar contra a caridade ou a modéstia, são até uma virtude, que os gregos chamam eutrapelia ou arte de sustentar uma conversa agrada-vel; servem-se para recrear o espírito das ocasiões insignificantes que as imperfeições humanas gerais fornecem ao divertimento. Somente deve-se tomar o cuidado que essa alegria inocente não se vá tornando em mofa, porque esta provoca a rir-se do próximo por desprezo, ao passo que esses gracejos delicados só fazem rir por prazer e pelo espírito de certas palavras, ditas por liberdade, confiança e familiaridade, com toda a franqueza, e recebidas de boa mente, tendo-se completa certeza que ninguém as levará a mal. Quando os religiosos da corte de São Luís queriam entabular uma conversa séria e elevada depois do jantar, dizia-lhes o santo rei: Agora não é tempo de arrazoar muito, mas de divertir-se com uma conversação animada; diga, pois, cada um, livre e honestamente, o que lhe vem ao pensamento. Queria com isso dar um prazer à nobreza de que se rodeava, condescendendo nestas provas familiares da bondade de sua real majestade.
Enfim, Filoteia, passemos o pouco de tempo que nos é dado para uma conversa recreativa e agradável, de modo que a devoção aí praticada nos assegure uma eternidade feliz.
OS JUÍZOS TEMERÁRIOS
Não julgueis, diz nosso Salvador, e não sereis julgados. Não condeneis, e não sereis condenados (Lc 6, 37). Não julgueis antes do tempo, diz o apóstolo, até que venha o Senhor, o qual descobrirá o que há de mais secreto nos corações (1Co 4,5).
Oh! quanto os juízos temerários desagradam a Deus! São temerários os juízos dos filhos dos homens, porque não são juízes uns dos outros, e, julgando, arrogam-se o direito e o ofício de Nosso Senhor. São temerários ainda, porque a principal malícia do pecado depende da malícia e do conselho do coração, que é para nós um segredo tenebroso. São, enfim, temerários, porque cada um tem bastante que fazer em julgar a si mesmo, sem se meter a julgar o seu próximo. Para não ser jul-gado, é tão necessário não julgar os outros como julgar a si mesmo, porque Nosso Senhor nos proíbe o primeiro e o apóstolo nos preceitua o segundo, dizendo: Se nos julgarmos a nós mesmos, não seremos julgados (1Co 11,31).
Mas – ó meu Deus! fazemos exatamente o contrário; fazemos o que nos é proibido, julgando o nosso próximo a cada passo, e não fazemos o que nos foi preceituado, isto é, julgar nós mesmos.
Como os juízos temerários têm diverso princípio, devemos curá-los também com remédios diversos. Há corações de sua natureza tão agros, severos e ásperos, que espalham indiscriminadamente a sua agrura e severidade sobre todas as coisas e convertem em absinto os juízos, como diz o Profeta Amós, julgando o próximo sempre com todo o rigor e aspereza.
Precisam estes de um remédio muito hábil, tanto mais que seu incômodo, sendo natural, é muito mais difícil de vencer. Esta asperidade de coração, ainda que não seja em si pecado, mas simplesmente uma imperfeição, predispõe, no entanto, habitual e diretamente ao juízo temerário e à detração.
Outros julgam temerariamente, não por aspereza natural, mas por orgulho, pensando insensatamente que quanto mais rebaixam os outros, tanto mais elevam os seus próprios méri tos; espíritos arrogantes e presunçosos admiram incessantemente a si próprios e colocam-se tão alto em sua própria estima que encaram tudo o mais como alguma coisa de ordinário e mesquinho. Não, dizia o fariseu, eu não sou semelhante aos outros homens (Lc 18,11). Há outras pessoas, cujo orgulho não é tão declarado e que consideram o mal do próximo com complacência porque, contrapondo-o ao bem que pensam existir em si, o saboreiam com mais doçura e se creem mais apreciadas; e essa complacência anda tão escondida que é preciso ter bons olhos para descobri-la – e tanto assim que aqueles mesmos que a nutrem, de ordinário a ignoram e só a notam se lha mostram.
Muitos querem escusar-se dos seus remorsos, julgando com gosto que os outros têm o mesmo defeito ou maior ainda e persuadindo-se ao mesmo tempo que o número dos criminosos diminui a grandeza do crime.
Muitos outros ocupam-se com grande prazer em filosofar por vãs conjeturas sobre o caráter, os costumes e as inclinações dos outros, de modo que, se por desgraça acertam uma vez em seus juízos com a verdade, tanto cresce neles a audácia e a facilidade de julgar que não é sem grande dificuldade que se podem corrigir. E quantos julgam sob a influência da paixão, pensando sempre mal dos que odeiam e bem dos que amam!
Existe só uma exceção muito curiosa, mas também muito verdadeira: o excesso do amor faz muitas vezes pensar mal das pessoas que se amam, o que é um efeito monstruoso de um amor impuro e imperfeito, inquieto e anormal.
Malditos ciúmes que, como se sabe, apodam uma pessoa de pérfida e adúltera por causa de um simples olhar, de uma palavra um pouco leviana, do sorriso mais puro! Enfim, o temor, a ambição e outras fraquezas humanas muito contribuem frequentemente para produzir essas vãs suspeitas e juízos temerários.
Que remédio haverá para todos esses males? Diz-se que quem bebeu do suco de uma erva da Etiópia, chamada ofiúsa, imagina ver por toda parte serpentes e mil outras coisas pavorosas e, para curá-los, é preciso lhes dar a beber um pouco de vinho de palma. Seja como for, mas quanto aos que se deixaram corromper pela inveja, ambição ou ódio, achem mal e repreensível tudo o que veem; para estas pessoas só o espírito de caridade que a palma representa pode vencer esta má inclinação de formar juízos temerários e iníquos.
A caridade, muito longe de ir observar o mal, teme até encontrá-lo, e, se o encontra, procura evitá-lo, fazendo como se não o visse. Se ouve por alto falar de alguma coisa má, mais que depressa fecha os olhos e por sua santa simplicidade pensa que foi só uma sombra ou aparência do mal.
E se, coagida, tem que reconhecer a realidade de um mal, ela vira logo que pode os olhos para o outro lado e procura esquecê-lo.
A caridade é, pois, um meio eficacíssimo para todos os males, mas particularmente para este.
Todas as coisas aparecem amarelas aos olhos dos achacados da iterícia e diz-se que para os curar é necessário aplicar um certo emplastro na planta dos pés. A malícia do juízo temerário, de um modo semelhante a esta doença, faz aparecer tudo mau aos olhos dos que a apanharam. Quem se quer curar tem que aplicar algum remédio, não ao espírito, mas aos afetos do coração, que se podem chamar figuradamente os pés da alma, porque por eles ela se move para onde quer. Se o teu coração é, pois, bondoso e cheio de amor, os teus juízos serão delicados e caridosos. Sobre este ponto vou te referir três exemplos magníficos:
Isaac dissera que Rebeca era sua irmã, mas Abimelec, notando entre eles certas demonstrações de amor muito ternas e familiares, presumiu que ela era sua mulher. Um olho maligno teria formado logo um mau juízo dos dois. Abimelec, no entanto, opinou do modo mais caridoso possível num caso como este. Eis aí como devemos julgar do próximo: o melhor possível; e, se uma ação tivesse cem aspectos diferentes, deveríamos encará-la unicamente pelo lado mais belo. São José não podia duvidar que Nossa Senhora estava para dar à luz; mas, porque conhecia a santidade eminente e a sua vida toda pura e angélica, não teve a mais leve suspeita contra ela, por maiores que fossem as provas em contrário; deixando a Deus julgar sobre o caso, tomou simplesmente a resolução de abandoná-la. E o Espírito Santo diz no Evangelho que assim procedeu porque era um homem justo.
O homem justo, quando não pode escusar um fato nem a intenção daquele que aliás conhece por homem de bem, não só não o quer julgar, mas lança de si tal pensamento e deixa o juízo unicamente a Deus. O Salvador, na cruz, não podendo desculpar inteiramente o pecado dos que o tinham crucificado, quis ao menos diminuir-lhe a malícia em razão da ignorância. Assim, se às vezes não podemos desculpar o pecado do próximo, tornemo-lo ao menos digno de compaixão, atribuindo a falta à causa mais sofrível que possa ter, como a ignorância ou a fraqueza.
Então nunca podemos julgar o próximo? Nunca, Filotéia; mesmo nas sentenças do tribunal humano é Deus quem julga. É verdade que são os juízes que aí aparecem e fulminam a sen-tença, mas eles são apenas os ministros e intérpretes de Deus e nunca devem pronunciar um juízo que não seja segundo a sua lei, e suas sentenças são os seus próprios oráculos. Se se afastam desta regra, seguindo suas paixões, então são na verdade eles que julgam e que por conseguinte serão julgados; aos homens, como homens, é absolutamente vedado julgar os seus semelhantes. Ver ou conhecer uma coisa não é o mesmo que julgá-la, porque para julgar sempre se pressupõe, como explica a Sagrada Escritura, alguma espécie de razão grande ou pequena, verdadeira ou aparente, que se deve examinar com muita prudência; por isso diz o Espírito Santo que quem não tem fé já está julgado, porque nenhuma dúvida há que serão um dia condenados. Não será então uma falta duvidar do próximo? Não, porque o que é ilícito é o julgar e não o duvidar. Mas também não nos é permitido duvidar ou suspeitar mais do que as razões nos obrigam; de outra forma seriam dúvidas ou suspeitas temerárias. Se alguns olhos malignos vissem a Jacó, quando beijou Raquel, junto ao poço, saudando-a cortesmente segundo os usos do tempo, ou, então, se vissem Rebeca receber das mãos de Eliezer, um homem desconhecido naquela terra, as pulseiras e brincos que lhe trazia, teria certamente pensado e julgado mal, sem razão nem fundamento al-gum, destas duas pessoas que eram modelos de castidade. Se uma ação é, pois, dúbia em si, é uma suspeita temerária inferir daí uma consequência má, a não ser que muitas circunstâncias juntas formem uma razão convincente.
Enfim, as pessoas zelosas da retidão de sua consciência nunca acham ensejo de julgar temerariamente; e, em vez de perderem tempo perscrutando as ações e intenções do próximo, cujo procedimento parece enleado e inexplicável, entram em si mesmas e envidam todos os esforços para melhorar e aperfeiçoar a sua própria vida; assemelham-se às abelhas, que, quando o tempo está nublado, retiram-se para as suas colmeias e se ocupam com os pequenos trabalhos da preparação do mel. Só uma alma que não sabe o que fazer de bom e útil é que se diverte a examinar a vida alheia. Excetuam-se, entretanto, os que têm esse ofício obrigatório, quer numa família, quer num estado, e para os quais essa atenção e vigilância sobre as ações do próximo constitui um de seus deveres mais sagrados. Cumpram, pois, estes o seu dever com verdadeiro amor e, uma vez preenchido, voltem a cuidar em si próprios.
A MALEDICÊNCIA
A inquietação, o desprezo do próximo e o orgulho são inseparáveis do juízo temerário; e, entre os muitos outros efeitos perniciosos que deles se originam, ocupa o primeiro lugar a maledicência, que é a peste das conversas e palestras. Oh! quisera ter uma daquelas brasas do altar sagrado para purificar os homens de suas iniquidades, à imitação do serafim que purificou a Isaías das suas, para torná-lo digno de pregar a Palavra de Deus. Certamente, se fosse possível tirar a maledicência do mundo, exterminar-se-ia uma boa parte dos pecados.
Quem tira injustamente a boa fama ao seu próximo, além do pecado que comete, está obrigado à restituição inteira e proporcionada à natureza, qualidade e circunstâncias da de-tração, porque ninguém pode entrar no céu com os bens alheios, e entre os bens exteriores a fama e a honra são os mais preciosos e os mais caros. Três vidas temos nós diferentes: a vida espiritual, que a graça divina nos confere; a vida corporal, de que a alma é o princípio, e a vida social, que repousa os seus fundamentos na boa reputação. O pecado nos faz perder a primeira, a morte nos tira a segunda e a maledicência nos leva a terceira.
A maledicência é uma espécie de assassínio e o maldizente torna-se réu de um tríplice homicídio espiritual: o primeiro e o segundo com respeito à sua alma e à alma da pessoa com quem se fala; e o terceiro com respeito à pessoa de quem se deturpa o bom nome. São Bernardo diz, por isso, que os que cometem a maledicência e os que a escutam têm o demônio no corpo, aqueles na língua e estes no ouvido, e Davi, falando dos maldizentes, diz: Aguçaram as suas línguas como a das serpentes (Sl 139,4), querendo significar que, à semelhança da língua da serpente, que, como observa Aristóteles, tem duas pontas, sendo tendida no meio, também a língua do maldizente fere e envenena de uma só vez o coração daquele com quem está falando e a reputação daquele sobre quem se conversa.
Peço-te encarecidamente, Filotéia, que nunca fales mal de ninguém, nem direta nem indiretamente. Guarda-te conscientemente de imputar falsos crimes ao próximo, de descobrir os ocultos, de aumentar os conhecidos, de interpretar mal as boas obras, de negar o bem que sabes que alguém possui na verdade ou de atenuá-lo por tuas palavras; tudo isso ofende muito a Deus, máxime o que encerra alguma mentira, contendo então sempre dois pecados: o de mentir e o de prejudicar o próximo.
Aqueles que, para maldizer, começam elogiando o próximo, são ainda mais maliciosos e perigosos. Protesto, dizem eles, que estimo muito a fulano, que aliás é um homem de bem, mas a dizer a verdade não teve razão em fazer isso e aquilo. Aquela moça é muito boa e virtuosa, mas deixou-se enganar. Não estás vendo o ardil? Quem quer disparar um arco puxa-o primeiro quanto pode para si, mas é só para o arremessar com mais força; assim parece que o maldizente primeiro retira uma detração que já tinha na língua, mas fá-lo somente para que, arrojando-a depois como uma flecha, com maior malícia, penetre mais profundamente nos corações.
A maledicência, afinal, proferida à guisa de gracejo, é a mais cruel de todas, tanto assim que se pode comparar a sua crueldade com a da cicuta, que, não sendo em si um veneno muito forte e até fácil de ser preservado, torna-se irremediável se se mistura com o vinho. Deste modo uma maledicência que por si não conseguiria outra coisa senão entrar por um ouvido e sair pelo outro, muito impressiona o espírito apresentando-se dum modo sutil e jocoso.
É isso que Davi nos quer dizer naquelas palavras: Eles têm o veneno de víbora em seus lábios (Sl 139, 4). Com efeito, a víbora faz a sua mordedura quase imperceptível e causa uma sensação agradável, a qual, porém, dilatando o coração e as entranhas, faz o veneno penetrar tão profundamente que não há mais cura.
Nunca digas: – Fulano é um bêbado, embora o tenhas visto embriagado. Nem o chames adúltero, por tê-lo visto neste pecado. Nem digas que é incestuoso, por tê-lo encontrado nesta desgraça. Porque uma só ação não dá nome à coisa. O sol parou uma vez em favor de Josué e obscureceu-se também na morte vitoriosa de Nosso Senhor, mas ninguém vai dizer que o sol é imóvel ou escuro. Noé embriagou-se uma vez e Ló outra, e este além disso cometeu grande incesto. E contudo não foram ébrios, nem o último foi incestuoso. E São Pedro não foi sanguinário por ter derramado sangue uma vez, nem blasfemo por ter uma vez blasfemado. Para tomar o nome de uma virtude ou de um vício é preciso ter progresso e hábito neles. Falsidade, pois, dizer que um homem é colérico ou ladrão, por tê-lo visto irar-se ou roubar uma vez.
Ainda que um homem tenha sido viciado muito tempo; corremos risco de mentir se o chamarmos de viciado. Simão, o Leproso, tachava a Madalena de “pecadora”, porque ela o tinha sido antes. Mas ele mentia, pois ela já não o era. Penitente e contrita, o próprio Nosso Senhor tomou sua defesa. O louco do fariseu tinha o publicano na conta de grande pecador, porventura na conta de injusto, adúltero e ladrão. Enganava-se, porém, redondamente, porque naquele mesmo instante o publicano tinha sido justificado.
Ah! se, pois, a bondade de Deus é tão grande que um só momento basta para obter e receber a graça, que certeza podemos ter que um homem, ontem pecador, ainda o seja hoje? O dia passado não deve julgar o dia presente; é só o último dia que julga todos os demais. Nunca podemos, pois, dizer que um homem é mau, sem perigo de mentir; o máximo que podemos dizer, se for necessário, é que cometeu tal ou tal ação má ou que tem levado uma vida má no passado ou que procede mal no presente; mas não se pode tirar alguma consequência de ontem para hoje nem de hoje para ontem e muito menos para amanhã.
Esta delicadeza de consciência devemos unir à prudência, que é necessária para precavermo-nos de outro extremo em que caem aqueles que, para evitar a maledicência, põem-se a louvar o vício. Se uma pessoa tem o costume de falar mal do próximo, não digas logo, para exculpá-la, que é leal, franca e sincera. Se uma outra é manifestamente vaidosa, não vás dizer que tem um coração nobre e maneiras delicadas. Não chames às familiaridades perigosas de simplicidade e naturalidade de uma alma inocente. Não denomines a desobediência, zelo; a arrogância, generosidade; a sensualidade, amizade. Não, Filotéia, para fugir à maledicência não devemos favorecer os outros vícios, nem os lisonjear nem os estimular; mas deve-se dizer franca e livremente que um vício é um vício e repreender o que é repreensível. Fazendo isto, sem dúvida daremos glória a Deus, contanto que observemos as condições seguintes:
Em primeiro lugar, só se devem repreender os vícios do próximo se disso provier alguma utilidade para aquele de quem se fala ou para aqueles com quem se fala. Refere-se, por exemplo, em presença de jovens que tais e tais pessoas vivem numa familiaridade perigosa e indiscreta, que certo jovem é muito dissoluto em palavras ou em outros modos contrários ao pudor. Pois bem! Se não repreendo francamente este modo de vida, se o quero desculpar, aquelas almas frágeis dos meus ouvintes tomarão ensejo para fazer o mesmo. É, pois, muito útil que repreenda imediatamente o que se disse, a não ser que o deixe para fazer numa outra ocasião mais propícia, em que sofra menos a reputação das pessoas mencionadas.
Em segundo lugar, é necessário que eu tenha obrigação de falar, como se eu fosse um dos principais daquela reunião de pessoas, de forma que o meu silêncio passasse por uma aprovação. Se eu ocupo um dos últimos lugares, nem devo nem posso repreender a ninguém e minhas palavras devem ser bem pensadas e exatas, para não dizer mais do que é preciso. Por exemplo, tratando de uma certa familiaridade entre dois jovens, por tudo quanto há, Filotéia, devo ter a balança bem justa e nada acrescentar que diminua ou agrave o fato. Se não há, pois, mais do que uma certa aparência ou uma simples imprudência, também não devo dizer mais do que isto; e, se não há nem aparência nem imprudência nem coisa alguma além de um ou outro pretexto para um espírito malicioso murmurar, calar-me-ei de todo ou então direi só isso que sei.
A Sagrada Escritura compara muitas vezes e com muita razão a língua maldizente a uma navalha, porque, ao julgar o próximo, deve-se prestar tanta atenção, como um hábil cirurgião que corta entre os nervos e os tendões. É preciso que o golpe que eu der seja tão certeiro e justo, que não diga nem mais nem menos do que é.
Enfim, censurando algum defeito, devemos poupar a pessoa tanto quanto podemos. É verdade que se pode falar abertamente dos pecadores públicos reconhecidos como tais, mas deve ser em espírito de caridade e compaixão e não com arrogância ou presunção por um certo prazer que se ache nisso; este último sentimento denotaria um coração baixo e vil. Excetuo somente os inimigos de Deus e da Igreja, porque a estes devemos combater quanto pudermos, como são os chefes de heresias, cismas etc. É uma caridade descobrir o lobo que se esconde entre as ovelhas, em qualquer parte onde o encontramos.
Alguns tomam a liberdade de criticar os príncipes e falar mal de nações inteiras, conforme o afeto particular que lhes consagram. Não incidas nesta falta, a Filotéia, que, além de ser uma ofensa a Deus, poderia causar mil gêneros de desgostos. Ouvindo falar mal do próximo, procura pôr logo em dúvida o que se diz, se o podes fazer justamente; ao menos desculpa a sua intenção ou, se isto mesmo não for possível, manifesta a tua compaixão. Muda de assunto, lembrando-te a ti mesma e às outras pessoas que quem não comete muitas faltas só o deve à graça divina. Procura por algum modo delicado que o maldizente reconsidere e, se sabes, dize francamente algum bem da pessoa ofendida.
ALGUNS OUTROS AVISOS ACERCA DO FALAR
Seja sincera tua linguagem, agradável, natural e fiel. Guarda-te de dobrez, artifícios e toda sorte de dissimulações, porque, embora não seja prudente dizer sempre a verdade, entretanto é sempre ilícito faltar à verdade. Acostuma-te a nunca mentir, nem de propósito nem por desculpa nem de outra forma qualquer, lembrando-te que Deus é o Deus da verdade.
E, se alguma mentira te escapar por descuido e a podes reparar por uma explicação ou de algum outro modo, faze-o prontamente. Uma escusa verdadeira tem muito maior graça e eficácia, para justificar, que uma mentira meditada.
Conquanto se possa às vezes disfarçar e encobrir a verdade por algum artifício de palavras, só o devemos fazer nas coi sas importantes, quando a glória e o serviço de Deus o exigem manifestamente; fora disso, são estes artifícios muito perigo-sos, tanto assim que diz a Sagrada Escritura que o Espírito Santo não habita num espírito dissimulado e duplo.
Nunca existiu sutileza melhor e mais estimável que a simplicidade. A prudência mundana com todos os seus artifícios é o sinal dos filhos do século; os filhos de Deus andam por um caminho reto e têm o coração sem dobras. Quem caminha com simplicidade, diz o sábio, caminha com confiança. A mentira, a dobrez, a dissimulação serão sempre tendências naturais de um espírito vil e fraco.
Santo Agostinho tinha dito no quarto livro de suas Confissões que sua alma e a de seu amigo eram unidas numa só alma, que esta vida lhe era insuportável depois do seu falecimento, porque não queria viver assim só pela metade, mas que por esta mesma razão não queria morrer, com medo que seu amigo morresse completamente.
Mais tarde estas palavras lhe pareceram demasiado afetadas e artificiosas e no seu livro das Retratações ele censurou, chamando-as de inépcia.
Eis aí, Filotéia, que delicadeza desta alma santa e bela, quanto à afetação nas palavras! A fidelidade, sinceridade e naturalidade da linguagem é certamente um lindo ornato da vida cristã. Disse e o farei, protestava Davi, guardarei os meus caminhos para não pecar com minha língua (Sl 38,2). Põe, Senhor, guardas à minha boca e aos meus lábios uma porta que os feche (Sl 140,3).
Aconselhava o Rei São Luís nunca contradizer a ninguém senão em caso de pecado ou de algum grave dano, para evitar as contendas. E, quando for necessário contradizer aos outros e opor a própria opinião à sua, isto deve ser feito com muita doçura e jeito, para não parecer que se lhes quer fazer violência; tanto mais que com aspereza pouco ou nada se consegue.
A regra de falar pouco, que os antigos sábios tanto recomendavam, não se toma no sentido de dizer poucas palavras, mas no de não dizer muitas inúteis, não quanto à quantidade, mas quanto à qualidade. Dois extremos me parece que devem ser evitados cuidadosamente.
O primeiro consiste em assumir, nas conversas de que se participa, um ar orgulhoso e austero, de um silêncio afetado, manifestando desconfiança ou desprezo.
O segundo consiste em falar demais, sem deixar ao interlocutor nem tempo nem ocasião de dizer algumas palavras, o que deixa transparecer um espírito presunçoso e leviano.
São Luís não tinha por bem falar-se numa reunião em segredo ou, como então se dizia, “em conselho”, particularmente à mesa, com receio de que os outros pensassem que se estava falando mal deles. Sim – dizia ele – se à mesa ou numa reunião se tem alguma coisa boa ou interessante para dizer, diga-se alto e para todos; tratando-se, porém, de uma coisa séria e importante não se fale sobre isso com ninguém.
RECOMENDAÇÃO COMPLEMENTAR: TRATADO DA HUMILDADE E DA MANSIDÃO
Excerto de: S. FRANCISCO DE SALES; Filotéia – Introdução à Vida Devota, Vozes, 2012 (Vozes de bolso), pp. 237-251.
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