Padre Leonel Franca, S.J.
1923
§ 1. – A REGRA DE FÉ PROTESTANTE E A BÍBLIA
Sumário — Regra de fé na Igreja Católica. — Regra de fé protestante. — Sua crítica à luz do Evangelho.
Se Cristo, sob pena de eterna condenação, nos ordena aderir à sua doutrina, deve subministrar-nos os meios necessários de conhecê-la com certeza. Quais estes meios? Tal é, na sua simplicidade, a questão importantíssima da regra ou norma de fé.
Depois de quanto deixamos largamente expendido na 1a parte deste trabalho, a resposta da Igreja Católica não pode ser duvidosa. Recordemos os resultados adquiridos.
Cristo instituiu uma sociedade orgânica, hierárquica, visível – a sua Igreja, Ecclesiam meam, e constituiu-a depositária do patrimônio das verdades reveladas. “Ide e ensinai, disse Ele aos seus apóstolos, tudo que eu vos mandei; eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt XXVIII, 20). “Eu vos enviarei o Espírito Santo que vos ensinará tudo o que eu vos disse” (Jo XIV,26). Com estas palavras, o divino Salvador fundou, entre os homens, um magistério autêntico, vivo e inde-fectível. Sua Igreja será “a coluna e o firmamento da verdade” (1Tm 15). Não nos resta, pois, nenhuma sombra de dúvida: a Igreja é a depositária autorizada da verdade, o seu magistério é a regra viva de nossa fé. A assistência especial do Espírito divino, assegurada por uma promessa infalível, não lhe permitirá nunca alterar um iota da doutrina que lhe foi confiada.
As fontes, aonde, através dos séculos, vai a Igreja beber e interpretar, sem possibilidade de erro, os ensinamentos de Jesus, são a Bíblia e a tradição. A Bíblia é a palavra divina escrita; à Igreja pertence guardá-la, preservá-la da corrupção dos tempos, dar-lhe a interpretação autêntica. Mas nem todos os apóstolos escreveram, nem os que escreveram limitaram os seus ensinamentos à palavra escrita. Pregaram o Evangelho e constituíram sucessores, depositários fiéis das verdades ensinadas oralmente e encarregados de as transmitir às gerações seguintes. O complexo destas verdades divinas atestadas pelos apóstolos e conservadas pelos que lhes sucederam é o que propriamente chamamos tradição católica. A liturgia, a arqueologia cristã, os decretos dogmáticos, os concílios e principalmente os escritos dos Santos Padres e Doutores da Igreja constituem os monumentos em que se conserva esta tradição primitiva. Diremos então que as obras dos Santos Padres, tomadas singularmente, são documentos infalíveis, equiparáveis à Escritura? De modo nenhum. A fim de que o testemunho patrístico constitua argumento de tradição divina, é necessário que se verifiquem simultaneamente as seguintes condições: 1°) que a matéria de que trata seja dogmática ou moral. Tudo quanto escrevem os SS. Padres sobre outros assuntos tem apenas a autoridade de um escrito humano; 2°) que falem como doutores ou testemunhas públicas, isto é, que ensinem ser uma verdade revelada ou atestem a crença de seu tempo em uma doutrina como revelada. Todas as explicações do dogma ou interpretações da Escritura propostas como opiniões pessoais não têm absolutamente valor dogmático; 3°) que atestem uma verdade em consenso moralmente unânime. Não sendo os SS. Padres pessoalmente infalíveis, é possível que um ou outro, por circunstâncias particulares de tempo e lugar, desgarre da verdade revelada. A história mostra-nos, de fato, que esta hipótese não é mera possibilidade.
Ora, verificadas estas cláusulas, quem não vê que a autoridade dos SS. Padres constitui um argumento irrefragável em favor da revelação de um dogma? Com efeito, supor então a possibilidade de erro é supor que a Igreja se possa enganar, é supor que a Igreja, pelos órgãos do seu magistério, pelos seus bispos e doutores, possa haver ensinado universalmente e por séculos uma falsidade como verdade divina. Que seria nesse caso de sua infalibilidade? Que seria da assistência prometida por Cristo? Que seria da autoridade da própria Escritura que a chama coluna e firmamento da verdade?
Tal na sua simplicidade, coerência e harmonia a doutrina católica. Se o Sr. C. Pereira, antes de discutir sobre estes assuntos importantes, tivesse tido a advertência de abrir um manual de teologia, não houvera escrito que “Roma arbitrariamente estende essa infalibilidade aos infinitos e indefinitos documentos eclesiásticos que ela chama tradição e voz da Igreja”, p. 32. [*] Não! Roma nunca perpetrou tal desacerto. Mas, nos seus momentos de lazer, o ilustre gramático entrega-se com volúpia ao desporto intelectual de devanear doutrinas fantásticas, para depois ter o fácil prazer de confutá-las – e cantar triunfo contra a odiada Roma. Mas, senhor, não são esses processos de polêmica séria!
[*. NOTA DA ADMINISTRAÇÃO: O excerto é de um livro ao qual o Pe. Leonel Franca respondeu: O problema religioso da América Latina. Estudo dogmático-histórico por E. Carlos Pereira, Empresa Editora Brasileira, São Paulo. Sem data (1920).]
Passemos agora à doutrina protestante acerca da regra de fé.
Se Lutero tivesse vivido no século XX, outra houvera sido, muito provavelmente, a evolução de suas ideias. No dia em que Roma o con-denasse, o frade soberbo atiraria o burel às urtigas e passaria para os arraiais do racionalismo e do livre pensamento. Um opúsculo ou artigo de gazeta viria pouco depois dar conta ao público dos motivos de sua nova atitude religiosa. A Igreja asfixia as inteligências. Os dogmas de Roma já não eram compatíveis com as suas profundas convicções. Seu espírito precisava de ar e luz. A atmosfera medieval de um convento não era feita para a sua alma livre. Inteligência, coração, necessidade de ação social, tudo o convidava de há muito a romper os grilhões com o que o vinculara uma resolução irrefletida da juventude. Só esperava a oportunidade e esta oferecia-lhe agora o novo ato de tirania papal. Doravante se envergonharia do nome de católico: seria livre pensador, racionalista; seguiria a corrente poderosa dos espíritos fortes da época.
Outras, porém, eram as condições do século XVI. A linguagem dos egressos de hoje fora então um contrassenso e um anacronismo. A sociedade não havia ainda perdido o pudor cristão para vitoriar publicamente as fanfarronices da incredulidade chibante. Voltaire e Nietzsche, d’Holbach e Haeckel ainda não tinham apontado no horizonte da filosofia sem fé.
O frade renegado quis apesar de tudo conservar-se cristão. Mas como salvar o cristianismo depois de negado o poder do Papa e conculcada a autoridade da Igreja a quem Jesus o houvera confiado? No espírito de fr. Martinho faiscou uma ideia luminosa.
Ao fugir do santuário, sobraçou furtivamente um livro que jazia no altar. Era a Bíblia. Com ela haveria de reconstruir todo o edifício religioso que a revolta acabara de destruir na lógica de suas consequências. A pedra desencaixada do antigo templo seria o fundamento da nova construção que premeditava.
E sobre a Bíblia o frade fundou uma religião nova. Quis honrá-la ainda com o título glorioso de cristianismo, mas a posteridade, mais justa, deu-lhe um nome de partido; chamou-a luteranismo, chamou-a protestantismo.
Na nova seita não há autoridade, não há unidade, não há magistério de fé. Cada sectário recebe um livro que o livreiro lhe diz ser inspirado e ele devotamente o crê sem o poder demonstrar; lê-o, entende-o como pode, enuncia um símbolo, formula uma moral e a toda esta mais ou menos indigesta e farraginosa elaboração individual chama cristianismo evangélico, o vizinho repete na mesma ordem as mesmas operações e chega a conclusões dogmáticas e morais diametralmente opostas. Não importa; são irmãos, são protestantes evangélicos, são cristãos, partiram ambos da Bíblia, ambos forjaram com o mesmo esforço o seu cristianismo.
Aí está o protestantismo na sua essência. Sobre dogmas particulares não há por que inquirir, nem discutir. Não os tem, ou cada indivíduo tem os seus. Só um princípio é comum às mil variações da seita proteiforme: a suficiência da Escritura interpretada pelo livre exame dos indivíduos. “A Bíblia, só a Bíblia, nada senão a Bíblia – eis a religião do protestantismo evangélico”, pp. 34-5, doutrina o Sr. C. Pereira.
Analisemos este princípio fundamental à luz da própria Bíblia, à luz da história do cristianismo primitivo e à luz da razão e do bom senso.
* * *
“A Bíblia, e só a Bíblia: eis a única regra de fé”. Verdade capital, fundamento de todo o cristianismo e que, por isso mesmo, se devera encontrar expresso com uma clareza insofismável na própria Escritura. No entanto, abro a Bíblia, percorro-a de cabo a cabo, e não a encontro uma só vez nem sequer acenada! Que terrível decepção! Para firmar a sua norma de fé, o protestantismo começa por violá-la flagrantemente. A contradição irrompe logo pela primeira porta e crava-se no coração do sistema.
Lutero e os seus discípulos encalçados pela lógica dos católicos deram-se a folhear as Escrituras à cata de textos que os justificassem. Baldado esforço. Nenhum protestante instruído ousaria hoje fazer gala das investigações exegéticas dos primeiros reformadores. Nem foram mais felizes os que lhes sucederam na desesperada empresa. Assim, da sua excursão pela imensa seara bíblica colheu o Sr. C. Pereira não mais de três textos! Quereis ver-lhes a força demonstrativa?
O primeiro é de S. João V, 39 “examinai as Escrituras”. – O seu significado nem de longe acena à tese protestante. Cristo num discurso apologético prova contra os seus adversários a divindade de sua missão. Invoca primeiro o testemunho do Padre, depois o do Precursor, apela em seguida para os seus milagres e finalmente num argumento ad hominem aduz a verificação das profecias escritas: “Vós examinais [*] as Escrituras cuidando ter nelas a vida eterna; pois são elas que dão testemunho de mim”. Ver nestas palavras – dirigidas não aos discípulos mas aos adversários, propostas não como regra de fé do cristianismo senão como prova apologética do seu messiado – uma confirmação da teoria protestante, é zombar da Escritura e insultar o bom senso dos leitores.
[*. O contexto mostra evidentemente que scrutamini é forma no indicativo, não de imperativo.]
O segundo texto é tirado de S. Mateus XIII, 43. Ao terminar a explicação da parábola do trigo e do joio diz Jesus: “Quem tem ouvidos de ouvir, ouça”. O Sr. C. Pereira vê aí toda a doutrina da Reforma: só a Bíblia é regra da fé; só o livre exame deve interpretá-la. Se, a grande esforço, não chegais a enxergar naquelas palavras todas estas importantíssimas verdades, a culpa é vossa. Falta-vos aquela agudeza de intuição que caracteriza a exegese do ilustrado gramático.
O Apocalipse de S. João subministra-lhe outro passo não menos peremptório: “Bem-aventurado aquele que lê e ouve as palavras desta profecia”. I, 3. O que diz o Discípulo amado, entende-se facilmente. Ler e ouvir a palavra inspirada é fonte de felicidade. A Igreja a lê todos os dias na sua liturgia e aconselha repetidamente a sua leitura aos fiéis. Mas daí à afirmação protestante vai um abismo que nem a hermenêutica mais atrevida é capaz de saltar.
Com estas infantilidades proferidas em tom de seriedade arus-picina, julga-se o Sr. C. Pereira no direito de concluir: “estes passos e muitos outros [*] da Sagrada Escritura importam em um reconhecimento formal do direito, e, ainda mais, do dever do livre exame e juízo privado no estudo do código divino”, p. 36. Quem tem ouvidos de ouvir ouça…. e pasme diante desta lógica de por aí além!
[*. Que pena eles terem ficado no tinteiro do erudito pastor.]
Mas se a Escritura, nem mesmo torturada, dá um só texto em favor do protestantismo, a sua origem, a sua índole, as suas declarações formais depõem concordemente contra ele.
Jesus Cristo só ensinou de viva voz, não escreveu uma só linha.
– E todo o cristianismo deveria apoiar-se num livro! E Cristo não nos deu este livro! E Cristo não disse aos seus apóstolos: Sentai-vos, escrevei ou viajai e distribui Bíblias; senão: ide e pregai; quem vos ouve, a mim ouve. E os apóstolos foram fiéis à sua missão; poucos escreveram e pouco, todos pregaram e muito.
Já a Igreja estava fundada, já o cristianismo se havia propagado e não havia ainda um livro do Novo Testamento! O primeiro evangelho de
S. Mateus, escrito em aramaico saiu na Palestina vários anos depois da ascensão do Senhor; o último, de S. João, veio à luz nos derradeiros anos do primeiro século. Durante este tempo a Igreja crescia e prosperava em todo o mundo. Qual era então a regra de fé dos cristãos? Qual o vínculo da doutrina integral de Jesus? O ensino oral, vivo, autêntico dos apóstolos ou dos a quem eles confiaram o governo e a doutrina das cristandades. [*] Em que dia, em que ano, em que época cessou esta economia para dar lugar ao reino do livro? Só a Bíblia o deveria dizer. Di-lo? Não. Antes como depois da Bíblia, a Igreja continua sempre como a fundou Cristo, como a estabeleceram os apóstolos, afirmando o direito de ensinar de viva voz, de examinar e interpretar os livros que se apresentam como inspirados. Na história, nenhum vestígio de ab-rogação da antiga regra de fé.
[*. Em duas admiráveis conversões relatadas por S. Lucas salienta-se com admirável relevo a necessidade do ensino oral. Saulo, prostrado no caminho de Damasco pergunta a Jesus: Senhor que quereis que eu faça? – Levanta-te, entra na cidade, e aí te dirão o que deverás fazer. At IX, 6. Não lhe dá uma Bíblia. – Voltava de Jerusalém o eunuco da rainha Candace de Etiópia e lia Isaías. Filipe, apóstolo, movido pelo Espírito Santo aproxima-se e pergunta-lhe: crês porventura que entendes o que estás lendo? – E como o poderei entender, torna o eunuco, se não houver alguém que mo explique? Sobe então o apóstolo ao carro e, tomando ocasião do passo que acabara de ler, evangeliza-o e administra-lhe o batismo. At VIII, 26, ss. – Onde a suficiência da Escritura interpretada pelo livre exame?]
Seria mesmo possível esta ab-rogação? Seria possível que a Igreja, mais tarde, substituísse outra norma de crer à que foi ensinada, praticada e inculcada pelo próprio Cristo e pelos apóstolos?
Mas, enfim, os apóstolos escreveram alguma coisa; escreveram evangelhos e epístolas. Porventura pretenderam encerrar nestes escritos todo o cristianismo, todo o depósito das verdades reveladas? Basta considerar-lhes a índole e natureza para responder imediatamente e sem tergiversar: não. S. Mateus escreve para provar aos hebreus que Jesus é o Messias prometido. Da vida do Salvador escolhe os fatos que lhe faziam ao intento e omite os outros. São Marcos, que resume a pregação de S. Pedro, é ainda mais conciso e poucas notícias novas adianta às que já escrevera S. Mateus. Aos evangelistas anteriores S. Lucas acrescenta algumas parábolas, alguns milagres, alguns episódios da vida do Senhor. S. João, a pedido dos fiéis, toma a pena para pôr em maior relevo a divindade de Cristo, contra as heresias nascentes dos corintianos, ebionitas e nicolaítas.
E as epístolas? – Escrevem-nas os seus autores, segundo a oportunidade; para corrigir um erro, extirpar um preconceito, expor uma doutrina, premunir contra uma heresia, dar um conselho, etc. Surgem escândalos na igreja de Corinto? Dirige-lhe S. Paulo duas epístolas veementes. Ilaqueiam os judaizantes a boa fé dos Gálatas? Escreve-lhes o apóstolo precavendo-os contra as suas insídias. A Timóteo, a Tito manda conselhos, exortações, instruções sobre o modo de governar a Igreja, etc. – Em todo o Novo Testamento não há um só compêndio ordenado da doutrina cristã, nada que se pareça com um manual, um código, um catecismo destinado a substituir o magistério vivo e ser para o futuro o canal exaustivo do ensinamento cristão. À vista deste caráter evidentemente ocasional de todos os livros inspirados do Novo Testamento, como afirmar que só a Bíblia é fonte de fé, que só nela se encerram todas as verdades religiosas?
Há mais. Os próprios apóstolos que deixaram escritos e precisamente os que por último escreveram, são os primeiros a declarar que não escreveram tudo, são os primeiros a insistir em que se conserve a tradição do seu ensino oral. S. João remata o seu Evangelho advertindo que Jesus fez muitas outras coisas que não se acham escritas no seu livro nem em livro algum. [Jo XX, 30; XXI, 25] O mesmo apóstolo termina as suas duas últimas epístolas dizendo expressamente que não quis confiar tudo à tinta e ao pergaminho, reservando para o comunicar de viva voz: os ad os loquemur. [2Jo 12, 3Jo 14. “falaremos de viva voz.]
S. Paulo não se cansa de inculcar a necessidade da tradição oral. Aos tessalonicenses: “Estai firmes, irmãos, e conservai as tradições que aprendestes ou de viva voz ou por epístola nossa”. [2Ts II, 15] Na mesma carta: “Nós vos prescrevemos… que vos aparteis de todos os irmãos que andem desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de nós”. [2Ts III, 6] A Timóteo: “O que de mim ouviste por muitas testemunhas, ensina-o a homens fiéis que se tornem idôneos para ensinar aos outros”. [2Tm II, 2] Aí está claro o ensino vivo, transmitido por tradição de uns a outros. O apóstolo já velho, nas vésperas do martírio, adverte a Timóteo a necessidade de prover quem continue o seu magistério. Nada de livre exame das Escrituras; sempre o ensino oral feito por mestres autorizados.
Nas suas duas epístolas ao mesmo discípulo, insiste ainda São Paulo para que conserve o bom depósito: bonum depositum custodi. [1Tm VI, 20; 2Tm I, 14] Com os corintos, na sua primeira epístola, congratula-se porque haviam conservado as suas tradições orais: “sicut tradidi vobis, praecepta mea sustinetis” . [1Cor XI, 2. “guardais os meus preceitos, como eu vo-los ensinei.]
De todos estes textos o Sr. C. Pereira nem uma palavra! Em vez de cantar em todos os tons o mesmo estribilho: a Bíblia, e só a Bíblia – fora melhor que a patenteasse aos seus leitores e lhes dissesse sinceramente:
“Julgai. Em todo o N. T. nem uma só vez se propõe explicitamente ou implicitamente a regra protestante. Em mil lugares diversos se inculca a necessidade do ensino vivo, a importância de conservar a tradição, a insuficiência da Escritura, que, segundo afirma S. João, não encerra tudo o que ensinou o Salvador. Jesus Cristo nunca mandou aos seus discípulos que folheassem um livro para achar a sua doutrina, mandou pelo contrário aos fiéis, que ouvissem aos que Ele mandara pregar: quem vos ouve, a mim ouve; se algum não ouvir a Igreja, seja considerado como infiel e publicano, isto é, não pertencente à minha Igreja; se algum não vos receber nem ouvir as vossas palavras, saindo da casa ou da cidade, sacudi o pó dos sapatos; Pai, oro, não só por esses (apóstolos), mas por todos os que hão de crer em mim mediante a sua palavra a fim de que sejam todos uma coisa só. Foi Jesus ainda quem prometeu o seu Espírito de Verdade, a sua assistência espiritual, todos os dias até à consumação dos séculos, para que os apóstolos, vivendo moralmente em seus sucessores, continuassem até ao fim dos tempos a ensinar sempre tudo o que Ele nos mandou. Eis, meus caros leitores, o que diz a Bíblia”.
Assim deveria falar o Sr. C. Pereira, se desejasse ser sincero e realmente lhe interessasse o conhecimento exato e fiel das Escrituras. Mas é mais fácil repisar o estafadíssimo chavão: A Bíblia, só a Bíblia. E mais cômodo passar a esponja na história e continuar a escrever: Roma fecha a Bíblia; só a Reforma abriu aos povos o Livro da palavra de Deus.
§ 2. – O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO PROTESTANTISMO À LUZ DA HISTORIA E DA RAZÃO
Sumário — A regra de fé no cristianismo primitivo. — O exclusivismo do princípio bíblico condenado pela razão e pelo bom senso.
A regra da fé crista deve ser evidentemente tão antiga como o próprio cristianismo. Preenche o cânon protestante esta condição essencial? O estudo direto da Bíblia que fizemos no parágrafo anterior mostrou-nos a todas as luzes que durante o primeiro século da Igreja, o magistério vivo dos apóstolos e dos seus sucessores era o veículo principal do ensino religioso. A história vai agora demonstrar-nos que os séculos seguintes não conheceram outra norma dogmática. Os testemunhos são inumeráveis; escolheremos os mais antigos.
Três grandes vultos, Inácio, Policarpo e Clemente Romano, emergem no fim do primeiro século e constituem o elo de união entre os apóstolos de que foram discípulos imediatos e as gerações posteriores do 2° século. Qual a regra da fé inculcada por estes porta-vozes do ensino apostólico?
Eusébio resume nestes termos o conteúdo das epístolas de S. Inácio: “Advertia, antes de tudo, as igrejas das diversas cidades, evitassem, sobre todas as coisas, as heresias que começavam então a nascer e alastrar e exortava-as a se aterem tenazmente à tradição dos apóstolos”. [Euséb., Hist. Ecces., III, 36. (MG, XX, 287)] Com efeito, na sua epístola aos Efésios escreve o santo mártir: “Antes exortei-vos a vos conservardes unânimes na doutrina de Deus: pois Jesus Cristo, nossa vida inseparável, é a doutrina do Pai, como a doutrina de Jesus Cristo são os bispos constituídos nas diversas regiões da terra; cumpre, portanto, que sejais concordes no sentir do bispo… A quem envia o Pai de família para governar os seus, devemos acolher como aquele que no-lo envia. E, pois, evidente que o bispo deve ser considerado como o próprio Senhor”. [S. Inácio, Ad Ephesios, III-IV (F, I (2), 177-179] Os pastores legitimamente constituídos e em comunhão com a Igreja Católica são, como se vê, a verdadeira norma de fé, à qual se devem ajustar os fiéis para permanecer na verdadeira doutrina de Jesus Cristo; são os intérpretes autorizados do evangelho, os representantes visíveis de Deus em cada igreja local. Sobre este ponto insiste Inácio em quase todas as outras epístolas. [Cfr. Ad Philadelphos, n. II-III (F, I (2), 225-227); Ad Trallianos, n. VII (F. I (2), 207); Ad Magnesios, n. VI-VII (F, I (2), 195-197), Ad Smymaeos, n. VIII (F, I (2), 291)]
S. Policarpo nos exorta, a fim de evitarmos as heresias, a que “deixando a vaidade de muitos e as falsas doutrinas, sigamos a doutrina que possuímos, por tradição desde o princípio: ad traditam nobis ab initio doctrinam convertamur”. [. Epist. ad Philippenses, n. VII, 2 (F, I (2), 275). “Convertemo-nos à doutrina trazida até nós desde o princípio”.]
Como Policarpo, discípulo de S. João, fala Clemente, discípulo de S. Pedro e seu sucessor na cátedra de Roma. Aos Corintos escreve assim: “Os apóstolos mandados por J. C. foram os que nos pregaram o Evangelho. Jesus Cristo foi mandado pelo Pai; assim Cristo vem de Deus, os apóstolos de Cristo. Estes, pois, recebidas as ordens… partiram para anunciar o reino de Deus e constituíram bispos e diáconos para os que haviam de crer”. [Epist. ad Corinthios, c. XLII (F, I (2), 113)] Aí estão, pois, os bispos destinados pelos apóstolos a continuar o ensino vivo aos novos fiéis. A doutrina que deverão crer não nos vem do livre exame ou da inspiração individual, mas é-nos transmitida pela “gloriosa e venerável regra de nossa tradição”. [Ibid. VII, (F, I (2), 71)] Aliás, o simples fato de escrever Clemente esta carta é uma prova magnífica do magistério autêntico transmitido pelos apóstolos aos seus sucessores. Irineu assim nos relata o fato: “sob Clemente, havendo nascido forte discórdia entre os irmãos de Corinto, a Igreja de Roma escreveu-lhes uma carta enérgica, ‘potentissimas literas’ [cartas poderosíssimas] exortando-os à paz, reparando-lhes a fé, e anunciando-lhes a tradição que havia pouco tinham recebido dos apóstolos”. [Adv.Haeres., III, c. 3, n. 3 (MG, VIII, 850)] A primitiva Igreja não conhecia a Bíblia, “único juiz das controvérsias”, como pretendem os reformadores.
Na geração seguinte, chamamos a depor outros três nomes que, pela vastidão dos seus conhecimentos, pelas controvérsias em que tomaram parte, são testemunhas superiores a toda exceção. Falamos de Irineu, Tertuliano e Orígenes. Irineu fala-nos da tradição com uma clareza admirável. Em todo o seu livro Adversus haereses, escrito contra os gnósticos, o bispo de Lião opõe aos inovadores, como argumento invencível, a tradição viva, pública, infalível da Igreja. Citemos, entre inumeráveis outros, os passos seguintes: “Aí está patente, a quantos querem ver a verdade, a tradição dos apóstolos, manifesta em toda a Igreja disseminada pelo mundo inteiro: podemos enumerar os bispos constituídos pelos apóstolos e os seus sucessores até nós: nenhum destes ensinou ou conheceu o que estes agora devaneiam”. [Adv.Haeres., III, 3, 1 (MG, VII, 848)] “Não devemos buscar nos outros a verdade que é fácil receber da Igreja, pois os apóstolos, a mãos cheias, versaram nela, como em riquíssimo depósito, toda a verdade… Este é o caminho da vida”. [Adv.Haeres., III, 4, 1 (MG, VII, 855)] E o santo polemista conclui a suficiência deste magistério vivo, ainda quando nos faltassem as Escrituras: “E se os apóstolos não nos houvessem deixado as escrituras, não cumpria seguir a ordem da tradição por eles ensinada aos a quem confiava a sua Igreja? A esta economia se adaptam muitos povos bárbaros que creem em Cristo, porque, sem papel nem tinta, trazem a salvação escrita pelo Espírito nos próprios corações e conservam diligentemente a tradição antiga”. [Adv. Haeres., III, 4, 1 (MG, VII, 855). Cfr. ainda: III, 24; I, 10; V, 20; IV, 26, 33, etc., etc., (MG, VII, 966, 551, 1.177, 1.053, 1.077)]
À voz de Irineu nas Gálias, faz eco a de Tertuliano na África. Toda a doutrina do valoroso apologeta sobre o modo de polemizar com os hereges, largamente exposta no livro De Praescriptionibus, resume-se nestas ideias: Nas discussões contra hereges é de pouca utilidade apelar para a Escritura, porque os adversários, quando não a corrompem ou mutilam, ao menos lhe pervertem o sentido, e, muitas vezes, não se pode alcançar, com certeza, o significado de um texto a não ser pelo magistério autêntico da tradição. Todo o vigor da luta, deve, pois, concentrar-se em saber onde reside este magistério autêntico do qual se deve receber assim a Escritura como a sua legítima interpretação. – O livro de Tertuliano parece talhado de encomenda para os protestantes. Mas ouçamos diretamente as palavras do valente polemista: “De nada vale a discussão das Escrituras. A heresia não aceita alguns dos seus livros, e se os aceita corrompe-lhes a integridade, adulterando-os com interpolações e mutilações, ao sabor de suas ideias, e se, algumas vezes admite a Escritura inteira, perverte-lhe o sentido com interpretações fantásticas… Não se deve, pois, apelar para a Escritura, nem implantar a questão em campo onde não pode haver vitória, ou, pelo menos, vitória certa. De fato, ainda que o confronto das Escrituras não deixasse as duas partes no mesmo pé, a boa ordem pede que primeiro se proponha – e é o de que agora disputamos – determinar quem possui a verdadeira fé, a quem pertencem as Escrituras, por quem, a quem e quando foi confiada a disciplina que nos faz cristãos (quibus sit tradita disciplina qua fiunt christiani). [“De quem foi trazida a disciplina que nos torna cristãos”.] Onde estiver a verdade da disciplina e da fé, aí se achará a verdade das Escrituras, da sua interpretação e de todas as tradições cristãs”. [De Praescript., (ML, II, 31]
Pouco adiante é ainda mais frisante o seu argumentar. Leia-se em toda a energia o original latino: “Sendo este o caso, de modo a tornar demonstrável que a verdade pertença a nós, conquanto andemos em sua lei, segundo a qual a Igreja foi entregue pelos apóstolos, e aos apóstolos por Cristo, e a Cristo por Deus, razão pela qual nossa posição é clara quando definimos que aos hereges não se deve permitir fazer provocações às Escrituras, uma vez que nós, sem o uso das Escrituras, demonstramos terem eles nada a ver com as Escrituras”. [Op. cit., c. 37 (ML, II, 50-1). Cft. Adv. Marcionem, I, 21; IV, s (M, II, 270, 366)]
Fechemos a tríade com o testemunho de Origenes. É a igreja grega, harmonizando com a africana e a gaulesa, no concerto da Igreja universal. Assim escreve o grande catequista alexandrino: “Como são muitos os que pensam possuir a verdade de Cristo e alguns deles opinam diversamente dos antigos, conserve-se a pregação eclesiástica ensinada pelos apóstolos segundo a ordem de sucessão (servetur eclesiastica predicatio per successionis ordinem ab apostolis tradital [*]) e que até ao presente existe nas igrejas: só se deve crer na verdade, que em ponto algum discorda da tradição eclesiástica e apostólica”. [Orígenes, De Principiis, 1. I, n. 2 (MG, XI, 116). Mais explicitamente ainda, se é possivel: “Quoties [haeretici] canonicas proferunt Scripturas, in quibus omnis christianus consentit et credit, videntur dicere: ecce in domibus verbum est veritatis (alusão a Mt XXIV, 26). Sed nos illis credere non debemus nec exire a prima et ecclesiastica traditione, nec aliter credere nisi quemadmodum per successionem Ecclesiae Dei tradiderunt nobis”. In Matth. Comment. series (MG, XIII, 1667).
[*. “Guarde-se a pregação eclesiástica pela sucessão apostólica trazida dos apóstolos”]
Não nos é necessário continuar a série de citações. Com Orígenes chegamos até ao meado do século III. Daí por diante as testemunhas multiplicam-se extraordinariamente, e, a respigar-lhes os textos, encheríamos sem dificuldade um volume. Recordemos apenas o dito célebre de Agostinho: “Eu não creria no Evangelho se a autoridade da Igreja não me movesse a fazê-lo”; [S. Agostinho, Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, c. 5, (ML, XLII, 176)] a frase esculptória de S. João Damasceno: “É infiel aquele que não crê segundo a tradição da Igreja Católica”, [Jo.Damasc., De fide orthodoxa, t. 4, c. 10 (MG, XCIV, 1127)] a palavra autorizada de Crisóstomo, o grande intérprete das Escrituras: “Os apóstolos não ensinaram tudo por escrito, mas muitas coisas sem escrituras, e estas são igualmente dignas de fé. Tenhamos, portanto, como digna de fé, também a tradição da Igreja. Há tradição? basta”. [Jo.Chrysost., In 2. Thess. hom. 4, n. 2 (MG, XLII, 488]
E pela mesma doutrina afinam S. Hilário, S. Atanásio, São Basílio, S. Gregório Nisseno, S. Jerônimo, S. Epifânio, S. Cirilo Alexandrino, S. Vicente de Lerins, numa palavra, todos os Padres e Doutores, gregos e latinos, antigos e recentes. [S. Hilarius, Opus hist. Fragm. 7, n. 3, 4 (ML, X, 697); S. Athanas., Encycl. ad episcopos, n. 1 (MG, XXV, 226); S. Basil, Homelia c. Sabellianos (MG, XXXI, 607, 610); S. Greg. Nyss., c. Eunomium, 1. 4 (MG, XLV, 654); S. Epiphan., Adv. Haeres., Haeres. ss, n. 3 (MG, XLI, 978); S. Hieron., Ad Theophilum, Epist. 63, n. 2; S. Augustinus, De Bapt. c. Donatistasi 1. 2, n. 12; 1. 4, n. 30-1 (ML XLIII, 133, 174); S. Cyrll. Alex., Homilia Paschalis, 8, n. 1 (MG, LXXVII, 558); S. Vincent. Lirin., Commonitorium, nn. 2, 3, 27, 29 (ML, L, 640, 641, 674, 677). E justa, pois, a confissão do protestante Lessing: “E inegável que a tradição oral foi um tempo a única fonte da verdade e é absolutamente impossível assinalar uma época em que ela não só se tenha tomado fonte secundária, mas em tudo e por tudo cessado de ser fonte. Lessing, Werke, Leipzig, Philipp. Reclam (sem data), t. VI, Theologische Streitschriften, p. 306.]
Não obstante o peso esmagador de tantas autoridades, o Sr. C. Pereira continua a afirmar, para uso e edificação dos seus leitores, que “diante da história imparcial, o protestantismo outra coisa não é que o catolicismo primitivo sacudindo de si o romantismo papal”, p. 51. A tradição representa um “dos elementos estranhos, acrescidos ao credo cristão na romanização paganizante com o volver dos séculos tenebrosos da barbárie mediévica”, pp. 51, 34. Já esperávamos pelas caligens medievais. Felizmente as trevas não estão na idade média, como acaba de ver o leitor, estão mais próximas de nós; são outros cérebros, que não os medievos, os ofuscados pelo fumo da ignorância. O cânon protestante, “só a Bíblia”, é desconhecido de toda a antiguidade. Para encontrá-lo é necessário afastarmo-nos quinze séculos das origens do cristianismo e chegarmos ao frade revoltado. Realmente para estabelecer uma regra de fé era tarde… era muito tarde.
Depois de ouvirmos a Bíblia e consultado a história é justo que, por último, demos audiência à razão e ao bom senso.
Razão e bom senso exigem que a regra de fé seja universal: universal objetivamente, abraçando todas as verdades reveladas e universal subjetivamente, estendendo-se a todos os indivíduos que a devem aplicar para orientar-se com segurança na mais grave, na mais transcendente, na mais vital das questões humanas, a questão religiosa. A regra protestante não satisfaz a nenhum destes requisitos fundamentais como passamos facilmente a demonstrar.
É possível só com a Bíblia estabelecer com certeza todos os dogmas revelados? Evidentemente, não. Há, pelo menos, uma verdade, verdade fundamental e pressuposta a todas as demais, que, sem manifesto círculo vicioso, não se pode assentar com a autoridade exclusiva da Bíblia. É a existência da própria Bíblia como livro revelado, como palavra inspirada em Deus. Quais são os livros que fazem parte da coleção sagrada? Como se pode provar que foram eles escritos por inspiração e sob o ditado do Espírito Santo? – Por meio da mesma Bíblia? Mas a Bíblia não o diz, pelo menos, de todos os livros. Onde afirmam S. Mateus ou S. Marcos que os seus evangelhos são inspirados? E se o afirmassem, deveríamos, sem mais exame, prestar-lhes fé? De ver está que não. Se um livro é divino, só porque ele o assevera, a quantos livros humanos não se deveria estender esta prerrogativa! Toda a literatura religiosa da india, da China, da Caldéia, da Pérsia e do Egito entraria, assim de roldão, na categoria das divinas escrituras. Os Vedas, o Y-King, o Zend-Avesta e o Corão se imporiam à docilidade da nossa fé com o mesmo direito que o Pentateuco ou os Evangelhos, Isaías ou S. Paulo.
Deveríamos, porventura, recorrer à crítica histórica? É o que parece insinuar o Sr. C. Pereira quando escreve: “Como documento histórico (a Bíblia) está sujeita naturalmente às leis da crítica histórica, que deve examinar os seus títulos, verificando a sua autenticidade e genuinidade, e só depois de seu veredictum é que se pode estabelecer a sua cano. nicidade”, p. 84. – Ingenuidade infantil! A crítica histórica não pode dizer coisa alguma sobre a inspiração de um livro. E este um caráter sobrenatural que exorbita, por completo, da esfera de suas atribuições.
Tomai-me o 3° evangelho. Armai-vos com todo o arsenal da arte cri-tica. Estudai-o interna e externamente. Qual será o resultado da vossa análise? Que o 3° evangelho foi escrito em grego, por volta do ano 60, por um discípulo de S. Paulo chamado Lucas. Nem mais nem menos, como vos afirma com a mesma certeza que a epístolas aos Coríntios (não as canônicas de S. Paulo) foi escrita pouco depois do ano 90 por S. Clemente, discípulo de S. Pedro. Mas é inspirado o Evangelho de S. Lucas? É inspirada a epístola de S. Clemente? A crítica emudece; para questões desta ordem falece-lhe de todo a competência.
Mas, dirá algum protestante antiquado com o Sr. C. Pereira, no estabelecer a canonicidade “entra um outro elemento, aliás importante, que é o testemunho interno do Espírito Santo”, p. 84. – Outro subterfúgio ridículo de advogado em talas. Quem vos assegurou esse testemunho interno do Espírito Santo? Como se faz ele sentir à consciência? Quem poderá com sinceridade afirmar haver experimentado em si esta ação divina discriminatória de livros inspirados? E quem não vê que recorrer a esse critério individual, vaporoso, inverificável é achanar o caminho aos mais desastrosos excessos do subjetivismo? O mesmo testemunho interno do Espírito Santo que segreda aos ouvidos de Lutero que a epístola de S. Tiago é “uma epístola de palha”, murmurará aos de Calvino que é um livro inspirado. Ouvi a crítica do princípio protestante feita por um teólogo norueguês, o mais autorizado dos autores luteranos deste país. “Nada entre o livro e o leitor, mas quantos absurdos teóricos! Nada entre a alma e Deus, mas quantas impiedades na prática! E seria isto a verdade! Seria isto a salvação! E a estes princípios confiaria eu a minha eternidade! O Espírito Santo está em mim. Ele é quem me inspira, quem me guia… Mas todos dizem que possuem o Espírito Santo e o seu procedimento me diz que o não possuem. O Deus da verdade seria então o Deus da confusão! Não seria mais o Deus da paz?” [Kroch Tonning, Le protesiantisme contemporaine, Ruine constitutionelle, p. 40-I. O ilustre teólogo norueguês, professor de universidade e pároco em Cristiânia, depois de profundos estudos sobre a antiguidade cristã atestados em obras de grande valia, renunciou em 1900 os pingues benefícios eclesiásticos da sua igreja nacional para buscar no seio do catolicismo a verdade e a paz de consciência que não encontrara na igreja luterana. O escrito que citamos é anterior à sua conversão.]
Sem uma autoridade infalível fora da Bíblia, é, portanto, impossível afirmar a inspiração e organizar o cânon ou catálogo dos livros inspirados. O protestantismo, negando a existência desta autoridade, pôs-se na contraditória e insustentável necessidade de jurar fé por um livro cujo caráter divino é incapaz de demonstrar. Já Wiseman fizera notar a ridícula situação do protestante que “depois de comprar uma Bíblia inglesa impressa por Thomas Basket ou qualquer outro impressor da mui excelente majestade de El-Rei, a folheia com a confiança de quem a houvera recebido imediatamente das mãos do Todo-Poderoso, como outrora Moisés recebeu as tábuas da lei no Sinai, entre coriscos e trovões”.
Lacunosa no seu aspecto objetivo por insuficiente para assentar todos os dogmas, muito menos pode a Bíblia considerar-se como norma subjetivamente universal. Cristo, que mandou pregar o Evangelho a todos os homens, sem distinção alguma, não podia estabelecer como veículo único de sua doutrina um órgão de transmissão que não estivesse ao alcance de todos. A Escritura manifestamente não se acha nestas condições. Hoje, as sociedades bíblicas da América e da Inglaterra multiplicam e difundem as suas edições com relativa facilidade. Mas transportemo-nos aos tempos anteriores ao descobrimento da imprensa. São catorze séculos em que um só exemplar da Bíblia representava uma soma considerável de trabalho, de despesas e de tempo. Dizem-nos os historiadores que no século XI escasseavam tanto as Bíblias que era mister uma fortuna, uma verdadeira fortuna, para adquirir-lhes um exemplar. Só os reis, os príncipes, os mosteiros, as colegiadas e universidades podiam permitir-se esse luxo. Reproduzir com o estilete no pergaminho uma cópia do livro sagrado demandava a vida inteira de um homem: tarefa longa, enfadonha, sumamente custosa. Como obter então os exemplares necessários? [*] E os pobres? Não deu Jesus como um dos caracteres de sua missão a evangelização dos pobres? (Lc IV, 8).
[*. Num momento de distração todo preocupado em desembaraçar-se de um texto molesto de S. Irineu, o Sr. G. Pereira deixou cair da pena esta confissão preciosa: “poucos eram os que no seu tempo podiam recorrer aos raros manuscritos canônicos existentes nos centros cristãos”, p. 286. Por que então arvorar em regra de fé universal um livro raro, a que poucos eram os que podiam recorrer? O cristianismo não é para todos? e para todos os tempos? A verdade, norma de fé, pode andar sujeita às vicissitudes do progresso material ou às desigualdades da fortuna?]
Os deserdados da fortuna incapazes de arcar com as despesas dos grandes rolos de pergaminho morreriam à fome; o pão da palavra divina não seria repartido aos pequeninos. A ser verdadeiro o cânon protestante, fora mister que o Salvador juntamente com a sua doutrina trouxesse também à terra os tipos de Gutemberg. E bastaria? Ainda não. Não basta ter um livro, é mister lê-lo. E quantos sabem ler? Verdade é que o Sr. C. Pereira afirma “que o culto reformado repousa sobre um livro – A Bíblia: o protestante deve, pois, saber ler”, p. 121. Mas nos quinze séculos que precederam a Reforma não se sabia que a instrução obrigatória era cláusula essencial para salvar-se; nos quatro séculos que se lhe seguiram, o analfabetismo continuou a ser a condição da maior parte do gênero humano, nem parece ser para breve o dia em que todos os homens poderão deletrear a sua Bíblia. Que turba infinita fora do caminho da salvação pelo imane delito de não ter passado pela cartilha! “Pobres almas inocentes, dizia Lessing, como vos compadeço, vós que falais uma língua na qual a Bíblia não foi ainda traduzida! E vós também que não sabeis ler! Pensáveis que sendo batizados éreis cristãos! Infelizes, aprendei que saber ler é tão necessário à salvação como ser batizado”. [Lessing, Beiträge zur Geschichte und der Litteratur, ap. Audin, Histoire de Calvin, Paris, 1841, t. II, p. 49.]
Dirá alguém: os que não sabem ler recorram ao pastor. Impossível e ilógico. O Sr. C. Pereira põe logo embargos; “Se eu tenho de responder por mim, devo por mim mesmo julgar: não pode haver imputabilidade onde não há discernimento. A responsabilidade individual em seguir a verdade religiosa implica forçosamente a liberdade individual na aquisição inteligente dessa verdade”, p. 35. E aí está aonde leva a lógica protestante. A grande massa da humanidade incapaz de responsabilidade por ignorância do abc. Lombroso povoou os cárceres de impuníveis por fatalidade biológica. Carlos Pereira povoa o mundo de irresponsáveis por analfabetismo. O antropólogo italiano argui expressamente a justiça humana de iniquidade, por não haver convertido as prisões em hospícios; o pastor brasileiro (influxo inconsciente de sua profissão gramatical?) acusa implicitamente a bondade divina de não haver transformado o mundo em imensa escola, onde a humanidade, soletrando o “b-a ba” começasse a ser responsável e susceptível de obrigações religiosas.
Mas, independentemente dos embargos do Sr. C. Pereira, o recurso ao pastor “como é natural no católico assim é ilógico no protestante; ilógico e irrisório”, como o disse Strauss. Para o católico, o pároco representa o bispo de quem recebe sua missão e autoridade de ensinar. O bispo em comunhão com o Papa representa na sua diocese a doutrina da Igreja universal e infalível à qual Cristo fez a promessa indefectível de assistência divina. Nada, pois, mais justo, nem mais racional, que descansar tranquilamente nos ensinamentos ministrados, em nome de uma autoridade que se sabe infalível. Para o protestante, ao invés, o ministro é um homem isolado, falível, sem missão, que anda talvez ocupado ainda em formar o seu credo religioso, que hoje ensina uma coisa, amanhã outra, conforme as novas revelações que lhe vai descobrindo o livre exame de sua Bíblia. E, suposta já terminada a redação do seu símbolo, que autoridade tem ele para impô-lo aos outros? A opinião particular de um homem é falível. Como construir sobre esta base vacilante o edifício divino da fé? Como confiar cegamente a uma probabilidade humana os riscos da minha eternidade? Com que direito impor aos simples fiéis o jugo da infalibilidade fictícia do primeiro predicante que se arvora em missionário sem credenciais? Por que razão deveria o homem do povo confiar os interesses mais sagrados de sua consciência ao primeiro aventureiro, que, elevando-se alguns palmos acima da turba dos seus ouvintes, com uma Bíblia ou simulacro de Bíblia na mão, se inculca intérprete do Altíssimo, e aqui prega a divindade de J. C., ali a nega, aqui confessa a presença real, ali a condena como blasfêmia, aqui afirma a necessidade das boas obras, ali a rejeita? E esta fé proteiforme, esta doutrina de camaleão, que varia com as circunstâncias de lugar e de tempo, poderá ser para o cristão o apoio inconcusso de suas convicções religiosas, a norma de sua fé, o asilo seguro de sua consciência atribulada nas incertezas, nos trabalhos e nos sofrimentos da vida? Ah! como se compreendem os desabafos confidenciais destas almas aflitas! “Que infelicidade a nossa, dizia um protestante ao conselho da chancelaria de Leyser, que desespero o nosso, pobres habitantes do campo, ao ouvirmos as blasfêmias que se dizem contra a nossa santa religião! Na nossa desventura já não sabemos a quem prestar fé, em quem pôr as nossas esperanças! Nossos próprios ministros perderam todo o direito à nossa confiança; uma é a sua linguagem nos púlpitos, outra nas rodas sociais, onde nos tratam como imbecis a quem faltam as forças para suportar a verdade”. [M. Jacobi (protestante): Que dois-je croire et espérer pour le repos de mon âme? Zelle, 1791, pp. 22-3. Ap. Aug. Nicolas, Etudes philosophiques sur le christianisme, Paris, 1885, t. III, p. 243] Fatos análogos poderiam citar-se facilmente em barda. Referirei um só. A uma missão pregada pelo P. Damen S. J. em Brooklyn assistiam vários protestantes. Terminada a conferência, um deles, natural da Virgínia, bom presbiteriano, foi ter com o seu ministro e pediu-lhe a explicação de um passo da Escritura.
Quando o pastor lhe expôs, insistiu: “Está absolutamente certo que este é o sentido do texto? Outros protestantes lhe dão um significado diverso”. “Ah! meu caro amigo, tornou o pastor, nós nunca podemos estar certos de nossa fé!”. “Se é assim, passe bem! Não posso estar certo da minha fé na igreja protestante? vou aonde possa encontrar esta certeza”. E fez-se católico.
É pois inevitável. Não podendo fiar-se do ministro, cada crente, segundo a doutrina protestante, deverá formar o próprio credo, interpretando individualmente a Bíblia. Quem não sabe ler não pode ser cristão.
Vamos além. Suponhamos superados todos estes obstáculos. A humanidade inteira, graças à Reforma, sabe ler. Graças às sociedades bíblicas inglesas e norte-americanas todos os homens aí estão com a sua Bíblia sob o braço. Está resolvida a questão? Não ainda; agora é que começam as dificuldades mais sérias.
A Bíblia é uma coleção de 72 livros escritos originariamente em hebraico e grego por autores antiquíssimos que viveram num espaço de quinze séculos. Nela se encontram todos os estilos e gêneros literários desde a história até a poesia, épica ou dramática, lírica ou didática, desde a simplicidade dos preceitos práticos até às alturas sublimes da mais remontada teologia. Tal é o livro de que cada homem deve extrair o seu credo e os seus mandamentos.
Antes, porém, de chegar a estas conclusões dogmáticas e morais, cumpre-lhe resolver um sem número de dificuldades preliminares. Dificuldades linguísticas; sabe grego? sabe hebraico? Se o não sabe, quem lhe assegura a fidelidade da versão que tem entre mãos? Quantas vezes a tradução, não é, ainda involuntariamente, uma traição do original? [*] O “livreiro da mui excelente Majestade del-Rei” é o único fiador neste negócio em que ele joga a sua eternidade. Dificuldades críticas. Os livros atuais são íntegros? Não foram mutilados, interpolados, adulterados no curso de tantos séculos? [**] Não cincaram os mil copistas que os trasladaram? Mão sacrílega não lhes profanou a pureza divina? – Esta dificuldade cresce de ponto na hipótese dos nossos adversários. De quem receberam os protestantes a Bíblia? Da Igreja Católica. Antes que nascessem, quem foi por quinze séculos a depositária do livro divino? A Igreja Católica. [***] Mas se a Igreja Católica é uma Babilônia corrompida, um anticristo que tudo perverteu e adulterou na doutrina revelada, quem lhes assegura que não alterou também o livro inspirado? Se o depositário do precioso tesouro não é infalível e honesto, quem poderá fiar da integridade do depósito? Dificuldades gramaticais. Qual é o verdadeiro sentido de um texto, o seu sentido literal, o seu genuíno sentido teológico? Dificuldades exegéticas. Um texto não é isolado, é mister conhecer-lhe o contexto, é mister ilustrá-lo com outros lugares paralelos. S. Paulo pode explicar Isaías, ou, em aparência, contradizê-lo. Mais. Para entender escritos tão antigos cumpre ainda conhecer os tempos, os lugares, os usos e costumes, o ambiente social, político e religioso de vários povos antigos. Não há fazer exegese sem aperceber-se de antemão de um vasto arsenal de história, geografia, etnografia, linguística, paleografia e arqueologia. Mais ainda. Na escritura há verdades que se devem crer e preceitos que se devem praticar; há prescrições locais e temporárias e prescrições perpétuas e universais. Tudo isto deve ser analisado, discutido, discriminado antes de se redigir um símbolo ou formular um código moral. Proceder doutra maneira fora precipitação prematura, imprudente, irracional. Antes de ter certeza absoluta de que o texto em que me estribo é autenticamente divino e indubitavelmente inspirado, não posso razoavelmente fundar nele uma fé divina, infalível, disposta a derramar o sangue pela firmeza de suas convicções. Ninguém arrisca imprudentemente a vida, ninguém joga desassisadamente a própria eternidade nas probabilidades de um talvez.
[*. São os protestantes os primeiros a reconhecer a imperfeição das próprias Bíblias tiradas em vulgar. Pastores e bispos anglicanos escreveram volumes para mostrar os erros da versão inglesa do rei Jaime. Numa assembleia de ministros, reunida em S. Luís, um presbiteriano sustentou a necessidade de rever a tradução atual que não contém menos, dizia ele, de trinta mil erros. Trinta mil erros! já é alguma coisa num livro que deve servir de guia único e certo no caminho da salvação!]
[**. Um exemplo: cai nas mãos do leitor uma bíblia luterana. Lê na Epíst. aos Romanos que o homem é justificado só pela fé (III, 28). E o pobrezinho que mui provavelmente ignora que aquele só não é do Espirito Santo, mas de Lutero, formula o seu dogma: está escrito que basta a fé sem obras para me salvar. A outro simples operário impingem-lhe como inspirada uma bíblia de Zwinglio. Onde Cristo disse: “este é o meu corpo”, o reformador suíço traduziu: isto significa o meu corpo. E o infeliz a concluir que Jesus Cristo não está realmente presente na Eucaristia!
O Dr. Harrison, beneficiado protestante de Cantuária, dá também ele a sua edição da Bíblia, e, sem mais cerimônias, corta todos os trechos que se referem ao inferno. Eis o que valem as Bíblias protestantes!]
[***. Declarou-o sinceramente Lutero: “Reconhecemos que no papismo existe a verdadeira escritura sagrada… Devemos confessar a verdade: no papismo encontra-se a palavra de Deus, a missão apostólica, o verdadeiro batismo, o verdadeiro sacramento do altar, as verdadeiras chaves para a remissão dos pecados, o verdadeiro catecismo… E quanto à sagrada escritura e ao púlpito, é dos papistas que os tomamos; sem o papismo que saberíamos nós?” t. IV, p. 227 b. ed. de Wittemb. 1551.
Aqui o pastor brasileiro dá um quinau no grande patriarca: “O protestantismo do século XVI, diz ele, recebeu a Bíblia do protestantismo de todos os séculos” 423-4. A frase é de efeito. Evoca à imaginação as sombras erradias dos protestantes de todos os séculos (ficção poética!) que acodem pressurosos a entregar o livro sagrado ao pimpolho alemão recém-emancipado da tirania papal e herdeiro predestinado das desconhecidas glórias avitas. A história é mais prosaica, aferra o fato na sua singela realidade e deixa as figuras de retórica inflada aos poetas, a quem, dizem, tudo ousar é permitido. Ora, o fato é que Frei Martinho, quando, cansado de viver catolicamente, deixou o burel, levou consigo a Bíblia que encontrou no seu velho convento, onde certamente não a tinha escondido o “protestantismo de todos os séculos”.]
E pensar que todo este ingente trabalho intelectual deve ser feito por pobres operários, pela mulherzinha do povo, pelo lavrador dos campos! E pensar que só na virilidade começa a inteligência a amadurecer para o estudo de semelhantes questões e que, portanto, a infância e a juventude ficariam privadas do benefício da religião, entregues às angústias da dúvida ou às apatias da indiferença! Quem ousará crer da bondade divina que tivesse eriçado de tantas dificuldades o acesso ao Evangelho, às consolações sobrenaturais e divinas do Cristianismo? Não; a razão e o bom senso revoltam-se indignados contra a possibilidade de semelhante hipótese. A via escolhida pela Providência para transmitir a religião entre os homens é mais plana, mais batida, mais conversável, é a via real por que se comunicam os ensinamentos intelectuais e sociais, indispensáveis à vida humana: a via da tradição, a via da autoridade. “L’homme est un être enseigné”, [o homem é um ser ensinado] disse Lacordaire. Nos outros domínios da nossa atividade, onde o erro não tem consequências eternas, a autoridade conserva a sua falibilidade humana. No domínio da fé, imposta em sua integridade sob pena de eterna condenação (qui non crediderit condemnabitur, [quem, porém, não crer, será condenado] Mc XVI, 16), Deus promete a assistência de sua inerrância como garantia da conservação intangível de seus ensinamentos. À consciência humana impôs o Salvador o dever de ouvir os seus enviados como a Ele em pessoa – qui vos audit me audit [quem vos ouve a mim ouve] – mas tranquiliza-a logo na sua fé, empenhando a palavra divina como fiança que, até ao derradeiro dia, os sucessores dos seus apóstolos ensinarão sem mescla de erro tudo o que Ele nos prescreveu: “ensinai aos povos tudo o que vos mandei, eu estarei convosco todos os dias até à consumação dos séculos”. [Mt XXVIII, 20. A necessidade insubstituível de uma autoridade divina e a sua existência a refulgir brilhante na fronte da Igreja Católica tem sido para muitos racionalistas cultos um motivo de conversão sincera. Augustin Thierry assim escrevia ao P. Gratry: “Eu sou um racionalista fatigado que me submeto à autoridade da Igreja. Eu vejo os fatos; eu vejo pela história a necessidade manifesta de uma autoridade divina e visível para o desenvolvimento da vida do gênero humano. Ora, tudo o que há fora do cristianismo não tem valor. Ademais, tudo o que está fora da Igreja Católica é sem autoridade: todas as seitas não passam de esquecimento, desprezo, negação. Assim, a Igreja Católica é a autoridade que eu busco e à qual me submeto”. Gratry, Connaissance de l’âme (8), Paris. 1920, t. I, Préface, p. XXXIV, nota.]
Tal é a majestosa harmonia do plano divino. Destarte leva-nos a razão à regra de fé católica e condena irremissivelmente o livre exame protestante, não só como repugnante aos ensinamentos da Escritura e da antiguidade cristã, senão ainda como contrário às exigências mais elementares do senso comum e às ideias mais simples que formamos da justiça, da bondade, da misericórdia do nosso Pai que está nos céus. [Kroch Tonninc, o célebre teólogo que já citamos várias vezes, sintetiza admiravelmente a insuficiência do princípio protestante nestes termos: “A Bíblia não pode ser o princípio único de conhecimento religioso. Sua própria natureza o impede; nenhum de seus textos o comprova; muitos se contradizem, por mais que se volte ao passado, ela jamais o foi; por mais longe que se vá, ela jamais o será. É necessário, ao lado e ao alcance de todos, uma garantia segura de sua origem, enfim, da retidão de sua interpretação. Sem isto, nosso princípio bíblico não tem mais consistência que uma frase no ar”. Le Protestantisme Contemporain, Ruine Constitutionelle, p. 16. Em outro volume: “Nosso princípio exclusivo ‘somente a Bíblia’ vive somente pela força de preconceitos doutrinários. A gente acabará por abrir os olhos. Aquilo que nós chamamos de palavra de Deus frequentemente não é mais do que aquilo que nós mesmos pusemos na Bíblia. Nos assuntos temporais, não se tem a inocência de acreditar que uma sociedade possa subsistir sobre um código de leis, sem um poder que o interprete e julgue”. Le Prot. Contemp., Ruine Doctrinale, p. 16.]
Excerto de: Pe. LEONEL FRANCA, S.J., A Igreja, a Reforma e a Civilização, Editora CDB, 2020, pp. 267-292.
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