DA TRIPLA PRIMAZIA DO PRIMEIRO PRINCÍPIO

John Duns Scot
século XIII ou XIV

42. Ó Senhor Deus nosso, que proclamaste que tu és o primeiro e o novíssimo [ou seja, o último], ensina este teu servo a provar pela razão o que crê certissimamente pela fé, a saber, que tu és o primeiro eficiente, o primeiro eminente e o fim último.

43. Das seis ordens essenciais acima referidas, apraz-me escolher três – as duas da causalidade extrínseca e a da eminência –, e demonstrar, se mo concederes tu, que nestas três ordens há uma natureza simpliciter primeira. Digo uma natureza porque neste terceiro capítulo tentarei demonstrar que as referidas três primazias se predicam não de um singular ou uno em número, mas de uma quididade ou natureza única; da unidade numérica tratarei mais adiante.

44. PRIMEIRA CONCLUSÃO: É possível entre os entes alguma causa eficiente.

Prova: alguma natureza é efetível [quer dizer, é possível que alguma natureza seja feita]; logo, é possível alguma natureza eficiente. [Duns Scot, Ord. I, d. 2, q. 2, n. 15; VIII, 419 a-b.] A consequência patenteia-se pela natureza dos correlativos. Prova-se o antecedente. Primeiro, alguma natureza é contingente; portanto, é capaz de ser depois de não ser; logo, é efetível não por si nem por nada (em ambos os casos o ser derivaria do não ser), mas por outro. Segundo, alguma natureza é movível ou mudável, na medida em que pode carecer de alguma perfeição de que é capaz; logo, o termo do movimento pode começar a ser e, por isso mesmo, pode ser feito.

45. Nesta conclusão, e em algumas das que se seguem a ela, poderia argumentar com o atual, assim: alguma natureza é eficiente, porque alguma é feita, porque alguma começa a ser, porque alguma é termo do movimento e contingente. Mas prefiro propor premissas e conclusões com o possível. Pois, se se concedem as conclusões do atual, devem-se conceder as do possível, mas não vice-versa. Ademais, as conclusões do atual são contingentes, ainda que suficientemente manifestas; já as conclusões do possível são necessárias. Aquelas pertencem ao ente existente, enquanto estas podem pertencer propriamente até ao ser considerado quididativamente. E mais adiante se investigará a existência de tal quididade, cuja eficiência se prova agora.

46. SEGUNDA CONCLUSÃO: É possível alguma causa eficiente simpliciter primeira, a qual não é efetivel nem é em virtude de outra causa eficiente.

Isto se prova pela primeira conclusão: algo é eficiente; seja A. Se é primeiro, no modo explicado, temos a conclusão. Se não é primeiro, é causa eficiente posterior, por ser efetível por outra ou por causar em virtude de outra; se se nega a negação, afirma-se a afirmação. Suponha-se que se dá outra causa eficiente, seja B; argumente-se sobre ela como se arguiu de A: ou se procederá ao infinito nas causas eficientes possíveis, cada uma das quais será segunda com respeito à anterior, ou se parará em alguma que não tem anterior. Ora, a infinidade ascendente é impossível; logo, é necessário admitir uma causa primeira, pois que o que não tem anterior não é posterior ao que lhe é posterior: a segunda conclusão do capítulo segundo exclui o círculo nas causas.

47. Objeta-se que, segundo os filosofastros, [Aristóteles, De Gen., II, 10 (336 a 23-337 a 33] é possível a infinidade ascendente, pois eles admitiram infinitos generantes, nenhum dos quais seria primeiro, mas todos segundos, e os admitiram sem círculo. Em resposta à objeção, digo que os filósofos não admitiram a possibilidade da infinidade em causas essencialmente ordenadas, mas somente em causas acidentalmente ordenadas, como se patenteia pelo livro VI, capítulo quinto [f. 94 rb-va; e também 92 va], da Metafísica de Avicena, onde ele fala da infinidade de indivíduos numa espécie.

48. E, para demonstrar a conclusão proposta, explico a noção de causas essencialmente ordenadas e a de causas acidentalmente ordenadas. – Uma coisa é falar de causas per se e per accidens, e outra falar de causas essencialmente ou per se ordenadas e de causas acidentalmente ordenadas. No primeiro caso, não há senão comparação da causa com o efeito, e é causa per se a que causa por sua própria natureza, não por algum acidente seu. No segundo caso, há comparação mútua de duas causas na medida em que produzem um efeito.

As causas essencialmente ou per se ordenadas diferenciam-se triplamente das acidentalmente ou per accidens ordenadas. A primeira diferença é que, nas causas essencialmente ordenadas, a segunda depende da primeira no causar; nas causas acidentalmente ordenadas, não, embora a segunda dependa da primeira em seu ser ou em algum outro aspecto. A segunda diferença é que, nas causas essencialmente ordenadas, a causalidade das diferentes causas é de natureza e de ordem distintas, porque a superior é mais perfeita; nas causas acidentalmente ordenadas, a causalidade não é de natureza distinta. Esta segunda diferença se segue da primeira, porque nenhuma causa depende essencialmente em sua causalidade de outra causa da mesma natureza; na causação de algo, basta uma causa da mesma natureza. Donde a terceira diferença: todas as causas per se ordenadas são simultaneamente necessárias no causar; se assim não fosse, alguma causalidade per se faltaria ao efeito; em contrapartida, nas causas acidentalmente ordenadas não se requer simultaneidade no causar.

49. Pelo precedente, mostra-se assim a conclusão proposta: a) uma infinidade de causas essencialmente ordenadas é impossível; b) uma infinidade de causas acidentalmente ordenadas é impossível se não se funda em causas essencialmente ordenadas; c) e, se se nega a ordem essencial, a infinidade também é impossível; logo, é absolutamente possível alguma causa eficiente simpliciter primeira.

Há aqui três proposições assumidas. Em prol da brevidade, chamemos A à primeira, B à segunda e C à terceira.

50. Provam-se estas proposições. Primeira prova de A: a totalidade dos efeitos essencialmente ordenados é causada; portanto, é causada por alguma causa que não lhe pertence, pois que a totalidade de dependentes depende não de algum de seus elementos componentes: se a totalidade fosse causada por algum elemento pertencente a ela, este elemento seria causa de si mesmo. Segunda: se uma infinidade de causas essencialmente ordenadas fosse possível, existiriam concomitantemente em ato infinitas causas ordenadas; consta da terceira diferença acima indicada entre causas essencialmente ordenadas e acidentalmente ordenadas; nenhum filósofo, porém, aceita tal consequência. Terceira: o que é anterior é mais próximo do princípio, como consta do livro V [11 (1018 b 9-11)] da Metafísica de Aristóteles; onde, porém, não há princípio, nada pode ser essencialmente anterior. Quarta: o que é superior é mais perfeito no causar, como consta da segunda diferença indicada; portanto, o que é infinitamente superior é infinitamente mais perfeito e, por isso mesmo, tem infinita perfeição causativa; logo, não causa em virtude de outro, porque se assim não fosse causaria imperfeitamente por depender de outro no causar. Quinta: a causa eficiente não implica necessariamente imperfeição, como consta da prova oitava do capítulo segundo; portanto, pode dar se sem imperfeição em alguma natureza. Mas, e não pudesse dar-se em nenhuma natureza sem dependência de alguma anterior, tampouco poderia dar se sem imperfeição em nenhuma. Portanto, uma causalidade eficiente independente pode dar se em alguma natureza; esta natureza será simoli der primeira; logo, uma causalidade eficiente simpliciter primeira é possível. Isso é suficiente por ora, porque mais adiante se concluirá que existe realmente. Assim, fica provada por cinco razões a proposição A.

51. Prova de B: se se dá uma infinidade acidental, é claro que esta não existe simultaneamente, mas tão só sucessivamente; a segunda causa, conquanto esteja de algum modo relacionada à primeira, não depende dela no causar; pode causar ainda que a primeira deixe de existir, como, por exemplo, o filho pode gerar, esteja vivo ou morto seu pai. Tal infinidade de sucessão é impossível sem que toda ela, e cada membro seu, dependa de alguma natureza de duração infinita. Sim, porque a não uniformidade [ou seja, a sucessão] só se perpetua em virtude de algo permanente, alheio à mesma sucessão (porque todos os membros desta são da mesma natureza), essencialmente anterior (porque todos os membros da sucessão dependem dele e de ordem distinta da ordem em que um membro depende de sua causa próxima, que é parte da sucessão. Portanto, B é patente.

52. Prova de C: na primeira conclusão, provou-se que é possível que alguma natureza seja causa eficiente; se se nega a ordem essencial das causas eficientes, seguir-se-á que tal natureza não causa em virtude de outra; e, ainda que tal natureza seja causada em um indivíduo, não o é em outro, mas é nele primeira, o que estava por provar. Se a admitimos causada em todo e qualquer indivíduo, a negação da ordem essencial implicará contradição, porque – como consta de B – não há na ordem acidental natureza que possa ser causada em todo e qualquer indivíduo, a não ser que seja essencialmente ordenada a outra natureza.

53. TERCEIRA CONCLUSÃO: Uma causa eficiente simpliciter primeira é incausável, porque é inefetivel e causa independentemente.

Esta conclusão se segue da segunda conclusão: porque, se tal causa eficiente pudesse ser causada por outro ou só pudesse causar em virtude de outro, ter-se-ia um processo infinito ou um círculo, ou teríamos de parar em algo incausável e capaz de causar independentemente; este seria o primeiro, e, obviamente, não o seria outro. Conclusão ulterior: se o primeiro é inefetível, será absolutamente incausável, porque não é finível (ou seja, não é ordenável ao fim], como consta da quinta conclusão do capítulo segundo; nem materiável, como consta da sexta conclusão do mesmo capítulo; nem formável, como consta da sétima conclusão do mesmo capítulo; nem materiável e formável simultaneamente, como consta da oitava conclusão ainda do mesmo capítulo.

54. QUARTA CONCLUSÃO: Uma causa eficiente simpliciter primeira existe em ato, e uma natureza essencialmente existente é causa simpliciter primeira.

Prova: se aquilo a cuja razão repugna o poder ser por outro, pode ser e pode-o por si mesmo; à razão da primeira causa eficiente repugna simpliciter o poder ser por outro, como consta da terceira conclusão; a primeira causa eficiente, porém, pode ser, como consta da segunda prova de A, a qual, conquanto possa parecer menos concludente, efetivamente conclui. Poderiam aduzir-se outras provas, seja com respeito à existência, fundadas em premissas contingentes mas manifestas, seja com respeito à natureza, à quididade e à possibilidade, fundadas em premissas necessárias; portanto, uma causa eficiente simpliciter primeira pode ser por si. O que não é por si não pode ser por si, porque, se pudesse, o não ente produziria algo no ser, o que é impossível; ademais, neste caso, causar-se-ia a si mesmo e não seria absolutamente incausável.

55. Esta quarta conclusão pode ser exposta também de outro modo: é inconveniente que o universo careça do supremo grau possível de ser.

E note-se o seguinte corolário desta quarta conclusão: a primeira causa eficiente não somente é anterior às outras, mas também exclui contraditoriamente qualquer anterior; e, como é primeira, existe. Prova-se isto como a mesma quarta conclusão: a razão da primeira causa eficiente inclui, antes de tudo, incausabilidade; portanto, se pode ser, pois não contradiz a entidade, pode ser por si, e, logo, é por si.

56. QUINTA CONCLUSÃO: O incausável é ex se o ser necessário.

Prova: o que exclui toda e qualquer causa intrínseca ou extrínseca distinta dele não pode não ser. E isto pela seguinte razão: uma coisa não pode não ser a não ser que possa dar-se algo positivamente ou privativamente incompossível com ela, porque ao menos um dos contraditórios é sempre verdadeiro. Ora, nada positivamente ou privativamente incompossível com o incausável pode ser, porque ou seria por si ou seria por outro: não poderia ser do primeiro modo porque, neste caso, existiria de fato, como consta da quarta conclusão, e incompossíveis existiriam concomitante-mente; ou pela mesma razão nenhum dos dois existiria, porque, se se admitisse algo incompossível com o incausável, se concederia que este, o incausável, não existe, e, se se admitisse o incausável, se concederia que seu incompossível não existe; os incompossíveis eliminam-se mutuamente. Tampouco poderia ser do segundo modo, porque nenhum efeito recebe de sua causa um ser mais intenso ou mais poderoso que o ser que o incausável tem por si, pois o causado depende em seu ser, e o incausável não; além disso, a possibilidade do causável não implica necessariamente sua existência atual, ao passo que a implica a possibilidade do incausável; mas não pode ser causado nada incompossível com algo já existente a não ser que receba de sua causa um ser mais intenso ou mais poderoso que o ser do já existente.

57. SEXTA CONCLUSÃO: A necessidade intrínseca de ser pertence a uma só natureza.

Prova: se duas naturezas pudessem ser intrinsecamente necessárias, a necessidade seria comum às duas; portanto, também teriam alguma entidade quididativa comum correspondente à necessidade comum, entidade que tornaria possível seu gênero; e, além disso, teriam suas últimas formalidades atuais, que as distinguiriam.

Daí se seguem duas incompossibilidades. Primeira: cada uma das naturezas seria um ser necessário, antes de tudo por sua entidade quididativa comum, de menor atualidade, e não pela entidade quididativa distintiva, de maior atualidade; porque, se cada natureza fosse também formalmente necessária pela entidade quididativa distintiva, seria duplamente necessária, pois a entidade quididativa distintiva não inclui formalmente a entidade quididativa comum, assim como a diferença não inclui o gênero. Parece impossível, porém, que algo seja primariamente necessário por uma atualidade menor e não o seja primariamente nem per se por uma atualidade maior.

A segunda incompossibilidade é que nenhuma das duas naturezas seria um ser necessário pela entidade quididativa comum, que no caso seria a razão primária de sua necessidade, pois que nem sequer seria o que é em virtude dessa entidade quididativa comum; toda e qualquer natureza é o que é por seu último elemento formal. No entanto, o que é necessário é o que é, ou é de fato em virtude daquilo por que é necessário, não por outro elemento.

Se dizes que a entidade quididativa comum, prescindindo das entidades quididativas distintivas, seria suficiente para que um ser existisse, seguir-se-ia que esta entidade comum seria por si atual e indistinta e, portanto, indistinguível, porque um ser necessário já existente não se encontra em potência ao ser simpliciter; a entidade do gênero na espécie seria o ser simpliciter desse ser necessário.

58. Ademais: duas naturezas sob o mesmo gênero comum não são de grau igual. Prova-se isto pelas diferenças que dividem o gênero; se são desiguais, segue-se que o ser de uma será mais perfeito que o ser da outra; mas não há ser mais perfeito que o ser ex se.

Outra prova: se duas naturezas fossem intrinsecamente necessárias, nenhuma delas dependeria em seu ser da outra, nem, pela mesma razão, estaria essencialmente ordenada à outra. Logo, nenhuma delas existiria neste universo, porque não há nada nele que não esteja essencialmente ordenado aos outros entes; a unidade do universo decorre da ordem de suas partes.

59. Aqui se objeta: cada uma das naturezas teria ordem de eminência com respeito às partes do universo, e esta ordem seria suficiente para a unidade. Mas em sentido contrário: nenhuma de tais naturezas teria sequer tal ordem com respeito à outra, porque uma natureza mais eminente possui um ser mais perfeito, e nenhum ser é mais perfeito que o ser ex se. Tampouco haveria ordem entre essas duas naturezas e as diversas partes do universo, porque um universo tem uma ordem, e ordem supõe um primeiro. Prova: se se admitem duas naturezas primeiras, a natureza próxima à primeira não teria uma ordem única ou uma dependência única, porque haveria dois termos ad quem, e o mesmo se deve dizer de toda e qualquer natureza; logo, haveria duas ordens primeiras e dois universos, ou não haveria ordem senão com respeito a um ser necessário, e não com respeito ao outro.

Assim, procedendo razoavelmente, parece que não se deve admitir no universo senão o que de algum modo aparece como necessário, ou seja, aquilo cuja entidade é manifestada por sua ordem a outros entes, porque, como se diz no livro I [4 (188 a 17)] da Física, não se devem multiplicar os seres sem necessidade; e o ser necessário nos é manifestado no universo pelo ser incausável; o ser incausável nos é manifestado pela causa primeira, enquanto a causa primeira nos é manifestada pelos efeitos. Os efeitos não parecem indicar nenhuma necessidade de dar várias naturezas causativas primeiras; mais ainda, isto é impossível, como se mostrará mais adiante, na décima quinta conclusão deste capítulo; portanto, não é necessário admitir mais de um ser incausado ou necessário por natureza; razoavelmente, portanto, não deve admitir-se tal.

60. Em seguida, proporei quatro conclusões acerca da causa final, semelhantes às quatro primeiras sobre a causa eficiente, e prová-las-ei de modo similar. A primeira é:

61. SÉTIMA CONCLUSÃO: É possível nos entes alguma causa final.

Assim, algo é finível [ou seja, pode ser ordenado ao fim]. Prova: porque algo é efetivel [ou seja, pode ser feito], como consta da prova da primeira conclusão deste capítulo; logo, pode ser também finível. Esta consequência [ou seja, que da efetibilidade de algo deriva sua finibilidade] consta da quarta conclusão do capítulo segundo. [Por conseguinte, é possível alguma causa final.] Na ordem essencial, esta conclusão é mais manifesta que a referente à causa eficiente, como consta da décima sexta conclusão do capítulo segundo.

62. OITAVA CONCLUSÃO: É possível alguma causa final simpliciter primeira.

Ou seja, nem ordenável a outro fim, nem apta por natureza para finalizar outros entes em razão de outro fim.

Prova-se esta conclusão por cinco provas similares às da segunda conclusão deste capítulo terceiro.

63. NONA CONCLUSÃO: A primeira causa final é incausável.

Prova: ela não pode ser ordenada a outro fim; se pudesse, não seria primeira; por conseguinte, é inefetível, como se vê pela quarta conclusão do capítulo segundo; quanto ao mais, veja-se a prova da terceira conclusão deste capítulo.

64. DÉCIMA CONCLUSÃO: Uma primeira causa final existe em ato, e esta primazia pertence a uma natureza existente em ato.

Prova-se como a quarta conclusão deste capítulo. Corolário: o fim primeiro é de tal modo primeiro, que um ser anterior a ele é impossível. E isto se prova como o corolário da mesma quarta conclusão. Tendo dado quatro conclusões referentes às duas ordens de causalidade extrínseca, proponho agora quatro conclusões similares com respeito à ordem de eminência.

Eis a primeira:

65. DÉCIMA PRIMEIRA CONCLUSÃO: Entre as naturezas dos entes, é possível uma excedente.

Prova: é possível que alguma natureza seja “finida” [isto é, ordenada ao fim], como consta da sétima conclusão deste capítulo; logo, é possível que também seja excedida, como consta da décima sexta conclusão do capítulo segundo. [Logo, é possível alguma natureza excedente.]

66. DÉCIMA SEGUNDA CONCLUSÃO: É possível alguma natureza eminente simpliciter primeira em perfeição.

Isto é patente na ordem essencial: segundo Aristóteles, no livro VIII [3 (1043 b 33)] da Metafísica, as formas relacionam-se entre si como os números. Na ordem essencial, é necessário parar em algum ser.

Demonstram-no as cinco provas dadas na segunda conclusão.

67. DÉCIMA TERCEIRA CONCLUSÃO: A natureza suprema é incausável.

Prova: é infinível [ou seja, não pode ser ordenada a um fim], como consta da décima sexta conclusão do capítulo segundo; logo, é inefetivel [ou seja, tampouco pode ser feita], como consta da quarta conclusão do mesmo capítulo; o restante do argumento é similar à prova da terceira conclusão deste capítulo. Além disso, a inefetibilidade da natureza suprema é provada pelo item B da prova da segunda conclusão deste capítulo porque todo e qualquer efetível tem alguma causa essencialmente ordenada.

68. DÉCIMA QUARTA CONCLUSÃO: A natureza suprema é uma natureza atualmente existente.

Prova-se isto da mesma maneira que a quarta conclusão deste capítulo. Co-rolário: o ser alguma natureza mais perfeita ou superior à natureza suprema inclui contradição; e isto se prova da mesma maneira que o corolário da quarta conclusão.

69. DÉCIMA QUINTA CONCLUSÃO: A tripla primazia de eficiência, de finalidade e de eminência na referida tripla ordem essencial pertence a uma mesma natureza existente em ato.

Esta décima quinta conclusão é o fruto deste capítulo. Segue-se evidentemente do já provado, assim: se a uma única natureza pertence o ser ex se – como consta da sexta conclusão deste capítulo – e se a natureza a que pertence qualquer das primazias referidas é ser intrinsecamente necessária – como consta da conclusão quinta e da nona com respeito à segunda, e da conclusão quinta e da décima terceira com respeito à terceira –, segue-se que cada uma de tais primazias pertence à mesma natureza a que pertencem também as outras; pois cada uma das primazias pertence atualmente a uma natureza – como consta da conclusão quarta, da décima e da décima quarta – e não a várias naturezas; logo, [pertence] àquela mesma. Prova da menor: se assim não fosse, muitas naturezas seriam seres necessários, como consta da segunda proposição do argumento.

70. Mais: a conclusão proposta prova-se também pela natureza do incausá-vel, porque o incausável é primeiro e único; ora, o que é primeiro com qualquer das três primazias é incausável; logo, é primeiro e único. Prova da maior: como uma multidão poderia ser por si?

71. Esta conclusão é muito fecunda; contém virtualmente seis conclusões, três acerca da unidade da natureza a que pertence cada primazia referida, e três acerca da identidade da natureza a que pertencem quaisquer das demais primazias, iden-idade que mostramos mediante a comparação recíproca das primazias.

E esta conclusão tão fecunda foi provada unicamente pela sexta conclusão, utilizada como premissa maior. Cabe explicar agora, se possível, as premissas maiores próprias de cada uma destas seis conclusões. Para demonstrar as duas primeiras conclusões (a saber, a referente à primazia eficiente e a referente à final), adianto esta outra conclusão:

72. DÉCIMA SEXTA CONCLUSÃO: É impossível que um mesmo ente dependa essencialmente de dois, de cada um dos quais seja totalmente dependente.

Prova: se uma causa total num gênero de causalidade produz um efeito, é impossível que outra o produza no mesmo gênero; se assim fosse, o mesmo efeito seria duas vezes causado, ou nenhuma das causas seria total; além disso, ter-se-ia uma causa sem cuja causalidade se daria, todavia, o efeito, o que é absurdo. Igualmente, é impossível que um mesmo ente dependa, em qualquer gênero de dependência, de dois, de cada um dos quais seja totalmente dependente. Sim, porque não dependeria totalmente de um deles se dependesse também do outro. Similarmente, se também dependesse do outro, dependeria de algo sem cuja existência continuaria a ser na mesma ordem de ser; ora, contraria a razão de dependência conceber um ente dependente de algo sem cuja existência ele continuaria a ser na mesma ordem.

Demonstrada esta conclusão, proponho as primeiras conclusões, simultaneamente incluídas na décima quinta conclusão, assim:

73. DÉCIMA SÉTIMA CONCLUSÃO: Toda e qualquer primazia de causa extrínseca de um tipo pertence a uma só natureza.

Prova: Se tal primazia pertencesse a várias naturezas, pertencer-lhes-ia com respeito aos mesmos ou a diferentes posteriores; não do primeiro modo [ou seja, não lhes pertenceria com respeito aos mesmos posteriores], como consta da décima sexta conclusão acima; semelhantemente, neste caso cada posterior incluiria duas dependências do mesmo tipo, pois uma dependência não se dá com respeito a dois primeiros.

O consequente é inconveniente. Tampouco lhes pertenceria do segundo modo [ou seja, com respeito a diferentes posteriores], porque, se houvesse um primeiro diferente para diversos posteriores, disto resultariam universos diferentes, pois os diversos posteriores não estariam ordenados entre si nem com respeito a um terceiro. Sem unidade de ordem não há unidade de universo.

Aristóteles [em Metafísica, XII, 10 (1075 a 18)] põe a bondade principal do universo na unidade do fim. E, como com respeito a um sumo há uma ordem, é-me bastante falar de um só universo, sem fingir outro, para o qual não tenho provas – e, se as tenho, são-lhe contrárias.

74. Acrescento, a seguir, vários argumentos prováveis. Primeiro: conforme se sobe na ordem essencial, vão-se dando menos entes, até que por fim se chega à unidade; logo, é necessário parar em um.

Segundo: a causalidade de uma causa superior estende-se a mais efeitos; portanto, quanto mais se sobe, são suficientes menos causas; logo, etc. [ou seja, é preciso parar numa primeira].

Este argumento anuncia o próximo.

Terceiro: isto [ou seja, o ser preciso parar num primeiro] se patenteia com respeito ao primeiro eminente, porque, se é impossível que duas naturezas não estejam ordenadas entre si, de modo que uma exceda a outra – pois nisto se comparam aos números –, é muito mais impossível que duas naturezas se encontrem no mesmo grau primeiro.

Quarto (com respeito ao fim): se houvesse dois fins primeiros, nenhum deles satisfaria ao que quer que fosse distinto dele; como isto é ininteligível, segue-se a mesma conclusão precedente.

Quinto: se assim não fosse, nenhuma natureza conteria virtualmente a perfeição de todas as outras; como isto é ininteligível sem contradição, nenhuma seria perfeitíssima.

Para as outras três conclusões há provas especiais. [As provas da tripla primazia do primeiro princípio.]

Assim:

75. DÉCIMA OITAVA CONCLUSÃO: A primeira causa eficiente é atualíssima.

(Prova-se:) Porque contém virtualmente toda e qualquer atualidade possível. O fim primeiro é ótimo porque contém virtualmente toda e qualquer bondade possível. O primeiro eminente é perfeitíssimo porque contém eminentemente toda e qualquer perfeição possível. Estas três propriedades [quais sejam, o ser atualíssimo, o ser ótimo e o ser perfeitíssimo] não podem ser separadas, porque, se uma delas se desse em uma natureza e outra em outra, nenhuma destas [naturezas] poderia ser eminente simpliciter. Donde se segue que estas três primazias parecem expressar três atributos da suma bondade que necessariamente concorrem (nela), quais sejam, a suma comunicabilidade, a suma amabilidade e a suma integridade ou totalidade; o bom e o perfeito são idênticos – como consta do livro V (16 (1021 b 18-20) da Metafísica [de Aristóteles] –, e o perfeito e o total são idênticos – como consta do livro III [6 (207 a 13)] da Física [de Aristóteles). Por outro lado, é patente que o que é bom é apetecível – como consta do livro 1 |1 (1094 a 3)] da Ética a Nicômaco – e comunicativo – como consta do livro VI [5 (95 va)] da Metafísica de Avicena. Pois não se comunica perfeitamente senão o que se comunica por liberalidade; e isto convém verdadeiramente com o sumo bem, que não espera nenhuma retribuição por sua comunicação, o que é próprio do liberal, como diz Avicena no capítulo quinto da obra citada.

76. DÉCIMA NONA CONCLUSÃO: Uma só natureza existente é primeira com respeito a toda e qualquer outra na tripla ordem referida, de modo que toda e qualquer outra natureza é triplamente posterior a ela.

Algum pertinaz, admitindo embora a décima quinta conclusão, poderia dizer que além de tal natureza há muitas outras, não certamente primeiras do mesmo modo, mas tampouco posteriores a ela em alguma das ordens referidas, ou, ainda que posteriores na ordem de eminência, ou nas ordens de eminência e de fim, não assim na de eficiência, como, conforme o interpretam alguns, opinou Aristóteles acerca das inteligências posteriores à primeira causa e talvez acerca da matéria prima. Conquanto o já dito bastasse para refutar esta objeção, convém falar aqui sobre ela.

77. Em primeiro lugar, esta objeção é refutada pela sexta conclusão: se o ser intrinsecamente necessário pertence a uma natureza, e o que não é posterior – esta negação inclui as três ordens – é um ser intrinsecamente necessário, segue-se que só uma natureza não é posterior com nenhuma espécie de posterioridade; portanto, toda e qualquer outra natureza é triplamente posterior. A segunda proposição deste argumento [a saber, o que não é posterior é um ser intrinsecamente necessário] é patente pela terceira, pela conclusão nona e pela décima terceira deste capítulo; e acrescente-se a cada uma a sexta conclusão deste mesmo capítulo.

78. Em segundo lugar, prova-se assim a conclusão com relação a cada ordem em particular. Com relação ao fim: o que não é fim nem é ordenado a um fim é vão; mas nos entes nada é vão; consequentemente, toda e qualquer natureza distinta do fim primeiro é ordenada a um fim, e por conseguinte é ordenada ao fim primeiro, como consta da terceira conclusão do capítulo segundo.

Semelhantemente com respeito à eminência: o que não é supremo nem excedido por outro não possui nenhum grau de ser; portanto, não é nada; por conseguinte, tudo o que não é supremo é excedido por outro; logo, é excedido pelo supremo, como consta da terceira conclusão do capítulo segundo.

E fale-se da eficiência, contra aquele que a nega: o que quer que seja ou é o fim primeiro ou é “finido” [isto é, ordenado ao fim], como já se provou; logo, ou é o primeiro eficiente ou um efeito, pois os membros desta disjunção são convertíveis com os da anterior. Com respeito à posterioridade, patenteia-se pela conclusão quarta e pela quinta do capítulo segundo, e com respeito ao primeiro [ou seja, ao primeiro anterior], pela que precede imediatamente a estas.

Semelhantemente quanto à eminência: se o que quer que seja é ou supremo ou um excedido pelo supremo, segue-se que o que quer que seia é ou o primeiro eficiente ou um efeito, pois também os membros destas duas disjunções são mutuamente convertíveis – como consta da conclusão penúltima e da última do capítulo segundo e da décima quarta conclusão deste capítulo terceiro. Ademais, é demasiado irracional admitir um ente que não tenha nenhuma ordem, como se provou na segunda razão da sexta conclusão e, de certa forma, na prova da décima sétima conclusão deste capítulo.

79. Verdadeiramente, ó Senhor, a todas as coisas fizeste-as ordenadas em sabedoria, para que todas as inteligências lhes vissem a ordem. Foi absurdo os filósofos removerem da ordem algum ente. Mas desta proposição universal: “todo ente é ordenado”, segue-se que nem todo ente é posterior e nem todo é anterior; em ambos os casos, ou um ente estaria ordenado a si mesmo, ou se teria de admitir o círculo na ordem. Por conseguinte, há algum ente anterior que não é posterior, o qual portanto é o primeiro, e algum ente posterior, o qual não é o primeiro; mas não há ente que não seja ou anterior ou posterior. Tu és o único primeiro, como na medida da minha capacidade o provei ao discutir a tripla ordem.

Excerto de: DUNS SCOT; Tratactus de Primo Principio, cap. III. Tratado do Primeiro Princípio, É Realizações, 2015, pp. 53-75 (as páginas pares, a partir da 52, são do texto latino).

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