Padre M.-J. Gerlaud, O.P.
1929
Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino (Supl. q. 38 a. 1 & q. 40 aa. 4, 5 & 6) editada pela Revue des Jeunes, 1929, pp. 216-226.
No começo do século II a hierarquia eclesiástica mostra-se, com evidência, consolidada em suas formas atuais: o Eπίσκοπος é o Bispo; o πρεσβύτερος, o simples sacerdote. Anteriormente, a distinção é menos fácil, as palavras são sinônimas: tanto presbíteros como epíscopos estão na cabeça das igrejas, pregam a palavra de Deus, devem ser irrepreensíveis. Em suma, conforme a expressão de Pedro (I Pet. V, 1), eles são “os anciãos” que apascentam o rebanho de Deus que lhes é confiado, e velam por ele. Contudo, acima deles há que situar aqueles legados apostólicos, tais como Tito e Timóteo, cuja autoridade é incontestavelmente superior à destes sacerdotes. Eles são, de modo especial, depositários da fé (I Tim. VI, 20); esse depósito, recebido do Apóstolo (II Tim. III, 14), eles confiá-lo-ão, por seu turno, “a homens fiéis, capazes de instruir a outros” (II Tim. II, 2).
Eles têm o poder de impor as mãos (Tit. I, 5); para este fim, o Apóstolo enumera a Timóteo as qualidades exigidas nos sacerdotes e nos diáconos (I Tim. III, 1-8); assim também, eles julgam os sacerdotes e devem assegurar-lhes uma justa remuneração (V, 17-21): outro tanto de funções que nos permitem reconhecer, nesses missionários, a dignidade episcopal em sua definição atual.
Se bem que Paulo reservou para si a responsabilidade pelas igrejas, ao ponto de nas igrejas paulinas não se encontrar episcopado monárquico, a antiguidade deixou-nos porém testemunhos irrecusáveis dessa instituição pelos Apóstolos, dentre os quais um singularmente explícito: a Carta da Igreja de Roma à de Corinto escrita apenas trinta anos depois da morte dos Apóstolos Pedro e Paulo. “Nossos Apóstolos conhecem por Nosso Senhor Jesus Cristo que irromperiam divisões acerca da dignidade presbiteral. Foi por isso que, dotados de perfeita presciência, eles instituíram os sobreditos (os sacerdotes) e, em seguida, fixaram como norma que quando eles (os Apóstolos) morressem, outros homens experimentados lhes sucedessem na sua função. Aqueles, pois, que foram estabelecidos por eles ou, depois, por outros homens ilustres, com a aprovação de toda a Igreja… não podem, julgamos, ser demitidos de suas funções sem injustiça”. (cf. Dictionnaire Apologétique de Alès, art. Évêques, por A. Michiels). Esses homens experimentados, colaboradores e depois sucessores dos Apóstolos, são certamente os herdeiros do amplo poder de ligar e desligar, comunicado aos Seus por Cristo, o triplo poder de ensinamento, de santificação e de regência, explicitado bem no momento da Ascensão: “Todo o poder me foi dado no céu e sobre a terra. Ide, pois, ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a guardar tudo o que vos ordenei” (Matth. XXVIII, 19). É, com inteira verdade, o episcopado, de que os Apóstolos foram o primeiro elo, que continua na Igreja primitiva, para prosseguir sempre idêntico a si mesmo até nossos dias, graças ao poder de Cristo, imortal de Sua própria imortalidade: “Eis que estou convosco todos os dias até ao fim do mundo” (Ibid., 20).
Sua obra é perfazer o corpo místico de Cristo; para o aperfeiçoamento dos Santos, para a edificação do corpo de Cristo (Eph. IV, 12), ele é o principal arquiteto, o organismo mesmo desse corpo de que todos “os membros se prestam um mútuo auxílio e de que cada um opera segundo sua medida de atividade” (Ibid., 16), ele é o agente capital de seu crescimento e de sua perfeição, ele é a fonte da fecundidade espiritual disseminada pela Igreja inteira. Por ele, Doutor e Santificador, almas são engendradas para a Verdade e para a Vida de Cristo, por ele também são governadas essas almas tornadas doravante membros de Cristo. O bispo é o cabeça da santidade, o hierarca que preside às obras de aperfeiçoamento. O sacerdote, em sua ordenação, recebe o poder de realizar certas santificações; ele oferece o sacrifício, abençoa, preside, prega, batiza, mas o exercício desse poder depende da autoridade episcopal; ele prega, mas cabe ao bispo interpretar; seu escalão na hierarquia é de escol, mas cabe ao bispo julgar; ele batiza e abençoa, mas é ao bispo que cabe confirmar e ordenar, atos de plenitude; e, embora ao consagrar o Corpo e o Sangue do Senhor e ao oferecer o sacrifício seu poder seja igual ao do bispo, pois um e outro são sacerdotes de igual maneira, também aí a atividade sacerdotal está de algum modo ligada à comunhão com o bispo. Dessa união, necessária à perfeição do ato consagrador, temos um símbolo comovente na concelebração de uma missa de ordenação: o bispo, rodeado daqueles que ele acaba de engendrar para o sacerdócio, como outrora do presbyterium, pronuncia com eles: “Este é o meu Corpo, este é o meu Sangue”, cada um deles consagra, mas a multiplicidade dos atos reduz-se, em santa unidade, na comunhão do “senatus” sacerdotal com o seu cabeça, o bispo. A asserção de Tertuliano sobre o batismo vale aqui: “batizar pertence ao sacerdote por excelência: o bispo; a partir dele, esse poder é comunicado aos sacerdotes… mas eles não podem exercê-lo à margem da autoridade dele.”
Nosso autor [Sto. Tomás] descreveu com perfeição essa hierarquia:
«É o bispo, principalmente, que tem cura de todas as almas de sua diocese. Os párocos e os arquidiáconos exercem os ministérios menores que lhes são confiados sob a autoridade do bispo. Assim, acerca desta palavra de São Paulo: “A uns a assistência, a outros o governo”, a Glosa traz: “A assistência: é a função dos que desempenham o papel de auxiliares para com os superiores, como Tito para com o Apóstolo ou os arquidiáconos para com os bispos. O governo, ou seja, a autoridade de que gozam as pessoas de menor escalão, tais como os sacerdotes, exemplos do povo”. E Dionísio: “Assim como vemos a hierarquia universal culminar em Jesus, cada uma das hierarquias particulares atinge seu ápice no divino hierarca que lhe é próprio, ou seja, no bispo.”
Noutra parte, escreve ele [Dionísio]: “Os sacerdotes e os diáconos devem todos tomar o cuidado de nada fazer sem permissão de seu próprio bispo”. Isso significa que eles são, com relação ao bispo, aquilo que os bailios e prebostes são com relação ao Rei. Consequentemente, assim como unicamente o rei, dentre todos os poderes seculares, recebe bênção solene, sendo os demais instituídos por simples comissão, assim também, na Igreja, a cura episcopal é conferida por uma sagração solene, enquanto que os encargos arquidiaconais e paroquiais o são por simples injunção. Contudo, antes mesmo de terem esse encargo, os arquidiáconos e os párocos são consagrados em sua ordenação.» (IIa IIæ q. 184 a. 6 sol. 3, tradução Lemonnyer).
Enquanto que a consagração sacerdotal confere principalmente um poder sobre o corpo real de Cristo e dispõe a receber autoridade sobre seu corpo místico, a consagração episcopal confere poder direto sobre o corpo místico; a primeira é participação na graça sacerdotal de Cristo, a segunda, na sua graça régia. No bispo, assim como em Cristo, o sacerdócio e a realeza estão unidos; Cristo possui toda a plenitude (3.ª parte, q. 22 a. 1 sol. 3) para o seu corpo todo, o bispo semelhantemente possui uma plenitude participada, da qual deve beneficiar-se a porção do corpo místico que ele comanda; assim, Santo Tomás não tem receio de reconhecer no bispo, delimitando-as, as prerrogativas capitais:
«A cabeça exerce sua influência sobre os membros de dupla maneira: primeiro que tudo, por modo de influxo interior, comunicando, por seu poder, movimento e sensibilidade aos outros membros; depois, por sua maneira de governar externa: é, efetivamente, pela visão e demais sentidos que têm sua sede na cabeça, que o homem se dirige em sua atividade exterior. Ora, o influxo interior da graça nos vem unicamente de Cristo, cuja humanidade, em razão de sua união à divindade, possui o poder de justificar. Mas a influência exercida sobre os membros da Igreja por modo de governo exterior pode pertencer a outros além de Cristo, e é nesse sentido que alguns são chamados de cabeças da Igreja… Cumpre, porém, notar estas diferenças com relação a Cristo: em primeiro lugar, Cristo é cabeça de todos os que pertencem à Igreja, em qualquer lugar, tempo ou situação em que se encontrem; os outros homens são cabeças somente com relação a certos lugares determinados, como os bispos para suas igrejas; ou com relação a um tempo determinado, como o Papa, que é cabeça de toda a Igreja durante o tempo de seu pontificado; e, finalmente, com relação a uma situação determinada, a saber: o estado de peregrino terrestre. Em segundo lugar, Cristo é cabeça da Igreja por seu próprio poder e sua própria autoridade, enquanto os outros não são cabeças senão por fazerem as vezes de Cristo, segundo esta palavra da 2.ª Epístola aos Coríntios: “Se dei algo, foi por vós, e na pessoa de Cristo”; e ainda: “É por Cristo que fazemos a função de embaixador, o próprio Deus exortando por nosso intermédio”.» (3.ª parte, q. 8 a. 6, tradução Héris).
Contudo, essa participação na Realeza de Cristo, efeito da consagração episcopal, pressupõe o sacerdócio em seu sujeito. A mesma unção consagrou Cristo rei e sacerdote na sua Humanidade santa, mas, à medida que descemos às esferas inferiores, a multiplicidade se nos impõe: a realeza se divide do sacerdócio, embora seja deste o coroamento. O sacerdote, que tem poder sobre o corpo real do Senhor, santifica o fiel pela Eucaristia e os sacramentos que preparam a ela, assim como dá a ele um posto entre os membros do corpo místico de Cristo; resta-lhe, por causa de seu poder régio, presidir às evoluções de sua vida, que são as mesmas do Corpo místico; nesse sentido, dir-se-á legitimamente que o episcopado é o acabamento do sacerdócio – embora não esteja acima deste como uma oitava ordem –, tal como o sacerdócio amplia o poder inferior do diaconato: “O episcopado não é uma nova ordem, mas uma perfeição na ordem, senão contar-se-iam mais de sete ordens” (De perfectione vitæ spiritualis, c. 21). O episcopado excede o sacramento; se bem que a consagração que o confere produza no eleito uma realidade permanente, essa realidade não é, em sentido estrito, um caráter; o caráter – vale lembrar – é uma participação no sacerdócio de Cristo, já o efeito da consagração episcopal é fazer o eleito participar da Realeza de Cristo, pela qual ele comunga da Realeza de Deus, princípio primeiro de sua excelência.
Nosso autor, uma vez mais, se explica:
«Afirmar absolutamente que o Episcopado não é uma ordem seria evidentemente falso. Dionísio di-lo expressamente: a hierarquia eclesiástica compreende três ordens: o episcopado, o presbiterado, a ordem ministerial. A ordem dos bispos pode ser considerada sob quatro aspectos. O Bispo, efetivamente, ocupa um escalão à parte no corpo místico de Cristo, a Igreja, sobre o qual ele recebe um poder superior e quase régio. Mas, com relação ao corpo real de Cristo, contido no Sacramento, a ordem dele não é mais elevada que a do simples sacerdote. Que ele possui uma ordem e não somente uma jurisdição, isso resulta do fato de o bispo poder realizar muitos atos para os quais ele não pode delegar: confirmar, ordenar, consagrar igrejas, etc.; ora, o que é da alçada da jurisdição é suscetível de delegação. Finalmente, essa verdade se afirma pelo fato de que, se um bispo destituído é reconduzido a suas funções, sua consagração não é renovada, seu poder de ordem sendo permanente assim como nas outras ordens» (De perfectione vitæ spiritualis, c. 24).
O bispo aparece, pois, abaixo de Cristo, como um cabeça que preside a toda a vida do corpo místico, como Doutor da Verdade e Fonte da Graça.
Sua obra consiste em assegurar a geração, bem como a conservação e incremento dessa vida, e em criar por meio do sacerdócio um organismo santificador; é uma obra de plenitude, é a obra de Cristo em seu corpo.
«O Bispo recebe o poder de agir como representante de Cristo sobre Seu corpo místico, a Igreja, poder que o sacerdote não herda em sua consagração, se bem que ele possa recebê-lo do Bispo por delegação. É por isso que tudo o que não pertence à regência do Corpo místico não está reservado ao bispo, como por exemplo a consagração deste sacramento (a Eucaristia). Ao bispo pertence, pois, assegurar não somente aos fiéis, mas também aos sacerdotes, tudo o que for útil para a realização de suas funções próprias. E, dado que as bênçãos do crisma, do óleo santo e do óleo dos enfermos, assim como as consagrações (por exemplo) do altar, da igreja, das vestes e do cálice, permitem que essas coisas sejam utilizadas com vistas à confecção dos sacramentos que é obra dos sacerdotes, essas consagrações são reservadas ao bispo, como ao cabeça de toda a ordem eclesiástica» (3.ª parte, q. 82 a. 1 sol. 4).
Desse principado, Dionísio vê um símbolo na imposição do livro dos Evangelhos que se faz na consagração do bispo; sobre o eleito parece verter-se a plenitude da virtude hierárquica, concentrada em Cristo, de que os Evangelhos são uma encarnação. Compreende-se, a partir daí, esta insistência de um Inácio de Antioquia: “É necessário que, onde está o bispo, ali esteja o seu povo; tal como onde está Cristo, aí está a Igreja Católica” (Epístola aos Esmirnenses). O bispo é o pai e fundamento de sua Igreja, como Cristo o é da Igreja universal; assim merece ele, à semelhança de Cristo, o título de esposo da Igreja.
Tal como a parte não se explica bem senão reinserida no todo, e tal como a perfeição do membro se afirma por suas conexões com o corpo inteiro, o bispo só é definido com exatidão na sua comunhão com todo o corpo episcopal. Seu principado em sua igreja particular é efeito dessa comunhão, assim como a virtude de um membro lhe vem de seu corpo; antes de ser bispo de uma igreja específica, ele é bispo da Igreja.
“O episcopado é um, observa São Cipriano (De unitate Ecclesiæ n. 5); cada uma de suas partes dele possui a perfeição total”. Tal é o mistério da unidade da Igreja, cuja riqueza de vida está por inteiro no corpo todo e por inteiro em cada um de seus membros: o bispo é hierarca em sua igreja porque o episcopado o é na Igreja universal; foi ao episcopado coletivo, e por ele a cada um de seus representantes, que Cristo, na pessoa dos Apóstolos, confiou sua Verdade e sua Vida; esse tesouro comum, o bispo transmite-o à porção do rebanho agrupada sob o seu báculo; essa paternidade, porém, é aquela de todo o colégio pastoral; embora um membro aja conforme sua disposição própria, sua ação não deixa de ser a do corpo inteiro. Assim “os bispos dispersos formam, espiritualmente, por sua união entre si e com a Santa Sé, uma espécie de concílio permanente. Os intercâmbios de vida que circulam do centro para a periferia, e vice-versa, ou mesmo lateralmente, de sé para sé, assemelham-se ao que sucede num organismo saudável, no qual tudo não se confunde e tudo não é igual, mas no qual tudo é recíproco” (Sertillanges, L’Église : Son Organisation [A Igreja: Sua Organização], c. VII: A ordem episcopal).
Essa plenitude de atividade e essa unidade de vida resplandecem nas reuniões solenes do corpo episcopal; com seus irmãos no episcopado, o bispo nelas se mostra com inteira verdade Pastor da Igreja inteira; no Concílio ecumênico, ele se assenta como juiz da fé e como senhor da santificação, responsável pela decisão comum: “Pareceu bom ao Espírito Santo e a nós” (Act. XV, 28).
Contudo, no Colégio episcopal, ossatura do corpo místico de Cristo, manifesta-se uma nova hierarquia, que reduz a uma unidade mais estrita aquilo que, sem ela, conservaria ainda uma aparência de multiplicidade. Enquanto que cada membro desse Colégio exerce diretamente sua autoridade num domínio limitado, há um deles que preside à evolução total da Igreja; bispo como seus irmãos, ele é, porém, o cabeça deles; seu poder, embora do mesmo gênero que o deles, é de uma amplitude mais vasta; seu papel é o da cabeça que vivifica, no corpo inteiro, mas a títulos diversos, tanto os órgãos principais quanto os membros subalternos; ele é princípio de unidade, ao mesmo tempo que de vida.
Esse bispo, o primeiro dos bispos, é o sucessor de Pedro, o fundamento escolhido por Cristo para edificar a sua Igreja. Ele é o cabeça visível da Igreja, vigário do único e invisível Cabeça, pois não há duas cabeças na Igreja, assim como não há duas cabeças num mesmo corpo, nem dois Clavígeros no Reino dos Céus, nem duas pedras angulares sobre as quais se edifique a salvação da humanidade. Pertence à essência do vicário constituir uma só pessoa hierárquica com aquele que ele representa e cuja causa ele gere, e também exercer a autoridade deste sem divisão nem distinção de grau. É por isso que Cristo, sem maiores distinções, chamou Simão Bar Jona de: a pedra sobre a qual Ele edificará sua Igreja (Matth. XVI, 13-21), o Doutor que confirmará seus irmãos na Verdade (Luc. XXII, 32), o Pastor que apascentará os cordeiros e as ovelhas (Jo. XXI, 15-18). Simão – e nele os pontífices seus sucessores – herdou “toda a autoridade de Jesus sobre a Igreja e sobre o episcopado, sem que ela fosse dividida ou diminuída; com Jesus Cristo e por Jesus Cristo, ele é na plena força do termo o Cabeça do Colégio episcopal, a Cabeça da Igreja universal” (Dom Gréa, L’Église, VI, c. 1).
A atividade do Papa, o primeiro dos Pastores, pode revestir-se de dupla forma: a da cabeça que age simultaneamente com o corpo que ela vivifica, de tal sorte que a ação é atribuída tanto a esse corpo como à cabeça, embora a títulos diferentes. É o caso do Concílio: a decisão aí é comum ao cabeça e aos membros do Episcopado, a estes vivificados por aquele, àquele rematado nestes. Os membros agem sob a influência capital, mas a cabeça faz sua perfeição manifestar-se em seus membros. Essa manifestação certamente não é necessária para a ação da cabeça; os membros do corpo místico, efetivamente, diferentemente dos membros dos corpos físicos, nada acrescentam à perfeição da cabeça nem intensificam sua atividade; no corpo físico a cabeça é membro, já no corpo místico ela não o é de maneira alguma, ela é fonte e ela possui a plenitude da perfeição.
O Papa, depositário da plenitude da autoridade de Cristo, pode, portanto, arcar só ele com a responsabilidade pelo exercício dela, e foi assim que Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição. Seria, no entanto, desconhecer o verdadeiro caráter dessa iniciativa introduzir uma divisão entre o cabeça e o Corpo todo; o cabeça fala em nome da Igreja, toda a Igreja está em seu cabeça; na definição, o Papa é “a boca da Igreja”. Dessa comunhão, viu-se um sinal visível na averiguação pontifícia sobre o sentir da Igreja antes da promulgação do dogma da Virgem Imaculada; era afirmar a unidade do princípio vivificante, íntimo a todo o corpo de Cristo, ao organismo governante e aos membros governados: o Espírito Santo que sugere toda a verdade.
Em nota precedente, esse poder plenário do Vigário de Cristo foi definido: sendo ele próprio parte da Igreja constituída por Cristo, ele pressupõe essa constituição e não pode modificá-la; ele não pode trazer uma verdade nova, assim como não pode instituir um canal de vida outro que não os sete sacramentos, e não pode tampouco suprimir o organismo pastoral que prolonga sua influência através da Igreja inteira; tudo é obra do Fundador, o papel do Vigário é de regê-la, respeitando-a.
A comunicação na atividade pastoral, que acabamos de sublinhar entre o episcopado e o pontificado supremo, é um aspecto do poder de regência que reside neste último.
Centro da comunhão episcopal, o Papa é desta, igualmente, o princípio: a ele pertence chamar um membro de Cristo a essa comunhão e determinar-lhe, no corpo místico, a porção a cuja vida ele presidirá. Cabeça de toda a ordem hierárquica, ele designa a cada um o seu posto; é, num domínio mais amplo, o poder do bispo que chama um sujeito à ordem sacerdotal e lhe confia parte de sua autoridade. Contudo, é remota a analogia entre a relação do pároco com seu bispo e a do bispo com o Papa; embora o jurista, em razão dessa analogia, possa qualificar identicamente a dupla jurisdição episcopal e paroquial, o teólogo porém se aplica em frisar a distinção entre as duas.
A consagração sacerdotal, de ordem estritamente sacramental, não pede por si mesma alguma jurisdição sobre o corpo místico, embora ela crie uma aptidão a essa jurisdição; assim, nos mosteiros, monges são ordenados sacerdotes cuja vida solitária exclui toda atividade pastoral. A consagração episcopal, pelo contrário, é de um gênero outro que o da consagração sacerdotal, pois ela confere sobre o corpo místico o poder de regência de Cristo, ela cria uma exigência de jurisdição; a jurisdição é assim o acabamento da consagração. Ademais, a Igreja, na sua prática, fornece um testemunho dessa doutrina pelo fato de ela jamais consagrar um bispo sem lhe dar, ao mesmo tempo, um título; esse título pode até ser o de uma igreja hoje desolada, mas o princípio é firme: todo bispo, ao chamado do Pontífice supremo, é Pastor nato de uma igreja.
Cabe ao Pontífice supremo, portanto, presidir toda a ordem hierárquica, estabelecida por Cristo; confiar mediante a consagração, àqueles que ele julga dignos disto, as altas funções do episcopado; permitir a eles o legítimo exercício deste; cabe a ele, o primeiro Doutor, o primeiro Hierarca, o primeiro Legislador, apascentar tanto os cordeiros quanto as ovelhas, confirmar seus irmãos; cabem a ele as chaves do Reino dos Céus. Ele é, na Igreja, o centro da vida cuja realidade transborda de nossas fórmulas. Nele os poderes múltiplos e variados se reagrupam na unidade; por ele se estabelecem as comunicações entre os membros; a respeito do Papa se verifica visivelmente a fórmula do Apóstolo, escrita a respeito de Cristo: “é por ele que todo o Corpo coordenado e unido pelos vínculos de membros, que prestam uns aos outros auxílio mútuo cada qual operando segundo sua medida de atividade, cresce e se aperfeiçoa na Caridade” (Eph. IV, 16).
Trad. por Felipe Coelho.
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